Resumo: o presente artigo discorre sobre a existência ou não de iniciativa reservada para a proposta de emendas à Constituição. Inicialmente, aborda-se a diferença de tratamento no tocante às emendas à Constituição Federal e às Constituições Estaduais. Em seguida, são analisadas importantes decisões do Supremo Tribunal Federal, objetivando constatar o entendimento da Corte Constitucional brasileira sobre o tema.
Palavras-chaves: constitucional; emendas à constituição; iniciativa reservada; processo legislativo; poder constituinte reformador.
INTRODUÇÃO
A existência ou não de iniciativa reservada para a proposta de Emenda à Constituição é um tema bastante em evidência no cenário jurídico brasileiro, em especial em razão da liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5017, referente à criação de quatro Tribunais Regionais Federais por meio de Emenda de iniciativa parlamentar e, recentemente, na ADI 5296, relacionada à autonomia da Defensoria Pública da União e do Distrito Federal.
Buscando discutir o assunto, o presente trabalho inicia-se discorrendo, brevemente, sobre o papel da iniciativa reservada de leis no ordenamento jurídico pátrio. Em seguida são feitas considerações sobre as restrições ao poder constituinte decorrente estadual, bem como ao poder de reforma da Constituição Federal, analisando a posição do STF sobre tema.
A regra é a iniciativa comum, também chamada de geral ou concorrente, na qual qualquer dos legitimados previstos no art. 61 da Constituição Federal pode iniciar o processo legislativo. Entretanto, para resguardar determinados interesses, o constituinte originário resguardou expressamente, ao longo da Carta Política, algumas matérias que apenas podem ser objeto de lei por proposta de legitimados específicos. É o caso de matérias sujeitas a iniciativa reservada ou exclusiva. Nesse sentido, o exemplo mais lembrado é o das matérias reservadas ao Chefe do Poder Executivo (art. 61, §1º), dentre elas o regime jurídico e o provimento de cargos dos servidores públicos.
Ressalta-se que estão sujeitas à iniciativa reservada também outras matérias previstas na Constituição, que objetivam assegurar a independência de cada um dos Poderes do Estado, preservando a autonomia e o autogoverno para o fiel desempenho das funções típicas constitucionalmente dentre elas.
Nesse sentido, a Constituição institui iniciativa reservada, dentre outras, nos seguintes casos: lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, para dispor sobre o Estatuto da Magistratura (art. 93); organização e funcionamento das Cortes de Contas (arts. 73, 75 e 96, II, d - ADI 4.418-MC); propositura da fixação dos vencimentos dos membros do Ministério Público (art. 127, §3º e art. 138, §5º); e remuneração dos magistrados e servidores do Poder Judiciário (art. 96, II, b).
Importante destacar, ainda, que, segundo o STF, a iniciativa reservada não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que implica limitação ao poder de instauração do processo legislativo, devendo, necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca[ii].
No âmbito do poder constituinte decorrente, que corresponde à elaboração e reforma das Constituições Estaduais, a doutrina e a jurisprudência entendem que se aplicam sim as regras referentes à reserva de iniciativa de lei também às emendas constitucionais, pois tais regras fazem parte do conjunto dos chamados princípios constitucionais extensíveis.
Com efeito, o poder constituinte decorrente é instituído pela Constituição Federal e limitado juridicamente de modo mais amplo que o poder reformador.
As Constituições estaduais, além das cláusulas pétreas, devem observar regras e princípios que limitam a autonomia organizatória dos Estados-membros, tais como os princípios sensíveis, os princípios extensíveis, que consagram normas de reprodução obrigatória por previsão expressa ou implícita, bem como os princípios estabelecidos, que restringem a capacidade organizatória dos Estados federados. Devem, ainda, respeitar, as normas básicas que regem o processo legislativo federal, dentre as quais as regras de iniciativa reservada.
