Resumo: Este trabalho discorre sobre as políticas afirmativas da União com vistas à superação dos obstáculos criações em razão de questões étnico-raciais ou econômico-sociais, em específico sobre as cotas raciais e sociais em universidades e no acesso a cargos públicos efetivos.
Palavras-chaves: Políticas públicas afirmativas; cotas raciais; cotas sociais; União.
Dentre as ações afirmativas levadas a efeito no Brasil têm-se destacado a utilização de cotas raciais e sociais para o acesso ao ensino superior e aos cargos públicos. Cuida-se da reserva de um quantitativo de vagas em instituições de ensino superior públicas ou de bolsas concedidas pelo Poder Público em instituições de ensino privadas e de vagas em concursos públicos para provimento de cargos públicos.
As cotas raciais, como o próprio nome indica, leva em conta fatores raciais. Há quem chegue a dizer que o debate sobre as políticas de ação afirmativa tem por chave mestra a cota racial[1]. Muitas apontam falha na terminologia ou na própria política por se basear no conceito de raça, questionado por muitos estudiosos. No entanto, não é esse o foco do presente trabalho. As cotas raciais são aquelas destinadas às pessoas pretas e pardas.
Em geral esse sistema é justificado em razão de processos históricos depreciativos que atingiram determinados grupos ou categorias de pessoas, que, em virtude disso, teriam maior dificuldade de mobilidade social e de oportunidades educacionais ou que surgem no mercado de trabalho. Além disso, como seriam vítimas de discriminações nas suas interações com a sociedade.
Por seu turno as cotas sociais levam em conta fatores socioeconômicas e visam à superação das desigualdades sociais existentes num dado contexto histórico, proporcionando igualdade de oportunidades a pessoas que ocupam diferentes níveis econômicos na sociedade.
A respeito do tema relevante mencionar as leis federais nº 12.711/2012 e 12.990/2014, que cuidam, respectivamente, da reserva de vagas em universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
A Lei nº 12.711/2012 utilizou-se tanto de critérios raciais quanto sociais, com vistas a beneficiar as camadas mesmos favorecidas da população, seja em razão de discriminação histórica ou de sua condição socioeconômica. Em seu art. 1º, caput, garante que, no mínimo, 50% das vagas oferecidas por instituições federais de educação em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, sejam reservadas a estudantes que tenham estudado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Com efeito, a clientela do ensino médio das escolas públicas são jovens e adolescentes cujas famílias dispõem de poucos recursos financeiros. Ademais, é cediço que a qualidade da educação pública está longe de alcançar níveis satisfatórios ou, no mínimo, razoáveis. Com isso, os estudantes que não dispõem de condição para estudar em uma escola particular, que, empiricamente, tem se mostrado com maior qualidade de ensino, são negativamente desigualados com os que podem pagar.
Assim, a Lei nº 12.711/2012 garante que os desiguais de fato (os que estudaram em escolas particulares, que normalmente tem maior qualidade de ensino, e os que estudaram em escolas públicas, cujas estatísticas mostram a baixa qualidade) tenham igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior. O referido diploma, ainda com foco em critérios socioeconômicos, estabelece que 50% dessas vagas reservadas sejam destinadas a estudantes com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (art. 1º, Parágrafo único).
Especificamente quanto às cotas raciais, a Lei nº 12.711/2012 estabelece a reserva de vagas, dentre aquelas destacadas da concorrência universal pelo art. 1º, caput, para estudantes pretos, pardos e indígenas na proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE (ar. 5º, caput). Tal disposição é extremamente relevante na realização da igualdade material e na superação de obstáculos históricos sofridos pelas pessoas ora beneficiadas. Essa medida garantirá que o acesso de pretos, partos e indígenas seja, no mínimo, proporcional às respetivas populações.
Disciplina semelhante é aplicável aos processos seletivos para ingresso em instituições federais de ensino técnico de nível médio que concluíram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas (arts. 4º e 5º).
