RESUMO : O presente trabalho possui a finalidade de estudar sobre a viabilidade de aplicação do instituto da responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações paterno-filiais biológicas no direito de família brasileiro, o qual decorre da carência em conferir e efetivar a condição existencial da afetividade por parte dos pais em favor do filho, o qual sofre danos à sua dignidade, personalidade e, em especial, à sua psique humana, fatores estes completamente ensejadores do dever jurídico daqueles em indenizar este último pelo dano moral que experimentou. Mediante uma detida apreciação dos atuais entendimentos doutrinários e jurisprudenciais pátrios, objetiva-se expor que a compensação civil por dano moral ocasionado pelo abandono afetivo é amplamente tutelada pelas máximas constitucionais - em especial, a da dignidade humana -, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, postulados estes que corroboram para a salvaguarda do melhor interesse da criança, com vistas a compelir condutas violadoras dos deveres da paternidade responsável e da convivência familiar, bem como da obrigação de prestar afeto, atenção e cuidado em prol desse ser em desenvolvimento.
Palavras-chave: Família. Dever de Cuidado. Abandono Afetivo. Dano. Indenização.
ABSTRACT : This work has the purpose of studying the feasibility of implementing the institute of civil liability for affective abandonment in the biological relationship between parents and their children at the Brazilian family law, which stems from the lack of confer and materialize the existential condition of affection by parents in favor of their child, which suffers damage to its dignity, personality and, in particular, its human psyche, factors that feature completely the legal duty of those to indemnify this last one for the moral damage that it has experienced. Through a detailed appreciation of the actual doctrinaire and jurisprudential understandings, the objective is to expose that the civil compensation for moral damage caused by affective abandonment is largely safeguarded by the constitutional precepts - especially the human dignity -, the Civil Code and The Child and Adolescent Statute, postulates that concur to safeguard the best interests of the child, in order to compel abusive conducts at the duties of responsible parenthood and family life, as well as the obligation to provide affection, attention and care in favor of this being in development.
Keywords: Family. Duty of Care. Affective Abandonment. Damage. Indemnification.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Análise acerca da conjuntura familiar brasileira. 2.1 Conceituação inicial. 2.2 Objeto de estudo. 2.3 Evolução da concepção jurídica de família no brasil. 2.4 Pluralidade de formas de famílias abrangidas pelo direito brasileiro. 2.5 Principiologia arraigada ao direito das famílias. 3 Instituto da responsabilidade civil. 3.1 Conceituação inicial 3.2 Parâmetros da responsabilidade civil. 3.2.1 Conduta humana. 3.2.2 Dano. 3.2.3 Culpa. 3.2.4 Nexo de causalidade. 3.3 Espécies de responsabilidade civil no direito das famílias. 3.3.1 Responsabilidade contratual e extracontratual. 3.3.2 Responsabilidade subjetiva e objetiva. 3.3.3 Responsabilidade direta e indireta. 4 Responsabilidade civil intrínseca às relações paterno-filiais biológicas. 4.1 Obrigações dos genitores amoldadas na constituição federal, no código civil e no estatuto da criança e do adolescente. 4.2 Responsabilidade civil por abandono afetivo. 4.3 Importantes precedentes jurisprudenciais. 5 Conclusão.
Este trabalho visa abordar a temática da responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações paterno-filiais biológicas, a qual surge a partir do momento em que o pai ou a mãe deixam de cumprir com os encargos da paternidade para com a pessoa de seu filho, faltando com os deveres circunscritos no poder familiar, o que perfaz o objetivo geral da presente pesquisa, a qual possui metodologia bibliográfica.
Para tanto, preliminarmente, merece relevo a apresentação de uma concatenação particular de ideias sobre a evolução dos fatores jurídicos que perpassaram pela relação familiar brasileira e aqueles que hoje a compõem, o que caracteriza o primeiro objetivo específico e, portanto, o primeiro capítulo deste trabalho. Com isso, a transformação ocorrida no direito das famílias no país fez emergir uma contemporânea percepção sobre os atuais pilares e alicerces da entidade familiar, estimulando os cultos aplicadores do direito e os Tribunais pátrios a ajustarem-se face as novas situações que envolvem a família, como, por exemplo, o caso do abandono afetivo. Assim, diversos novos pressupostos e princípios foram concebidos e abraçados pelo direito das famílias no Brasil.
Nesse sentido, cumpre ressaltar que uma considerável novidade sobreveio ao instituto do antigo pátrio poder, o qual baseava-se na ideia de supremacia da vontade do homem no seio da família, submetendo tanto a mulher quanto a prole às suas diretrizes, decisões e objetivos pessoais. Dessa maneira, a mulher e os filhos não possuíam parcela de decisão, equação isonômica de vontades e persecução de anseios solidariamente com todos os membros da família, uma vez que ficavam submetidos à autoridade patriarcal, tão somente obedecendo determinações e arbítrios do homem, do pai.
Em seguida, conforme será melhor abordado no segundo objetivo específico e, assim, no segundo capítulo deste trabalho, com o passar do tempo essa realidade foi sendo deixada de lado, haja vista que as grandes conquistas alcançadas pela mulher no meio social e, também, jurídico, pelo que hoje fala-se, a partir da promulgação do Código Civil de 2002, em poder familiar, instituto através do qual tanto o homem quanto a mulher exercem seus direitos e deveres familiares nas mesmas e iguais proporções, gerindo a administração da família equitativamente, com vistas a proteção e zelo para com seus eventuais filhos.
