RESUMO: O presente trabalho busca abordar o precedente judicial enquanto fonte do direito sob uma perspectiva eminentemente teórica. Partir-se-á, para tal fim, de noções filosóficas relativas à interpretação jurídica, como a diferença entre texto e norma, círculo hermenêutico, conceitos de intepretação e compreensão. Além disso, fundamentar-se-á com base em aspectos atinentes à teoria da norma jurídica como fenômeno comunicativo, bem como em aspectos relativos à estrutura interna da norma, na perspectiva abordada por Hans Kelsen e Tércio Sampaio Ferraz Jr.; bem como sua construção pelo intérprete, pautada pelo texto, âmbito e programa normativo, conforme delineamentos de Friedrich Müller. No mais, alguns conceitos normalmente utilizados pela doutrina com base na tradição do Common Law, tais como, ratio decidendi e obiter dictum, serão reformulados a fim de adequá-los ao sistema jurídico nacional e aos modernos delineamentos esboçados quanto à interpretação jurídica. Por fim, as concepções abordadas serão utilizadas para argumentar a favor da “obrigatoriedade” de determinadas decisões judiciais proferidas no bojo do sistema decisório brasileiro.
Palavras-chaves: Precedente Judicial. Ratio decidendi. Texto Normativo. Teoria das Fontes do Direito. Teoria Geral do Direito. Filosofia do Direito. Hermenêutica Jurídica.
1 A DISTINÇÃO ENTRE NORMA GERAL E NORMA INDIVIDUAL
Como visto no capítulo anterior, Kelsen esboça o conceito de norma jurídica individual como um contraponto ao conceito de norma jurídica geral, haja vista que seria inconcebível conceber a decisão do magistrado – norma individual – como que tendo a mesma qualidade, pertencente à mesma categoria, da constituição, das leis ordinárias, das resoluções etc. – normas gerais. Assim, embora tanto as leis ordinárias quanto as decisões judicias sejam aplicação de uma norma geral de superior hierarquia, a sentença jurisdicional enseja uma norma de qualidade diversa da qual se baseia, possuindo um caráter individual e concreto ao invés de geral e abstrato.
Em contraposição a esta visão, há doutrina no sentido de que o magistrado, ao “aplicar o Direito”, criaria, além da norma individualizada, verdadeira norma jurídica geral. Esta tese é defendida, em solo pátrio, por Fred Didier Jr.[1], Luiz Guilherme Marinoni[2] e Roberto Eros Grau[3] e, em terras estrangeiras, pelo jusfilósofo argentino Eugenio Bulygin, na obra “los jueces crean derecho?”. Parte-se da premissa de que o magistrado, ainda que de forma excepcional, cria a norma jurídica geral e não apenas a norma individual aplicável ao caso concreto.
O jurista argentino entende não ser lícito falar em criação do direito por parte do magistrado quando este se limita a criar a norma jurídica individual com base na norma geral[4]. Há, de fato, criação da norma jurídica individual, mas isto não implicaria criação do Direito. Em seu entender, somente haveria sentido em defender o caráter criativo da atividade jurisdicional caso o magistrado criasse normas jurídicas gerais[5]. Todavia, assevera que, excepcionalmente[6], o ordenamento jurídico confere a possibilidade de o magistrado construir a própria norma jurídica geral a ser aplicada no caso concreto.
Partindo do pressuposto de que o magistrado decide com base em normas, Eugenio concebe que sempre haverá uma norma geral a ser aplicada ao caso concreto. Quando esta norma geral for prevista no ordenamento jurídico, a sentença consistirá, tão somente, na criação (= aplicação) da norma jurídica individual, mas não implicará em qualquer atividade jurisdicional criativa. Por outro lado, casos há em que o ordenamento não prever qualquer norma geral a ser aplicada e, diante disso, confere ao magistrado o dever de criá-la, como nas hipóteses de omissão constitucional, declaração de inconstitucionalidade das leis e balanceamento de direitos fundamentais. Nesses casos, o magistrado criará tanto a norma jurídica geral, não prevista no ordenamento, quanto a norma jurídica individual, a ser aplicada ao caso concreto. Quando assim proceder haverá, também, criação do “Direito”.
