Resumo A desigualdade entre gêneros e opressão do feminino ainda presentes em nossa sociedade faz com que se impute consequências sociais, políticas e jurídicas diversas a condutas iguais meramente em razão do gênero. Em contrapartida, surgem teorias feministas do direito, que visam analisar o fenômeno jurídico que também é reprodutor dessas discriminações. Todavia, tais teorias são majoritariamente construídas no âmbito internacional e pouco difundidas do Brasil. O presente trabalho pretende demonstrar a necessidade da consolidação de Teorias Feministas do Direito no contexto nacional. Identificar e problematizar as desigualdades de gênero é de suma importância para a boa formação de um jurista, afinal, a igualdade formalmente garantida deve ser efetivada. Para tanto, é necessário o reconhecimento da violência e opressão de gênero, para que juristas, enquanto responsáveis pela aplicação da lei reconheçam e reafirmem sua responsabilidade de zelar pela promoção da equidade.
Palavras Chave: teorias feministas do direito; feminismo; discriminação de gênero.
Introdução
Estreitamente vinculado ao advento da ciência moderna e expansão colonial europeia, a lógica sexista teve sua maior exteriorização durante o Iluminismo. Para legitimar o modelo ocidental de progresso, baseado na exploração e subordinação, foi necessário distinguir o que era valioso (ciência, homens brancos e burgueses), daquilo que era destituído de valor (natureza, mulheres, população negra e pobre). Assim, com o objetivo de “otimizar” a mão de obra humana para a produção da riqueza, foi atribuído valor superior àqueles indivíduos, enquanto estes foram destituídos de sua qualidade humana, determinando-se, dessa maneira, quem deveria ser selecionado e quem deveria ser eliminado daquela sociedade.
Ao longo dos anos, graças às lutas dos movimentos feministas, esse paradigma foi questionado e avanços foram conquistados. Através do sufragismo, por exemplo, considerado por muitos como a primeira onda do feminismo, alguns objetivos ligados à organização familiar, oportunidade de estudo e cidadania foram alcançados. Mas este era apenas o início de uma luta que não iria cessar com a concessão de alguns direitos e igualdade formal.
Mas mesmo após progressos constitucionais consagrarem a igualdade entre gêneros na atualidade, a efetivação desse direito fundamental esbarra em uma cultura discriminatória, perpetrada historicamente na sociedade e ainda muito presente no ensino jurídico, e consequentemente, dentro do próprio Poder Judiciário.
O presente trabalho busca fomentar a discussão acerca do espaço da mulher no cenário jurídico brasileiro, problematizando as práticas que reafirmam o machismo dentro da academia e da estrutura judiciária em geral. Procuraremos demonstrar de que forma se dá a desvalorização do feminino nesse meio, defendendo a necessidade da construção e consolidação de teorias feministas, no âmbito do direito, aplicáveis a realidade brasileira, no mesmo sentido que vem se observando, especialmente nas últimas décadas, diversos trabalhos internacionais no estudo jurídico para a promoção da igualdade.
A metodologia utilizada nesta pesquisa será majoritariamente bibliográfica e documental e adotará os métodos dialético e descritivo com a finalidade de analisar as divergências doutrinárias, e histórico para posicionar a discussão espaço-temporalmente.
Identificar e problematizar as desigualdades de gênero é de suma importância para a boa formação de um jurista, a fim de que, em sua atuação profissional, consiga identificá-las e, assim, possa contribuir na promoção de uma mudança de paradigma. Tanto o direito à igualdade quanto o direito à diferença que nos são garantidos devem ser efetivados. Para tanto, é necessário o reconhecimento da violência e opressão de gênero, e que juristas, enquanto responsáveis pela aplicação da lei reconheçam e reafirmem sua responsabilidade de zelar pela promoção da equidade.Nesse sentido, visamos também demonstrar de que forma a discriminação de gênero interfere na produção das leis, nos institutos jurídicos, doutrinas e jurisprudência, bem como entender de que maneira as mulheres brasileiras tem sido consideradas pela legislação pátria e se elas têm sido vítimas de omissões e exclusão por trás de um suposto discurso de “neutralidade de gênero da lei”.