Por sua vez, a Lei nº 12.990/2014 garantiu a reserva de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União (art. 1º, caput). A medida visa garantir a participação de uma população historicamente marginalizada na atuação estatal. Tal disposição alcança todos os cargos públicos federais de provimento efetivo que forem ofertados em concurso público.
Almeja-se que as desigualdades que estão sendo corrigidas por meio das medidas estabelecidas nas leis mencionadas devem aos poucos desaparecer em razão da aplicação das referidas ações afirmativas. Por isso, elas tem caráter provisório, eis que assim que obtido o fim almejado com a utilização do discrímen as medidas devem cessar, sob pena de violação do princípio da igualdade.
É por isso que as Leis nº 12.711/2012 e 12.990/2014 estabelecem limitações temporais à aplicação de suas disposições. A primeira aduz que o Poder Executivo deverá promover, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação da referida lei, a revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior (art. 7º). Ou seja, um ato do executivo poderá, dentro dos próximos 10 (dez) anos da publicação daquela lei diminuir ou extinguir o alcance das ações afirmativas nela disciplinadas. Por sua vez, a Lei nº 12.990/2014 tem prazo de vigência limitado a 10 (dez) anos, nos termos do art. 6º.
Sobre a legitimidade das cotas, o Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões já se manifestou nesse sentido. Digno de nota é o julgamento da ADPF 186, na qual o Tribunal Excelso decidiu, por unanimidade, que o sistema de cotas raciais da UnB é constitucional. Na oportunidade, asseverou-se que “a regra tem o objetivo de superar distorções sociais históricas, empregando meios marcados pela proporcionalidade e pela razoabilidade”.
No entanto, não se pode desconsiderar a eventual situação de pessoa que, não sendo pertencente aos grupos beneficiados pelas medidas positivas, venha a delas se utilizar. Isso se dá, especificamente, no que concerne às cotas raciais, seja para ingresso nas instituições de ensino superior, seja em concursos públicos de provimento de cargos públicos. A razão está no fato de que as respectivas leis elegem a autodeclaração como critério para vinculação da pessoa a determinada cor de pele ou raça (preto, pardo ou índio).
Para evitar fraudes o administrador público está autorizado a revisar a autodeclaração, desde que assegure a manifestação da parte interessada, o contraditório e a ampla defesa, bem como haja presunção relativa de boa-fé da declaração. Nesse sentido decidiu o Tribunal Regional Federal da 4ª Região na Apelação Cível 2005.70.00.004708-9/PR:
DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO. DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. AÇÕES AFIRMATIVAS. PROTEÇÃO CONTRA DISCRIMINAÇÃO DE IDENTIDADES E DE ESCOLHAS FUNDAMENTAIS. COTAS ÉTNICO-RACIAIS. RESERVA DE VAGAS. AUTODECLARAÇÃO DE IDENTIDADE RACIAL. COMPREENSÃO E RELEVÂNCIA CONSTITUCIONAL DE RAÇA. CONVENÇÃO PARA A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL.REVISÃO ADMINISTRATIVA. (...) 7. O direito brasileiro adota a autodeclaração como técnica de identificação racial. Compreensão da Convenção para a Eliminação de Discriminação Racial, instrumento internacional de direitos humanos explicitamente internalizado no direito nacional, com força de direito supralegal ou mesmo de direito fundamental. 8. (...) 9. Em favor da autodeclaração também milita a compreensão do Supremo Tribunal Federal sobre o racismo e a raça como construções sociais, produzidas no seio das relações sociais e culturais experimentadas por cada indivíduo e grupo. 10. Além do regime jurídico próprio da proibição de discriminação racial, a fazer prevalecer a técnica da autodeclaração, a manifestação individual é a regra no exercício de outros direitos fundamentais abarcados pelo direito da antidiscriminação, como ocorre com a condição indígena e a opção por confissão religiosa, escolha fundamental juridicamente protegida contra discriminação. 