Sobre o tema, a doutrina assevera:
As matérias, portanto, que a Constituição Federal reserva à iniciativa do Chefe do Executivo não podem ser reguladas, no Estado, sem tal iniciativa.
Além disso, assuntos que a Constituição Federal submete a essa reserva de iniciativa do Presidente da República, e que não são objeto de regulação direta pela Constituição Federal, não podem ser inseridos na Constituição estadual, já que não há reserva de iniciativa para proposta de emenda à Constituição. Nem mesmo se a norma da Constituição estadual, nessas circunstâncias, houver decorrido de proposta do governador será ela válida. Isso porque, ao se revestir de forma legislativa que demanda quorum superior ao da lei comum, o governador estará, de igual sorte, obstaculizado para, em outro momento, propor a sua modificação por lei ordinária, com menor exigência de quorum. Estaria ocorrendo aí, nas palavras do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, “fraude ou obstrução antecipada ao jogo, na legislação ordinária, das regras básicas do processo legislativo[iii].
Nesse sentido, já decidiu o STF:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MILITARES. REGIME JURÍDICO. INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. Emenda Constitucional 29/2002, do estado de Rondônia. Inconstitucionalidade. À luz do princípio da simetria, é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo estadual as leis que disciplinem o regime jurídico dos militares (art. 61, § 1º, II, f, da CF/1988). Matéria restrita à iniciativa do Poder Executivo não pode ser regulada por emenda constitucional de origem parlamentar. Precedentes. Pedido julgado procedente. (ADI 2966, Relator Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 06/04/2005, DJ 06/05/2005)
Em seu voto, o relator Ministro Jaquim Barbosa destacou:
Se a iniciativa de certas leis é restrita ao Executivo, a Assembleia Legislativa não pode, nem mesmo aprovando emendas constitucionais, violá-la. Caso contrário, a disposição da Constituição Federal poderia tornar-se inócua. Uma assembleia legislativa oposicionista ao governo estadual poderia conseguir o quorum necessário para a aprovação de emendas e assim legislar em virtualmente todas as matérias de iniciativa do Executivo, esvaziando as funções deste e gerando um grave desequilíbrio entre os poderes[iv].
Em precedente mais recente, reitera-se o mesmo entendimento:
EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Emenda nº 10/2001 à Constituição do Estado do Paraná. Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. 1. Ação direta proposta em face da Emenda Constitucional nº 10/2001 à Constituição do Estado do Paraná, a qual cria um novo órgão de polícia, a “Polícia Científica”. 2. Vício de iniciativa em relação à integralidade da Emenda Constitucional nº 10/2001, uma vez que, ao disciplinar o funcionamento de um órgão administrativo de perícia, dever-se-ia ter observado a reserva de iniciativa do chefe do Poder Executivo prevista no art. 61, § 1º, II, e, da CF/88. Precedentes: ADI nº 3.644/RJ, ADI nº 4.154/MT, ADI nº 3.930/RO, ADI nº 858/RJ, ADI nº 1.746/SP-MC. 3. Ação direta julgada procedente. (ADI 2616, Relator Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 19/11/2014)
No âmbito federal, por outro lado, prevalece o entendimento segundo o qual as regras referentes ao poder de iniciativa de leis não restringem o poder constituinte derivado reformador.
O tema foi debatido recentemente no julgamento da cautelar da ADI nº 5296/DF, ajuizada contra a EC nº 74/2013, de iniciativa parlamentar, que estendeu à Defensoria Pública da União e à Defensoria do Distrito Federal autonomia funcional e administrativa, bem como iniciativa de proposta orçamentária para as Defensorias Estaduais.
Na referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Presidente da República sustentava, dentre outros, vício de iniciativa, na medida em que somente o Chefe do Poder Executivo poderia propor tal alteração. Na ocasião do julgamento, o plenário entendeu por indeferir a liminar, sob o argumento de que não houve violação a princípios constitucionais.
