Resumo: O ordenamento jurídico vigente não admite, como regra, a existência de atos ilegais, já que o Estado de Direito, ou Estado da Legalidade, vincula a todos, Administração Pública e particulares. Não obstante, há casos em que os atos ilegais podem ser confirmados, como no caso de ter decorrido muito tempo da prática do ato e tenha decaído o direito da Administração promover sua anulação, prevalecendo, assim, a segurança jurídica. Na confirmação o ato ilegal não é convalidado, e sim mantido exatamente como foi praticado, desde que preservados interesses privados legítimos, não haja dano ao erário e seja a opção mais condizente com o interesse público.
Palavras-chave: Legalidade. Segurança Jurídica. Estado de Direito. Escola da Exegese. Ilegalidade. Confirmação. Interesse coletivo.
Introdução
No presente artigo discorreremos acerca do polêmico e de certa forma complexo tema Ilegalidade e Segurança Jurídica. Que atitude tomar frente a um ato ilegal? Qual princípio do direito prevalece, o da legalidade ou o da segurança jurídica? Ambos de grande importância na construção e manutenção do nosso Estado de Direito. Para responder a tais perguntas este estudo fará menção primeiramente ao surgimento do Estado de Direito, passando pelo processo de codificação das leis e papel marcante da escola da exegese. A seguir haverá uma análise do princípio da legalidade, o seu papel frente à Administração Pública e aos particulares em geral. Após uma breve conceituação de ato ilegal, haverá uma explanação acerca do princípio da segurança jurídica, chegando, finalmente ao tópico específico referente a ilegalidade e segurança jurídica.
Surgimento do Estado de Direito
O Estado de Direito, ou Estado da Legalidade, como conhecemos hoje, onde há uma ordem jurídica vigente a qual todos devem se submeter nem sempre existiu, a sociedade já experimentou vários modelos de Estado, onde muitas vezes o que se observava era o autoritarismo do governante e o descaso total com os direitos individuais das pessoas.
A expressão “Estado de Direito” é atribuída à segunda metade do século XVIII e início do século XIX, advinda da doutrina liberal fortemente influenciada pelas revoluções Americana e Francesa. Os governantes passaram a ter seu arbítrio restringido por princípios como o da legalidade, igualdade e liberdade.
O Estado, agora, estava sujeito as leis, que serviam de limite para as suas ações realizadas através de seus representantes. Hoje parece lógica essa ideia de que o Estado deve agir de acordo com as leis, isso, porém, para a época representou uma revolução, pois o poder do Estado era ilimitado. Ao governante, nesse modelo de Estado chamado de Absolutista, tudo era permitido. Os súditos deviam obediência total a ele.
A ideia de legalidade, porém, foi ganhando cada vez mais adeptos e consequentemente mais força, impulsionada pela burguesia que não aguentava mais os abusos dos nobres, dos monarcas, que exigiam tributos elevadíssimos.
De acordo com Vitor Rhein Schirato na obra “Algumas considerações atuais sobre o sentido de legalidade na Administração Pública” (2008, página 152):
O Estado francês pós-revolucionário bem como outros Estados moldados segundo o pensamento iluminista (por exemplo, o Estado Inglês e o Estado norte-americano) previam em suas constituições a obrigatoriedade de uma atuação estatal meramente garantidora de direitos fundamentais e atuante de forma submissa às normas jurídicas existentes, em contraposição ao Estado absolutista, que não se submetia às normas jurídicas.
Dessa forma, inspirado por essas ideias antes assinaladas, foi criado o Código Civil Francês em 1804 (Código Napoleônico), marcando também a primeira fase da Escola da Exegese.
Escola da Exegese
Foi com o supracitado Código Civil Francês que a escola da exegese, marcada pela literalidade, pela análise gramatical, ganhou mais notoriedade, já que, na verdade, tal escola já vinha formando seus alicerces desde antes da Revolução Francesa.
Consoante Raimundo Bezerra Falcão (2004, página 156):
O racionalismo de que se impregnou o movimento intelectual preparatório da Revolução Francesa e que serviu de fundamentação filosófica para que a burguesia vitoriosa consolidasse suas conquistas levaria ao mais exacerbado abstracionismo legalista. Nunca antes nem depois a razão foi elevada a níveis tamanhos de crença em seu poder de encontrar saída para os problemas, quer fossem os problemas de quem governa, quer fossem as vicissitudes dos governados. Na mente, caixa miraculosa e privilegiada, acreditava-se achar solução para tudo. Na construção mesma do ordenamento jurídico, a mente iluminada do legislador, embora atuando em nome do povo, não precisaria do tumulto social nem do clamor das ruas para melhor instilar, na sabedoria da lei, as doses de justiça capazes de construir, em nova ordem, um novo mundo.
O trecho do autor Raimundo Falcão expressa bem a essência da Escola da Exegese que via a lei como perfeita e livre de lacunas já que havia sido criada segundo a “recta ratio” do legislador. A razão humana era considerada perfeita, por consequência, a lei, resultado da razão humana, também era perfeita, significando dizer: plena, atemporal e universal.