A partir da Constituição Federal de 1988, vislumbraram-se várias construções doutrinárias e jurisprudenciais com o transcurso temporal, tendo sido construídos e estruturados diversas novas concepções principiológicas e valorativas no que tange à família brasileira. Assim, alçadas nos preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da paternidade responsável, da convivência familiar, da proteção integral da criança e do adolescente, dentre outras; ganharam proteção do direito, diversas novas formas de constituição de família no Brasil, tendo em vista a ampla e aberta proteção conferida pela Carta da República de 1988 a este instituto.
Destaque-se que, portanto, com supedâneo nas máximas disposições constitucionais, especialmente a da dignidade do ser humano, a pessoa emergiu para o centro das atenções na ciência jurídica, alcançando diversas prerrogativas no âmbito civilista brasileiro, por isso a grande gama de novas relações sociais mereceram garantia pelo direito.
Nessa esteira, não pode ser esquecida a especial salvaguarda intrínseca às crianças e aos adolescentes, merecedoras de proteção constante, objetivo este que resta insculpido no instituto da responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações entre pais e filhos. Com fulcro em seus requisitos característicos da conduta humana, dano, culpa, nexo de causalidade e suas conseguintes espécies de reparação - os quais serão analisados no terceiro objetivo específico e, dessa maneira, no terceiro capítulo deste trabalho -, a responsabilidade civil vem figurando como medida basilar da efetivação dos direitos inerentes àquelas pessoas, garantindo a integridade personalíssima e digna de suas existências, tanto quando inseridas em um seio familiar como quando introduzidas na sociedade em geral.
Ato contínuo, vale sobrelevar que neste estudo sobre o abandono afetivo paterno-filial, será feita uma análise global desta matéria, visando com que suas precípuas particularidades sejam detidamente detalhadas e observadas, sempre com um viés crítico e analítico, considerando que este recente instituto é de grande avanço e construção para a democratização do direito enquanto ciência. Dessa maneira, será observado como a situação do pai ser compelido a indenizar o filho pela prática de uma conduta de lacuna afetiva na vida deste é entendida pela doutrina e pela jurisprudência - especialmente pela decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça acerca do assunto -, de acordo com o que será delineado no capítulo quatro; por se tratar de relevante questão que envolve o desenvolvimento psíquico da criança (filho), importante aspecto para a efetivação de sua personalidade e dignidade.
Hodiernamente, a família brasileira pode ser melhor entendida como um instrumento através do qual a um indivíduo ou mais, é devidamente garantida e assegurada a persecução de direitos atinentes a dignidade da pessoa humana, ao salutar desenvolvimento da personalidade humana, ao respeito à pluralidade familiar e a idealização da busca pela felicidade, mediante a edificação de afeto, solidariedade, respeito e confiança.
Nessa linha de pensamento, é imperioso asseverar que a entidade familiar visa estabelecer “a promoção da dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade” (FARIAS; ROSENVALD, 2013b, p. 48).
Com vistas ao exposto, infere-se que a entidade familiar está para muito além de definições conceituais estereotipadas ou estigmatizadas, uma vez que sua égide é totalmente intrínseca ao ser humano, ao indivíduo enquanto ser dotado de razão e emoção, tendo-se por base, principalmente, o subjetivismo do homem e a sua necessidade de convivência social altamente progressiva e mutável, através da perpetuação de ideais existenciais e afetivos entre as pessoas, umas com as outras.
“Houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor” (DIAS, 2013, p. 33).
Cumpre asseverar, por oportuno, que a legislação civilista não define a família nem faz menção a qualquer espécie de noção conceitual sobre esta - embora dedique vários artigos que tratam sobre o tema -, a partir do que se depreende que por família pode-se ter uma vasta pluralidade de formas e contornos de uniões e enlaces entre indivíduos. Todavia, a Constituição Federal de 1988 considera a família como a base do Estado Democrático de Direito brasileiro, no que a ela direciona peculiar e merecido abrigo legal, amparando as diversas formas de se constituí-la, com vistas a um especial foco sobre a tutela da liberdade e igualdade da pessoa enquanto ser social, dotado de direitos e deveres no mundo civil.
Desta feita, aduz-se que à família não se cabe mais atribuir, atualmente, meras funcionalidades patrimoniais, matrimoniais, parentais e filiais; mas sim características de regência e norteamento pelo ser humano enquanto ser social, necessitado de persecução de projetos e legados de vida, muito pelo que foi produzido a nível intelectual do saber jurídico disseminado junto ao meio social, bem como pelo fato, também, do irretocável postulado constitucional passar a zelar e proteger, sobremaneira, a dignidade da pessoa humana, a personalidade, a solidariedade e a igualdade entre os indivíduos; o que perfaz, por conseguinte, a ideia principal de que faz parte da natureza humana a sua constante modificação, evolução e consubstanciação comportamental com o transcorrer do tempo; peculiaridades estas fortemente atinentes à concepção de família.
O objeto do Direito das Famílias perfez-se pelo estudo e análise do próprio instituto familiar, ou seja, tal ramo da ciência do direito visa única e exclusivamente atender e apreciar os pressupostos jurídicos atinentes as pessoas abarcadas pelo que se entende pela expressão família.
