RESUMO[1]: A tutela jurisdicional transindividual é bastante recente para o Direito, motivo pelo qual ainda não se pode afirmar que suas bases teóricas estejam substancialmente pacificadas. Hoje, no Brasil, verifica-se a existência de grande dispersão de diplomas normativos tratando do processo coletivo, tais como a Lei da Ação Civil Pública, o Código de Defesa do Consumidor, Lei da Ação Popular, dentre outros. Essa multiplicidade de textos legais dificulta a implementação de uma técnica hermenêutica sistemático-principiológica, sobretudo considerando que eles foram editados em conjunturas muito diversas e sob a égide de Constituições diferentes. Ante tal situação, os doutrinadores da área procuraram elaborar modelos de códigos de processo coletivo, a fim de institucionalizar as evoluções da matéria e permitir formas de interpretação mais abrangentes e sistemáticas. O presente artigo objetiva apresentar os projetos de código e debater seus pontos polêmicos, dentre os quais se destacam os institutos da representatividade adequada e da ação coletiva passiva, a legitimidade do cidadão, além da ocorrência de conexão e litispendência no processo coletivo. A pesquisa será norteada pela análise dos textos normativos e de doutrina especializada sobre os referidos institutos da tutela coletiva.
PALAVRAS-CHAVE: Tutela Jurisdicional Transindividual. Inovações Legislativas. Institutos Polêmicos.
Introdução
Apesar de constituir disciplina relativamente nova para o Direito e de ainda ser alvo de acirradas divergências jurisprudenciais, o processo coletivo vem ganhando cada vez mais destaque na prática forense. Em que pese o Brasil ser considerado um país de vanguarda no que concerne à tutela coletiva (CÂMARA, 2007, p. 39), a falta de unidade legislativa dificulta a solução de muitas questões pragmáticas. Os Tribunais são instados a se manifestarem sobre aspectos controvertidos da tutela transindividual e, para tanto, não dispõem de suficiente substrato normativo. Tal situação, ademais, dificulta a implementação de uma análise sistemática (FERRAZ Jr., 2007, p. 289) e principiológica.
A fim de conferir a aludida sistematização à matéria, os estudiosos da tutela transindividual elaboraram modelos de código de processo coletivo, dentre os quais, destacam-se: o Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América do Instituto Ibero-americano de Direito Processual; o Antreprojeto de Código de Processo Coletivo da UERJ-Unesa; o Código de Antonio Gidi e; o Projeto de Lei n. 5.139/09.
Primeiramente, deve-se questionar sobre a necessidade de um código de processo coletivo. Vale dizer, considerando que há um número razoável de diplomas normativos que tratam da tutela transindividual (Lei 7.347/85, CDC, Lei 12.016/10, Lei da Ação Popular, dentre outras), seria útil a criação de um instrumento legal que unificasse as disposições a respeito desse tema?
Superada essa primeira questão, impõe analisar o conteúdo dos projetos de códigos que versam sobre a matéria. Não se coaduna com os fins metodológicos deste trabalho científico o estudo individualizado de artigos. O propósito não é transcrever os dispositivos dos mencionados textos normativos. A fim de direcionar a leitura para os assuntos mais polêmicos na doutrina processual coletiva, elegeram-se alguns tópicos que causam dissensão acadêmica, quais sejam a representatividade adequada, a ação coletiva passiva, a legitimação do cidadão para a propositura de demanda coletiva e a ocorrência de conexão ou litispendência entre duas ou mais ações coletivas. Com o fito de embasar a análise, houve consulta à literatura jurídica pátria sobre o tema, destacando-se os textos de Rodolfo Camargo Mancuso, Antonio Gidi, Hugo Nigro Mazzilli e Luiz Fernando Bellinetti.
Apesar de se tratarem de projetos ou anteprojetos de códigos e, sendo assim, há a possibilidade de seus dispositivos nunca chegarem a promulgação, acredita-se que a pesquisa ainda se mostra justificável. Em primeiro lugar, porque tais projetos constituem material doutrinário, na medida em que foram elaborados no bojo de congressos e conferências capitaneadas por processualistas renomados. Além disso os códigos trazem discussões que revelam o avanço no estudo do processo coletivo, bem como as dissensões acadêmicas, visto que, em certos aspectos, os projetos tratam o mesmo assunto de maneira diversa.
No entanto, o que se perceberá é uma relativa uniformidade no tratamento de determinados institutos, o que permite advogar pela grande possibilidade de positivação desses entendimentos doutrinários. É de se destacar, porém, que, mesmo nos projetos mais atuais, encontram-se aspectos cuja constitucionalidade é duvidosa. Pelo exposto, considera-se ser de grande valia o estudo das mencionadas propostas para a construção de um processo coletivo garantidor do adequado acesso à ordem jurídica justa.
1. Necessidade de um Código de Processo Coletivo
Inserida na denominada “segunda onda de acesso à justiça”, conforme o célebre estudo de Bryant Garth e Mauro Cappelletti (1988), a tutela dos interesses transindividuais pode ser tida como relativamente nova para o Direito. Doutrina e jurisprudência se debruçam sobre a matéria, ainda com poucos consensos, a fim de tentar solucionar as lacunas do ordenamento jurídico. É certo que é da própria natureza das ciências sociais e humanas que seus objetos sejam alvo de controvérsia, na medida em que há dificuldades ou, por vezes, impossibilidade, de se elaborar um conceito empírico sobre um instituto jurídico. Cabe destacar que houve doutrina que buscou unidade conceitual dos objetos dessas áreas do saber, por meio de um “pacto semântico”, pois entendia que a polivalência de certos termos fragilizaria o status de ciência (CARVALHO, 2008, p. 27).
