RESUMO: O presente artigo trata da questão relativa à necessidade de previsibilidade das decisões judiciais em razão da segurança jurídica em contraponto à possibilidade de mudança de jurisprudência e independência funcional dos membros do Poder Judiciário.
1. Introdução
Um dos vetores que orientou a elaboração do CPC de 2015, como não poderia deixar de ser, foi a segurança jurídica, com especial preocupação com a previsibilidade das decisões judiciais.
Nesse sentido, é se suma importância o enfrentamento da matéria, analisando seus contornos, sobretudo em face do risco de engessamento do direito.
2. Princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança
A segurança, em que se inclui a segurança jurídica, constitui um dos fundamentos do Estado de Direito. Em troca de segurança, os indivíduos abrem mão de uma parcela de sua liberdade[1]. Nesse sentido, Marinoni classifica a segurança jurídica como “direito fundamental e subprincípio concretizador do princípio do Estado de Direito”[2].
O princípio do Estado de Direito visa a dar resposta ao problema do conteúdo, extensão e modo de agir do Estado. O direito informador da juridicidade estatal aponta para a ideia de justiça, que compreende, dentre outras esferas, o direito de ser tratado igualmente pela lei e pelos órgãos aplicadores dessa[3]. Nesse sentido, Roque Antonio Carrazza assevera que a segurança jurídica, com o objetivo de preservar e proteger as justas expectativas das pessoas, veda a adoção de medidas legislativas, administrativas ou judiciais que frustrem a confiança depositada nas normas jurídicas[4].
A segurança e a igualdade não se esgotam na produção legislativa. Segundo José Afonso da Silva, segurança no direito é aquela que exige a sua positividade, porém, direito seguro nem sempre é direito justo, a exemplo de regimes autoritários fundados em leis positivadas; já o direito inseguro é injusto, pois não assegura o princípio da igualdade[5]. Assim, o autor define segurança jurídica, em sentido estrito, como
garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu[6].
Por sua vez, Canotilho traz à tona o princípio da proteção da confiança, fazendo a seguinte diferenciação entre ele e o da segurança jurídica:
Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos [...] Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial [7].
A proteção da confiança é, então, uma derivação da segurança jurídica que considera os aspectos subjetivos desse princípio. O ordenamento jurídico deve tutelar a confiança do jurisdicionado, por meio da previsibilidade do direito[8]. No fundo, não obstante eventual distinção conceitual, ambos os princípios, em seus desdobramentos, visam a conferir segurança, estabilidade e previsibilidade para a sociedade quanto ao exercício do poder pelo Estado, que o homem necessita para conformar de forma autônoma e responsável sua vida. Os dois assumem um papel central na concretização do Estado de Direito.
José Afonso da Silva, recorrendo à lição de Vanossi, trata de uma só vez do aspecto objetivo e subjetivo da segurança dos direitos, afirmando que ela consiste no “conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências dos seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida”[9].
Justificando a necessidade de previsibilidade do Direito, Theophilo Cavalcanti Filho, citado por Jorge Amaury Nunes, assevera que “a certeza do direito é fundamental ao homem, porque lhe permite saber qual a qualificação que poderá esperar para a sua ação ou para a ação dos demais”[10].
Jorge Amaury Nunes classifica a segurança jurídica como razão fundante do Direito, in verbis:
é possível afirmar, sem receio, que o princípio da segurança jurídica tem validade universal e pode ser examinado em qualquer ordenamento jurídico. Não importa a que escola esteja vinculado o pesquisador (formalista, idealista, realista etc.), sempre a segurança jurídica informará o Direito como princípio, como razão fundante. O que pode variar é a extensão e a densificação que se possa dar ao princípio[11].
A essência do Direito não está nas normas gerais, mas nos efeitos que elas produzem na sociedade, isto é, a lei não é considerada um fim em si mesmo, mas um meio de regulação das relações sociais. Não por outro motivo, há quem defenda que o desuso da norma retira a sua validade, como Tercio Sampaio Ferraz Jr.[12].