Adota-se, portanto, uma postura kelseniana e normativista, concebendo-se a norma jurídica geral como um “dado” imprescindível à “aplicação” do Direito, com o agravante de que o Direito é apenas expresso em normas gerais, sendo as normas individuais tal como concebidas por Carnelutti[7]: mera aplicação (= adequação) da norma jurídica geral. Confunde-se, pois, o texto com a norma, e a norma geral com o próprio “Direito”, voltando-se a visão do intérprete-aplicador como uma máquina repetitiva, a visão da atividade jurisdicional como “bouche de la loi”.
Eros Roberto Grau, por sua vez, argumentando que os intérpretes autênticos não criam direitos, mas apenas o produzem, concebe dois sentidos, um amplo e outro estrito, para o conceito de interpretação[8]. Em sentido amplo, interpretar é “compreender”. Em sentido estrito, porém, interpretar é dirimir dúvidas, precisar o sentido das palavras. A interpretação em sentido estrito, portanto, constitui num caminho muitas vezes necessário à interpretação em sentido amplo (= compreensão), pois a viabiliza[9].
Além disso, a interpretação jurídica é realizada visando à reprodução. É uma interpretação alográfica[10], ou seja, interpreta-se não apenas para compreender, mas também para reproduzir. O intérprete autêntico compreende o texto e o reproduz em norma. Constrói, pois, o seu significado, dirimindo dúvidas, precisando sentidos, e assim o faz para viabilizar a solução de conflitos, para possibilitar uma decisão que o apazigue.
Deste modo, haveria dois intérpretes[11]. O primeiro – autêntico – seria o responsável por construir a norma e proferir a decisão. Ele compreende o texto e, então, o reproduz na forma de norma, não com o intuito de que o segundo intérprete a compreenda, mas a fim de decidir determinado conflito. O segundo intérprete, diante disso, compreenderia o texto mediante a “compreensão/reprodução do primeiro, ainda que nessa compreensão se manifeste também a construção de uma nova forma de expressão”[12] – como, por exemplo, a ciência do Direito. A interpretação jurídica, portanto, seria uma atividade de dirimir dúvidas, compreender e, então, reexprimir[13].
Continua o jurista brasileiro afirmando que a compreensão envolveria a análise do texto, dos fatos e da realidade, e que seria possibilitada pela utilização do círculo hermenêutico. Embora afirme que este não é um método[14], é exatamente assim que o autor o concebe. Entende, tal como Gadamer, que a compreensão ocorre através de um esboço preliminar do sentido do texto, sendo este sentido constantemente atualizado na medida em que as pré-compreensões não encontram respaldo no texto interpretado. Mas, diferentemente de Heidegger, concebe o círculo como uma atividade que aproxima o sujeito e o objeto, aproxima o intérprete do texto interpretado, ao invés de, simplesmente, superar a distinção entre sujeito e objeto[15].
Entende-se, portanto, a interpretação como uma atividade finita. Como algo que o intérprete faz à sua escolha, ao seu alvedrio. Parte-se de ideia de ser a intepretação uma possibilidade e não uma necessidade e, principalmente, da noção de compreensão enquanto “apreensão de essências”, de sentidos ontológicos presentes no texto que vão além do intérprete, ainda que caracterizados pela contingência e historicidade.
Esta perspectiva, entretanto, somente faz sentido em um contexto intelectual representacionista, no qual existe um elemento que funciona como tertium quid entre o objeto e o sujeito que o apreende. Este meio-termo – dialética para os hegelianos, consciência para os kantianos e fé para os tomistas – seria responsável por levar o objeto ao sujeito, não como mera aparência, mas como realidade, como “coisa-em-si”. Envolve, portanto, a noção de verdade como correspondência com a realidade, a premissa de que esse terceiro elemento de ligação permite que o sujeito apreenda o objeto.
Este tema será abordado posteriormente, momento em que se defenderá a interpretação não como atividade praticada por magistrados diligentes, mas como condição inexorável à atribuição de sentidos aos signos. O que importa, neste instante, é que Eros Grau também entende pela existência de duas normas[16], uma geral, denominada por ele de “norma jurídica”, criada pela junção entre texto, realidade e fatos, e outra individual, criada a partir daquela, chamada “norma da decisão”, voltada especificamente à regulação do caso concreto. Esta última estaria disposta ao longo da sentença, ao passo que a primeira não estaria expressa em lugar algum.
