RESUMO: É sabido que a Constituição de 1988 elegeu o federalismo como modelo de forma de estado para o Brasil, assim como conferiu autonomia política, de forma inovadora, aos Municípios, passando estes a integrarem o Estado Federado como membros autônomos e independentes. Contudo, para garantir sua autonomia, é imprescindível a existência de recursos financeiros para manutenção de suas atividades institucionais, desaguando a discussão em torno do federalismo fiscal. O repasse constitucional de receitas é medida fundamental para essa função, significando para tais entes um maior aporte de recursos em seus cofres. Porém, instalou-se um imbróglio entre Municípios e Estados-membros no tocante à possibilidade destes promoverem incentivos e benefícios fiscais sobre o ICMS, tributo sujeito à partilha com aqueles. Nessa discussão, tenta-se encontrar um ponto ótimo, um meio termo, que harmonize a preservação das autonomias financeiras dos referidos entes políticos, inclusive a competência tributária dos Estados-membros. Busca-se uma solução que não esvazie os comandos constitucionais que preveem a possibilidade de concessão de benefícios fiscais, ao mesmo tempo eem que não se inviabilize a autonomia política dos Municípios. São concentrados os debates ao redor da isenção fiscal, tendo inclusive o Supremo Tribunal Federal já se manifestado acerca da sua inconstitucionalidade. Porém, o debate é bem mais complexo do que parece, demandando uma análise mais atenta e cuidadosa, de modo que falhas serão apontadas no posicionamento da Corte Suprema. Em verdade, assinala-se que o Supremo Tribunal Federal baseou seu entendimento, no bojo do recurso extraordinário nº 572.762, em premissa equivocada, favorecendo em demasia os Municípios, porém minando a própria autonomia financeira e política dos Estados-membros. Não se intenta negar o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte no produto da arrecadação do ICMS, mas tão somente sugerir uma interpretação consentânea a preservação do modelo federal de estado, na medida em que o termo inicial do citado direito seria a efetiva arrecadação dos tributos.
Palavras-chave: Autonomia financeira. Municípios. Isenção. Receita pública.
ABSTRACT: It is known that the 1988's Constitution has chosen federalism as a state form of model for Brazil, and given political autonomy, in an innovative way, the municipalities, passing these to integrate the federal state as autonomous and independent members. However, to ensure its autonomy, it is essential the existence of financial resources to maintain their institutional activities, flowing into the discussion on fiscal federalism. The constitutional transfer of revenue is a key measure for this function, meaning to such entities increased allocation of funds in its coffers. However, installed a serious issues between municipalities and the Member States regarding the possibility of these promote incentives and tax benefits on VAT, tax subject to sharing with those. In this discussion, it tries to find an optimal point, a happy medium, which harmonize the preservation of financial autonomy of these political entities, including the tax competence of Member States. We seek a solution that does not exhaust the constitutional provisions that provide for the possibility of granting tax benefits, while andin that does not impede the political autonomy of the municipalities. discussions are concentrated around the tax exemption, including having the Supreme Court has spoken out about its unconstitutionality. But the discussion is far more complex than it seems, requiring a more attentive and careful analysis, so that faults will be outlined in the position of the Supreme Court. In fact, it is noted that the Supreme Court based their understanding, in the midst of an extraordinary appeal No. 572,762 in erroneous premise, favoring too much the municipalities, but undermining the very financial and political autonomy of the Member States. Not attempts to deny the subjective right of municipalities to share in the proceeds from the collection of VAT, but only to suggest an interpretation consistent preserving the federal model of state, to the extent that the initial term of that right would be the effective collection of taxes.
Keywords: Financial autonomy. Counties. Exemption. public revenue.
1 INTRODUÇÃO
Aborda-se a constitucionalidade da concessão de isenção fiscal sobre as receitas provenientes do Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, tendo em vista o modelo de repartição de receitas tributárias fixado pela ordem constitucional brasileira e a autonomia política conferida aos membros da federação.
Importa anotar que os contornos do modelo da forma de estado adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Estado Federado, é de suma importância para se entender o debate em tela.
Com efeito, especial enfoque deve ser dado ao intitulado federalismo fiscal e suas implicações na autonomia dos entes federados.
Assim, haja vista a disparidade de distribuição de recursos entre os entes políticos, o próprio modelo de repartição constitucional de receitas foi pensada com o intuito de atenuar as diferenças de arrecadação de receitas tributárias fixadas no bojo da Constituição Federal, pois sabe-se que grande parte dos tributos foram atribuídos à União Federal.
Ciente dessa situação, o constituinte originário fixou que parte dos recursos arrecadados pelos Estados-membros a título de ICMS seriam repartidos com os Municípios, garantindo um maior aporte de recursos a estes entes políticos, na tentativa de equilibrar a distribuição de recursos.
Em verdade, a violação ou não à autonomia política dos municípios é a questão central discutida, premissa essa que será posta em confronto com a competência tributária dos Estados-membros, igualmente componentes da Federação e resultante também da autonomia conferida a tais entes.
Cinge-se arraigada a polêmica em torno do benefício fiscal acima aludido, pois a isenção fiscal tem o condão de diminuir a receita tributária proveniente de determinado tributo, perdas essas que refletiriam no valor das verbas repassadas aos Municípios pelos Estados-membros.
Alegam os Municípios que a adoção de tal prática tributária pelos Estados-membros prejudica a arrecadação de suas receitas, minando economicamente tais entes federados, acarretando prejuízo ao exercício de suas capacidades ante o abalo a sua estrutura financeira.
Sabe-se que a limitação de recursos inviabiliza os entes públicos de atuarem de forma autônoma, na medida em que não são capazes de exercer de forma regular e satisfatória as competências constitucionalmente a eles atribuídas. Isso porque toda atividade administrativa demanda o engendramento de recursos.
De fato, qualquer atividade administrativa demanda gasto de recursos, tendo em vista a necessidade de movimentação de pessoal, aparelhamento da administração pública e atendimento aos trâmites burocráticos inerentes aos serviços públicos.