1. Um olhar para os feminismos e a (des)igualdade de gênero
Com a recente emergência de debates que dizem respeito a questões de gênero na sociedade brasileira, como aconteceu durante as votações dos planos nacional, estaduais e municipais de educação, em que foram amplamente discutidas suas redações originais por preverem a inclusão de discussões sobre gênero dentro das escolas; ou também como vêm ocorrendo com diversos projetos que tramitam no Congresso Nacional prevendo, inclusive, o cerceamento de direitos já garantidos a mulheres vítimas de violência sexual (como é o caso do PL nº 5.069/13), ao mesmo tempo que as lutas de movimentos feministas ganharam maior visibilidade, percebemos também o quão pouco a comunidade em geral tem conhecimento sobre o movimento. Isto porque não é incomum que ouçamos, por exemplo, que o feminismo almeja a supremacia de mulheres frente aos homens, ou que o “humanismo” seria uma busca mais “adequada”, entre diversas outras manifestações equivocadas a respeito dos múltiplos movimentos de luta de mulheres existentes. Mas, afinal, que é feminismo?
O termo feminismo pode encontrar diversos sentidos, como demonstra Maccise:
La palabra feminismo designa, enefecto, distintas cosas. Por un lado, hace referencia a la serie de movimientossociales, encabezados principalmente por mujeres, cuyafinalidad primordial ha sido conseguir que lasmujeresobtenganunestatus —jurídico, económico, político, psicológico y social— de igualdad, respecto de loshombres y hacervisiblelasituación de subordinaciónenla que se encuentran dentro de lasociedad. Movimientos como lasmanifestaciones por elderecho a decidir de lasmujeresel número de hijos e hijas que quierentenersonunejemplo de lo que feminismo en esta acepciónquieredecir. Por otro lado, engloba a las distintas teorías que se handesarrollado para explicar laposición de desventaja de lasmujeresrespecto de loshombres, sus orígenes y consecuencias. Elloquieredecir que algo así como una teoría feminista, enelámbito de la academia, no existe. Estas teoríasdifieren principalmente sobre endóndesitúanelorigen o principal aspecto de opresión de lasmujeres y enloscambios —y el grado de losmismos— que debengenerarse para modificar esa circunstancia. (MACCISE, 2011, p. 137).
Assim, percebe-se que o feminismo, além do seu viés de movimento social, que luta pela igualdade, respeito e visibilidade de mulheres, tem também um viés teórico, que se dedica ao estudo dessas situações de discriminação, analisando suas origens, consequências e buscando novas perspectivas. Nesse sentido, o feminismo é composto de muitos feminismos, ou seja, diferentes vertentes teóricas que buscam explicar a necessidade de mudança da ordem social para a promoção da equidade.
Conforme Maccise (2011, p. 148), podemos identificar três principais fases do desenvolvimento de teorias feministas especialmente no que diz respeito ao direito, quais sejam a da igualdade, na década de 1970; a da diferença, na década seguinte; e a da diversidade, a partir dos anos de 1990. A primeira fase deu ênfase para a eliminação das diferenças normativas em razão do sexo, buscando destacar a semelhanças entre homens e mulheres, e o acesso das mulheres a direitos e oportunidades nos mesmos termos que os homens.
Todavia, é na segunda fase que teóricas do feminismo perceberão que as reformas legais não sanariam as desigualdades existentes entre homens e mulheres. Até esse momento, a igualdade formal era tida como sinônimo de tratamento igual, o que não se verificava na prática, posto que mulheres e homens não partiam da mesma posição, e consequentemente, o tratamento idêntico pela lei não proporcionaria o mesmo espaço para uns e outras: “A esto se lellamódiscriminaciónindirecta o por resultado, puesto que enrazón de este diferente punto de partida de hombres y mujeres, laaplicación de la norma produciríaefectos distintos, creandoasísituaciones jurídicas diferenciadas para cada sexo” (MACCISE, 2011, p. 150).