Luiz Guilherme Marinoni[17], da mesma forma, adota a distinção aqui exposta entre texto e norma, afirmando que esta última é o resultado da interpretação do texto, mas não apenas. Ao interpretar, o magistrado deve, seja por dever moral ou funcional, realizar o controle de constitucionalidade, o balanceamento dos direitos fundamentais em jogo e garantir a maior efetividade aos ditames constitucionais. Trata-se da norma criada a partir do caso concreto, mas não para regulá-lo. Além dela, haveria outra norma, individualização da primeira, esta sim com o escopo de regular o caso concreto.
No momento da decisão, existiria, portanto, duas normas jurídicas: a) uma criada levando-se em consideração todo o ordenamento jurídico e disposta na fundamentação do julgado[18] – norma Geral; e b) outra disposta no dispositivo da sentença, voltada especificamente a regulação do caso concreto[19] – norma individual. Neste ponto, o autor diverge de Eros Grau, o qual concebe que a chamada “norma da decisão” – norma individual –, estaria expressa ao longo da sentença, do que se conclui que “norma jurídica” – geral –, não estaria disposta em lugar algum.
Parte-se, desta forma, da distinção entre texto e norma, mas também da premissa normativista de que há uma norma individual, responsável por resolver o caso concreto, necessariamente fundada em norma geral. Há, pois, o seguinte raciocínio: 1) A norma é resultado da interpretação do texto, mas também do controle de constitucionalidade, interpretação conforme a constituição, balanceamento dos Direitos Fundamentais e cotejo com a realidade; 2) O caso é levado a juízo e resolvido conforme norma jurídica individual constante na decisão jurídica – chamada por Eros grau de “norma de decisão”[20]; 3) a norma individual é “aplicação” da norma geral; 4) Logo, tendo em vista que a norma é resultado da interpretação do texto, e que a norma individual responsável por resolver o litígio é fundada numa norma geral, a única conclusão possível é de que o magistrado cria tanto a norma jurídica geral quanto a individual.
O resultado, proveniente da confusão entre as premissas adotadas é, pois, bisonho, e decorre da resistência em superar a distinção entre norma geral e norma individual ou, melhor dizendo, em superar a perspectiva “aplicacionista” do direito. Conforme será visto adiante, adotar-se-á, neste trabalho, a separação total entre texto e norma, sempre com a ressalva de que a norma, uma vez criada, é novamente expressa em texto, e este, enquanto tal, será novamente submetido ao processo de interpretação, vez que inafastável e condição para atribuir sentido aos signos.
Nas linhas seguintes, demonstrar-se-á, partindo-se da distinção entre texto e norma, dos conceitos de círculo hermenêutico, ratio decidendi e, também, da estrutura da norma jurídica, todos estes abordados nos capítulos anteriores, que as normas jurídicas criadas no momento da decisão são unas, não havendo que se falar numa norma geral, em tese disposta na fundamentação, e outra individual, teoricamente elencada no dispositivo. Afirmar-se-á, também, que esta norma corresponde exatamente a ratio decidendi disposta no julgado que, uma vez criada, é expressa em texto. Todas essas considerações serão levadas a cabo para fixar em que medida as decisões judiciais podem ser vistas como precedentes, quer dizer, como fontes do direito.
Para sustentar tal assertiva – “as normas jurídicas criadas no momento da decisão são unas” – é imprescindível desvencilharmo-nos da concepção de que há duas normas jurídicas – sendo a geral expressa ao longo da fundamentação e a individual no dispositivo, conforme Marinoni; ou, de acordo com Eros Grau, a individual expressa no bojo da decisão, e a geral não expressa de modo algum. Para tanto, demonstrar-se-á os equívocos duma concepção “aplicacionista” do Direito e, posteriormente, equiparar-se-á a ratio decidendi com a norma jurídica, demonstrando que estas não subsistem sem uma relação de antecedente-consequente imputacional, aferíveis, em tese, através da conjugação entre a fundamentação e o dispositivo da sentença.
Pois bem. Como já salientado anteriormente, a ideia de norma individual como aplicação da norma geral está ligada a noção de “aplicação”. O “aplicacionismo” é, antes de tudo, fruto da visão da interpretação como “atividade finita”, realizada de forma intencional, mais especificamente como extração da mens legis ou mens legislatoris. Tradicionalmente, o direito seria aplicado quando o magistrado, boca da lei, realizasse a “subsunção”, quer dizer, quando enquadrasse a hipótese prevista na lei ao fato trazido ao crivo do magistrado. Em momento posterior – Kelsen –, aplicar o direito (= ordenamento; = conjunto de normas) é, também, produzi-lo.