A repercussão da norma na sociedade é que vai sinalizar para ela quais são os contornos dos direitos positivados e das obrigações legais. Desse modo, Marinoni alerta para o fato de que “um sistema incapaz de garantir a previsibilidade, assim, não permite que o cidadão tome consciências dos seus direitos, impedindo a concretização da cidadania”[13]. Sob esse prisma, é legitima a expectativa social de que os comportamentos adaptados a uma decisão emanada do Estado, na interpretação de uma norma geral, não serão reputados ilícitos no futuro, de modo que os cidadãos devem adequar suas ações à norma individual.
Segurança jurídica encontra-se intrinsecamente ligada à ideia de justiça, porém, com ela não se confunde. Carmem Lúcia Antunes Rocha afirma que a primeira não é valor, mas qualidade de um sistema ou de sua aplicação; já a segunda, sim, é valor, buscado pela positivação e aplicação do Direito[14]. Por outro lado, Jorge Amaury Nunes defende que segurança jurídica é sim valor e não é imaginável uma situação em que ela tenha desaparecido e se possa falar em justiça[15]. A segurança é fundamental para a justiça. Em vista disso, os ordenamentos jurídicos contemporâneos incorporaram institutos que, à primeira vista, soam injustos, mas visam a conferir maior segurança à sociedade, como a prescrição, a decadência e a coisa julgada. À segurança jurídica foi reservado o papel no sistema direito de realização da própria ideia de justiça material[16].
Segurança é, portanto, um objetivo fundamental do direito, como meio de realização da justiça e de garantia de igualdade. Disso decorre a necessidade de estabilidade e previsibilidade das decisões judiciais, sobretudo aquelas que resolvem questões já enfrentadas pelo Poder Judiciário em outras ocasiões, em que foi transmitida para a sociedade a interpretação dos tribunais de determinada norma, isto é, o tribunal, em regra, deve seguir uma mesma linha de raciocínio para situações similares e adotar o mesmo entendimento para situações idênticas.
Luís Roberto Barroso destaca como desdobramentos da segurança jurídica a confiança nos atos do poder público, que deverão reger-se pela razoabilidade e boa-fé; estabilidade das relações jurídicas, com durabilidade das normas, anterioridade das leis e conservação de direitos em face da lei nova; previsibilidade dos comportamentos das pessoas e das instituições e igualdade perante a lei, com soluções isonômicas para controvérsias idênticas ou próximas[17].
Por sua vez, Paulo Nader ressalta a importância da previsibilidade das decisões judiciais e da estabilidade da jurisprudência, in verbis:
O princípio da prévia calculabilidade da sentença, fruto dos tempos modernos, revela que, se os fatos estão claros e definidos, se a lei está ao alcance de todos, havendo, assim, a certeza jurídica, como em um silogismo, as partes poderão deduzir, antecipadamente, o conteúdo da sentença judicial.
...
Para que haja certeza jurídica é indispensável que a interpretação do Direito, pelos tribunais, tenha um mesmo sentido e permanência. A divergência jurisprudencial, em certo aspecto, é nociva, pois transforma a lei em Jus Incertum. A segurança que o Direito estabelecido pode oferecer fica anulada em face da ascilação e da descontinuidade jurisprudência[18].
Na mesma linha, Marinoni afirma que
Para que o cidadão possa esperar um comportamento ou se postar de determinado modo, é necessário que haja univocidade na qualificação das situações jurídicas. Além disso, há que se garantir-lhe previsibilidade em relação às consequências das suas ações. O cidadão deve saber, na medida do possível, não apenas os efeitos que as suas ações poderão produzir, mas também como os terceiros poderão reagir diante delas. Note-se, contudo, que a previsibilidade das consequências oriundas da prática de conduta ou ato pressupõe univocidade em relação à qualificação das situações jurídicas, o que torna esses elementos indissociavelmente ligados[19].