Dessa conclusão surgiram diferentes olhares para o problema - um deles ficou conhecido como feminismo cultural, que inova a partir do destaque que dá para as diferenças entre mulheres e homens, sejam biológicas ou culturais, outorgando ao feminino o valor social que lhe foi negado e destacando que a solução, diferentemente da defendida pelas feministas liberais na década anterior, não é apenas dizer que homens e mulheres são iguais, mas valorizar o feminino em sua forma particular de ser (MACCISE, 2011, p. 150). A crítica a tal vertente reside no fato de que favoreceria uma visão essencialista e estereotipada das mulheres, sendo pouco representativa daquelas que não se enquadram ao paradigma de feminino e quase desconsiderando a grande diversidade de mulheres existentes.
A outra visão, nesse período, foi a desenvolvida pelo feminismo radical. Ele procurou explicar a subordinação das mulheres através das relações de poder, construindo uma crítica estrutural, considerando que as instituições sociais eram alicerçadas em normas do masculino. Seu principal expoente, MacKinnon:
La desigualdad viene primero; las diferencias después. La desigualdadessustantiva e identifica una disparidad; la diferencia es abstracta y falsamente simétrica. Si estoesasí, el discurso de la diferencia de género sirve como ideología para neutralizar, racionalizar, y cubrirladisparidad de poder, aunque aparente criticarla. (McKinnonin MACCISE, 2011, p. 151).
Assim, essa vertente não nega que existam diferenças que se originem no sexo, mas seu foco está na origem da desigualdade e não das diferenças construídas sobre elas. Não aceitam tratar o problema da subordinação a partir da ideia de igualdade como identidade e diferença, porque para elas, nos dois casos, o referencial persiste sendo o do masculino (MACCISE, 2011, p. 153). Contudo, MacKinnon não chega a explicar a razão pela qual essa desigualdade exista:
Na análise de MacKinnon, ainda que as relações sexuais sejam definidas como sociais, não há nada – salvo a desigualdade inerente à relação em si mesma – que possa explicar porque o sistema de poder funciona assim. A fonte das relações desiguais entre os sexos está, no fim das contas, nas relações desiguais entre os sexos. Apesar de afirmar que a desigualdade, tendo suas origens na sexualidade, está corporificada em “todo um sistema de relações sociais”, ela não explica como este sistema funciona. (SCOTT, 1995, p. 77-78).
A partir dos anos de 1990, começou-se a notar que, até então, as diferentes correntes feministas ainda tratavam o problema como questão homens-mulheres, ou seja, como mera questão de desigualdade de gênero. Surgem então diversas críticas nesse sentido, das quais devemos destacar os movimentos de mulheres negras e de mulheres lésbicas. Assim, a terceira etapa, que Maccise refere em seu trabalho como fase da diversidade (2011, p. 153), surgiu como uma resposta a pouca representatividade das teorias existentes, salientando as infinitas maneiras de ser mulher que existem, isto é, “lapluralidad de identidades y contextos particulares de cada persona” (idem). Nesse sentido:
La literatura anti-esencialista de los noventa parte de lapremisa de que laexperiencia vivida por lasmujeres (la vida real) difieredependiendo de factores como laraza, laclase, la etnia, lasdiscapacidades y laorientación sexual. Dada esta complejidad, tiene más sentido sustituirla meta de crear una estrategia feminista que pretendía abarcar todo, conel objetivo, menos grandioso, de considerar laactividad legal desde la perspectiva de diferentes grupos de mujeres (Chamallasin MACCISE, 2011, p. 154).
Nessa etapa, encontramos como já mencionado, o feminismo crítico negro e o feminismo lésbico.E nesse sentido, é importante destacar que ainda hoje em nossa sociedade perdura, inegavelmente, uma hierarquia racial e étnica, e por isso, a situação de subordinação a que são submetidas as mulheres também variará concretamente em forma e intensidade de acordo com esses parâmetros. Isso não significa que se determinadas mulheres viverem em condições sociais, econômicas ou culturais semelhantes terão a mesma percepção da situação de subordinação a que estão submetivas, afinal, cada mulher é única.