Nessa perspectiva, sem autonomia financeira esgota-se a própria autonomia política conferida aos Municípios, inviabilizando o referido ente de cumprir com seus fins institucionais.
Em contrapartida, asseveram os Estados-membros que a concessão de isenção fiscal sobre o ICMS é plenamente compatível com a ordem constitucional, sob o argumento de que há dispositivo na Constituição prevendo a possibilidade de concessão de tal benefício, e de que cabe a ele exercer a competência tributária sobre tal imposto, o que incluiria a faculdade de conceder isenção fiscal.
Nesse sentido, percebe-se que a discussão demanda a análise de poderosos argumentos suscitados por ambos os sujeitos da Federação, Estados-membros e Municípios. Trata-se de tema sensível e que, inclusive, já está em debate no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
A importância do presente trabalho torna-se evidente por estar em jogo a higidez da própria autonomia política dos entes federados, notadamente dos Municípios e dos Estados, e, consequentemente, do princípio federativo, elegido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 um princípio fundamental.
Então, o resguardo a um princípio tão caro ao ordenamento jurídico brasileiro é questão estratégica para manutenção das premissas básicas sobre as quais foi fundada a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Para a realização do presente trabalho científico, serão utilizadas algumas fontes de natureza variada com o intuito de enriquecer a presente pesquisa.
Sendo assim, fazem-se imprescindíveis as leituras de trabalhos de conclusão de curso, de dissertações de mestrado e de teses de doutorado ligados ao federalismo fiscal, à repartição constitucional de receitas tributárias e às isenções fiscais concedidas sobre tais receitas, conjunto o qual constitui a metodologia bibliográfica.
Cumpre asseverar que é valorosa a pesquisa por meio de alguns manuais doutrinários de Teoria do Estado, de Direito Constitucional, de Direito Tributário e de Direito Financeiro, além de artigos científicos sobre a temática, sendo esses materiais de metodologia documental de grande auxílio para o desenvolvimento do trabalho.
Por fim, tem-se a pesquisa legislativa, visto que seria inviável o estudo dos objetivos desta obra sem a análise do Código Tributário Nacional - CTN e, principalmente, da Constituição Federal de 1988.
2 ABORDAGEM DA CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DE ISENÇÃO
É sabido que a política de concessão de isenções fiscais é medida bastante comum entre os entes da federação, tendo em vista que o referido instituto possui o escopo de incentivar as atividades empresariais a partir da desoneração tributária.
Não apenas isso, o benefício fiscal de isenção também pode ser utilizado com o intuito de incentivar comportamentos socialmente relevantes do ponto de vista social, tal como ocorre nos casos de isenção de imposto sobre propriedade de veículo automotor para pessoas portadoras de doenças graves.
Com efeito, frente as desonerações tributárias concedidas pelas pessoas políticas, as pessoas privadas poderão atuar em suas atividades econômicas suportando um menor ônus e com custos reduzidos, o que incentiva o desenvolvimento de suas atividades.
O desenvolvimento econômico é de todo interesse não só da pessoa privada, mas também das pessoas políticas e da sociedade, haja vista que o progresso econômico contribui com a geração de empregos e renda, aumentando o consumo e a circulação de riquezas.
Cuida-se, na verdade, de um ciclo, em que toda a sociedade se beneficia, seja pelo sucesso de seus empreendimentos, quantos à classe empresária, seja pelas possibilidades de ocupar postos de trabalhos melhores e bem remunerados, quanto às classes trabalhadoras.
Além disso, os entes políticos também se beneficiam diretamente desse desenvolvimento econômico, visto que a maior geração de emprego e renda corrobora com a crescimento da arrecadação de tributos, tendo em vista o crescimento das atividades sujeitas à tributação.
Percebe-se, então, que a política de isenção trata de medida de grande valia utilizada pelos entes políticos para fins de incentivar determinados comportamentos e atividades.
Porém, vale consignar que a concessão de isenção fiscal está inserida no âmbito da discricionariedade da administração, ficando sujeito ao poder político inerente ao respectivo ente político, que julgará qual o momento oportuno e as situações que lhe parecem, considerando o contexto vivido, suscetíveis de serem beneficiadas por benefício fiscal em comento.
Por outro lado, não obstante as possíveis consequências benéficas que podem advir da adoção da isenção fiscal, é certo que o instituto da isenção provoca uma diminuição da arrecadação da receita tributária, pelo menos em um momento inicial.
Conforme já asseverado, a isenção, em razão de impedir o nascimento da obrigação tributária, provoca uma inevitável redução das receitas carreadas aos cofres públicos.
O problema surge quando a diminuição da arrecadação recai sobre a receita de tributos sujeitos ao partilhamento obrigatório, nos moldes definidos pela Constituição de 1988.
Especificamente no tocante às receitas provenientes da arrecadação de ICMS, os Municípios alegam que a concessão de isenção pelos Estados-membros prejudica os repasses que lhe são devidos. Isso sob o argumento de que a base sobre a qual incide os 25% pertencentes àqueles entes políticos seria diminuída com o referido instituto, o que, consequentemente, acarretaria uma redução do montante a ser repassado.
Pleiteam judicialmente os Municípios o reconhecimento da invalidade das isenções concedidas pelos Estados-membros respectivos sobre as suas receitas de ICMS, requerendo a pagamento dos valores que alegam ter sido indevidamente subtraídos do montante partilhável.
A violação da autonomia financeira dos Municípios é erigido como argumento central de tais entes, que argumentam que as isenções fiscais obstam o repasse de receitas fundamentais para o desempenho de suas atividades institucionais, já que estariam recebendo menos recursos do que o devido.