Uma característica marcante dessa mesma escola é a confiança cega na “vontade do legislador”, esse era o único que podia identificar a vontade geral. A interpretação da lei deveria ser a literal. Ideias como essa, da “vontade do legislador” estão presentes até os dias de hoje. A influência da Escola da Exegese no direito como em outras áreas é incomensurável, tanto que apesar de alguns defenderem que a última fase da escola foi de 1900 a 1950 outros dizem que essa fase ainda não acabou.
Princípio da Legalidade
Passando a estudar o princípio da legalidade, fundamental à compreensão do nosso objeto central, vemos logo que tal princípio transcende o direito administrativo, e é, na verdade, um princípio geral da ciência do direito. O princípio da legalidade é a base do, anteriormente citado, Estado de Direito.
Tendo dito isso, é importante diferenciarmos o princípio da legalidade que rege a Administração Pública do princípio da legalidade que rege os particulares. A estes é permitido fazer tudo o que não estiver proibido em lei, de acordo com o artigo 5º, II da Constituição Federal, in verbis: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Já para a Administração Pública o princípio da legalidade, expresso no artigo 37, caput. CF, atua como forma de restrição. O administrador público e a administração em geral só podem atuar dentro dos limites da lei. Em outras palavras, o ato praticado pela administração deve, necessariamente, ter previsão legal. Além disso, o ato deve ser motivado, significando que ao administrador cabe explicitar os motivos que o levaram a prática do ato.
Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, página 63):
Este princípio, juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.
E de acordo com os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, página 100):
Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – o administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos. Pretende-se através da norma geral, abstrata e por isso mesmo impessoal, a lei, editada, pois, pelo Poder Legislativo – que é o colégio representativo de todas as tendências (inclusive minoritárias) do corpo social -, garantir que a atuação do executivo nada mais seja senão a concretização desta vontade geral.
Tendo isso em mente, vemos que o princípio da legalidade, portanto, vai contra toda espécie de abuso de poder, de governo autoritário. O administrador, praticando atos totalmente vinculados à lei, ou até mesmo na prática de atos discricionários (quando a lei deixa certa margem de liberdade para o administrador decidir diante do caso concreto) está agindo de acordo com o princípio da legalidade. O que é inadmissível à luz do ordenamento jurídico vigente é o ato arbitrário, neste caso o administrador pratica ato contrário à lei ou que excede à lei. Corroborando o entendimento, Michel Stassinopoulos apud Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, página 101) diz: “...além de não poder atuar contra legem ou praeter legem, a Administração só pode agir secundum legem”.
Ato Ilegal
Tendo discorrido acerca do princípio da legalidade, faz-se necessário agora conceituar o ato ilegal. Enfim, o que seria o ato ilegal? Ato ilegal, de forma simples e clara, é aquele ato praticado em desconformidade com o ordenamento jurídico.
Como já foi explicitado, a administração pública deve agir dentro dos limites da lei, mas falhas podem ocorrer em algum momento e a administração pode acabar se deparando com a existência de atos ilegais. Tais atos devem ser corrigidos pela própria administração, em decorrência do princípio da autotutela de acordo com a súmula 346 do STF: “A administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos” e com a súmula 473 também do STF:
A administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos a apreciação judicial.
Os atos ilegais podem ser corrigidos de forma excepcional pelo Poder Judiciário por provocação de quem seja interessado. Há também a hipótese da confirmação do ato ilegal, que, como veremos mais adiante, o ato será mantido apesar do vício existente.
Princípio da Segurança Jurídica
Inserido entre os princípios da Administração Pública pelo artigo 2º, caput, da Lei nº 9.784/99: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”. A observância ao princípio da segurança jurídica se mostra essencial à boa administração.
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello (2008, página 124):
é sabido e ressabido que a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão, o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores conseqüências imputáveis a seus atos. O Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da ‘segurança jurídica’, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentro todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles.
Desse trecho podemos extrair que a estabilidade e a segurança são de extrema relevância para o Direito e devem ser um norte a ser perseguido, uma meta a ser alcançada. As pessoas não podem ficar a mercê de mudanças infundadas de atos por parte da Administração Pública. Se o administrador pratica um ato, é natural que o particular acredite que aquele ato produzirá efeitos, e mais, durante todo o tempo que deve produzir efeitos. Se não for dessa forma, os atos da Administração Pública perderão credibilidade, ameaçando inclusive os alicerces do Estado de Direito.
Nesse sentido Almiro do Couto e Silva apud Hely Lopes Meirelles (2008, páginas 99 e 100) diz:
dos temas mais fascinantes do Direito Público neste século é o crescimento da importância do princípio da segurança jurídica, entendido como o princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção à confiança. A ele está visceralmente ligada a exigência de maior estabilidade das situações jurídicas, mesmo daquelas que na origem apresentam vícios de ilegalidade. A segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma das vigas mestras do Estado de Direito. É ela, ao lado da legalidade, um dos subprincípios integradores do próprio conceito de Estado de Direito.