Muito embora o feminismo seja um movimento múltiplo e com demandas variadas, algumas questões são transversais, importando a todos, em maior ou menos intensidade. A situação de subordinação das mulheres, que acontece de diferentes formas, tem servido como base para a sustentação da organização nossa social, exprimindo e fundamentando inclusive as relações de poder
O gênero é umas das referências recorrentes pelas quais o poder político tem sido concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz referência ao significado da oposição homem/mulher; ele também o estabelece. Para proteger o poder político, a referência deve parecer certa e fiza, fora de toda a construção humana, parte da ordem natural ou divina. Desta maneira, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se parte do próprio significado de poder; pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema inteiro (SCOTT, 1995, p. 92).
A situação de subordinação das mulheres que perdura somada à desvalorização dos femininos em suas múltiplas formas gera situações de violência e de invisibilidade. Tal fato é um problema também concernente a todos os poderes de um estado constitucional que zele pela equidade e dignidade humana. Não obstante, a comunidade jurídica, que é peça fundamental para a erradicação das desigualdades, diversas vezes tem servido de instrumento para a manutenção do status quo.
2. A reafirmação da discriminação de gênero pelo sistema jurídico brasileiro
Não obstante o Direito possa servir como instrumento para mudança social e emancipação dos sujeitos, ele ainda cumpre majoritariamente uma função de manutenção da ordem vigente, reforçando práticas discriminatórias. E quando o assunto é a opressão de gênero, não é diferente.
A começar pelo crescente conservadorismo no parlamento, onde ainda estão tramitando projetos de lei como o da criação do “dia do orgulho heterossexual” (PL nº 1.672/11);da criminalização da discriminação contra heterossexuais (PL nº 7.382/10); além do projeto de “estatuto da família” que marginaliza famílias homoparentais, certificando exclusivamente as uniões entre pessoas de sexo oposto (PL nº 6.585/13). Nesse contexto, também vieram à pauta os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: ao passo que se torna cada vez mais difícil avançar no desenvolvimento de uma legislação sobre aborto que verdadeiramente respeite a autonomia e liberdade de mulheres sobre o seu corpo, surgegrande movimentação em sentido contrário, a exemplo do Projeto de Lei nº 5.069/13 que pretende dificultar o aborto em casos de estupro, restringindo direitos já conquistados por movimentos de mulheres.
Para além do processo legislativo, também podemos encontrar situações de desigualdade analisando a estrutura do poder judiciário. Nesse sentido
[...] inegável que há um aumento do número de mulheres que ingressam através de concursos públicos em todas as carreiras jurídicas, dentre as quais a magistratura. No entanto, o aumento do número de mulheres não se repete com a mesma intensidade quando se analisam os cargos mais prestigiados do Poder Judiciário. De forma que a participação feminina vem aumentando, tanto em cargos de menor poder quanto nos cargos mais elevados, mas nesses últimos o ingresso feminino tem se dado de forma lenta e desproporcional ao número de mulheres que ingressam nas primeiras instâncias. (SERAFIM, 2010, p. 329)
Para confirmar tal suposição, basta que voltemos nosso olhar para a supremacorte e os tribunais superiores: no Supremo Tribunal Federal, dos 11 cargos de ministros apenas dois são ocupados por mulheres atualmente; no Superior Tribunal de Justiça, que é composto por 33 ministros, apenas seis são mulheres; já entre os 14 ministros do Superior Tribunal Militar, há apenas uma mulher. Ainda a esse respeito
O VI Relatório Nacional Brasileiro realizado pelo Comitê CEDAW, em 2008, expressa textualmente a preocupação pelo fato das mulheres brasileiras ainda serem sub-representadas em todos os níveis e instâncias em que ocorrem tomadas de decisões política, seja nos cargos eletivos, na diplomacia ou nos níveis mais elevados do judiciário – o qual, ainda de acordo com esse relatório, é o espaço de poder mais impermeável à participação feminina. [...] Assim, a inserção feminina na magistratura pouco tem auxiliado na desconstrução da ideologia dominante, seja porque essas mulheres não se sentem capazes de confrontar o padro patriarcal, por não estarem dispostas a fazê-lo e arcar com as consequências ou simplesmente porque no possuem consciência dessa opressão (SERAFIM, 2010, p. 329-330).