No que tange especificamente aos direitos transindividuais, a mencionada dificuldade em se estabelecer o conteúdo de conceitos jurídicos é aumentada em virtude do grande conflito interno que tais interesses comportam (MANCUSO, 1998, p. 85). Os direitos difusos e coletivos não podem ser considerados como mera justaposição de interesses individuais. Em verdade, eles são ontologicamente diferentes desses últimos. Seus objetos de tutela atingem um número incalculável de pessoas (interesses difusos) ou ainda uma classe inteira (interesses coletivos). Tal abrangência incita o conflito interno a que Mancuso se refere, de modo que a matéria posta em juízo não será, por exemplo, a insatisfação de um consumidor singular, mas de um conjunto de consumidores. Sob a ótica econômica, a tutela transindividual constitui um importante direito-custo (COELHO, 2009, p. 37), na medida em que eventuais condenações nessa seara costumam atingir grandes montes.
Em termos de legislação, destacam-se alguns instrumentos normativos marcantes para a tutela coletiva. Primeiramente, a Lei da Ação Popular de 1965. Em 1985, a promulgação da Lei da Ação Civil Pública foi bastante decisiva para uma inicial sistematização da matéria. A Constituição Federal de 1988 também trouxe previsões a respeito da tutela transindividual, destacando-se a atribuição do Ministério Público para defesa de interesses difusos e coletivos (art. 129, inciso III). Em 1990, o Código de Defesa do Consumidor também trouxe importantes dispositivos, dentre os quais merecem menção aqueles que definem as três espécies de interesses transindividuais (p. ú. Do art. 81). Por fim, a nova Lei do Mandado de Segurança (Lei 12.016/10) possui previsões a respeito do writ coletivo (art. 21).
Como se vê, há uma positivação relativamente abrangente da tutela transindividual. Todavia, o fato de não haver unidade legislativa dificulta o trabalho do hermeneuta que almeja valer-se de uma interpretação sistemática e principiológica. A pluralidade de diplomas normativos, editados em períodos tão distintos e dentro de contextos bastante diversos, traz empecilhos para que se perquira sobre os fundamentos teóricos da tutela coletiva que foram consagrados na legislação posta. Segundo Bellinetti e Sturion de Paula (2007, p. 1.862): “A ausência de sistematização unificada gera conflitos em torno de pontos essencialmente fundamentais para a própria efetividade do processo coletivo, tal como a competência para o julgamento das ações coletivas”.
Ademais, a necessidade de um Código de Processo Coletivo (CPCol) provém da própria natureza desses interesses, que, conforme dito, são ontologicamente diferentes dos individuais. O conteúdo axiológico do princípio de acesso à justiça, garantia fundamental insculpida no art. 5, inciso XXXV, não se esgota mais numa perspectiva individualista. É imprescindível para a adequada proteção dos interesses transindividuais que se promulgue um diploma normativo consciente das peculiaridades desses interesses, o que será verificado pela consagração de princípios pautados em ideais de solidariedade e de responsabilidade social.
É importante destacar que há um descompasso entre o substrato legislativo que regulamenta os interesses metaindividuais e a evolução doutrinária sobre a matéria. Quando foi promulgada a Lei da Ação Civil Pública, em 1985, a tutela de interesses metaindividuais ainda era pouco estudada no Brasil. Atualmente, porém, o processo coletivo é bastante utilizado na prática forense, sobretudo pelo Ministério Público, e a parca regulamentação da matéria gera complicações dogmáticas, sobre as quais o Poder Judiciário é instado a se manifestar. Para tanto, os magistrados dispõem apenas de consultas à doutrina especializada, que, em verdade, deveriam possuir somente uma função informativa, na medida em que não constituem fonte do Direito. Apesar de, hoje, ser consenso que o Direito não se resume à norma, é importante que haja previsões expressas, a fim de garantir a segurança jurídica e o adequado acesso à justiça.
2. Apresentação dos Anteprojetos
Diante de tal situação, os estudiosos da área começaram a elaborar projetos de códigos de processo coletivo a fim de tentar incorporar as evoluções doutrinárias da matéria, bem como de buscar sua sistematização. Com o objetivo de orientar o leitor acerca do corte metodológico deste artigo, serão apresentados a seguir os projetos de código sobre os quais incidirão nossa análise, bem como será indicado, em nota de rodapé, o endereço eletrônico por meio do qual poder-se-á ter acesso ao conteúdo integral do texto.
Elaborado pelo Instituto Ibero-Americano de Direito Processual[2] e aprovado em 2004, na Venezuela, o Código Modelo, em sua Exposição de Motivos, elenca vários diplomas normativos de diversos países ibero-americanos para demonstrar que há heterogeneidade (e até mesmo ausência) na normatização dos interesses transindividuais. Tal circunstância levou à ideia de se elaborar um Código Modelo para esses países. A Exposição de Motivos afirma ainda que a ideia surgiu a partir de uma intervenção do jurista Antonio Gidi, durante uma conferência em Roma, realizada em maio de 2002. Após sua elaboração pelo Instituto Ibero-Americano, o projeto foi debatido na Universidade de São Paulo, por processualistas renomados como Kazuo Watanabe e Ada Pellegrini, o que culminou em proposta apresentada ao Ministério da Justiça em 2005 (LEAL Jr.; BALEOTTI, 2012, p. 6).
Há ainda o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos[3], desenvolvido pelos núcleos de pesquisa de pós-graduação jurídica stricto sensu da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A conclusão do Anteprojeto se deu em 2005. Segundo sua “Apresentação”, o Código tem por escopo implementar o acesso à justiça e a efetividade do processo.