A segurança jurídica é essencial para a concretização da justiça, na medida em que passa para o cidadão uma tranquilidade quanto à conformação de seus atos com o Direito, além de garantir uma igualdade de tratamento para situações semelhantes.
O ordenamento jurídico deve ser dotado de um mínimo de continuidade e estabilidade, para que o Estado de Direito não seja um Estado provisório[20]. A previsibilidade dos cidadãos quanto à exata delimitação de seus direitos não pode ser a mesma que a de um apostador de loteria, que tem apenas uma expectativa remota quanto às consequências do seu ato.
3. Eficácia retro-operante da alteração e do cancelamento dos enunciados de súmula da jurisprudência dos tribunais
Afirmar que a aplicação da mesma lei a casos semelhantes garante a efetiva observância do princípio da igualdade só faz sentido quando se admite a premissa equivocada de que o monopólio do direito está no Poder Legislativo[21], pois os resultados decorrentes da interpretação da norma podem ser diversos e, às vezes, diametralmente opostos.
Não obstante se admita a possibilidade de alteração da jurisprudência, tal fenômeno deve ser precedido de uma discussão profunda sobre os fundamentos que podem motivar a superação do entendimento anterior, pois a instabilidade das decisões judiciais afronta a segurança jurídica. Além disso, as variações não podem ser corriqueiras, pois, como adverte José Augusto Delgado:
Configura-se desastroso, destruindo todos os aspectos axiológicos da segurança jurídica, quando o Poder Judiciário, sem que tenha havido modificação legislativa, muda de orientação, detonando estado de incerteza, de insegurança e de confiabilidade, situações que não contribuem para homenagem duradoura ao Estado Democrático de Direito[22].
Ultrapassada a etapa da discussão acerca dos fundamentos em que se assenta o entendimento pretoriano, está autorizado o câmbio da jurisprudência. Entretanto, isso não implica dizer que os efeitos daí decorrentes devem ser aplicados sempre retroativamente, pois, como alerta Êstevão Mallet:
a jurisprudência que se acha assente e sedimentada, tanto mais a dos tribunais superiores, especialmente aquela compendiada em verbetes publicamente divulgados, cria expectativas, produz confiança, induz comportamentos[23].
Jurisprudência pode ser compreendida como a revelação do direito a partir de um conjunto de decisões harmônicas no exercício da jurisdição[24], o que demanda a interpretação da norma geral que dá origem à individual. A mudança de entendimento dos tribunais nesse mister é uma realidade irrefutável no direito. A questão que se coloca, então, não é sobre a possibilidade de tal fenômeno acontecer, mas em que situações tal isso pode ocorrer e os efeitos daí decorrentes. Nesse sentido, Canotilho ensina que:
Sob o ponto de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais, mas sempre se coloca a questão de saber se e como a protecção da confiança pode estar condicionada pela uniformidade, ou, pelo menos, estabilidade, na orientação dos tribunais[25].
Muitas vezes a limitação dos efeitos das decisões que implicam alteração da jurisprudência não é discutida com a importância que o tema merece. Em 2012, o Tribunal Superior do Trabalho alterou significativamente o item III do Enunciado nº 244 da Súmula de sua jurisprudência que assim dispunha:
Não há direito da empregada gestante à estabilidade provisória na hipótese de admissão mediante contrato de experiência, visto que a extinção da relação de emprego, em face do término do prazo, não constitui dispensa arbitrária ou sem justa causa[26].
A nova redação do item ficou assim:
A empregada gestante tem direito à estabilidade provisória prevista no art. 10, inciso II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato por tempo determinado[27].