O padrão patriarcal referido por Serafim é observado inclusive dentro da doutrina desenvolvida dentro do direito pátrio, que não raras vezes reafirma a dominação/subordinação do feminino na estrutura social. Bem se observa, a exemplo disso, as infelizes observações de Nascimento, ao abordar em sua obra o tema da rescisão do contrato de trabalho
Compreende a rescisão contratual de iniciativa do empregador como um direito potestativo. Ora, estes, os direitos potestativos, são como ensinam Aftalión, Olano e Vilanova, “direitos sobre a pessoa de outro, são os que se exercem sobre forma de autoridade de um indivíduo em relação a outro e à administração dos bens que lhe pertencem. Nessa categoria de direitos encontram-se o poder marital exercido pelo marido sobre a mulher [...]” [...] É fácil que que o empregado, por ser empregado e enquanto tal, não deve ser juridicamente equiparado ao demente, ao menor, à esposa legalmente constrangida, como se fosse incapaz. (NASCIMENTO, 2012, p. 1171-1172) [grifos nossos].
Tal percepção do feminino, aliás, produz a invisibilidade da problemática no próprio ensino jurídico, afinal, a maioria dos acadêmicos e acadêmicas de Direito concluem suas graduações sem jamais terem discutido ou sequer informados sobre a existência de teorias feministas aplicáveis ao Direito e, assim,
[...] sem terem tido a oportunidade de perceber de forma crítica a incidência das normas jurídicas sobre as mulheres brasileiras e sobre aqueles valores tidos por nós como tipicamente femininos. Essa situção de negação epistemológica é absurda tendo em vista a realidade social das mulheres brasileiras, paulatinamente agravada por decisões judiciais orientadas conforme concepções discriminatórias. (SERAFIM, 2010, p. 320).
Além disso, é comum que os estudos que se voltem pra essa questão dentro das Universidades sejam desmerecidos ou tidos como desatualizados, demonstrando outro argumento machista para a produção da invisibilidade e manutenção do status quo. Nessa mesma perspectiva, Serafim defende que “Argumentos como esse buscam tornar natural o silenciamento acerca das problemáticas enfrentadas pelas mulheres em nossos dias, tentando fazer crer que o machismo é questão superada” (2010, p. 330). Todavia, como bem demonstramos, ainda é de suma importância lutar a favor da concretização do direito das mulheres, assumindo uma postura feminista, tendo em vista que tais direito ainda estão longe de serem plenamente efetivados.
Diante do exposto, a problemática acaba refletindo-se também nas práticas jurídicas, em que podemos identificar decisões que também reiteram a desigualdade de gênero. Em 2006 o Brasil teve um grande marco legislativo no que diz respeito a proteção da mulher vítima de violência doméstica: a “Lei Maria da Penha” foi promulgada depois do país ser constragido internacionalmente diante da condenação pública pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em razão da negligência do Poder Judiciário frente ao caso emblemático (porém não o único) de violência sofrida por Maria da Penha Maia Fernandes.