A distinção entre texto e norma levanta dúvidas sobre o “aplicacionismo”, ao menos em seu sentido tradicional. O ponto de partida dos conflitos é o texto normativo, e os textos não podem ser “aplicados”, mas apenas interpretados. Como visto, além do texto normativo, a norma é composta pelo programa da norma, consistente nos sentidos atribuídos aos elementos linguísticos do texto, e pelo âmbito normativo, o conjunto de elementos circundantes ao caso e atinentes ao momento histórico da interpretação. A norma, portanto, não prescinde dos fatos trazidos ao intérprete pelas partes. Dizendo de outro modo, a norma é construída pelo texto, qualificado como normativo, pelos fatos trazidos pelas partes e, por fim, pelas pré-compreensões atinentes ao intérprete.
Deste modo, as particularidades do caso integram a própria estrutura da norma jurídica. Os fatos são enunciações linguistas dos eventos[21], quer dizer, relatos dos acontecimentos do mundo e compõem, como âmbito normativo, a estrutura da norma jurídica. Ou seja, a norma jurídica não prescinde dos fatos trazidos pelas partes. Toda norma é, portanto, “individualizada”, no sentido de que os fatos trazidos pelas partes a compõe, do contrário, não é norma. De fato, de acordo com as premissas aqui adotadas – distinção entre texto e norma, A dita “norma geral” ainda não é norma, pois esta não existe sem os fatos. Por tal razão, Müller afirma que “a norma não existe, não e ‘aplicável’. Ela é produzida apenas no processo de concretização”[22].
No mais, o "aplicacionismo" nega a própria interpretação. Como visto, parte-se da visão da interpretação como atividade finita e voluntária. A intepretação, contudo, é atividade infinita e inafastável[23], condição de atribuir sentido aos signos. É um ato que opera conforme o círculo hermenêutico, mas este não é um método, um caminho a ser seguido se o intérprete quiser extrair o sentido do texto somado em cotejo com a realidade e os fatos. Dizer, tal como Eros Grau, que o círculo hermenêutico deve ser praticado (voluntariamente) pelo intérprete, a fim de que o texto não seja interpretado isoladamente[24], nega a própria historicidade do intérprete enquanto ser-no-mundo, premissa fundamental da própria noção do círculo.
O ser, enquanto ser-no-mundo, interpreta, e o faz não para apreender a realidade ou adicioná-la ao texto, mas porque não consegue fugir da interpretação. A mera leitura do texto requer interpretação. A proibição de interpretar[25] imposta aos exegetas necessitava de interpretação. É, portanto, experiência, ou melhor, vivência. Opera conforme o círculo hermenêutico, não como método, mas, isto sim, enquanto processo de experiência-vivência do ser-no-mundo.
Lê-se o texto – plano da expressão (S1) –, mas o texto é composto de palavras, estas possuem significados, plurívocos ou unívocos, literais ou metafóricos, a depende do jogo de linguagem no qual o intérprete está inserto. É neste momento que as pré-compreensões entram em cena, levam o intérprete a atribuir significados aos signos – plano da significação (S2) –,e, a partir destes, constrói-se a norma jurídica – plano de construção da norma (S3) –, após construída, a norma volta ao seu plano inicial (S1), sendo expressa em texto para ser, então, novamente interpretada.
A suposta escolha do sentido realizada pelo intérprete deve ser vista com ressalvas. Ao atribuir significado aos signos, surgem diversas possibilidades para o conteúdo da norma. Pode-se entender pelo significado X ou X', mas esta escolha também é pautada pelas pré-compreensões. A pergunta "devo escolher essa ou aquela interpretação (= resultado da intepretação)?" é, antes de tudo, um novo processo de interpretação, pautado por um novo projeto que, ao final, findará com a escolha da norma e sua consequente expressão em texto. Como tal – como novo processo de interpretação –, está sujeita as pré-compreensões do intérprete, e seu resultado é antes fruto das "marcas cegas" que a compõem do que um arbítrio da “volunta interpretatoris”.