Defende-se o argumento de que a lei remissiva não pode prejudicar o ente político beneficiado com o partilhamento, tendo tal posição eco nas lições doutrinárias (CARRAZZA, 2008, p. 669-670):
Remarcamos que a cobrança dos tributos é sempre vinculante à lei (cf. art. 150, I, da CF). Logo, a menos que a renúncia de que aqui estamos tratando esteja amparada em lei remissiva, ela absolutamente não pode prejudicar o direito à representação das pessoas políticas, que, por injunção constitucional, ficam com parte (ou com a totalidade) do produto da arrecadação de tributos alheios.
Argumenta-se também que a concessão de isenção sobre a receita proveniente do ICMS implicaria em isenção heterônoma, já que a quota-parte pertencente aos Municípios seriam afetadas pelo benefício fiscal concedido pelo Estado-membro, entes político diverso.
Entretanto, o debate é delicado e envolve um conjunto de outros fatores que demandam análise apurada e detida, já havendo, inclusive, posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.
2.1 Posição do Supremo Tribunal Federal
No bojo do recurso extraordinário nº 572.762, julgado com repercussão geral reconhecida, o plenário do Supremo Tribunal Federal entendeu pela inconstitucionalidade da concessão de benefícios fiscais que acarretam a diminuição das receitas tributárias, na medida em que prejudicam a quota-parte dos Municípios sob o montante arrecadado, visto que tais parcelas pertencem de pleno direito a tais entes municipais[1].
De fato, a jurisprudência da referida Corte tem apontado como ilegítima a conduta dos Estados-membros de diminuir a quota-parte pertecente aos Municípios com a concessão de incentivos fiscais a particulares.
Como fundamento, foi apontado que não caberiam aos Estados-membros manipular parcela devidas aos Municípios, reduzindo seu montante com a adoção de políticas de incentivo fiscal, em razão delas pertencerem de pleno direito aos últimos, não possuindo aqueles qualquer tipo de ingerência sobre tais recursos.
Por conseguinte, em virtude de tal parcela pertencer, de pleno direito, aos Municípios, deverá ser-lhes creditada sem qualquer outra restrição que não aquelas a que alude o próprio texto constitucional.
Além disso, utilizou-se também como fundamento do precedente em debate o princípio da pacto federativo, posto que a ingerência dos Estados-membros nas receitas pertencentes aos Municípios implicaria em violação à autonomia política destes, além de importar violação à sistemática de repartição de receita tributária fixada no art. 158, IV, da Constituição.
Aliás, vale assinalar que esse entendimento não é recente no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Essa Corte já possuía, desde 1976, enunciado sumular no sentido da impossibilidade dos Estados-membros reduzirem a parcela do ICMS devida aos Municípios.
Trata-se do teor da súmula nº 578: “Não podem os Estados, a título de ressarcimento de despesas, reduzir a parcela de 20% do produto da arrecadação do imposto de circulação de mercadorias, atribuída aos Municípios pelo art. 23, § 8º, da Constituição Federal”.
Atente-se que tal entendimento foi fixado ainda sob a égide da ordem constitucional anterior, tendo ele persistido na jurisprudência da Corte Suprema, com aplicação reiterada em julgados mais recentes[2].
Todavia, cumpre consignar que o precedente acima aludido – recurso extraordinário nº 572.762 – não se refere especificamente ao benefício da isenção fiscal, posto que outras formas de benefícios fiscais estavam tendo sua constitucionalidade discutida em seu âmbito.
Realmente, o citado recurso extraordinário discutia a constitucionalidade do Programa de Desenvolvimento Econômico da Empresa Catarinense (PRODEC), que instituía uma série de incentivos e benefícios fiscais em favor das empresas instaladas em Santa Catarina.
As empresas participantes do referido programa beneficiam-se dos seguintes incentivos fiscais: a) financiamento por meio de instituição financeira oficial; e b) postergação do recolhimento de ICMS.
Acontece que a discussão travada no precedente em análise diz respeito tão somente ao regime de postergação do recolhimento do ICMS, cuja concessão acarreta o adiamento do repasse, aos Municípios, da parcela deste imposto que lhes pertence.
Melhor dizendo, não se discutia exatamente a constitucionalidade de isenção fiscal enquanto benefício fiscal concedido, acarretando a diminuição ou supressão de repasses.
Tratava-se de recurso extraordinário interposto pelo Estado de Santa Catarina contra acórdão de Tribunal de Justiça local, que deu provimento à apelação do Município de Timbó ao fundamento de que viola a Constituição Federal a retenção de parcela do ICMS pertencente àquele ente federado em razão da concessão de incentivos fiscais.
Alegou , em apertada síntese, o Estado de Santa Catarina que, como o momento do recolhimento do imposto é diferido, não é possível falar-se em arrecadação do tributo e, muito menos, em direito dos Municípios à repartição da receita dele decorrente.
Entretanto, conforme já adiantado, tal argumentação não prevaleceu no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem aplicado o referido precedente aos casos de isenção fiscal concedidas pelos Estados-membros também, sob o fundamento de que a concessão de quaisquer benefícios fiscais, de uma forma geral, não poderia obstar o repasse da quota-parte pertencente aos Municípios[3].
Nessa perspectiva, embora a própria Corte suprema reconheça haver uma diferença fática entre a situação tratada no recurso extraordinário tido como paradigmático e a situação referente à isenção fiscal em específico, ela tem aplicado o referido precedente ao último caso.
Para tanto, a jurisprudência da referida Corte escora-se no fundamento utilizado no paradigma, segundo o qual, à luz dos princípios federativo e da autonomia municipal, bem como do disposto no art. 158, IV, da Constituição Federal, a parcela do ICMS, não obstante arrecada pelo Estado, integra o patrimônio do Município, não podendo o ente maior dela dispor a seu talante, sob pena de grave ofensa ao pacto federativo.
Inclusive, vale a pena transcrever parte do voto do ministro relator do recurso extraordinário nº 572.762, Ricardo Lewandoski:
Ninguém duvida que os Estados possam, mediante lei complementar, conceder incentivos ou benefícios fiscais – quaisquer que sejam eles –, desde que acordados comumente. Não se admite é que instituam benefícios ou se concedam isenções ou estabeleçam programas para auxiliar empresas com a parcela de tributo – conforme Vossa Excelência muito bem disse – pertencem ao Município.