Nesse sentido, impende salientar que a legislação pátria, que se preocupa em reger e gerir as regras que dizem respeito à família, tem por finalidade maior, prover substratos civis, jurídicos e, por consequência, processuais, àquelas relações perpetradas por um núcleo de pessoas unidas por (a título meramente exemplificativo) afeto, afinidade, patrimônio, matrimônio, parentesco ou filiação.
A legislação civil, por não traçar noções conceituais quanto ao direito das famílias, deixa fervorosamente cristalina a sua brilhante intenção de não limitar a abrangência do objeto de estudo desse ramo do direito, com vistas a uma maior maleabilidade e flexibilidade no que tange ao objetivo de constituição e formação das plurais modalidades de famílias hoje compreendidas pelo ordenamento jurídico.
Nesse diapasão, Farias e Rosenvald (2013b, p. 52) concluíram que:
considerando que o ordenamento infraconstitucional não define a família [...], é preciso lembrar a superioridade do conceito constitucional, decorrente do art. 226, que abraçou uma concepção múltipla e aberta de entidade familiar, permitindo a sua formação pelas mais diferentes formas, todas elas merecendo especial proteção do Estado.
Com observância ao exposto, infere-se que a Magna Carta, com muita propriedade e inteligência, estipulou, no caput de seu artigo 226, a amplitude e vastidão de abrangência e arrimo a família brasileira, em especial pelo emprego da expressão “a família”, a partir da qual resta evidenciada a plenitude protetora às variadas estruturações e configurações familiares presentes no cotidiano brasileiro, dignas de reconhecimento, aceitação e respeito, com base nos inarredáveis princípios constitucionais de igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana.
Preliminarmente, cumpre asseverar que a família brasileira, no que tange a seu processo histórico de modulação e estruturação, perpassou por inúmeros momentos evolutivos, sendo estes deveras concernentes ao contexto histórico-cultural em que a família era constituída ou formada.
Nesse sentido, a concepção jurídica de família no Brasil emergiu, inicialmente, da grande influência religiosa a que foi submetida, com forte embasamento no direito canônico, ainda nos tempos dos modelos colonial e imperial de ocupação do território brasileiro, instituídos por Portugal. Com isso, o direito de família era tido como instituto controlado e regido única e exclusivamente pela Igreja Católica, a qual tinha em seu favor a prerrogativa de que sua ideologia filosófico-espiritual era considerada como a religião oficial de Estado, portanto, aplicável tanto na colônia brasileira de exploração como no império dominante português.
Logo, diante da potência ideológica intrínseca à Igreja Católica Apostólica Romana, perante o cotidiano da sociedade brasileira àquela época, cuja interferência dava-se diretamente na vida particular dos indivíduos, com a vinculação de comportamentos e atitudes, até mesmo à níveis culturais, pôde-se verificar que:
o direito canônico regulava a vida privada das pessoas desde o nascimento à morte, conferindo a seus atos caráter oficial. Os atos e registros de nascimento, casamento e óbito eram da competência do sacerdote. Os cemitérios estavam sob controle da igreja (LÔBO, 2011, p. 42).
Em consequência disso, constatam-se determinados aspectos que à época foram atrelados ao direito de família, quais sejam, o casamento, o pátrio poder, o parentesco, a tutela e a curatela; todos consubstanciados no ordenamento jurídico brasileiro mediante a elaboração do Postulado das Leis Civis, no século XIX.
Ademais, importa salientar que a sociedade civil brasileira nesse contexto histórico é demasiadamente patriarcal, matrimonial e patrimonialista, muito em decorrência da forte ingerência da mencionada Igreja Católica, voltando-se para a supremacia da vontade do homem no seio familiar - com a imposição de regras e comportamentos unilaterais aos demais membros da família -, bem como ao fato de ser a entidade familiar instituída exclusivamente por meio do vínculo advindo do casamento - não podendo a respectiva ligação conjugal ser dissolvida ou rompida - e ao poderio econômico-financeiro que esta ansiava possuir perante as demais.
Enfatizando-se o supramencionado, Farias e Rosenvald (2013b, p. 40) asseveram que:
compreendia-se a família como unidade de produção, realçados os laços patrimoniais. As pessoas se uniam em família com vistas à formação de patrimônio, para sua posterior transmissão aos herdeiros, pouco importando os laços afetivos. Daí a impossibilidade de dissolução do vínculo, pois a desagregação da família corresponderia à desagregação da própria sociedade. Era o modelo estatal de família, desenhado com os valores dominantes naquele período da revolução industrial.
Isso fica plenamente perceptível quando da promulgação do pretérito Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916), projetado e elaborado pelo ilustre jurista Clovis Beviláqua, pelo qual se notava que a sociedade, principalmente a família, era eminentemente patrimonialista, na medida em que o indivíduo, enquanto ser humano - hoje dotado de direitos e proteções civis -, era preterido em relação ao poderio econômico ou quantidade de bens que possuía ou que os outros detinham.
Isso é tão verdade que, a título de exemplificação, a partir da leitura do artigo 240 do antigo postulado em comento, a mulher era tida como relativamente capaz, cuja função era a de meramente colaborar e auxiliar com as atribuições familiares, sendo o homem considerado como o chefe do lar conjugal.
Ato contínuo, quanto ao estado de filiação, existia clarividente diferenciação e rotulação entre os filhos, sendo estes à época caracterizados como legítimos, ilegítimos, naturais e adotivos, dessa forma registrados no respectivo assento de nascimento, o que estabelecia uma condição perfeitamente discriminatória e desigual entre os filhos.