Menciona-se também o Código de Antonio Gidi, professor radicado nos Estados Unidos. O referido diploma possui como subtítulo “Um Modelo para Países de Direito Escrito”. Na Exposição de Motivos, o professor demonstra claramente sua inspiração no direito estadunidense, ao afirmar que:
Uma das contribuições deste projeto é eliminar injustificadas diferenças procedimentais em ações coletivas. Tais diferenças existem no Brasil e nos Estados Unidos meramente por casualidades e equívocos históricos e esta é a oportunidade para corrigir tais deformações. Não há nada que justifique que a notificação nas ações coletivas indenizatórias americanas (class actions for damages) seja mais rigorosa do que nas demais ações coletivas ou que o regime da coisa julgada nas ações coletivas brasileiras seja diferente de acordo com o tipo de pretensão envolvida.
Destaca-se, ainda, o Projeto de Lei 5.139/95, que pretendia a sistematização da matéria, revogando, inclusive a Lei da Ação Civil Pública e alguns dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Estatuto do Idoso, dentre outros. O Projeto recebeu parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 17/03/2010. Votou-se pela sua constitucionalidade, mas, no mérito pela sua total rejeição. Dentre os motivos apresentados para a rejeição, estaria o fato de que o réu receberia:
tratamento desigual de um juiz que terá liberdade para tomar partido sempre e somente em favor do autor, inclusive alterando a ordem das fases processuais […] e concedendo liminares (e antecipações de tutela) sem que o autor as tenha pedido e sem que tenha sido dada oportunidade de defesa ao réu.
Aduz também que “quaisquer duas pessoas” poderiam ir a juízo, apresentando-se como representantes do grupo, “ou até mesmo de toda sociedade brasileira” e pedirem, por exemplo, “a paralisação de uma iniciativa do poder público por ofensa ao meio-ambiente”.
Tem-se assim mais um exemplo da grande conflituosidade aludida por Mancuso. O Poder Legislativo não vem mostrando muita preocupação com a tutela dos interesses transindividuais e isso talvez se explique pela forte pressão que os poderes econômico e administrativo são capazes de exercer sobre o Parlamento. É significativo que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania tenha afirmado que “quaisquer duas pessoas” poderiam ir a juízo para requerem “a paralização de uma iniciativa do poder público por ofensa ao meio-ambiente”. A pergunta que se coloca é sob qual aspecto a Câmara de Deputados considerou que a situação descrita poderia ser considerada uma ameaça ao interesse do povo, pelo qual, aliás, a mencionada Casa tem o dever de zelar? Em outras palavras, qual o receio do Parlamento?
Se “quaisquer duas pessoas” forem ao Judiciário e este considerar que a paralização se impõe, tal decisão deve ser observada. Em termos pragmáticos, não há 5Disponível na íntegra em: , acessado em 10.11.2013, às 23h20min. 6As informações a respeito do trâmite do Projeto de Lei foram obtidas em consulta ao sítio da Câmara de Deputados, na seguinte página: , acessado em 10.11.2013, às 23h20min. diferença entre essas “duas pessoas” e o Ministério Público. Vale dizer, se o Parquet houvesse formulado semelhante pedido e o magistrado o considerasse procedente, o resultado seria idêntico. O que se percebe, em verdade, é o temor do Poder Legislativo e das forças dominantes de ampliar o alcance da tutela transindividual. Apesar de corrermos o risco de formularmos uma sentença pouco científica, arriscamos dizer que, quando, em 1985, o Congresso promulgou a Lei da Ação Civil Pública, ele estava pouco consciente dos efeitos que esse diploma normativo poderia desencadear. Como não se admitirá a revogação pura e simples das disposições sobre processo coletivo, a conduta assumida pelo Legislativo foi a de não ampliar seu alcance.
No entanto, quando surge alguma oportunidade de tumultuar a tutela transindividual, o Parlamento se mostra bastante receptivo. Um exemplo é o Projeto de Lei 6.745/06, por meio do qual objetiva-se permitir ao Delegado de Polícia a instauração do Inquérito Civil Público. Cabe destacar que esse projeto, sim, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Sob o pretexto de ampliar a proteção dos interesses metaindividuais, cria-se uma sobrecarga à polícia judiciária, a qual, como é sabido, possui pouca estrutura e pouco pessoal. Ademais, nos segundo a Constituição Federal, é função da polícia é a investigação de infrações penais (polícia civil – art. 144, parágrafo 4) e a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (polícia militar – art. 144, parágrafo 5). A polícia já tem sua função institucional definida pela Lei Maior e sabe-se que ela enfrenta muitas dificuldades materiais para desempenhá-la. Atribuir-lhe o encargo de cuidar de inquéritos civis apenas criará impasses relativos a conflitos de competência, constitucionalidade do dispositivo, duplicidade de investigações, etc.
Feitas essas considerações, passa-se a analisar alguns aspectos controvertidos presentes nos referidos projetos, sob o prisma de sua eficácia e constitucionalidade. Como o objetivo deste texto não é efetuar um comentário exaustivo de artigos, elegeram-se temas considerados de especial interesse para a construção de uma teoria do processo coletivo e de sua consequente dogmática.
3. Representatividade Adequada
Os Códigos de Antonio Gidi, UERJ e Modelo previram o instituto da representatividade adequada. Trata-se de mecanismo processual, que se origina nas class actions for damages estadunidenses, por meio do qual se afere a “idoneidade do portador judicial (MANCUSO, 2007, p. 33)”. Cabe destacar que o Projeto de Lei nº. 5.139/09 não previu o referido instituto.