Em contrapartida, acrescente-se que, quando se tratar de isenção fiscal, alegam igualmente os Estados-membros que, como o imposto sequer é lançado, não é possível falar-se em arrecadação do tributo e, muito menos, em direito dos Municípios à repartição da receita dele decorrente. Porém, tal circunstância será melhor explorada na seção seguinte.
2.2 Críticas ao entendimento do Supremo Tribunal Federal
Por óbvio, o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal não está imune a críticas.
Maior prestígio à tese dos Estados-membros deveria ter sido conferida pela Corte Suprema. Isso porque, embora a autonomia política dos membros da federação seja de suma importância para a manutenção do equilíbrio constitucional instituído pela ordem jurídica atual, a competência tributária igualmente deve ser preservada.
De fato, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal impossibilita que os membros da federação, que possuem a competência tributária para instituir determinado tributo, aumentá-lo e diminuí-lo, e conceder incentivos fiscais sobre os mesmos, inclusive a isenção fiscal, a exerçam de forma plena e nos seus interesses legítimos.
Indaga-se se é razoável ocorrer essa limitação ao poder de tributar, cujo exercício é essencial para a manutenção das atividades de qualquer ente político, notadamente o Estado-membro.
Deve-se, igualmente, vislumbrar que o impedimento dos Estados-membros de exercer a sua competência tributária sobre os tributos que são objeto de partilha também fragiliza a autonomia financeira de tais entes.
Isso porque a concessão de incentivos e benefícios fiscais é comumente utilizada por eles com o intuito de aumentar a própria arrecadação do Estado, na medida em que promove uma desoneração tributária dos particulares e, consequentemente, os incentivam a produzir mais riquezas, o que poderá acarretar uma maior arrecadação no futuro.
Por isso, entende-se que merece maior prestígio a tese que analisa a concessão de isenção sobre as receitas partilháveis de ICMS sob a ótica do ciclo de receitas públicas, visto que este elege um estágio em que é possível considerar-se arrecadado o referido tributo, fase na qual também surge a própria receita pública.
Dentro do chamado ciclo de receitas públicas, podemos identificar quatro fases sucessivas que conduzem a realização da receita, a saber, nessa ordem: estágio da previsão, estágio do lançamento, estágio da arrecadação e estágio do recolhimento (LEITE, 2014, p. 161).
O primeiro estágio, chamado estágio de previsão, tem a função de prever a quantidade de receita que será carreada aos cofres públicos, segundo as expectativas do ente público arrecante. Tal previsão é realizada na própria lei orçamentária respectiva (LEITE, 2014, p. 161).
Após a previsão, passa-se ao segundo estágio, chamado estágio de lançamento, em que a receita prevista é lançada, ou seja, tem o seu montante individualizado (LEITE, 2014, P. 162).
Tratando de receita proveniente de tributo, o lançamento aqui realizado é aquele previsto no art. 142 do Codigo Tributário Nacional, procedimento no qual a autoridade administrativa verifica a ocorrência do fato gerador da obrigação, determina a matéria tributável, calcula o montante do tributo devido, identifica o sujeito ativo e propõem a aplicação da penalidade cabível, sendo o caso.
Conforme se aduziu em seção acima, o lançamento tem por função formar o crédito tributário em si, tornando líquida, certa e exigível a obrigação tributária a ele submetida.
Após procedido o lançamento, passa-se à fase de arrecadação, que corresponde à entrega dos recursos devidos ao Tesouro pelos contribuintes ou devedores, por meio dos agentes arrecadadores ou instituições financeiras autorizadas pelo ente ou até mesmo diretamente a este (LEITE, 2014, p. 163).
Em alguns casos, é possível haver o estágio do recolhimento depois do estágio da arrecadação. Naquela, ocorre a entrega dos valores arrecadados aos cofres do Governo, sendo os valores previstos, lançados e arrecadados depositados em favor do respectivo ente público titular de tal ativo, que, no caso do ICMS, é o Estado-membro (LEITE, 2014, p. 163).
Confrontando-se o conceito de receita pública com o ciclo acima exposto, pode-se afirmar que somente se qualifica como receita pública os créditos efetivamente arrecadados pelo respectivo ente político. Nas palavras de Baleeiro (1998, p. 126):
Receita pública é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo.
Nesse sentido, haja vista que o conceito de receita pública pressupõe a entrada dos créditos nos cofres públicos, somente após as fases de arrecadação e o recolhimento, caso haja esta última, pode-se considerar o seu nascimento.
Resta evidente, portanto, que o crédito tributário deve percorrer todo esse percalço para que seja efetivamente inserido nos cofres do Estado credor, caracterizando-se como receita pública.
Então, as receitas públicas só poderão ser consideradas como tais depois da fase de arrecadação, ou seja, após os recursos terem sido pagos aos agentes arrecadadores, os quais podem inclusive ser o próprio Estado, devendo apenas após esse momento considerar-se efetivamente arrecadadas as receitas tributárias.
Nesse ínterim, esse ciclo de receitas públicas deve ser levado em consideração no momento de interpretar a regra constitucional que disciplina a repartição de receitas tributárias disposta no art. 158, IV, da Constituição. Isso porque a Constituição fala de forma expressa e literal que pertencem aos Municípios vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do ICMS.
Melhor dizendo, somente depois de arrecadado o ICMS que passará o Município a ter direito subjetivo ao seu partilhamento. Antes da arrecadação, o Município possuiria somente a expectativa de direito ao partilhamento.
Isso em razão da repartição ser de receitas públicas, as quais somente assim se caracterizam depois da arrecadação.
Com efeito, apenas se pode falar em receita arrecadada, para os fins da repartição constitucional prevista no art. 158, IV, da Constituição Federal, quando houver a entrega dos recursos devidos.