Com a alteração, o Tribunal passou a entender que a empregada que engravidar durante o período do contrato de experiência tem direito à estabilidade no emprego, prevista do ADCT, conclusão em sentido oposto ao anteriormente adotado pela Corte. Surgiu então a discussão sobre a situação dos empregadores que antes da alteração do enunciado não asseguraram a estabilidade das gestantes em contrato de experiência, agindo em conformidade com a orientação à época preconizada pelo TST. Eis a resposta dada pelo Tribunal à questão:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. GESTANTE. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. CONTRATO POR PRAZO DETERMINADO. MODALIDADE EXPERIÊNCIA. 1. A decisão regional, ao assentar -que tanto a empregada contratada por prazo indeterminado quanto a empregada contratada por prazo determinado são detentoras do direito à estabilidade provisória da gestante, prevista no art. 10, II, "b", do ADCT-, guarda sintonia com a atual redação da Súmula 244, item III, do TST, que sedimentou entendimento no sentido de que a empregada gestante tem direito à estabilidade provisória prevista no art. 10, II, "b", do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato a prazo determinado. 2. A incidência do art. 896, § 4º, da CLT e a Súmula 333/TST constituem óbice ao trânsito da revista, e, consequentemente, o provimento do agravo de instrumento. 3. Não há falar em ofensa à segurança jurídica, à irretroatividade das leis ou ao ato jurídico perfeito pela incidência do entendimento ora consagrado na Súmula 244, III, do TST sobre situação jurídica anterior à sua publicação. A edição, a alteração ou o cancelamento de verbete jurisprudencial por esta Corte Superior não tem natureza de ato legislativo, consistindo apenas na consolidação da jurisprudência produzida por este Tribunal ao longo do tempo, ou sua revisão, ao interpretar e aplicar, a determinada situação concreta, a legislação vigente. Dessa forma, os verbetes sumulares e jurisprudenciais não estão sujeitos às regras de direito intertemporal. Precedentes. Agravo de instrumento conhecido e não provido[28]. (sem destaques no original)
A orientação fixada pelos tribunais, sobretudo os superiores e do Supremo Tribunal Federal, gera expectativas legítimas na sociedade e estimula comportamentos, uma vez que, num sistema em que se busca coesão e segurança, não há como admitir que os cidadãos possam livremente optar por seguir ou não o entendimento preconizado pelos órgãos estatais responsáveis pela interpretação das leis e da Constituição, fontes normativas por excelência, mormente quando se considera que tais órgãos são dotados de autoridade suficiente para impor suas decisões sobre os jurisdicionados. Da função dos tribunais superiores e do STF de uniformizar a interpretação da Constituição Federal e das leis, surge, por conseguinte, o poder-dever de enunciar pautas gerais de comportamento, que, quando alteradas implicam “a quebra de uma legítima expectativa que viola a segurança jurídica e a igualdade” [29]. Tal qual a lei, a jurisprudência é o fonte de criação do direito, como já apontado no capítulo anterior. Daí por que a preocupação de Êstevão Mallet, assim sintetizada: “a aplicação retroativa de nova interpretação jurisprudencial compromete, tanto quanto a aplicação retroativa da lei, a estabilidade das relações jurídicas e atenta contra o ideal de segurança”[30]. Ora, se nem mesmo à lei foi dado o poder de alcançar os atos jurídicos perfeitos, como poderia se justificar a afirmação de que os câmbios de jurisprudência devem ser sempre produzir efeitos retroativos?
Carrazza assevera que a segurança jurídica exige que “as leis, os atos administrativos em geral e a jurisprudência tenham o timbre da irretroatividade. Daí falamos sic em irretroatividade do Direito e não, apenas, das leis”[31].
O alcance do novo entendimento deve sempre observar critérios de segurança e interesse público. A título de exemplo, vale mencionar o caso do cancelamento do Enunciado nº 394 da Súmula da jurisprudência do STF. A Corte concluiu que o referido Verbete, editado antes da Constituição de 1988, que previa que “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”, não era compatível com a atual Carta Política. Contudo, na ocasião, o Tribunal decidiu preservar todos os atos praticados e decisões proferidas com base na orientação cancelada, mesmo que realizados por autoridade incompetente[32].