A representatividade adequada teria por escopo impedir que entidades descapacitadas ajuizassem ações coletivas. Isso porque em caso de improcedência do pedido, haveria prejuízo aos atingidos, sem que a entidade que os defendeu tivesse condições de representar seus interesses. Trata-se em verdade de uma fase processual, cujo fito seria propiciar o aferimento pelo juiz, segundo requisitos postos na lei (no caso dos países do civil law), da capacidade do ente de estar em juízo defendendo os interesses dos lesados (LENZA, 2003, p. 168).
Mancuso (2007, p. 47), ao trabalhar a sistemática da adequacy of representation nas class actions norte americanas, cita Owen Fiss, o qual afirma que:
Acredito que o que a Constituição garante não é o direito de participação, mas o que chamarei de “direito de representação”: não “um dia na Corte”, mas o direito à representação adequada de interesses. Consoante o direito de representação, nenhum indivíduo pode ser obrigado por uma decisão judicial a menos que seus interesses estejam adequadamente representados no processo.
Nos termos do art. 3º, inciso II, do Código de Antonio Gidi, a ação coletiva somente poderá ser levada a cabo se o legitimado coletivo e o advogado do grupo puderem representar adequadamente os direitos do grupo e de seus membros. Para aferir a respectiva representatividade, o juiz analisará, dentre outros fatores (alínea 3.1):
3.1.1 a competência, honestidade, capacidade, prestígio e experiência;
3.1.2 o histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses do grupo; 3.1.3 a conduta e participação no processo coletivo e em outros processos anteriores;
3.1.4 a capacidade financeira para prosseguir na ação coletiva;
3.1.5 o tempo de instituição e o grau de representatividade perante o grupo.
Como se vê, nessa fase processual o magistrado terá de lidar com contornos bastante imprecisos na caracterização da representatividade adequada. Terá de analisar o “prestígio” e a “honestidade” do legitimado coletivo, por exemplo. Averiguará ainda se ele possui capacidade financeira para prosseguir na ação coletiva.
Conforme mencionado, o Código Modelo e o UERJ também previram esse instrumento processual, cabendo destacar apenas que há pequenas alterações no que tange aos requisitos para sua caracterização.
3.1 Utilidade da Representatividade Adequada para o Direito Brasileiro
Atualmente, os legitimados para a propositura de Ação Civil Pública são, em geral, entidades públicas: União, Estados, Municípios, Autarquias, Ministério Público, Defensoria Pública, dentre outros. Mesmo os partidos políticos e os sindicatos, que são pessoas jurídicas de direito privado (art. 44, Código Civil) possuem finalidades essencialmente públicas. As empresas públicas e as sociedades de economia mista, em que pese serem também pessoas jurídicas de direito privado, são coadjuvantes da ação governamental (MELLO, 2007, p. 179). Por esse motivo, sua atuação não se furta à observância da supremacia do interesse público. As associações, porém, podem ter por objeto a defesa tanto de interesses de classe quanto de interesses públicos (MAZZILLI, 2005, p. 278), a depender de seu estatuto e do fim a que se destina.
No que concerne às pessoas jurídicas de direito público, previstas no art. 5º da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), não é concebível a aplicação do instituto da representatividade adequada. Entender que os entes federados não possuem representatividade para defender os interesses da população contraria a lógica do Estado Democrático de Direito. Igual situação se dá com o Ministério Público. A legitimidade (não a processual, mas a institucional) dessas entidades decorre da própria Constituição Federal.
Quanto à Defensoria Pública, há polêmica sobre sua legitimidade processual para ajuizamento de ação civil pública. A celeuma gira em torno do cotejo entre o alcance das ações coletivas e as finalidades institucionais da entidade (ARENHART e MARINONI, 2010, p. 303). Vale dizer, se na tutela coletiva defendem-se interesses que podem pertencer a um número indeterminado de pessoas e a entidade tem por objetivo precípuo a assistência jurídica dos necessitados (art. 134, CF), pode ocorrer que a ação civil pública ajuizada pela Defensoria alcance pessoas que não se enquadram no conceito de “necessitado”. Todavia, não se questiona a legitimidade institucional da Defensoria Pública para a proteção dos interesses de necessitados. Em outras palavras, não há que se perquirir sobre a representatividade adequada da entidade na consecução das tarefas que a Constituição Federal lhe incumbe. A polêmica se limita à legitimação processual e, ainda, apenas nos casos em que a decisão puder beneficiar pessoa não enquadrada como “necessitado”.
Se é admissível que tais legitimados atuem no processo coletivo sem sequer precisar demonstrar pertinência temática, tanto mais será descabida a aferição de sua representatividade.
No que tange aos sindicatos, também não se vislumbra utilidade do instituto no Direito brasileiro. A representatividade adequada da entidade sindical se justifica no Direito estadunidense, na medida em que lá vigora o princípio da pluralidade sindical (GODINHO, 2012, p. 1.351). É possível assim que haja mais de um sindicato representativo de categoria profissional ou econômica na mesma base territorial. Nessa situação, é compreensível que se afira a capacidade do sindicato de estar em juízo defendendo os interesses de toda uma classe. Desse modo, por exemplo, caso o sindicato tenha um número reduzido de associados, seria inadmissível que todos os trabalhares fossem atingidos pela decisão.
No Direito brasileiro, porém, vigora o princípio da unicidade sindical (art. 8, II, CF), ou seja, somente é possível a existência de um sindicato representativo de categoria profissional ou econômica na mesma base territorial. Nesse contexto, não há como aplicar o instituto da representatividade adequada, visto que inexistiria outro sindicato apto a ajuizar a ação coletiva.