Por outro lado, no que tange à guarda dos filhos, esta restava diretamente ligada ao ato de separação dos cônjuges, ficando aquela com o consorte tido como não culpado na revogação do vínculo marital, o que sobressalta a ideia de que o bem estar do filho fica em segundo lugar nessa ocasião.
Não obstante, de forma acanhada e a passos largos, foi-se observando a necessidade de mudança de paradigma quanto à concepção jurídica da família no Brasil, tendo-se repensado a sua estruturação e institucionalização, pelo que “ganhou evidência a preocupação necessária com a proteção da pessoa humana” (FARIAS; ROSENVALD, 2013b, p. 40).
Nessa linha de raciocínio, salienta-se que se teve grande evolução com relação a situação dos filhos, especialmente com a entrada em vigor da Lei nº 883/49, a qual possuiu a finalidade de salvaguardar o reconhecimento da filiação dos filhos havidos fora do casamento - à época tidos como ilegítimos -, atribuindo-lhes, inclusive, direitos até então vedados pelo legislador, quais sejam, alimentos, segredo de justiça, herança e proibição de menção à filiação ilegítima no registro civil da criança ou adolescente, sobrepondo, de certa forma, a atitude discriminatória levada a cabo pelo Poder Legislativo na postulação do Código Civil de 1916. A título meramente informativo, ressalta-se que tal postulado foi revogado e, atualmente, encontra-se regido pela Lei nº 12.004/2009.
Noutro vértice, verifica-se a promulgação da Lei nº 4.121/62, a qual regeu a questão jurídica da mulher casada, cuja denominação fora bastante peculiar, qual seja, o Estatuto da Mulher Casada. Tal instrumento legal substituiu diversas disposições do antigo Código Civil, no que a mulher passou a concentrar várias prerrogativas no mundo civil e, principalmente, no seio familiar, podendo efetivamente exercer o poder familiar, mesmo que depois de separada judicialmente e, ainda, com o estabelecimento de novo casamento. Todavia, tal norma restou eivada de inclinações à preponderância da vontade do homem junto a entidade familiar. Mesmo assim, a mulher passou a ser vista com outros olhares perante a sociedade brasileira, de forma que, a partir da lei em comento, ela abraçou uma das mais vitais conquistas para a camada feminina da população, qual seja, a de poder imiscuir-se na administração e gerenciamento do lar conjugal, da família por si também constituída.
Dessa maneira dispõe o nobre jurista Silvio de Salvo Venosa (2013a, p. 15):
No direito brasileiro, a partir da metade do século XX, paulatinamente, o legislador foi vencendo barreiras e resistências, atribuindo direitos aos filhos ilegítimos e tomando a mulher plenamente capaz, até o ponto culminante que representou a Constituição de 1988, que não mais distingue a origem da filiação, equiparando os direitos dos filhos, nem mais considera a preponderância do varão na sociedade conjugal. A Lei nº 4.121, de 27-8-62, Estatuto da Mulher Casada, que eliminou a incapacidade relativa da mulher casada, inaugura entre nós a era da igualdade entre os cônjuges, sem que, naquele momento, a organização familiar deixasse de ser preponderantemente patriarcal, pois muitas prerrogativas ainda foram mantidas com o varão.
Ato contínuo, nos idos de 1977, editou-se a Emenda Constitucional nº 09, seguida da Lei nº 6.515, a qual regeu e ordenou a primeira, amplamente conhecida como a Lei do Divórcio, cujos fundamentos pautaram-se no sentido de viabilizar o instituto da ação de divórcio direto no Brasil, mediante o transcurso do lapso temporal de cinco anos após a separação de fato do casal. Insta ressaltar que a lei em análise é relevante, respectivamente, tanto pelo fato de que possibilitou à mulher optar ou não pelo uso do sobrenome do seu cônjuge, quanto pelo fato de ter consolidado o regime de comunhão parcial de bens na vigência do casamento; bem como, ainda, pelos laços conjugais serem desfeitos mediante a decretação do divórcio dos consortes.
Nesse contexto, tem-se cristalizada a respeitosa lição do ilustre jurista brasileiro Paulo Lôbo (2011, p. 43):
O Brasil participou das grandes mudanças que ocorreram no direito de família a partir da década de 70 do século passado, no mundo ocidental, havendo notáveis convergências nas soluções adotadas, principalmente na realização do princípio da igualdade entre os cônjuges e entre os filhos de qualquer origem. O direito de família que surgiu desse processo transformador, de acordo com a intensa evolução das relações familiares, pouco tem de comum com o que se conheceu nas décadas e séculos anteriores. Nenhum ramo do direito privado renovou-se tanto quanto o direito de família, que antes se caracterizava como o mais estável e conservador de todos. Mas, apesar dos avanços da legislação, especialmente da Lei do Divórcio, restaram normas que favoreciam o tratamento desigual entre marido e mulher e entre os filhos, além de permanecer a vedação às entidades familiares não matrimoniais.
Enfim, dentre as importantes transformações ocorridas no século XX na estrutura familiar brasileira, conforme delineado anteriormente, nada se compara ao que se consubstanciou na Constituição Federal de 1988 sobre a temática da família, postulado máximo e central do ordenamento jurídico pátrio, motivador indissociável dos grandes redirecionamentos e remodelações deste tão particular e relevante instituto para o país, podendo-se observar tais afirmações junto aos artigos 226 e seguintes da Constituição da República.