O legislador ordinário, ao regular as ações de controle concentrado de constitucionalidade das leis, admitiu a atribuição de efeitos prospectivos da decisão por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social (artigo 27 da Lei nº. 9.868/99), ou seja, até mesmo os atos aperfeiçoados com base na norma inconstitucional podem ser preservados pelo Supremo Tribunal Federal. É bem verdade que a hipótese não trata de um câmbio de jurisprudência, mas de retirada do ordenamento jurídico de uma norma incompatível com a Constituição da República, porém, isso demonstra a importância da segurança no direito.
O legislador não cuidou de definir os termos “segurança jurídica” e “excepcional interesse social”, expressões de difícil conceituação. A primeira está ligada à ideia de previsibilidade das consequências dos atos jurídicos praticados pelos cidadãos, relacionando-se com a noção de justiça; já o segundo pode ser verificado com uma projeção da repercussão da decisão judicial na sociedade, que às vezes justifica a manutenção dos efeitos dos atos em desconformidade com o direito, pois tem em seu cerne a preocupação com os interesses da sociedade, que podem se opor aos interesses do Estado[33].
Avançando no tema, o projeto do novo Código de Processo Civil, ainda em discussão no Congresso Nacional, traz importante inovação, ao prever expressamente que, na hipótese de alteração da jurisprudência, o tribunal poderá limitar temporalmente os efeitos da decisão que supera o entendimento anterior (§ 10 do art. 521). Em que pese a redação do dispositivo utilizar o verbo “poderá”, na verdade, essa deve ser a regra, admitindo-se, excepcionalmente, a produção de efeitos retroativos da alteração da jurisprudência. No mesmo sentido, o professor Marinoni apresenta sugestão de alteração do CPC para atribuir força obrigatória aos precedentes e propõe que nos casos de sua alteração o tribunal “deverá definir os efeitos da revogação, que, em regra, serão prospectivos”[34]. Vale lembrar que anteriormente, ao arrematar a obra intitulada Precedentes obrigatórios, também com um sugestão de alteração da lei processual, o mesmo autor foi bem menos incisivo quanto à regra dos efeitos prospectivos da alteração do entendimento, sugerindo que em caso de revogação do precedente com eficácia vinculante o tribunal poderia “limitar sua retroatividade ou dar-lhe efeitos prospectivos, considerando o grau de confiança depositado no precedente e a importância de se aplicar imediatamente a decisão para o tratamento isonômico dos jurisdicionados”[35].
Não se trata de aplicação indiscriminada das regras de direito intertemporal, próprias das leis, tal como afirmado pelo TST, mas de proteção da confiança legitima dos jurisdicionados depositada na orientação transmitida pelo Poder Judiciário. Dessa reflexão é possível até mesmo que o tribunal conclua pela aplicação retroativa da revogação da jurisprudência, a depender do grau de confiança depositado no precedente.
Nesse sentido arremata Carrazza:
qualquer Tribunal Superior, ao alterar sua jurisprudência consolidada, mais do que a faculdade, tem o infestável dever de limitar os efeitos temporais da nova orientação, preservando fatos ou situações ocorridos sob a égide da orientação anterior, bastando, para tanto, estejam presentes “razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social”.
Perseguir uma ideia de justiça total, a qualquer custo, tende a gerar efeitos contrários aos pretendidos, pois, como já visto, a segurança é qualidade da justiça. O direito, como regulador das mais diversas situações da vida em sociedade, influencia diretamente a confiabilidade dos negócios jurídicos a serem celebrados e, por isso, as respostas que os tribunais dão para os conflitos não podem se afastar da preocupação com os seus efeitos no futuro e sobre os atos passados. A instabilidade do ordenamento jurídico e a repercussão disso em eventos pretéritos cria um fator de risco indesejado para a economia e as relações sociais, refletindo nos resultados de crescimento e desenvolvimento do país.