Quanto aos partidos políticos, também se mostra pouco plausível a aferição de representatividade adequada, na medida em que é da própria natureza da entidade a representação de interesses sociais. Importa retomar aqui que, se não lhes é exigida a pertinência temática (MAZZILLI, 2005, p. 281), também não faria sentido exigir-se que demonstrassem sua capacidade de representação. Segundo Carvalho Filho (2001, p. 140), “os partidos políticos têm representação política e genérica, diversamente das associações legitimadas, possuidoras de representação social e específica”.
Diante do exposto, percebe-se que o instituto teria utilidade apenas para as associações, distanciando-se, mesmo assim, em muito da sua abrangência originária no Direito estadunidense. O ordenamento jurídico brasileiro já prevê algumas restrições para o ajuizamento de ações coletivas pelas associações, o que lhe asseguraria um mínimo de legitimidade institucional. É preciso que ela (art. 5º, V, da Lei 7.347/85):
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
No que concerne à idoneidade financeira, cabe destacar que o art. 18 da referida Lei dispõe não serem devidas custas, emolumentos, honorários ou condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé. Assim, não se mostra razoável a aferição desse requisito da representatividade adequada, o que fragiliza, ainda mais, sua utilidade no Direito pátrio.
Segundo Bianca Richter (2012, p. 218):
A discussão tem relevância distinta nos Estados Unidos, pois, lá, a coisa julgada opera pro et contra, enquanto que o nosso ordenamento adota o sistema da coisa julgada secundum eventum litis e in utilibus. Talvez, por isso, o sistema norte-americano se concentre mais sobre a representatividade adequada, já que a coisa julgada produzirá efeitos no âmbito individual, mesmo quando prejudicial.
Há considerável diferença entre os Direitos brasileiro e estadunidense, diferença esta que não se resume ao sistema do common law e do civil law. As class actions for damages nos Estados Unidos, como o próprio nome diz, são tratadas como ações de classes, em cujo bojo discute-se uma somatória de interesses particulares justapostos. No Brasil, porém, os interesses transindividuais são considerados ontologicamente diferentes dos interesses privados, não se constituindo, assim, uma junção de interesses de classes. Desse modo, é possível questionar a utilidade do instituto da representatividade adequada para o Direito brasileiro.
4. Ação Coletiva Passiva
No Brasil, até o presente momento, o legitimado coletivo ocupa, regra geral, o polo ativo. O art. 5º da Lei da Ação Civil Pública alude à legitimidade para propor a demanda. Na atual tutela jurisdicional transindividual brasileira, não é possível, a princípio, o ajuizamento de demanda em face de uma coletividade.
Assim não o é, porém, no Direito estadunidense. No âmbito das class actions norte-americanas, é possível que se ajuíze, por exemplo, demanda contra e em face de uma classe, objetivando que a sentença atinja todos os seus integrantes. Segundo Rodolfo Mancuso (2004, p. 230), essa possibilidade decorre da regra 23 (a) (3) das Federal Rules of Civil Procedure. Significa dizer que é possível a propositura de uma demanda contra, por exemplo, a classe de médicos de certa cidade, que seria representada pela associação respectiva.
Como se observa, tal disposição é instrumentalizada principalmente pelo já estudado instituto da representatividade adequada, quando o juiz afere se o legitimado passivo possui capacidade para defender os interesses de seus associados. Quer dizer, não é possível ação coletiva passiva sem representatividade adequada. No exemplo acima, a sentença só poderia atingir a classe médica se a respectiva associação os representasse adequadamente.
Os Códigos Antonio Gidi, Iberoamericano e da UERJ preveem a ação coletiva passiva para o ordenamento jurídico brasileiro. O Projeto de Lei nº. 5.139/09, porém, não possui qualquer menção a respeito. Segundo a Exposição de Motivos do Código Modelo e na esteira do que foi explicitado acima:
O Capítulo VI introduz uma absoluta novidade para os ordenamentos de civil law: a ação coletiva passiva, ou seja a defendant class action do sistema norte-americano. Preconizada pela doutrina brasileira, objeto de tímidas tentativas na práxis, a ação coletiva passiva, conquanto mais rara, não pode ser ignorada num sistema de processos coletivos. A ação, nesses casos, é proposta não pela classe, mas contra ela. O Código exige que se trate de uma coletividade organizada de pessoas, ou que o grupo tenha representante adequado, e que o bem jurídico a ser tutelado seja transindividual e seja de relevância social.
Apesar de prevista nos citados modelos de código, a ação coletiva passiva, se tomada nos parâmetros das defendant class actions estadunidenses, possui constitucionalidade questionável. A possibilidade de alguém vir a ser atingido negativamente por sentença em processo no qual ele não participou viola o princípio do acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV, CF), do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, CF).
Imagine-se, por exemplo, que uma empresa tenha comercializado produto defeituoso. Prevendo as reclamações dos clientes e as demandas que eles proporão, decide ajuizar ação coletiva passiva contra o Procon, a fim de estabelecer, desde logo, os parâmetros para eventuais indenizações. Finda a demanda, o consumidor, que sequer sabia da existência da ação coletiva passiva, ajuíza demanda ressarcitória por ter sofrido prejuízos com a utilização do produto viciado. A indenização a que ele terá direito deverá obedecer a coisa julgada produzida na ação coletiva passiva, não podendo extrapolar ou mesmo discutir o que ali foi decidido. Parece que tal situação afronta o princípio da inafastabilidade da jurisdição e também do contraditório, o qual é constituído pelo binômico informação-possibilidade de manifestação. Nas palavras de Alexandre Freitas Câmara (2007, p. 52):
Tal definição significa dizer que o processo – o qual deve, sob pena de não ser verdadeiro processo, se realizar em contraditório – exige que seus sujeitos tomem conhecimento de todos os fatos que venham a ocorrer durante seu curso, podendo ainda se manifestar sobre tais acontecimentos.