Assim, antes de superada a fase de arrecadação, é inarrazoável pretender a repartição com os Municípios de receita inexistente a partir do prescrito na Constituição Federal, até porque no dispositivo em comento se encontra expresso que se repartirá o produto da arrecadação, ou seja, a receita pública. Logo, se a receita não se realizou na íntegra, ela não existe, e se não existe, não há o que ser repassado.
Nessa perspectiva, ante essa constatação, importa salientar que a concessão de isenção fiscal pelo Estado-membro, em razão desse benefício impossibilitar o nascimento da própria obrigação tributária, conforme já foi largamente demonstrado em seção acima, impede que se alcance os estágio do lançamento e da arrecadação.
De fato, tendo a isenção a finalidade de excluir o crédito tributário, impedindo o nascimento da obrigação, não há que se falar em lançamento do tributo, não sendo formado o crédito tributário, sem o qual também não há como ser arrecadada a receita tributária, já que inexiste obrigação líquida, certa e exigível.
Desse modo, tendo em vista que não é possível falar-se em arrecadação do tributo – no caso em questão o ICMS –, também pode-se sustentar que não houve o nascimento do direito subjetivo dos municípios à parcela decorrente da repartição da receita.
Essa interpretação parece ser a mais razoável quando se confronta a autonomia política e financeira dos Municípios com o exercício legítimo da competência tributário pelos Estados-membros, que, da mesma forma, é essencial para a garantia da sua autonomia financeira destes.
O raciocínio acima explicitado parece ter alcançado um meio termo entre os institutos. Isso porque, ao mesmo tempo em que impede que os Estados-membros interfiram na quota-parte dos Municípios resultante do montante efetivamente arrecadado, preserva-se a autonomia daqueles no exercício de sua competência tributária, restando intacta a sua faculdade de conceder isenções fiscais com o intuito de se alcançar determinada finalidade que considerou relevante.
Frise-se que não se pretende negar a existência de direito subjetivo dos Municípios de receber parte da receita pública proveniente de ICMS, o que se está propondo é um termo inicial razoável para o surgimento de tal direito, considerando não só a autonomia financeira dos referidos entes, mas também dos Estados-membros e a preservação da competência tributária dos últimos.
Além disso, não se deve compreender a autonomia financeira dos Municípios como valor fundamental absoluto e intocável, em uma extensão maior do que aquela conferida efetivamente pelo poder constituinte, sob pena de se inviabilizar o próprio Sistema Tributário Nacional disciplinado na Constituição.
Admitir uma interpretação rígida dos dispositivos constitucionais que tratam da repartição das receitas tributárias no sentido de que a União, em relação aos impostos repartidos com os Estados e Municípios, e os Estados, em relação aos impostos repartidos com o seus Municípios, não poderão interferir de qualquer maneira nos impostos de sua exclusiva competência tributária realmente é um risco para o sistema tributário como um todo.
O entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal induz a crer que, caso venha eventualmente ser reduzido o valor dos repasses da parcela devida aos demais entes, estariam sem quaisquer efeitos os demais dispositivos constitucionais que tratam de subsídios, isenções, reduções de base de cálculo e outros favores fiscais (arts. 150, § 6° e 155, § 2°, XII, g da CF).
A partir da lógica adotado pela Corte Suprema, seria forçoso reconhecer que todo e qualquer norma que trate de isenção, não incidência, reduções de base de cálculo, ou até mesma redução de alíquotas, de impostos que sejam objeto de repartição tributária indicados nos artigos 157, 158 e 159 da Carta Magna, importariam em redução do repasse incidente sobre o produto da arrecadação destes impostos e seriam, portanto, ilegítimos.
Se admitirmos que o direito dos entes federados às parcelas dos tributos objeto de repartição tributária, os quais integram a competência tributária de outros entes federados, independem de sua efetiva arrecadação, ou seja, de sua entrega aos agentes arrecadadores ou ao próprio ente tributante, inevitavelmente chegaríamos à conclusão de um pleno e total engessamento do sistema tributário nacional.
O engessamento ocorreria na medida em que qualquer alteração legislativa que tenha por objeto os elementos do tributo (base de cálculo, alíquota, fato gerador, etc.) e que importem em redução do valor do tributo e consequentemente da arrecadação potencial, terá reflexo direto na parcela a ser repassada aos demais entes federados, tornando-se contrárias à Constituição.
Assim, nesses casos, jamais poderiam os entes tributantes promover qualquer alteração nos seus tributos sujeitos à partilha, o que, evidentemente, beira o absurdo. Essa limitação implicaria na supressão parcial da própria competência tributária dos Estados-membros, de forma que somente seriam permitido que esses modificassem os elementos próprios do ICMS caso houvesse aumento na arrecadação.
Nesse sentido, é salutar a transcrição de trecho do voto do Ministro Carlos Brito proferido no julgamento do mesmo recurso extraordinária n° 572.762, no qual o mesmo expõe a mesma preocupação acima mencionada, in verbis:
Apenas na tentativa de uma reflexão, de um pensar coletivo, fico ainda indeciso nessa adesão ao voto do eminente Relator diante de dois outros dispositivos constitucionais.
Um deles é o § 6° do art. 150, que realmente admite essa possibilidade de subsídio, isenção, redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão relativos a impostos, taxas ou contribuições, desde que qualquer desses favores seja concedido mediante lei específica ou lei monotemática de cada qual das pessoas federadas. Então, há uma previsão constitucional de concessão de favor fiscal.
(...)
Mas não é só. A Constituição também prevê, já no artigo 155, XII, “g” - se os Ministros quiserem acompanhar a leitura -, que cabe á lei Complementar – aqui trata-se da Lei Complementar Federal n° 24, de – creio – 1995.
(…)
Já que estou dividindo uma preocupação com Vossas Excelências, não posso deixar sem função os dois dispositivos constitucionais. O primeiro prevê que, mediante lei monotemática, ou lei específica, haja a concessão de tais favores; o segundo faz a expressa remissão aos órgãos fazendários estaduais e do Distrito Federal para que determinado favor fiscal seja efetivamente concedido.