Ilegalidade e Segurança Jurídica
Chegando, finalmente, ao ponto central, questiona-se: o que fazer quando um ato ilegal ameaça a segurança jurídica? A situação deve ser avaliada cautelosamente, pois nem toda anulação de ato ilegal traduz benefício para a coletividade. Deverá então o ato ser mantido em face da segurança jurídica? Temos a resposta afirmativa se é menos oneroso para a coletividade a manutenção desse ato. O objetivo maior é o bem comum.
Segundo os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, página 237): a Administração tem, em regra, o dever de anular os atos ilegais, sob pena de cair por terra o princípio da legalidade. No entanto, poderá deixar de fazê-lo, em circunstâncias determinadas, quando o prejuízo resultante da anulação puder ser maior do que o decorrente da manutenção do ato ilegal; nesse caso, é o interesse público que norteará a decisão.
Ainda sobre o assunto Almiro do Couto e Silva apud Hely Lopes Meirelles (2008, página 100) diz que:
no Direito Público, não constitui uma excrescência ou uma aberração admitir-se a sanatória ou o convalescimento do nulo. Ao contrário, em muitas hipóteses o interesse público prevalecente estará precisamente na conservação do ato que nasceu viciado mas que, após, pela omissão do Poder Público em invalidá-lo, por prolongado período de tempo, consolidou nos destinatários a crença firme na legitimidade do ato. Alterar esse estado de coisas, sob o pretexto de restabelecer a legalidade, causará mal maior do que preservar o status quo. Ou seja, em tais circunstâncias, no cotejo dos dois subprincípios do Estado de Direito, o da legalidade e o da segurança jurídica, este último prevalece sobre o outro, como imposição da justiça material.
Há também previsão para casos em que a segurança jurídica atua frente ao ato ilegal em se tratando de particulares, pois esses também não podem vir a ser prejudicados por um erro da Administração. Temos a respeito disso o artigo 54, caput, da Lei 9.784 de 1999: “O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. Temos, então, da leitura desse artigo o entendimento de que foi respeitado o princípio da autotutela, porém passados cinco anos da prática do ato decai o direito que a Administração tem de anular os atos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, sendo assim respeitada a segurança jurídica, mesmo frente a um ato ilegal.
Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles (2008, página 100), fazendo citação do Mandado de Segurança 26.200-1 do STF diz:
a ‘essencialidade do postulado da segurança jurídica e a necessidade de se respeitar situações consolidadas no tempo, amparadas pela boa-fé do cidadão (seja ele servidor público, ou não), representam fatores a que o Judiciário não pode ficar alheio.
É o mesmo entendimento que pode ser observado no Mandado de Segurança nº 2007.026252-2, de Concórdia que teve como relator o Desembargador José Volpato de Souza. O mandado foi impetrado por um funcionário público que teve sua aposentadoria anulada, após passados nove anos de sua concessão, por força de um decreto (nº045/2007), porém, por decisão do tribunal a situação foi revertida. Segundo o tribunal:
Não pode o administrado ficar sujeito indefinidamente ao poder de autotutela do Estado, sob pena de desestabilizar um dos pilares mestres do Estado Democrático de Direito, qual seja, o princípio da segurança das relações jurídicas. Assim, no ordenamento jurídico brasileiro, a prescritibilidade é a regra, e a imprescritibilidade exceção.
Quando há a manutenção do ato pelo decurso do tempo, no caso do nosso exemplo, dizemos que houve uma confirmação. Houve a decadência do direito da Administração de anular o ato. Tal confirmação, conforme os ensinamentos de Maria Di Pietro também se dá quando a Administração renuncia o direito de anular o ato por razões de interesse público, não podendo ser confundida com a convalidação, pois nesta o vício existente em um ato ilegal é suprido, corrigido, enquanto naquela o ato é mantido exatamente como foi praticado.
Conclusão
Possível constatar, então, após essa análise que um ato, mesmo que ilegal, deve ser analisado por diversos prismas antes de ser invalidado. Para a Administração Pública sempre estará em destaque a supremacia do interesse público, portanto, caso a manutenção do ato ilegal seja menos onerosa para a coletividade, não cause dano ao erário nem afete direitos privados legítimos, não deverá encontrar barreira alguma. Importante, todavia, ressaltar a imprescindível observância ao princípio da boa-fé, pois o dolo na prática do ato ilegal prejudica todo o processo de sua possível confirmação.
Referências Bibliográficas
SCHIRATO, Vitor Rhein. Algumas considerações atuais sobre o sentido de legalidade na Administração Pública. Interesse público: revista bimestral de direito público, 2008, v. 10, n.47, pág. 152.
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica, pág. 156.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23ª edição, 2010, págs. 63 e 237.
DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 25ª edição, 2008, págs. 100, 101 e 124.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 34ª edição, 2008, págs. 99
Advogado (OAB/CE 29324)/ Servidor Público / Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza / Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de Fortaleza.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITO, Paulo Eduardo Feitosa. Ilegalidade e segurança jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47245/ilegalidade-e-seguranca-juridica. Acesso em: 22 nov 2024.
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