Deste modo, mesmo que se entenda pela construção duma norma geral, responsável por permitir a aplicação da norma individual, deve-se ter em mente que as particularidades do caso, os fatos necessários a "individualização" da norma geral, somente podem ser inseridos, ou enquadrados, mediante um processo de interpretação. A partir do instante em que se decide trazer os fatos, a fim de "individualizar" a norma geral construída – seja ela expressa na fundamentação, como afirma Marinoni; ou não expressa de modo algum, como atesta Eros Grau –, esta deve ser novamente interpretada, agora em cotejo com os fatos, visando sua inserção na norma.
Contudo, ainda há outro motivo para não aceitarmos a distinção entre norma geral e individual da forma como exposta por Eros Graus. A norma individual – "norma da decisão" –, é expressa ao longo da sentença e constitui em aplicação da norma geral – "norma jurídica", –, a qual não seria expressa em lugar algum. Sendo esta última criada naquele instante, fugaz e efêmero, sem sequer ser expressa em texto, simplesmente não se presta como objeto de estudo. Não é possível estudar a norma sem linguagem, pois ela é construída no seio da linguagem e somente por ela se expressa. A norma geral exposta por Eros Grau seria, portanto, um momento metafísico desnecessário, cuja existência sequer pode ser aferida.
Isso nos afasta da concepção de Eros Grau, mas a posição de Marinoni ainda dar seus últimos suspiros. Para Marinoni, ambas as normas estariam expressas ao longo da decisão judicial. A norma jurídica geral seria criada a partir do caso concreto, e se caracterizaria pelas notas da universalidade e abstração. A norma jurídica individual, por sua vez, seria criada para regular o caso concreto, e caracterizada pela individualidade e referência à lide.
Para afastar tal concepção, socorre-se, pois, a estrutura da norma jurídica e a sua equiparação com a ratio decidendi, a qual também servirá para aproximar as tradições do Civil Law e do Common Law. Como visto no primeiro capítulo, a estrutura da norma jurídica, enquanto construção intelectual doutrinária, é concebida com o intuito de explicar o fenômeno jurídico de modo eminentemente analítico. Quer-se dizer com isso que, quando se estuda a estrutura da norma jurídica, investiga-se a relação dos signos entre si, muitas vezes expresso em termos de lógica simbólica.
Kelsen, entendendo a norma jurídica como objeto de estudo da Ciência do Direito, concebe três elementos imanentes à norma jurídica, imprescindíveis, pois, à sua configuração: a) a distinção entre “ser” e “dever-se”; b) a norma enquanto esquema doador de significado; e, c) a sanção como elemento intrínseco à norma jurídica. Ressalta-se, tal como feito no primeiro capítulo, que Kelsen confere um sentido amplíssimo ao conceito de sanção, entendo-a não apenas como uma consequência negativa ou positiva do cumprimento ou descumprimento da norma, mas “como todos os atos de coerção estatuídos pela ordem jurídica” [26]. Da mesma forma, ressalve-se que, hodiernamente, os normativistas não mais concebem a sanção como elemento integrante da norma, sendo o consequente “S”, entendido como qualquer efeito jurídico decorrente da realização dos fatos previstos no antecedente “F”.
Assim, conjugando tais elementos, a norma jurídica corresponderia a um enunciado linguístico no qual é conferido um significado objetivo a determinado ato ou fato da ordem do “ser”. A partir de então, a norma prever determinada sanção (= efeito jurídico), pertencente à ordem do “dever-ser”, que será devida caso haja o descumprimento da norma imposta e regularmente válida.
Expressando tais elementos em símbolos, onde “F” representa o descumprimento do conteúdo da norma prevista, e “S” representa a sanção (= efeito jurídico) devida, Kelsen concebe a norma jurídica de acordo com a fórmula: “se F, deve ser S”. Ou seja, diferentemente de formulações lógicas, onde há uma relação de antecedente-consequente – “‘F’, logo ‘S’” –, a estrutura da norma jurídica possui uma relação eminentemente normativa, na qual a sanção “S” decorre do fato “F” por meio de uma relação de imputação[27].