A partir de então, a célula familiar brasileira restou alicerçada nos pressupostos da igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana, os quais conferiram ao direito de família um olhar amplamente centrado no valor que passou a ser atribuído a pessoa, ao indivíduo participante de determinado seio familiar, pautando e regendo suas relações e interações com os demais membros integrantes deste mesmo núcleo de pessoas unidas em prol de um objetivo comum, convindo “lembrar que a pessoa humana é valor fundamental em si mesma, sendo o único ser capaz de valores, inovando, realizando e construindo o mundo” (FARIAS; ROSENVALD, 2013a, p. 310). Com isso, verifica-se a nova roupagem destinada ao mundo das famílias através da Constituição Federal de 1988, dispositivo basilar da união de sujeitos em busca de uma finalidade para suas vidas, de modo conjunto e solidário, com esteio na afetividade recíproca entre estes.
Com base em tais premissas, observa-se que o constituinte optou por inteligentemente priorizar a proteção da família de modo a servir como mecanismo apto a salvaguardar os interesses dos cônjuges, das crianças, dos adolescentes e dos idosos, de maneira igualitária, fraterna e harmoniosa.
No que diz respeito às crianças e aos adolescentes, por exemplo, o legislador conferiu isonômico e equitativo tratamento aos filhos, desconstituindo a antiga premissa dos filhos legítimos e ilegítimos, pois passou-se a respeitar sobremaneira a personalidade dos indivíduos no meio social em que foram concebidos, deixando-se de lado estigmas e rótulos imorais e, agora, inconstitucionais, conforme disposição do artigo 227, § 6º da Constituição Federal.
A par disso, com vistas a proporcionar detida proteção e segurança à pessoa das crianças e dos adolescentes, aprovou-se pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, a Convenção dos Direitos da Criança, a qual foi devidamente ratificada pelo Brasil em 1990, com a edição da Lei nº 8.069, notoriamente conhecida como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), legislação de grande relevância para destinar a esses indivíduos, em fase de crescimento e desenvolvimento junto ao seio familiar e social em que vivem, devida corroboração reguladora de seus direitos e deveres na prática dos atos da vida civil. Para tanto, o Estado, a família e a sociedade necessitaram coadunar empenhos em favor das novas diretrizes pregadas pelo aludido Estatuto, pelo que se verifica a existência de projetos governamentais viabilizadores, às crianças e aos adolescentes, de cursos destinados à profissionalização e preparação dessa camada da população, proporcionando-lhes oportunidades presentes e futuras para ingresso no mercado de trabalho.
Consequentemente, ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente outorgou o reconhecimento do estado de filiação como prerrogativa personalíssima, dotado dos preceitos de imprescritibilidade e indisponibilidade, podendo ser perfeitamente realizado em face dos genitores ou sucessores, dissociado de qualquer óbice ou limitação, com observância ao segredo de justiça inerente a este instituto.
Intentando-se especificar e delinear ainda mais a temática do reconhecimento dos filhos, foi promulgada a Lei nº 8.560/1992, a qual emergiu com a finalidade de regular o instituto da investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, outorgando legitimidade ativa ao órgão do Ministério Público para manejar em juízo a demanda processual concernente à investigação de paternidade, a partir do momento em que constar do registro da criança ou do jovem, apenas e tão somente a filiação materna. Isso se deve ao fato de que toda criança e adolescente tem assegurada a prerrogativa legal de possuir um pai e uma mãe, responsáveis pela criação, educação e afeto de tais indivíduos, atribuições estas fortemente familiares.
Noutro vértice, em 11 de janeiro de 2002, passou a vigorar no ordenamento jurídico pátrio o atual Código Civil, por meio da promulgação da Lei nº 10.406, legislação esta que, ao tempo em que passou a ser válida, já se encontrava bastante ultrapassada, pois sofreu diversas alterações pela Câmara dos Deputados ao longo do processo legislativo no Congresso Nacional, sendo que, ao chegar para apreciação do Senado, aproximadamente apenas 20 anos depois, muitas mudanças sociais já haviam sido consagradas e estabelecidas pela própria Constituição Federal de 1988, pelo que a “nova” configuração do Código Civil deixou a desejar no que tange a determinados temas e institutos abarcados por tal codificação.
Não obstante, deve-se salientar que o postulado civilista em referência trouxe uma importante mudança de paradigma pertinente ao direito de família, qual seja, a da igualdade conjugal, mediante a qual homens e mulheres são dotados de direitos e deveres totalmente iguais na esfera familiar, sendo ambos responsáveis pelos encargos advindos da família que iniciaram e que gerenciam, tais como, a fidelidade recíproca intrínseca ao casal, a vida em comum em meio ao lar conjugal, a mútua assistência e o sustento, a guarda e educação dos filhos, bem como e, não menos relevante, o respeito e a consideração marital.
Desta feita, vale sobrelevar o que assevera Aline Biasuz Suarez Karow (2012, p. 23) acerca da entidade familiar brasileira:
Alguns valores considerados até então absolutos foram sendo lentamente substituídos pela sociedade, que passou a priorizar uns em detrimento de outros. Esta leitura pode ser identificada nas relações pessoais que passaram a se dar sob o pálio de outras motivações e de formas diferentes.
A pessoa foi erigida como ponto de partida de todo um sistema organizacional, fazendo com que a partir do seu bem-estar e respeito, traduzidos em “dignidade”, pudessem emanar todas as demais medidas.