Entretanto, a partir da vigência da lei, começaram a surgir diversas decisões que contestavam a constitucionalidade da lei, através do controle difuso de constitucionalidade. Assim, a lei era considerada por alguns magistrados como inconstitucional, sob o argumento de ferir o princípio da igualdade, sendo vedada a discriminação em razão de sexo, e portanto, não era aplicada. Muito embora se saiba no meio jurídico que uma das premissas básicas para a efetivação da equidade seja tratar os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades, e que homens e mulheres não se encontram em situação de igualdade substantiva, foi necessário que o Presidente, representado pelo Advogado Geral da União, ajuizasse, no Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC nº 19) para que se confirmasse a constitucionalidade da lei, o que aconteceu por votação unânime. No voto da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, ela observou que tal julgamento demonstrava que “para mulher que a luta pela igualação e dignificação está longe de acabar”.
3. Teoria feminista do direito: uma questão de justiça
Muitas já foram as rupturas epistemológicas do paradigma de ciência dominante, porém poder pensar e desconstruir a estrutura patriarcal consolidada por tanto tempo e enraizada de forma tão profunda na sociedade, constituídas dentro de uma cultura onde circulam representações negativas ou inferiorizantes sobre as feminilidades ainda é um processo em andamento; É preciso ainda questionar as assimetrias seculares estabelecidas entre homens e mulheres.
A lógica perversa do capitalismo que ser renova e se adapta às críticas, feministas encontrando novas formas de opressão que lançam as mulheres à precarização do trabalho e à remuneração deficitária.
A ciência jurídica acompanhou este processo, servindo de instrumento de perpetuação desta condição e a manutenção da sociedade patriarcal opressiva, relegando à mulher o papel de -ser humano de segunda categoria?, reafirmando a ideia de fragilidade e incapacidade e destinando-lhe ao espaço privado do lar para atividades consideradas de menor valor socialmente, atribuindo-lhe capacidade relativa para gerir a si e sua vida, necessitando do aval de um homem para poder ingressar ao mercado de trabalho que poderia lhe proporcionar meios de subsistência que, talvez pudessem lhe conferir alguma autonomia no plano social. Mostrou sua face mais perversa ao permitir ao homem o assassinato da esposa em caso de adultério e as atenuantes para os crimes em defesa da honra, dentre tantas aberrações históricas que poderiam ser enumeradas.
A dívida da ciência jurídica para com as mulheres é histórica, e mesmo na contemporaneidade, quando visa a reparar esta lacuna, o discurso empregado por ela ainda deixa a desejar. Os direitos garantidos formalmente não se efetivam muitas vezes nos casos concretos. Por si só o Direito, como arcabouço teórico, não é suficiente para modificar o estado de coisas que se impôs às mulheres e é neste sentido que se percebe os Estudos Decoloniais como possibilidade de diálogo e desconstrução destas hierarquizações na ciência em questão, pois procura romper com os universalismos e binarismos estabelecidos na modernidade ao criticar a colonialidade dos saberes. Sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro é -cópia malfadada de ordenamentos de outros países, em que a colonialidade parece bastante forte, muitas vezes não produzindo os efeitos necessários para a concretização dos valores democráticos que se pretendeu exaltar na Constituição Federal de 1988.
Conclusão
É preciso superar, nos espaços da justiça, a racionalidade androcêntrica e sexista ainda preponderante, que dificulta que o atendimento a mulheres em situação de violência seja eficaz. Não é possível que o poder judiciário persista um espaço pouco representativo das mulheres, bem como que o ensino jurídico permaneça invisibilizando problemas sociais como este.
Referências
MACCISE, Regina Larrea. Feminismo(S), Perspectiva de Género y Teorías Jurídicas Feministas. Revista Derecho en Libertad. Facultad Libre de Derecho: Monterrey, 2011.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. NASCIMENTO, Sônima Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 26 ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2012.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revisão de Tomaz Tadeu da Silva. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº2, jul/dez. 1995, pp. 71-99.
SERAFIM, Fabrízia Pessoa. Teorias feministas do direito: uma necessidade no Brasil. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília nº 9. Universidade de Brasília: Brasília, 2010.
Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLEA, Thais Campos. A desigualdade de gênero e o feminino: para onde caminha o direito? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 ago 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47401/a-desigualdade-de-genero-e-o-feminino-para-onde-caminha-o-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
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