No mencionado exemplo, aliás, sequer importa se a empresa vencerá ou não a demanda, pois a interdição de que o consumidor discuta e mensure, individualmente, a extensão do dano por ele sofrido, já viola, de per si, a Constituição Federal.
Os arts. 36 e 37 do Código Modelo afirmam que, quando se tratar de interesses difusos, a coisa julgada na ação coletiva passiva terá efeito erga omnes. Tal previsão cria a possibilidade, por exemplo, de uma construtora ajuizar a referida demanda contra o Ministério do Meio Ambiente, a fim de que seja declarado que não haverá dano ambiental com certa obra que ela se propõe a erguer. Se a ação for julgada procedente, a coisa julgada erga omnes impedirá a propositura de ação civil pública pelo Ministério Público ou de ação popular pelo cidadão.
O Código de Antonio Gidi prevê, inclusive, que, não havendo associação que congregue os membros do grupo-réu, a ação coletiva passiva poderá ser proposta contra um ou alguns de seus membros, que funcionarão como representantes do grupo (art. 28, alínea 28.2). Em uma de suas obras teóricas, o autor afirma que existem muitas bases para identificar um representante adequado para o interesse do grupo, sendo que a lei pode deixar essa faculdade a um indivíduo, integrante ou não do grupo (GIDI, 2004, p. 71).
Cabe destacar que Rodolfo de Camargo Mancuso (2004, p. 234) entende que, em regra, podem figurar no “polo passivo da ação civil pública todos os que estão legitimados no polo ativo”, excetuando-se, apenas, o Ministério Público. Mesmo assim, o autor relativiza consideravelmente o cabimento da ação coletiva passiva, ao afirmar que a legitimidade passiva das associações deve ser o mais rara possível, visto que, a princípio, elas soam “lutar em defesa dos interesses metaindividuais e não contra eles”. Em verdade, o doutrinador entende que a ação coletiva passiva possui aplicabilidade quando intentada contra os entes políticos. Nas palavras do autor (p. 238):
De fato, os entes políticos (União, Estados, Municípios) são colegitimados para a ação civil pública, mas muita vez ocorre que eles mesmos, por ação ou omissão, em modo mais ou menos intenso, integram, paradoxalmente, o nexo etiológico dos danos inflingidos aos próprios interesses tutelados por essa ação [...]
Todavia, os entes políticos não são classe, mas pessoas jurídicas de direito público e é por esse motivo que podem figurar no polo passivo da demanda coletiva. Não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade nisso. O problema reside no ajuizamento de ações contra classes inteiras, as quais serão representadas por associações ou, nos termos do Código Antonio Gidi, por membros do grupo, e cujas decisões atingirão todos os representados.
Pelo exposto, entende-se que a previsão de ação coletiva passiva, além de violar os mencionados princípios constitucionais, também cria condições para a ocorrência de fraudes. Isso porque enseja a possibilidade da criação de uma entidade para funcionar apenas como legitimada coletiva passiva em casos de dano ambiental ou ao consumidor, por exemplo. É certo que o instituto da representatividade adequada reduziria a ocorrência de fraudes, mas essa aferição se tornaria demasiado dificultosa quando a demanda albergar apenas interesses locais. Ademais, o fato de a defendant class action funcionar no Direito estadunidense não garante que ela terá a mesma utilidade no Brasil, visto que, conforme afirmado, os sistema jurídicos são consideravelmente diferentes.
5. Legitimação Ativa do Cidadão
O Código Modelo de Processos Coletivos para a Ibero-América traz outra inovação em termos de tutela transinvididual, qual seja a previsão do cidadão como legitimado ativo. No Brasil, a única ação coletiva que pode ser ajuizada pelo cidadão (e essa, aliás, é exclusiva dele) é a popular, prevista no art. 5º, inciso LXXIII, da CF e na Lei 4.717/65. A pretensão do referido Código é ampliação dessa legitimidade para todas as espécies previstas de ações coletivas, incluindo a ação civil pública.
Dispõe o art. 3º, inciso I, do Código Modelo, que:
Art. 3º Legitimação ativa. São legitimados concorrentemente à ação coletiva: I – qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas por circunstâncias de fato; [...]
A referida previsão alude a “circunstâncias de fato”. Segundo o art. 81, p.ú., inciso I, do Código de Defesa do Consumidor (Lei. 8078/90), os interesses e direitos nos quais os titulares sejam ligados por circunstâncias de fato são os difusos. Assim, qualquer pessoa poderia ajuizar ação civil pública para a tutela de interesses difusos.
Importa destacar que nem o Código Antonio Gidi, nem o Projeto de Lei 5.139/09 previram tal legitimação ativa.
Essa possibilidade também se mostra pouco útil, na medida em que o cidadão já possui a ação popular como instrumento de atuação na seara processual coletiva. Ademais, como visto, a legitimação se restringiria à propositura de demandas que tratassem de interesses difusos, ou seja, justamente aqueles que podem ser defendidos por meio de ação popular (MEIRELLES, 1983, p. 82).
A mencionada previsão criaria celeumas doutrinário-jurisprudenciais, sobretudo no que concerniria à ocorrência, ou não, de litispendência caso houvesse ajuizamento de duas ações coletivas por cidadãos diferentes. O Código Modelo buscou solucionar a questão, determinando a reunião dos processos.