Tércio Sampaio Ferraz Jr., por sua vez, entende a norma jurídica como um fenômeno comunicativo, onde o emissor transmite uma mensagem normativa ao receptor. Como mensagem, a norma ocorre em dois níveis de comunicação[28]: a) o relato; e, b) o cometimento. O relato, como dito anteriormente, consiste no conteúdo da mensagem emanada. Por exemplo, quando a autoridade judiciária determina a prisão do réu após a sentença condenatória, o relato consiste exatamente no ato de prender, o qual deve ser cumprido pelo seu destinatário (polícia judiciária) em virtude do cometimento da mensagem. O cometimento é, neste caso, a ordem, a determinação, o comando dirigido ao destinatário no sentido de agir conforme o conteúdo emanado – relato.
A relação intersubjetiva entre emissor e receptor é, portanto, imprescindível ao entendimento da norma enquanto fenômeno comunicativo. Sua caracterização depende, inexoravelmente, das condutas do emissor e do receptor, sem a quais é impossível falar em qualquer relação de imputabilidade. Diante disso, o autor expressa a estrutura da norma jurídica da seguinte forma: Emissor (A) à Cometimento (F) / Relato (R) à Receptor (S). Em que “A” constitui a autoridade emissora do comando normativo, “S” o destinatário da referida ordem, “F” o cometimento atinente à mensagem, e “R” o relato conteúdo da mensagem emanada[29].
O importante, neste ponto, é percebe que, seja qual for a estrutura da norma jurídica perfilhada, a partir do momento em que se adota como premissa a distinção entre “texto” e “norma”, e entende-se que esta é o resultado da interpretação daquele, mostra-se incorreto falar em duas normas jurídicas, uma disposta na fundamentação e outra no dispositivo. Pode até ser – e isso, de fato, frequentemente ocorre – que uma decisão jurídica crie várias normas, mas para cada norma criada não haverá uma geral, disposta na fundamentação, e outra individual, aplicação daquela e presente no dispositivo.
Através da estrutura da norma jurídica, observar-se haver total identidade entre os elementos que a compõe e aqueles atinentes à ratio decidendi. Mas não apenas. Ambas correspondem ao resultado da interpretação do texto, somados com o conjunto de elementos contingentes e imanentes ao interprete-criador da norma e aos fatos, nos exatos termos previstos por Müller ao fazer a distinção entre programa normativo e âmbito normativo. Ademais, uma vez criada, ambas são expressas pelo mesmo meio: o texto.
De acordo com o conceito de ratio decidendi perfilhado no segundo capítulo, segundo o qual ratio decidendi consiste nas razões suficientes à solução das questões trazidas a juízo. Temos que, por evidência, é impossível conceber “razões suficientes à solução...” como desprovida de qualquer determinação. De fato, uma ratio decidendi que apenas expõe a fundamentação, sem qualquer provimento, nada soluciona e, por conseguinte, não constitui ratio, mas mero dictum. Da mesma forma, um provimento desprovido de qualquer fundamentação não se considera ratio, pois não elenca qualquer razão à solução das questões versadas nos autos.
Como dito anteriormente, o conceito de obiter Dictum é extraído negativamente e consiste em tudo aquilo que não for ratio decidendi, ou seja, o conjunto de fundamentos atinentes a questões outras que não aquelas cujo magistrado deve julgar no momento de proferir a decisão definitiva – questões postas pelas partes no corpo da petição, aquelas postas ao longo do feito que sejam principaliter tantum, ou aquelas impostas por lei. São fundamentos colaterais, feitos em passant, intimamente ligados as questões trazidas ao caso, mas cuja exposição não serve de base a qualquer determinação.
A exposição da fundamentação, desprovida de qualquer provimento, transmudar-se-ia naturalmente em obiter dictum, pois consistiria em mero antecedente sem consequente. Nada solucionaria e, deste modo, restaria no conceito negativo de dictum. Seria um ser “F”, desprovida de qualquer sanção (= efeito jurídico) “S” devida, ou então, um relato desprovido de qualquer cometimento. A partir do momento em que se concebe a norma como interpretação do texto, esta atividade deve ser capaz de produzir todos os elementos atinentes à estrutura da norma jurídica, estabelecendo uma relação de antecedente e consequente que somente a conjugação entre a fundamentação e o dispositivo é capaz de fazer.
Do mesmo modo, tomando como premissa a distinção entre texto e norma, e verificando que a estrutura da norma deve, necessariamente, estabelecer uma relação de antecedente e consequente, a norma jurídica expressa no bojo da sentença não estaria limitada a fundamentação ou ao dispositivo, mas expressa ao longo de todo o texto que a compõe, sendo formada pelo antecedente “F”, teoricamente constante na fundamentação, e pelo consequente “S”, em tese presente no dispositivo. Acontece que um dispositivo sem fundamentação corresponderia a um “S” genérico, sem qualquer fato que o torne devido.