11. O risco de fraude não invalida a autodeclaração, requerendo atenção sobre a possibilidade de desonestidade, a ser corrigida por outros meios que não a impossibilidade da prática do ato. 12. A adoção da autodeclaração como regra para a atribuição de identidade racial não obsta que, na presença de razões suficientes, a Administração sindique a honestidade e a correção da declaração, hipótese explicitamente ressalvada na Recomendação do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas. 13. Do ponto de vista normativo, o procedimento revisional deve não-só assegurar a manifestação da parte contrária, conforme os princípios do contraditório e da ampla defesa, como também partir da presunção juris tantum de boa-fé em favor da declaração. Deve também valer-se da compreensão constitucional manifestada pelo Supremo Tribunal Federal acerca das identidades raciais, resultantes de um processo social, político-cultural. 14. Do ponto de vista fático, o procedimento revisional, quando necessário e justificado, deve valer de elementos fáticos, tais como declarações prestadas em documentos públicos ou privados e a manifestação de terceiros, sendo relativa a comprovação ou não de a declarante ter sofrido discriminação direta e intencional anteriormente, até mesmo em virtude do caráter difuso e não-intencional da discriminação institucional. Também fica relativizada e imprestável, como elemento exclusivo, qualquer consideração biológica que reduza a classificação racial a um dado biomédico ou antropomórfico. 15. No caso concreto, a análise da contestação e dos elementos constantes dos autos revela que a revisão administrativa não observou estes parâmetros, mormente a diretriz fixada pelo Supremo Tribunal Federal, deixando de apresentar justificativa hábil a afastar a declaração da parte autora. Desprovimento dos agravos retidos e provimento do recurso de apelação.
Nesta senda, não há impedimento para a Administração de instituir comissões com vistas a sindicar e revisar as autodeclarações, desde que tenha motivos razoáveis, em ordem a apontar uma possível desonestidade do declarante, apenas com o fim de obter vantagem. É necessário ter em conta, no entanto, a necessidade de se presumir, ainda que de forma relativa, a veracidade da autodeclaração, lembrando ainda que a definição não se dará apenas com base em um dado biométrico ou antropomórfico (fenótipo), mas à luz dos elementos do caso concreto, a demonstrar que socialmente o declarante insere-se naquele grupo.
As ações afirmativas, especialmente as cotas raciais e sociais para ingresso em instituições de ensino superior e para concursos a cargos públicos são medidas fundamentais, no tempo necessário, para o alcance de uma equalização nas oportunidades das pessoas que formam o Brasil.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Cota racial e estado: abolição do racismo ou direitos de raça?. Cad. Pesqui. [online]. 2004, vol.34, n.121 [citado 2015-06-28], pp. 213-239. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742004000100010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1980-5314. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742004000100010.
BRASIL. Constituição, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 25 jun. 2015.
BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>. Acesso em: 25 jun. 2015.
BRASIL. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12990.htm>. Acesso em: 25 jun. 2015.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Cível 2005.70.00.004708-9. 3ª Turma. Apelante: Angélica Xavier de Miranda Ribas Vianna. Apelado: Universidade Federal do Paraná. Relator: Juiz Federal Alcides Vettorazzi. Disponível em: <http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtValor=200570000047089&selOrigem=TRF&chkMostrarBaixados=&todasfases=S&selForma=NU&todaspartes=&hdnRefId=2070d5a50a4b43bc246ba50545dcd983&txtPalavraGerada=wEsS&txtChave=>. Acesso em: 26 jun. 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 186. Requerente: DEMOCRATAS. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2691269>. Acesso em: 28 jun. 2015.
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Cota racial e estado: abolição do racismo ou direitos de raça?. Cad. Pesqui. [online]. 2004, vol.34, n.121 [citado 2015-06-28], pp. 213-239. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-15742004000100010&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1980-5314. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742004000100010.
Técnico do Ministério Público da União, Bacharel em Direito pela Faculdade Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Erotides Martins Reis. Políticas afirmativas da União: cotas raciais e sociais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47196/politicas-afirmativas-da-uniao-cotas-raciais-e-sociais. Acesso em: 22 nov 2024.
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