De qualquer modo, não se vislumbra inconstitucionalidade na referida previsão, mas tão somente falta de utilidade. Se a pretensão do Código Modelo foi ampliar as possibilidades de atuação do cidadão, colocando a sua disposição mais de um instrumento processual, a proposta se mostra válida. Contudo, é interessante destacar que, se a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania havia votado pela total rejeição, no mérito, do PL 5.139/09, sob o argumento de que “quaisquer duas pessoas” poderiam ir a juízo com a pretensão de interditar uma obra do Poder Público, é de se imaginar que a atribuição legitimidade para o cidadão também não seria vista com bons olhos pelo Congresso Nacional.
6. Conexão e Litispendência
Outro tema que provoca celeuma entre os doutrinadores do processo transindividual é a existência de conexão e litispendência entre demandas coletivas. Impende destacar que não se trata de discutir se tais institutos ocorrem entre ações individuais e coletivas. Nesse aspecto, o CDC traz dispositivo (art. 104) prevendo que a ação coletiva não induz litispendência para as individuais e não há obrigatoriedade de reunião de processos. Assim, a polêmica concerne à existência de conexão e litispendência entre duas ou mais demandas coletivas.
O art. 103 do Código de Processo Civil dispõe que há conexão entre duas ou mais ações quando lhes forem comum o objeto ou a causa de pedir. Segundo Alexandre Freitas Câmara (2007, p. 109):
É de se afirmar que a conjunção “ou”, empregada no texto do artigo, é usada como “ou conjuntivo”, isto é, no sentido de “e/ou”. Em outras palavras, haverá conexão tanto nas hipóteses em que apenas um dos elementos objetivos da demanda (causa de pedir e pedido) coincidir com o de outra demanda, como também haverá conexão quando os dois elementos forem comuns.
A litispendência ocorre quando há identidade dos elementos objetivo e subjetivo da demanda. Isto é, se partes, pedido e causa de pedir forem comuns à duas ou mais demandas. Trata-se da teoria dos três eadem (CINTRA, DINAMARCO e GRINOVER, 2009, p. 281) consagrada pelo art. 301, § 3º do CPC. Ao contrário da conexão, que importa em reunião dos processos (art. 105, CPC), a litispendência acarreta extinção do último processo, sem apreciação do mérito (art. 267, inciso V, CPC).
Na tutela coletiva, haveria conexão, por exemplo, no caso de ajuizamento de duas ações coletivas, uma proposta pelo Ministério Público, outra por uma associação, para a reparação de danos causados ao meio ambiente. O problema gira em torno da ocorrência, ou não, do fenômeno da substituição processual na tutela coletiva. Parte considerável da doutrina entende que a legitimação ativa no processo coletivo se dá por substituição processual (MAZZILLI, 2005, p. 61), ou seja, que a entidade não atua em nome próprio. Desse modo, independentemente do órgão que estivesse à frente da demanda, o polo seria ocupado pela coletividade. No exemplo dado, tanto a ação ajuizada pelo Ministério Público quanto aquela proposta pela associação teriam por escopo defender a coletividade, o que implicaria numa identidade de partes.
Bellinetti (2000) e Mancuso (1998, p. 260-263), todavia, discordam de tal posicionamento doutrinário, adotando uma teoria normativista da legitimação. Vale dizer, é a própria lei que atribui legitimidade ao órgão, de modo que ela é, portanto, do próprio órgão. Ele não age por substituição processual, mas, sim, em nome próprio. O fato de sua atuação refletir na esfera jurídica alheia decorre da função institucional da entidade (Ministério Público, associação, sindicatos, etc.). A adoção dessa teoria traria o benefício de reduzir a celeuma acerca da litispendência entre ações coletivas, pois não mais se questionaria se o polo ativo seria ocupado por uma coletividade substituída ou pelo órgão substituto. A legitimidade seria do órgão, o que acarretaria na reunião dos processos.
Considerando, porém, que se trata de doutrina minoritária, verifica-se que persiste o impasse. No exemplo anteriormente citado, poder-se-ia afirmar que tanto o Ministério Público quanto a associação estariam agindo em nome de toda coletividade, não se tratando portanto de conexão, mas de litispendência, o que implicaria na extinção da demanda ajuizada por último.
Os projetos de códigos de processo coletivo objetivaram resolver o problema. O Código Modelo (art. 30), por exemplo, dispõe que a primeira ação coletiva induz litispendência para as demais que tenham por objeto controvérsia sobre o mesmo bem jurídico, ainda que diferentes os legitimados ativos e a causa de pedir. Como se vê, o Código Modelo não adotou a supracitada teoria dos três eadem, na medida em que permite a litispendência sem que haja identidade dos três elementos da ação.
O Código de Antonio Gidi dá tratamento semelhante à questão. Em seu art. 19, dispõe que a primeira demanda coletiva induz litispendência para as demais relacionadas a mesma controvérsia, complementando, ainda, que os autores da demanda extinta poderão intervir na primeira ação coletiva. Menciona também a obrigação do réu em informar ao juiz e ao representante do grupo sobre a propositura de outra ação relacionada à mesma controvérsia coletiva.
O Projeto de Lei 5.139/09 pareceu ter dado solução um pouco diversa das demais. Senão, vejamos:
Art. 5º A distribuição de uma ação coletiva induzirá litispendência para as demais ações coletivas que tenham o mesmo pedido, causa de pedir e interessados e prevenirá a competência do juízo para todas as demais ações coletivas posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto, ainda que diferentes os legitimados coletivos, quando houver:
I - conexão, pela identidade de pedido ou causa de pedir, ainda que diferentes os legitimados; [...]