Poder-se-ia argumentar que a fundamentação contém a norma não-autônoma, aquela desprovida de sanção, ao passo que o dispositivo contém a norma autônoma, devidamente armada de um comando sancionatório. Todavia, esta afirmação desconsidera o contexto em que tal distinção fora criada. Kelsen a concebeu sem fazer a separação conceitual entre texto e norma, de modo que os preceitos legais constantes nas leis ordinárias seriam normas gerais que, quando incompletas, seriam não-autônomas e necessitariam de serem completadas por outra norma geral, desta feita, autônoma. Todavia, somente faz sentido em pensar em norma “autônoma” e norma “não-autônoma” num contexto onde a norma jurídica é vista como algo “dado”, que já está lá para ser utilizado, de modo que dados incompletos podem ser somados para forma a norma jurídica em sua totalidade.
Pois bem. A título de demonstração, observe-se a ementa do julgado já colacionado em momento anterior:
PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA RURAL. AUSÊNCIA DE REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA DE PRETENSÃO RESISTIDA. CONTESTAÇÃO LIMITADA À MATÉRIA PRELIMINAR PROCESSUAL. CARÊNCIA DE AÇÃO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. APELAÇÃO IMPROVIDA. 1. Trata-se de apelação do suplicante em face da sentença que, em face da preliminar de falta de interesse de agir em função da ausência de requerimento administrativo, julgou extinto o processo sem resolução do mérito. 2. Em nenhum momento o INSS atacou o mérito da causa - concessão do benefício de aposentadoria rural. Em sua contestação limitou-se, apenas, a impugnar matéria de índole preliminar processual, qual seja, a ausência de requerimento administrativo, que acarreta a carência de ação por falta de interesse de agir. 3. O Poder Judiciário não pode substituir-se ao administrador, analisando os pedidos de concessão de benefício previdenciário ainda não submetidos ao órgão competente para o deferimento ou indeferimento do pleito. 4. Inexistindo pretensão resistida, não há interesse legítimo para o exercício do direito de ação. 5. Conclui-se pela ausência de uma das condições da ação, devendo esta ser extinta, sem apreciação do mérito, na forma do art. 267, VI, do CPC. 6. Apelação improvida.[30] (Grifei).
Neste caso, o consequente, a sanção (= efeito jurídico) devida, foi o improvimento da apelação interposta, com a consequente extinção do feito sem resolução do mérito após o transito em julgado do acordão. O antecedente, por sua vez, é toda a fundamentação constante no texto do julgado, o qual é composto pelo programa e âmbito normativo, nos moldes delineados por Müller, e possui como ponto de partida o texto normativo constante no arts. 267, inciso VI, e 300, inciso X, do Código de Processo Civil, bem como do art. 2º da Constituição Federal da República. Eis, portanto, a expressão textual da norma criada no momento da decisão, com o respectivo antecedente e consequente, relacionados pela imputação conferida pela conjugação entre fundamentação e dispositivo.
Da mesma forma, a ratio decidendi do julgado se mostra bastante clara, na medida em que expõe os motivos suficientes a resolução da questão levada a Juízo – obrigatoriedade de extinção do processo sem resolução do mérito em virtude da ausência de requerimento administrativo. Lembrando que a ratio decidendi não deve ser vista como algo isolado na fundamentação, mas a conjugação de todo o texto na sentença. Como visto, o conjunto de fundamentos sem qualquer provimento nada resolve e, por conceito, transforma-se em dictum. O próprio Marinoni explica que a ratio decidendi é um todo complexo formado pelo relatório, fundamentação e dispositivo[31].
No mais, saliente-se que não se desconhece a possibilidade, cujo estudo é alheio aos limites deste trabalho, dos particulares criarem normas jurídicas no momento de elaboração de atos negociais, tais como contratos e testamentos, o que importa é afirmar que, mesmos nestes casos, uma vez criada, a norma jurídica é expressa em texto. Da mesma forma, não se desconhece a criação de normas jurídicas no momento da elaboração de atos negociais verbais, sendo que, neste caso, a criação da norma jurídica se identifica com a própria execução do ato, no sentido de que não produz qualquer texto.