Embora o Ministro Carlos Britto tenha aderido posteiormente ao voto do relator do citado recurso, Ricardo Lewandoski, concordando com a inconstitucionalidade do benefício fiscal em análise, a reflexão lançada para debate com seus pares foi deveras pertinente e legítima.
Em certa medida, como o próprio Ministro Carlos Britto alertou no trecho acima transcrito, caminha-se para uma interpretação que deixará sem função os dispositivos constitucionais que preveem de forma expressa a possibilidade de concessão de incentivos fiscais pelos entes tributantes.
O esvaziamento de tais dispostivos implicaria em interferência direta dos Muncipios na competência tributária dos Estados-membros sobre o ICMS, posto que, sob o argumento de preservação de sua autonomia financeira, aqueles entes políticos tolheriam a autonomia financeira e polítca destes.
Na mesma medida em que não se pode aceitar a ingerência dos Estados-membros na autonomia política e financeira dos Municípios, o inverso também é verdadeiro, devendo ser extraído da Constituição uma solução que preserve o pacto federativo como um todo.
Da maneira como foi interpretado os dispositivos constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no recurso extraordinário nº 572.762 sobrelevou-se a autonomia financeira dos Municípios em detrimento e definhamento da autonomia financeira dos Estados-membros.
Por isso, acredita-se que o direito subjetivo às parcelas do montante de ICMS somente surge para os Municípios depois de ocorrida a efetiva arrecadação das receitas, momento em nasceria propriamente a receita pública.
Antes de alcançada tal fase, deve ser garantido aos Estados-membros a liberdade de exercer sua competência tributária e, consequentemente, a sua autonomia política e financeira.
Por outro lado, o Ministro Cezar Peluso, ainda no bojo do recurso extraordinário nº 572.762, consignou que eventuais benefícios fiscais deverão ser concedidos somente sobre a quota-parte pertencente a pessoa política tributante, não devendo haver ingerência na quota-parte do ente federado beneficiado.
Vejamos a literalidade das palavras do citado Ministro:
É o produto da arrecadação. Ele diminui o produto da arrecadação mediante artifício consistente em deixar de atribuir ao Estado uma parcela que lhe pertence pela Constituição, embora isso tenha finalidade fiscal importante. Mas isso deve ser feito com base nos setenta e cinco por cento que pertencem ao Estado. Isto é, o valor dos repasses não podem ser deduzido do montante sobre o qual é calculada a parcela pertencente aos Municípios.
À primeira vista, a explicação acima aduzida da forma que entendeu o Ministro Cezar Peluso ser correta a operacionalização do benefício fiscal em questão parece solucionar o imbróglio. Porém, tal sistemática sugerida não encontra compatibilidade com o instituto da isenção fiscal.
Explica-se. A isenção sequer permite o nascimento da obrigação tributária, não permitindo, portanto, a formação do crédito tributário, o que sinaliza que não se alcança a fase do lançamento da receita. Sem o lançamento, não se pode individualizar o crédito, calcular seu montante e determinar o devedor.
Assim, se não há crédito líquido, certo e exigível, pois não houve lançamento, não é possível separar os montantes pertencentes a cada ente político.
Em outras palavras, a isenção não permite que se calcule o montante do tributo que foi objeto de isenção, não havendo uma base de cálculo determinada e individualizada apta a ser repartida em setenta e cinco por cento e vinte e cinco por cento, pertencentes, respectivamente, ao Estado e aos Municípios.
Nesse sentido, a sugestão do Ministro Cezar Peluso falha quando se trata de isenção, razão essa que reforça a interpretação acima sugerida da sistemática de partilhamento de receita instituída no art. 158, IV, da Constituição.
Ademais, mais um argumento pode ser adicionado. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal coloca os Municípios em uma situação confortabilíssima, pois, segundo tal ótica, tais entes jamais seriam prejudicados.
De fato, se a isenção concedida pelos Estados-membros sobre o ICMS, embora provocasse uma diminuição imediata na arrecadação, acarretasse um aumento das atividades empresarias em decorrência do estímulo provocado pela desoneração tributária, os Municípios também seriam beneficiados com a atuação de tal política fiscal. Isso em razão do aumento da arrecadação por parte do Estado-membro, já que as atividades tributadas foram estimuladas.
Contudo, caso tal política não lograsse o êxito aguardado pelo Estado-membro, gerando efetivas perdas na arrecadação do aludido tributo, os Muncipios teriam o direito de reaver as suas eventuais perdas daquele.
Nesse ínterim, tal sistemática somente atribui os bônus aos Municípios, os protegendo de quaisquer ônus que possa advir. Não podem pretender tal forma de benefício esses entes, pois, da mesma forma em que ele correria o risco de aumentar sua receitas, também correria o risco de vê-las diminuída.
Por essa razão, parece sensato concluir que o compartilhamento dos riscos entre os aludidos membros da federação é o melhor caminho a ser seguido.
Ainda, os Estados-membros arcariam duplamente com a concessão de isenções fiscais, pois, em um primeiro momento, ele sofreria com a queda na arrecadação de tributos, e, em um segundo momento, ele teria de indenizar os Municípios pela diminuição do montante da arrecadação.
Tal solução não parece ser a mais benéfica ao interesse público, pois a coletividade sairia perdendo frente um conflito entre esses entes, tendo em vista que os mesmos dispenderiam tempo e recursos brigando entre si, recursos esses que poderiam ser utilizados em benefício da própria população.
Em contrapartida, outro ponto deve ser considerado. Se os Estados-membros não podem conceder isenção sobre o ICMS, pois haveria reflexo negativo no montante devido aos Municípios, eles poderiam aumentar os elementos pertinentes ao citado imposto, por exemplo, elevando a sua alíquota? A resposta a ser dada parece ser intuitivamente positiva. Porém, não é tão simples como parece.