Entretanto, diante conteúdo divulgado no informativo nº 804 do STF, uma vez que ainda não foram publicados os votos nem a ementa do acórdão, observa-se que neste caso prevaleceu uma discussão muito mais sobre a possibilidade de se conferir autonomia à Defensoria em relação ao Poder Executivo do que sobre a existência de iniciativa reservada para proposta de emenda constitucional de modo geral.
Nesse sentido, vale ressaltar o argumento levantado pelo Ministro Teori Zavascki, que distinguiu duas situações: se se tratar de tentativa de constitucionalizar matéria típica de lei ordinária, superando a questão da reserva legal, não seria admissível, pois poderia comprometer a higidez do Poder a quem a Constituição atribui reserva de iniciativa; por outro lado, se a matéria não pudesse ser tratada por lei ordinária, como enfatizou ser o caso da concessão de autonomia à Defensoria Pública, então seria possível proposta de emenda constitucional por quem não tem a iniciativa de lei reservada[v].
De todo modo, prevaleceu o entendimento da relatora Min. Rosa Weber, que sustentou não existir iniciativa reservada para proposta de emenda à Constituição. Nesta perspectiva, destacou que não há precedentes do STF aplicando, no plano federal, a iniciativa reserva das leis previstas no art. 61, § 1º, da CF/88, ao poder constituinte derivado reformador[vi].
Deve-se ressaltar, ainda, que, no âmbito federal, não há identidade entre o rol dos legitimados para a propositura de emenda à Constituição e o dos atores aos quais reservada a iniciativa legislativa sobre determinada matéria, uma vez que a Carta Política apenas poderá ser emendada por proposta: a) de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; b) do Presidente da República; ou c) de mais da metade das assembleias legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (art. 60, I a III, da CF/88).
Ademais, é certo que as restrições ao poder constituinte decorrente estadual são mais amplas do que aquelas a que se submete o poder de reforma da Constituição Federal.
Exposto o entendimento que prevaleceu recentemente na referida decisão do STF, é preciso destacar que, em 2013, o Ministro Gilmar Mendes concedeu liminar para suspender a eficácia da EC nº 73/2013, que criou quatro novos Tribunais Regionais Federais, sob o argumento de que a utilização do expediente de emenda à Constituição não pode atalhar a prerrogativa de iniciativa do Poder competente na propositura legislativa e nas discussões que sejam de seu direto interesse (ADI nº 5017/DF).
Nesta perspectiva, o Ministro destacou que toda modificação que crie encargos para o Judiciário ou afete sua estrutura deve ter por iniciativa o órgão jurisdicional competente, segundo a Constituição, sob pena de autorizar que um Poder modifique unilateralmente a estrutura ou a competência de outro Poder, o que acarreta ofensa ao postulado da separação dos poderes[vii].
De fato, o art. 96, II, da Constituição, expressamente dispõe, in verbis:
Art. 96. Compete privativamente: (...)
II - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169:
a) a alteração do número de membros dos tribunais inferiores;
b) a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores, onde houver;
c) a criação ou extinção dos tribunais inferiores;
d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;
Ocorre que nem o Supremo nem os tribunais superiores possuem competência para propor emenda à Constituição (PEC), de modo que, caso prevalecesse o entendimento pela existência de iniciativa reservada para PEC, as matérias cuja iniciativa legislativa é assegurada ao STF, aos tribunais superiores ou ao Procurador Geral da República não poderiam sequer ser objeto de emenda constitucional.
Cumpre registrar que nos autos da ADI nº 5097/DF, o Procurador Geral da República manifestou-se pela improcedência do pedido, destacando que a alteração promovida pela emenda constitucional questionada não põe em choque o princípio da separação dos poderes, ainda que este esteja protegido como cláusula pétrea (art. 60, §4º, III, da CF/88). Nesse sentido, destaca-se o seguinte trecho:
O fato de emenda constitucional promover alterações periféricas na estrutura de órgãos do Judiciário não configura afronta ao postulado. Seria necessário que a alteração proposta lhe afetasse o núcleo intangível, o cerne do princípio, aquele conteúdo relativo à independência orgânica entre os poderes, mediante estabelecimento de relação de subordinação ou de dependência que afetasse o exercício das funções precípuas do Judiciário, ou as transferisse a outro poder[viii].