§ 1º Na análise da identidade da causa de pedir e do objeto, será preponderantemente considerado o bem jurídico a ser protegido.
§ 2º Na hipótese de litispendência, conexão ou continência entre ações coletivas que digam respeito ao mesmo bem jurídico, a reunião dos processos poderá ocorrer até o julgamento em primeiro grau.
A proposta apresentada pelo PL 5.139/09 parece não resolver adequadamente o problema. Pela redação do dispositivo, haverá litispendência quando forem idênticos os pedidos, a causa de pedir e os interessados. A inclusão desse último termo torna a exegese do artigo muito complicada, na medida em que é da própria natureza dos interesses metaindividuais o atingimento de um número indeterminado de pessoas. Além disso, ter-se-á a institucionalização da tese segundo a qual os legitimados ativos atuam como substitutos processuais da coletividade e não em nome próprio, por atribuição legal ou constitucional.
No entanto, logo após dispor sobre a litispendência, mencionando a identidade de interessados, o Código afirma que prevenirá a competência do juízo as ações posteriormente ajuizadas que possuam a mesma causa de pedir e o mesmo objeto, ainda que os legitimados ativos sejam diferentes. Segundo Alexandre Freitas Câmara, o objeto do processo é o pedido.
Ora, tal disposição cria ainda mais polêmica. Isso porque o que determinará a extinção do processo por litispendência ou a reunião dos processos será a identidade, ou não, do elemento subjetivo da ação. Ocorrerá litispendência quando houver identidade de interessados e prevenirá o juízo quando os legitimados ativos forem diferentes. Contudo, se os legitimados ativos agem por substituição processual, isto é, substituindo os interessados, como saber quando não ocorrerá litispendência? Consideramos que a redação do artigo é confusa e não resolve adequadamente a matéria.
O impasse seria melhor solucionado com a adoção da teoria normativista, propugnada por Bellinetti (2000) e Mancuso (1998), segundo a qual a competência para o ajuizamento de ação coletiva é do próprio órgão legitimado. O fato de atuarem na defesa de interesse alheio decorre de sua própria função institucional. Não há necessidade de se perquirir sobre quais interessados estariam sendo substituídos no processo. Entende-se que a positivação dessa teoria resolveria a celeuma. Se uma ação fosse intentada pelo Ministério Público e outra por uma associação, todas com o mesmo objeto e causa de pedir, não haveria litispendência, por falta de identidade de partes. A solução seria sempre a reunião do processo, a fim de que não sejam prolatadas sentenças díspares para um mesmo caso.
Considerações Finais
Tem-se assim que a criação de um código de processo coletivo possui grande utilidade na implementação das técnicas hermenêuticas lógico-sistemática e principiológica. Permitir-se-ia, também, que o diploma albergasse as evoluções doutrinárias e jurisprudenciais sobre a matéria, reduzindo a insegurança jurídica causada pelo impasse teórico sobre diversos institutos da tutela coletiva, tais como a ocorrência de conexão e litispendência, os limites da eficácia territorial da sentença, dentre outros.
Se, por um lado, os códigos estudados trazem soluções para as referidas divergências jurisprudenciais, por outro criam institutos processuais cuja constitucionalidade ou utilidade são questionáveis.
No caso, por exemplo, da representatividade adequada, verifica-se que sua aplicabilidade no Direito brasileiro possuiria uma abrangência muito menor do que aquela originalmente havida no Direito estadunidense, na medida em que aqui ela só seria útil se aplicada às associações. Quanto à ação coletiva passiva, constata-se que sua compatibilidade com a Constituição Federal é bastante questionável, pois parece violar os princípios da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório e da ampla defesa.
No que tange à legitimidade ativa do cidadão para o ajuizamento de ação civil pública, tem-se que não há inconstitucionalidade nessa previsão. Todavia, conforme visto, a matéria a ser tratada nessas ações se restringiria aos interesses difusos e, para tanto, há a ação popular, a qual se presta para atuação do cidadão na qualidade de legitimado ativo.
Quanto à ocorrência de conexão ou litispendência entre ações coletivas, entende-se que a melhor solução seria adotar-se a teoria normativista, segundo a qual a legitimidade é do próprio órgão. O fato de sua atuação beneficiar terceiros decorre de sua própria função institucional. Considerando que o processo coletivo já possui grandes entraves devido a sua forte conflituosidade interna e sua aptidão em resistir às opressões dos poderes econômico e administrativo, o ideal seria trabalhar para que questões técnicas tumultuassem o mínimo possível esse procedimento. Não faz sentido manter-se a sistemática de substituição processual e a previsão de litispendência. Basta que haja prevenção do juízo e reunião de demandas.
No processo civil, acredita-se que a grande inovação do século XX foi a tutela coletiva. Por viabilizar a efetividade e celeridade processuais e, considerando que atualmente vive-se em sociedades complexas e multipopulacionais, a tutela transindividual se mostra o instrumento mais promissor para solução de conflitos. Todavia, ainda há muitas divergências teóricas na matéria, de modo que a criação de um código de processo coletivo seria muito proveitosa para nortear a atuação jurisdicional e promover a segurança jurídica, que os interesses metaindividuais demandam.
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[1]Artigo também publicado nos Anais do XXIII Encontro Nacional do CONPEDI – Florianópolis
Mestre em Direito Negocial Pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduado pela Universidade Estadual de Londrina
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ESTEVES, Marcos Guilhen. Inovações legislativas no processo coletivo: os modelos de Código e seus aspectos polêmicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47249/inovacoes-legislativas-no-processo-coletivo-os-modelos-de-codigo-e-seus-aspectos-polemicos. Acesso em: 22 nov 2024.
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