O aumento de alíquotas também pode refletir de forma negativa no montante arrecadado, posto que a oneração tributária acrescida poderia ensejar um desestímulo nas atividades tributadas, de modo que os particulares praticassem menos os fatos gerados do ICMS com o fito de evitar a tributação.
Nesses casos, mesmo tendo o Estado-membro exercido sua competência tributária em sentido positivo, em tese, visando ao aumento da arrecadação, o efeito pode ser contrário, pois poderá haver o seu decréscimo, também refletindo negativamente no montante partilhável com os Municípios.
Nessa toada, seguindo a lógica adotada pelo Supremo Tribunal Federal, se não é possível o Estado-membro conceder incentivos e benefícios fiscais em favor de particulares, pois os mesmos provocariam a diminuição da quota-parte pertencente aos Municípios, também não poderia o Estado-membro operar modificações que ensejam o aumento do ICMS, pois tal conduta poderia acarretar o efeito inverso e acarretar a diminuição da arrecadação e, consequentemente, da própria quota-parte dos Municípios.
Baseia-se essa comparação na premissa que fixou o Supremo Tribunal Federal no sentido de que os Estados-membros não podem adotar políticas fiscais que prejudiquem a quota-parte dos Municípios.
É óbvio que a interpretação acima exposta é absurda, já que exclui por completo a competência tributária dos Estados-membros sobre o ICMS.
Tal observação é importante para se entender que a questão central do problema enfrentado não é a diminuição da quota-parte pertencentes aos Municípios. Deve-se desvendar se há ou não ingerência indevida na autonomia financeira de um ente da federação por parte de outro.
E, conforme assinalado, a conclusão que parece ser mais coerente é a que aponta para o surgimento do direito subjetivo à quota-parte somente após a sua arrecadação, pois evitaria-se a eliminação da competência tributária dos Estados-membros, que estariam livres para exercê-la da melhor forma que os convinher, desde que antes da entrada dos créditos tributários nos cofres públicos.
Dessa forma, em razão de todo o exposto, parece ser mais razoável e consentâneo com a preservação das autonomias dos membros da federação – no caso, Estados e Municípios – a interpretação no sentido da constitucionalidade da concessão de isenção pelos Estados-membros sobre o ICMS, mesmo que tal benefício fiscal, em um momento inicial, acarrete a diminuição do montante do qual será destacado a quota-parte dos Municípios.
Logicamente, em decorrência da conclusão supramencionada, entende-se que a análise do Supremo Tribunal Federal de aplicar o entendimento firmado no recurso extraordinário nº 572.762 não pode ser simplesmente aproveitado quando o benefício fiscal analisado for a isenção fiscal.
O referido precedente partiu do pressuposto equivocado de que o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte do montante arrecadado de ICMS subsiste antes mesmo de ocorrida a sua efetiva arrecadação, além de ter discutido o benefício fiscal da postergação de tributos, que carrega peculiaridades em relação à isenção.
Por essas razões, o citado paradigma não poderia ter sido utilizado pelo Supremo Tribunal Federal para fundamentar a inconstitucionalidade da isenção sobre as receitas partilháveis de ICMS, posto que sua análise, conforme acima desenvolvido, demanda um debate próprio.
Mais uma razão deve ser acrescentada para impedir a aplicação do precedente citado às isenções.
Na situação sobre a qual se debruçou a Suprema Corte, os recursos referentes ao ICMS do Estado de Santa Catarina já haviam sido arrecadados, de modo que o benefício fiscal concedido incidia sobre o montante arrecadado, sobre a receita pública, portanto.
Então, o benefício fiscal discutido no recurso extraordinário nº 572.762 realmente rompia com o princípio do pacto federativo, posto que já havia o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte.
Ao contrário do precedente em questão, a isenção é benefício fiscal que incide antes da própria arrecadação, motivo pelo qual atua antes do nascimento do citado direito subjetivo, diferindo por completo da situação sobre a qual se debruçou o Supremo Tribunal Federal.
Em virtude disso, não poderia a referida Corte Suprema simplesmente ter aplicado o entendimento firmado no recurso extaordinário nº 572.762 ao casos que tratam tão somente da isenção fiscal, pois este benefício fiscal, conforme se desenvolveu acima, merece uma análise particular.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alertou-se no início do trabalho que a questão discutida é complexa, demanda, igualmente, uma solução que harmonize valores fundamentais para a nossa ordem constitucional hodierna.
De um lado, encontra-se a autonomia financeira dos Municípios, que tanto dependem dos repasses das receitas tributárias para manuntenção de suas atividades institucionais. Do outro lado, temos a competência tributária dos Estados-membros, também ligado umbilicalmente à autonomia financeira, posto que o seu exercício é fundamental para a preservação desta.
Contudo, conforme asseveramos acima, o Supremo Tribunal Federal não parece solucionado da melhor forma a questão da constitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos sobre os tributos sujeitos à repartição de receitas, discutida sob o enfoque do federalismo fiscal.
Não levou em consideração a referida Corte os demais fatores inerentes à própria autonomia financeira dos Estados-membros quando do julgamento do recurso extraordinário nº 572.762, posto que privilegiou-se a autonomia financeira dos Municípios. Tal precedente pecou ao se omitir sobre a necessidade de harmonização das referidas autonomias.
Partiu do pressuposto que o direito subjetivo dos Municípios independeria da arrecadação do tributo.
Entretanto, considerando a redação literal do art. 158, IV, da Constituição – segundo a qual somente seria objeto de partilha o produto da arrecadação do ICMS – e o ciclo de receitas públicas, parece mais correto concluir que o direito subjetivo dos Municípios à quota-parte do montante referente aos ICMS somente surge após a fase de arrecadação, ou seja, somente depois da entrada dos recursos nos cofres estaduais.
Tal interpretação parece ser mais favorável à harmonização das autonomias financeiras dos Estados-membros e dos Municípios, pois permitiria que os primeiros manipulasse incentivos e benefícios fiscais de forma legítima, sem prejudiciar os últimos, desde que antes de arrecadado o tributo.