Portanto, tem-se por evidenciado que a entidade familiar nacional perpassou por variados e diversificados momentos cruciais que foram fulcrais para o seu remodelamento e reestruturação perante o cerne da estrutura social brasileira, visto que hoje a família não é mais um instituto do direito tido como metódico, estático ou, ainda, parado e esquecido no tempo, muito pelo contrário, hoje a família pátria é considerada como uma entidade amplamente mutável, variável e que se transforma junto ao cotidiano, sendo sobremaneira constituída em prol do melhor interesse da pessoa, da sua personalidade, cujos basilares são o afeto, a solidariedade, a harmonia, a paz de espírito e a livre e igual capacidade que, por exemplo, duas pessoas possuem para formá-la e perpetuá-la, enquanto perdurarem a vontade e a razão de permanecerem juntas durante o transcorrer do tempo.
Hodiernamente, com as diversas mutações ocorridas no cenário familiar brasileiro, pode-se perfeitamente aduzir que o termo família é recheado de variadas ramificações e subdivisões, sendo, portanto, constituído por múltiplas formas de entidades familiares no direito brasileiro. Com isso, verifica-se a existência dos núcleos familiares matrimoniais, informais, monoparentais, anaparentais, pluriparentais, paralelos, homoafetivos, poliafetivos e eudemonistas. Estas são as principais espécies de famílias que compõe o ordenamento jurídico pátrio na atualidade, todavia, tal rol é meramente exemplificativo, tendo em vista que a doutrina e a jurisprudência reconhecem, ainda, outras modalidades de famílias.
Primeiramente, no que tange à família matrimonial, impende destacar que trata-se de seio familiar intrinsecamente caracterizado pelo casamento, constituído perante a legislação e a religiosidade, regido e ordenado pelo Estado e pela Igreja Católica. Durante muito tempo, com início ainda no Código Civil de 1916, a família formada pelo matrimônio seguiu um padrão patrimonial, patriarcal e heterossexual. Isso porque o casamento possuía o objetivo de procriação, constituição de uma prole, pautado no pátrio poder concernente ao homem - figura dotada de poder soberano no lar conjugal, cujas vontades emanavam ordens -, com o escopo maior de gerar acúmulo de riqueza e formação de patrimônio através do núcleo familiar, a fim de fortalecer o nome e quantidade de bens sobre seu poder e propriedade.
Nas sábias lições de Maria Berenice Dias (2013, p. 44) tem-se que:
O Estado solenizou o casamento como uma instituição e o regulamentou exaustivamente. Os vínculos interpessoais passaram a necessitar da chancela estatal. É o Estado que celebra o matrimônio mediante o atendimento de inúmeras formalidades. Reproduziu o legislador civil de 1916 o perfil da família então existente: matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e heterossexual. Só era reconhecida a família constituída pelo casamento. O homem exercia a chefia da sociedade conjugal, sendo merecedor de respeito, a mulher e os filhos deviam-lhe obediência. A finalidade essencial da família era a conservação do patrimônio, precisando gerar filhos como força de trabalho. Como era fundamental a capacidade procriativa, claro que as famílias necessitavam ser constituídas por um par heterossexual e fértil.
Ocorre que, atualmente, tal concepção mudou substancialmente, pois os consortes unidos pelo matrimônio possuem amplos direitos e deveres iguais na gerência da sociedade conjugal, já se admite o casamento de pares homossexuais, os filhos havidos pelos consortes são assim considerados por uma opção pautada na vontade de criar e educar um novo ser, meramente, com base em preceitos de afetividade; o patrimônio adquirido pelos cônjuges é mera consequência de seus esforços comuns, pois agora a unidade familiar constituída pelo casamento fundamenta-se em laços de amor, carinho, respeito, igualdade e, ainda, na vontade de perpetuar uma vida em conjunto com outra pessoa.
Noutro vértice, observa-se a existência da família denominada de informal, sendo aquela a partir da qual seus pares instituem laços de comunhão de direitos e deveres em conjunto, a qual é amplamente conhecida como união estável. Consubstanciada no artigo 226, § 3º da Constituição Federal, nela os conviventes pactuam de semelhantes e, muita das vezes, equitativas prerrogativas atribuídas ao casamento, entretanto, sem o vínculo de natureza matrimonial, regulado e norteado pelo Estado, não possuindo, consequentemente, prazo estipulado para seu reconhecimento na seara civilista. A referida união estável teve sua previsão constitucional ampliada pela doutrina e jurisprudência pátrias, devendo-se entender a expressão constitucional “entre homem e mulher” por “entre duas pessoas”[1], tendo em vista que aos homossexuais conferiu-se o digno direito de construir uma família, instituto este que será detidamente abordado adiante.
Adiante, constata-se no ordenamento jurídico brasileiro, a temática cerca da família monoparental, a qual se refere àquela espécie registrada no artigo 226, § 4º da Constituição Federal, cujo cerne estrutural é formado por quaisquer dos pais e seus respectivos descendentes. Com isso, tem-se que “o enlaçamento dos vínculos familiares constituídos por um dos genitores com seus filhos, no âmbito da especial proteção do Estado, atende a uma realidade que precisa ser arrostada” (DIAS, 2013, p. 54). Em outras palavras, a família monoparental é aquela cuja base e alicerce institui-se na pessoa de um dos progenitores, em meio a uma relação de afeto, carinho e cuidado para com seus filhos, de forma unilateral e sem a presença do outro genitor.