4. Previsibilidade das decisões judiciais x engessamento da jurisprudência
A afirmação da necessidade de estabilidade na jurisprudência e preservação dos atos jurídicos praticados sob a égide da orientação pretoriana revogada desperta uma preocupação com o engessamento das decisões judiciais. José Afonso da Silva alerta para a tendência de a segurança jurídica “se opor às transformações, inclinando-se ao conservadorismo ligado à classe dominante”[36]. Contudo, isso não pode servir de subsidio para obstar a superação de interpretações normativas equivocadas ou a absorção pelo judiciário das novas demandas sociais.
Na lição de Jorge Amaury Nunes, leis estáveis são “mais ou menos duráveis, que dão ao jurisdicionado a sensação de perenidade ou, ao menos, de continuidade”[37]. A mutabilidade da jurisprudência, tal como já visto no tópico anterior, é um fenômeno natural no direito, porém, isso não implica admitir que essas alterações possam ocorrer com frequência, sem que tenha havido nenhuma variação no estado da sociedade ou nas normas que serviram de substrato para aquela orientação. Em outras palavras, não se está aqui a defender, a pretexto da estabilidade, que a jurisprudência não pode sofrer alterações, mas, sim, que essas modificações não podem ser corriqueiras e devem observar determinados critérios. Obviamente, o órgão jurisdicional responsável por interpretar a norma tem a possibilidade adotar nova interpretação. Porém, para que essa variação não se confunda com arbitrariedade, é essencial que seja baseada em métodos interpretativos justificados e preserve os atos praticados à época da orientação judicial anterior em conformidade com ela, que geraram expectativas legítimas nos jurisdicionados[38]. O principal problema não está no câmbio da jurisprudência em si, mas na falta de avaliação profunda da fundamentação do precedente para a sua superação e de proteção da confiança do cidadão.
Rafael Santos de Barros e Silva destaca que o câmbio da jurisprudência adquire um tom de arbitrariedade quando interfere nas pautas de conduta sociais já consolidadas, in verbis:
Uma mudança na jurisprudência de um tribunal superior, por exemplo, por si só, não representa infringência a qualquer normal legal, entretanto, ao implicar mudança repentina em uma pauta de conduta que já estava consolidada no mundo jurídico, tal ato passa a ser arbitrário quando não protege aqueles que confiaram na norma jurídica anterior[39].
Ao se atribuir eficácia necessariamente retroativa aos câmbios de jurisprudência, os transtornos e problemas são ainda maiores do que se houvesse uma delimitação temporal dos efeitos do novo entendimento, o que aumenta a resistência à evolução, criando uma tendência de os tribunais manterem a jurisprudência não pelo mérito da discussão, mas por questões de ordem prática[40].
Logo, a limitação temporal dos efeitos do novo entendimento pretoriano, além de garantir a igualdade e a segurança jurídica, protegendo a confiança dos cidadãos, reduz os transtornos de ordem prática da alteração, diminuindo a resistência à evolução do direito, ao contrário do que se poderia imaginar.
5. Conclusão
Como forma de concretização do princípio da segurança jurídica, é essencial que haja uma previsibilidade das decisões do Poder Judiciário, para que a sociedade possa conformar sua conduta com base nos comandos emanados do Estado. Isso, contudo, não pode importar engessamento do direito, que deve se adaptar às mudanças sociais. Nesse sentido, devem ser prestigiados os mecanismos que atenuam o impacto das mudanças de entendimentos judiciais sobre os destinatários das decisões.
[1] BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 49-50.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. In: A força dos precedentes. Estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual civil da UFPR. Coord. Luiz Guilherme Marinoni. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 565.
[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 243-245.
[4] CARRAZZA, Roque Antonio. Segurança jurídica e eficácia temporal das alterações jurisprudenciais. In: Efeito ex nunc e as decisões do STJ. 2. ed. Barueri: Manole, 2009, p. 43.