Defender corrente contrária a proposta parece induzir uma demasiada restrição na competência tributária dos Estados-membros, que estariam impedidos de adotar qualquer medida que ocasionasse a perda de receitas públicas.
Porém, permitir tal interpretação esvazia por completo a utilidade dos arts. 150, § 6° e 155, § 2°, XII, g , da Constituição de 1988, pois eles preveem, expressamente, a possibilidade dos entes políticos concederem isenções, reduções de alíquotas, créditos presumidos, e demais outros incentivos e benefícios que também impelem a redução da arrecadação.
Então, com esteira no posicionamento defendido, tem-se que inexistiria inconstitucionalidade na concessão de isenção fiscal pelos Estados-membros aos particulares, em relação ao ICMS, posto que tal benefício fiscal impediria o nascimento da própria obrigação tributária, não permitindo que se alcance a fase de lançamento, muito menos a de arrecadação, já que impossibilita a formação do crédito tributário.
Não alcançada a fase da arrecadação, não há que se falar em direito subjetivo dos Municípios ainda, mas tão somente há expectativa de direito, de modo que os Estados-membros são livres para conceder isenção fiscal.
Além disso, permitir que o entendimento do Supremo Tribunal Federal possa prevalecer induz a concluir que haveria um desequilíbrio na repartição dos riscos decorrentes da política de incentivo fiscal adotada. Isso porque os Municípios estariam livres de qualquer ônus eventualmente dela decorrente, ao passo que os Estados-membros seriam duplamente onerados, primeiramente, na diminuição da arrecadação, e, posteriormente, com o dever de indenizar aqueles pela redução da arrecadação.
Ocorre que a adoção de tal política pode acarretar ganhos também para os Municípios, de modo que ele também deve suportar eventual ônus no caso de seu insucesso.
Ademais, não poderia ter o Supremo Tribunal Federal ter utilizado o precedente firmado no recurso extraordinário nº 572.762 como fundamento para reconhecer a inconstitucionalidade da isenção fiscal concedida pelos Estados-membros, pois a situação analisada é diversa daquela discutida no precedente.
Enquanto no paradigma se discute sobre a postergação de tributo, aqui discuti-se a constitucionalidade da isenção fiscal, benefício fiscal diverso daquele e com peculiaridades próprias que demandam uma análise diferenciada.
Além do mais, no precedente citado, ocorrera a arrecadação efetiva da receita, de modo que o benefício fiscal incidiu sobre o montante arrecadado, ao contrário da isenção, que incide em momento anterior.
Enfim, de qualquer forma, entende-se que a singela aplicação do entendimento firmado no recurso extraordinário nº 572.762 não é compatível com a natureza da isenção, que demanda uma solução diferente, razão pela qual reforça a interpretação sugerida.
REFERÊNCIAS
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[1] CONSTITUCIONAL. ICMS. REPARTIÇÃO DE RENDAS TRIBUTÁRIAS. PRODEC. PROGRAMA DE INCENTIVO FISCAL DE SANTA CATARINA. RETENÇÃO, PELO ESTADO, DE PARTE DA PARCELA PERTENCENTE AOS MUNICÍPIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. RE DESPROVIDO. I – A parcela do imposto estadual sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, a que se refere o art. 158, IV, da Carta Magna pertence de pleno direito aos Municípios. II – O repasse da quota constitucionalmente devida aos Municípios não pode sujeitar-se à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estaudal. III – Limitação que configura indevida interferência do Estado no sistema constitucional de repartição de receitas tributárias. IV – Recurso extraordinário desprovido.
[2] "(...) a orientação jurisprudencial desta Suprema Corte firmou-se no sentido de que a parcela (25%) concernente ao ICMS, a que se refere o art. 158, inciso IV, da Constituição Federal, pertence, por direito próprio, aos Municípios. Isso significa que essa parcela de receita, pertencente, de pleno direito, aos Municípios, deverá ser-lhes creditada sem qualquer outra restrição que não aquelas a que alude o próprio texto constitucional. (...) Vale lembrar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, já sob o regime constitucional anterior, decidiu, ainda que em perspectiva diversa, que a parcela de receita tributária (federal ou estadual), constitucionalmente devida aos Municípios, a estes pertence, integralmente, por direito próprio, rejeitada, por isso mesmo, por inconstitucional, qualquer redução, supressão ou exclusão de valores pertinentes aos tributos submetidos, pela própria Constituição, ao sistema de partilha. São diversos, a esse respeito, os precedentes que esta Suprema Corte firmou na matéria ora em exame (RTJ 82/200 - RTJ 83/619 - RTJ 85/712 - RTJ 56/722 - RTJ 89/233 - RT 516/223, v.g.), vindo, até mesmo, a sumular a jurisprudência em torno da questão pertinente à distribuição de receitas tributárias aos Municípios (Súmula 578/STF)." (AI 665186 ED, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, julgamento em 1.2.2011, DJe de 28.2.2011).
[3] TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO A FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA, SÚMULA 284/STF. ESTADO DA PARAÍBA. ICMS. REPARTIÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS. CONCESSÃO DE ISENÇÕES E OUTROS BENEFÍCIOS FISCAIS. APLICAÇÃO À PARCELA PERTENCENTE AOS MUNICÍPIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. ENTENDIMENTO FIRMADO NO JULGAMENTO DO RE 572.762 (REL. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI, PLENÁRIO, TEMA 42), SUBMETIDO À SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. PRECEDENTES DA SEGUNDA TURMA EM CASOS. AGRAVO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO.
Bacharelando em direito pela Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Ricardo Facundo Ferreira. Repartição de receita tributária do ICMS na perspectiva do federalismo fiscal: abordagem da constitucionalidade do regime de isenção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 ago 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47229/reparticao-de-receita-tributaria-do-icms-na-perspectiva-do-federalismo-fiscal-abordagem-da-constitucionalidade-do-regime-de-isencao. Acesso em: 22 nov 2024.
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