Por família anaparental, compreende-se aquela em que não se constata o esteio do pressuposto do parentesco ascendental, isto é, é aquela entidade familiar em que não há a presença da comum ascendência verticalizada - onde existem pais e filhos -, sendo formada, por exemplo, por dois irmãos, cujo objetivos se compatibilizam no sentido de conferir-lhes determinada unidade de desígnios em comum, tais como a estabilidade financeira e patrimonial, o animus convivendi entre essas pessoas, a perpetuação de uma vida serena e atenta aos interesses de ambos, dentre muitos outros. Tal espécie de família é levada tão a sério que a Lei nº 8.009/1990 confere impenhorabilidade da residência do núcleo anaparental, considerando-a como bem de família, uma vez que o reconhece como plena entidade familiar.
Ato contínuo, há também que se tecer breves comentários sobre a família pluriparental, ou também conhecida como família composta ou mosaico, refere-se àquela entidade familiar constituída a partir de desenlaces de relacionamentos pretéritos pelas pessoas que ora a compõem, as quais, em meio a um novo cenário familiar, trazem consigo filhos da relação passada, estes que, em muitos casos, convivem com os novos filhos advindos agora dessa nova comunhão de interesses, situação esta que perfaz, como se pode observar, uma gama de complexas e múltiplas questões jurídicas e fáticas para essas pessoas que passam a vivenciar uma vida totalmente diferenciada, sobremaneira caracterizada pela compreensão, pelo entendimento e pelo respeito mútuo entre seus membros, fatores estes fundamentais para a viabilidade da vida em comum entre eles.
Acerca da família paralela, impende asseverar a ilustre lição do nobre jurista Rolf Madaleno (2013, p. 15):
Embora a pessoa casada não possa recasar enquanto não dissolvido o seu matrimônio pelo divórcio, pela declaração judicial de invalidade, ou pela morte, quedando viúvo o cônjuge sobrevivente, igual restrição não acontece na confirmação de uma nova relação através da união estável, dado à expressa ressalva do § 1º do artigo 1.723 do Código Civil, de que a antiga separação judicial ou mesmo a simples separação de fato seriam suficientes para conferir inteira validade à união estável, não havendo necessidade da prefacial dissolução do matrimônio civil pelo divórcio.
Dessa maneira, em suma, a entidade familiar paralela é fortemente caracterizada pela existência de uma união estável em meio a uma separação judicial ou separação de fato, do casamento ou da união estável anterior, conforme a regra do supracitado artigo 1723, § 1º do Código Civil, permissivo para a constituição de uma nova família ainda sob a parcial égide de uma família, convivência ou casamento pretéritos.
Uma das grandes novidades para o atual ordenamento jurídico pátrio, foi a concepção e confirmação do núcleo familiar homoafetivo, cujo elo é formado por pessoas do mesmo sexo. Amplamente discutida e debatida na doutrina e jurisprudência, a família homoafetiva, arraigada no supremo preceito constitucional da dignidade da pessoa humana, a qual tem o pressuposto basilar da afetividade envolto em si, à qual não se pode “deixar de conferir status de família, merecedora da proteção do Estado” (DIAS, 2013, p. 46). Assim, a soberania estatal não pode olvidar-se de prover mecanismos hábeis a salvaguardar e zelar pela manutenção e perpetuação da família homoafetiva, haja vista ser intimamente fundada sobre os alicerces propagados pela própria Carta Política de 1988, bem como em reiteradas mudanças de posições e comportamentos sociais quanto ao assunto, o qual passou a ser mais respeitado e aceitado pela comunidade, acertadamente, por medida de justiça.
Dentre as formas de famílias, encontra-se aquela tida como poliafetiva, a qual se trata da entidade familiar formada pela união estável entre três pessoas, levada a registro público no cartório de registro civil competente, cujo objetivo é o elo de interesses comuns entre os consortes, com embasamento central na afetividade, na lealdade, na solidariedade e igualdade no âmbito de convivência entre as pessoas constituintes de tal espécie de família. Ocorre, ainda, que este núcleo familiar sofre de preconceitos muita das vezes descabidos e sem razão alguma, pois não cabe a terceiros decidir sobre a forma de viver optada pelas pessoas que assim vivem, pois seus maiores desejos são os de conviver de maneira mútua, com amor e liberdade.
No que tange ao instituto da família poliafetiva, Rolf Madaleno (2013, p. 25), de forma cristalina e inteligente salienta que:
O triângulo poliafetivo inspirou certamente seu contrato nos valores supremo da dignidade humana e no afeto, princípios constitucionais presentes na construção dos vínculos familiares, e quando a Carta Federal tutela a pluralidade familiar, justifica sua função a partir da promoção da pessoa humana, literalmente desencarnada do seu precedente biológico e do seu viés econômico, para fincar os elos psicológicos do afeto e sua comunhão contígua e solidária, os quais se sobrepõem aos valores materiais e hereditários valorizados no passado.