Pois bem. A ratio decidendi, enquanto conjunto de soluções suficientes às questões versadas nos autos, quando equiparada com a norma jurídica, fornece bases sólidas para pugnar pela unidade da norma jurídica criada no momento da decisão jurídica. Ambas, nunca é demais repetir, uma vez criadas são expressas em texto, de modo que, em conjunto com outros argumentos que serão expostos posteriormente, esta equiparação não se mostrará suficiente para fixar as decisões judiciais como fontes do direito.
Todavia, pode-se concluir que a equiparação entre ratio decidendi e norma jurídica aqui apresentada, além de refutar as concepções de Marinoni, permite afirmamos que, pelo menos no tocante às fontes do direito, não há qualquer divergência entre o sistema do Common Law e Civil Law. A ratio – ou holding –, entendida pelos Common Lawyers como a essência do precedente judicial e, por conseguinte, como fonte do direito, ao se encontrar com a norma jurídica em moldes continentais, permite-nos afirmar que a fonte do direito, em ambos os sistemas é, isto sim, a autoridade institucionalizada, capaz de realizar a suposição “bem-sucedida” da confirmação de terceiros, desconfirmando desconfirmações, de modo a fazer valer sua autoridade, conforme será detalhado posteriormente.
CONCLUSÃO
A aproximação entre as tradições aqui realizadas não é feita por mera curiosidade. Pretende-se, na verdade, expurgar os argumentos contrários aos precedentes como fonte do direito que se baseiam, tão somente, na tradição continental de determinado ordenamento jurídico. Uma vez demonstrado que não há diferença substancial no tocante as fontes do direito, fica claro que sua problemática ocorre por fatores outros que não o simples enquadramento nesta ou naquela tradição.
Esta visão permite que este trabalho seja concebido, conforme salientado na introdução, de modo eminentemente teórico, não se trasmudando em mera análise do direito positivo, ainda que, ao final deste capítulo, sejam realizadas algumas pinceladas sobre as decisões judiciais capazes de constituírem precedente judicial no sistema brasileiro e, por conseguinte, consideradas como fonte do direito.
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RORTY, Richard. Verdade e Progresso. Trad. Denise R. Sales. Barueri: Manole, 2005.
______________. A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom quixote, 1988.
[1] DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: JusPodivm, 2010, v. 2, p. 384.
[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 96 et seq.
[3] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). São Paulo: Malheiros, 2013, p. 32.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 103.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, ibidem.
[7] Idem, ibidem, p. 93.
[8] GRAU, Eros Roberto. Op. Cit., p. 29.
[9] Idem, ibidem, p. 30.
[10] Idem, ibidem, p. 36.
[11] Idem, ibidem.
[12] Idem, ibidem.
[13] Idem, ibidem, p. 35.
[14] Idem, ibidem, p. 70.
[15] Cf. RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Lisboa: Dom quixote, 1988, p. 266.
[16] Idem, ibidem, p. 32.
[17] MARINONI, Luiz Guilherme. Op. Cit., p. 103 et seq.
[18] Idem, ibidem, p. 104.
[19] Idem, ibidem, p. 100.
[20] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). São Paulo: Malheiros, 2013, p. 32.
[21] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 244.
[22] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. Trad. Peter Naumann, Euridez Avance de Souza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 80.
[23] HEIDEGGER apud REALE, Giovanni. História da filosofia: Do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, p. 630.
[24] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). São Paulo: Malheiros, 2013, p. 75.
[25] Idem, ibidem, p. 44.
[26] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 45.
[27] Idem, ibidem, p. 86 et seq.
[28] FERRAZ, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 75.
[29] Idem, ibidem.
[30] BRASIL, Tribunal Regiona Federal da 5ª Região. Primeira turma. Apelação 489290/CE. Rel. Des. Federal Rogério Fialho. Disponível em:
<http://trf-5.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/8387601/apelacao-civel-ac-489290-ce-0003956-092009-4059999>. Acesso em 19 set. 2013.
[31] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 221 et seq.
Advogado na cidade de Maceió - AL.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELO, Rafael Esperidião de. Ratio decidendi como norma. Precedente judicial como fonte do direito - Parte I Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47266/ratio-decidendi-como-norma-precedente-judicial-como-fonte-do-direito-parte-i. Acesso em: 22 nov 2024.
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