[5] SILVA, José Afonso da. Constituição e Segurança Jurídica. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Coord. Cármen Lúcia Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 16-17
[6] Ibidem, p. 16-17.
[7] CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 257.
[8] MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. In: A força dos precedentes. Op. cit., p. 571.
[9] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 19.
[10] NUNES, Jorge Amaury Maia. Op. cit., p. 86, versão digital.
[11] Ibidem, p. 92, versão digital.
[12] FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Op. cit., p. 173.
[13] MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. In: A força dos precedentes. Op. cit., p. 565.
[14] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício da inconstitucionalidade. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Coord. Cármen Lúcia Antunes Rocha. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 168.
[15] NUNES, Jorge Amaury Maia. Op. cit., p. 89, versão digital.
[16] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 474.
[17] BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 50-51.
[18] NADER, Paulo. Op. cit., p. 128.
[19] MARINONI, Luiz Guilherme. O precedente na dimensão da segurança jurídica. In: A força dos precedentes. Op. cit., p. 560.
[20] MARNINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. Op. cit., p. 130.
[21] SILVA, Rafael Santos de Barros e. Op. cit., p. 44.
[22] DELGADO, José Augusto. A imprevisibilidade das decisões judiciárias e seus reflexos na segurança jurídica. Disponível em <http://www.stj.jus.br/internet_docs/ministros/Discursos/0001105/A%20IMPREVISIBILIDADE%20DAS%20DECIS%C3%95ES%20JUDICI%C3%81RIAS%20E%20SEUS%20REFLEXOS%20NA%20SEGURAN%C3%87A%20JUR%C3%8DDICA.doc> Acesso em 22.05.2014.
[23] MALLET, Êstevão. A jurisprudência sempre deve ser aplicada retroativamente? Curitiba: Revista do TRT da 9ª Região, 2006.
[24] REALE, Miguel. Op. cit., p. 158.
[25] CANOTILHO, J. J. p. 265.
[26] Disponível em < http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_201_250.html#SUM-244>
[27] Ibidem.
[28] AIRR - 285-34.2012.5.15.0097, 1ª Turma, Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann, Data de Julgamento: 19/02/2014, DEJT de 07/03/2014
[29] SILVA, Rafael Santos de Barros e. Op. cit., p. 46.
[30] MALLET, Êstevão. Op. cit.
[31] CARRAZZA, Roque Antonio. Segurança jurídica e eficácia temporal das alterações jurisprudenciais. In: Efeito ex nunc e as decisões do STJ. 2. ed. Barueri: Manole, 2009, p. 48.
[32] Cf. STF – Plenário, Inq. 687 QO/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, julg. em 25.08.99 in DJU de 09.11.01, p. 44.
[33] BORGES, Frederico Alencar Monteiro. Modulação de efeitos em controle difuso de constitucionalidade: fundamentos teóricos e prática jurisprudencial. Monografia de conclusão de curso de graduação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
[34] MARINONI, Luiz Guilherme. Proposta de alteração do CPC para atribuir força aos precedentes. In: A força dos precedentes. Estudos dos cursos de mestrado e doutorado em direito processual civil da UFPR. Coord. Luiz Guilherme Marinoni. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 632.
[35] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. Op. cit., 520.
[36] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 24.
[37] NUNES, Jorge Amaury Maia. Op. cit., p. 92, versão digital.
[38] SILVA, Rafael Santos de Barros e. Op. cit., p. 24.
[39] Ibidem, p. 20.
[40] MALLET, Êstevão. Op. cit.
Bacharel em Direito pela UnB; Técnico Judiciário no Tribunal Superior do Trabalho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOURA, Luiz Henrique Damasceno de. Segurança jurídica e previsibilidade das decisões judiciais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47149/seguranca-juridica-e-previsibilidade-das-decisoes-judiciais. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
Precisa estar logado para fazer comentários.