Ademais, o Supremo Tribunal Federal já entendeu não afrontar o princípio da separação dos poderes a supressão de órgão na estrutura do Judiciário via emenda constitucional, no julgamento da ADI nº 3367/DF, quando decidiu pela constitucionalidade da criação do Conselho Nacional da Justiça e extinção os tribunais de alçada promovida pela EC nº 45/2004.
Assim, observa-se que a tendência dentro do Supremo Tribunal Federal parece ser mesmo pela inaplicabilidade da iniciativa reservada ao poder constituinte derivado reformador.
CONCLUSÃO
Em face de todo o exposto, observa-se que as limitações ao poder constituinte decorrente não se confundem com as limitações ao poder constituinte reformador, em especial, no tocante à iniciativa reservada para a proposta de emendas às respectivas constituições.
Com efeito, o STF reconhece, de modo pacífico, que os Estados-membros devem observar às regras de iniciativa do processo legislativo mesmo no processo de reforma à Constituição Estadual, em respeito ao princípio da simetria. Assim, revela-se inconstitucional, no âmbito dos Estados, a emenda à Constituição que, versando sobre matéria de iniciativa legislativa reservada, eleva a temática à condição de norma constitucional.
Por outro lado, não há precedentes do STF aplicando, no plano federal, a iniciativa reserva das leis previstas ao poder constituinte reformador, com exceção da liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes, na ADI nº 5017/DF, que suspendeu a eficácia da EC nº 73/2013, sob o argumento de que a utilização do expediente de emenda à Constituição não pode violar o postulado da separação dos poderes.
Assim, observa-se que a tendência dentro do Supremo Tribunal Federal parece ser mesmo pela inaplicabilidade da iniciativa reservada ao poder constituinte derivado reformador. O desdobramento do tema, contudo, aguarda o desfecho do julgamento da ADI nº 5017/DF.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, jul. 07/05/1992, Plenário, DJ de 27/04/2001.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2966, Tribunal Pleno, julgado em 06/04/2005, DJ 06/05/2005.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5017 MC, Relator Min. LUIZ FUX, julgado em 17/07/2013, publicado no DJe-148 Divulgado 31/07/2013 e publicado 01/08/2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 802. Disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo802.htm#EC: vício de iniciativa e autonomia da Defensoria Pública – 1. Acesso em 19 de julho de 2016.
MENDES. Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 842.
NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015. p. 684
[i] NOVELINO, Marcelo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015. p. 684
[ii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, jul. 07/05/1992, Plenário, DJ de 27/04/2001.
[iii] MENDES. Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 842.
[iv] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Voto do Ministro Relator Jaquim Barbosa na ADI 2966, Tribunal Pleno, julgado em 06/04/2005, DJ 06/05/2005.
[v] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 802. Disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo802.htm#EC: vício de iniciativa e autonomia da Defensoria Pública – 1. Acesso em 19 de julho de 2016.
[vi] Idem, ibidem.
[vii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5017 MC, Relator Min. LUIZ FUX, julgado em 17/07/2013, publicado no DJe-148 Divulgado 31/07/2013 e publicado 01/08/2013.
[viii] Parecer da Procuradoria Geral da República nos autos da ADI 5017/DF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=4220458&tipoApp=.pdf Acesso em: 19 de julho de 2016.
Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Pós graduada em Direito Administrativo e Direito Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMORIM, Amanda Lins Brito Faneco. Propostas de emendas à Constituição e iniciativa reservada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47223/propostas-de-emendas-a-constituicao-e-iniciativa-reservada. Acesso em: 22 nov 2024.
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