Há que se falar, ainda, sobre o instituto da família eudemonista, a qual anseia pela busca e persecução da felicidade e da harmonia junto ao cerne familiar, pautando-se nos pressupostos da afetividade, da solidariedade e da saúde espiritual recíproca. Tal espécie de família procura formular mecanismos viabilizadores da concretização do sonho de ser feliz de seus membros, mediante realizações interpessoais conjuntas, tanto na esfera pessoal quanto profissional, perfazendo-se a construção de seres humanos socialmente úteis e propagadores da paz social. Assim, a família eudemonista visa alcançar meios hábeis a incentivar o valor do amor junto aos seios familiares brasileiros, com vistas a difundir um sentimento de leveza, responsabilidade e importância para com o seu semelhante, tudo com base nos pressupostos centrais do afeto e do cuidado pelas pessoas, arrematadores do bom convívio e bem estar da comunidade em que se vive, principalmente no que tange à família em que se vive, tornando-a semeadora de amor e de felicidade social.
Por fim, tendo em vista as variadas formas pelas quais podem ser constituídas as famílias brasileiras, observou-se que estas são de suma importância para a manutenção de um sistema jurídico plural e concatenado, justo e propagador de igualdade e respeito, haja vista que todos os indivíduos possuem o direito de manifestar sua prerrogativa constitucional da liberdade, sempre com vistas a satisfação de seus interesses pessoais e interpessoais, concernentes ao meio familiar e comunitário em que se vive, buscando difundir e consubstanciar na sociedade, os preceitos constitucionais da dignidade humana, da solidariedade e da afetividade, sem fins excludentes, mas sim a todo momento includentes.
A essa altura do presente trabalho, cumpre salientar a importância dos pressupostos principiológicos na esfera do instituto da família brasileira. Isso é dito pelo fato de que, a partir da Constituição da República de 1988, o país passou a trazer para o cerne das famílias os princípios-normas que as regem e a elas conferem vida e autonomia, bem como mutabilidade e possibilidade de novos direitos e prerrogativas para as entidades familiares, com o escopo maior de viabilizar a constituição e perpetuação de diversas formas de uniões em torno de um objetivo comum superior, base da família pátria. Com isso, tem-se a constatação dos fundamentais princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade, liberdade, afetividade, convivência familiar e melhor interesse da criança.
Nesse sentido, aduz o consagrado jurista Paulo Lôbo (2011, p. 58):
O princípio, por seu turno, indica suporte fático hipotético necessariamente indeterminado e aberto, dependendo a incidência dele da mediação concretizadora do intérprete, por sua vez orientado pela regra instrumental da equidade, entendida segundo formulação grega clássica, sempre atual, de justiça do caso concreto. Tome-se o exemplo do princípio da dignidade da pessoa humana, referido expressamente no § 7º do art. 226 da Constituição: o casal é livre para escolher seu planejamento familiar, mas deve fazê-lo em obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana, cuja observância confirmará o intérprete apenas em cada situação concreta, de acordo com a equidade, que leva em conta a ponderação dos interesses legítimos e valores adotados pela comunidade em geral.
Portanto, tem-se por cristalino que, no caso do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), este, frise-se, basilar no tocante à formação das famílias brasileiras, refere-se ao postulado valorativo supremo do estado democrático de direito do Brasil, a partir do qual emanam todos os demais princípios, sendo aquele que confere ao ser humano, enquanto ser social que é, uma gama de direitos intrínsecos à sua natureza e condição existencial, atribuindo-lhe salvaguarda universalizante ao sujeito natural, imiscuindo-se em meio a todo o ordenamento jurídico pátrio, perfazendo a concretização e a realização da personalidade humana.
Ato contínuo, verifica-se, ainda, a existência do princípio da solidariedade no cerne familiar brasileiro, preceito constitucional este que promulga a ideia de que a base familiar só pode ser assim considerada enquanto as pessoas que a compõe formem entre si uma união baseada na coexistência recíproca, na comunhão de vida embasada em direitos e deveres iguais e paritários entre seus membros, embasada nas diretrizes do afeto, da fraternidade e da correlação mútua.
Nesse sentido, impende ressaltar os princípios da igualdade no direito de família, também tido como preceito do respeito à diversidade, a partir do qual depreende-se que às espécies de famílias deve ser direcionada a devida estima que cada uma delas é merecedora. Consubstanciado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, tal princípio resta bastante cristalino quando se fala sobre a igualdade entre os filhos - hoje tidos como todos iguais, sem quaisquer bases discriminatórias ou excludentes, independentemente de sua origem -, em igualdade entre os cônjuges ou consortes, dotados de iguais e afins direitos e deveres no âmbito do núcleo familiar - competindo a ambos a gerência e administração da sociedade conjugal, por exemplo -, dentre outros. Com isso, tem-se que o princípio da igualdade “se configura como uma eficácia transcendente” (MORAES, 2011, p. 40), de modo a ser considerado como mola propulsora da aceitação e concretização das diversas formas de famílias hodiernamente existentes no ordenamento jurídico pátrio.
Por outro lado, há que se falar ainda sobre o preceito constitucional da liberdade concernente às entidades familiares no Brasil, por meio do qual exaurem-se os estigmas e rótulos antes apregoados ao direito das famílias, de modo que, atualmente, à família brasileira atribuiu-se a prerrogativa da livre modelação dos elos familiares, embasando-se, para tanto, na máxima do livre-arbítrio intrínseco ao indivíduo, com esteio em sua personalidade e dignidade humanas.
O princípio da afetividade perfaz-se na mola propulsora da estruturação e formação da família no Brasil, uma vez que o afeto é uma necessidade natural do homem, advinda de seu cerne, fundada na convivência e nas relações cotidianas com seu semelhante, isto é, com o outro, com o membro familiar com o qual se constrói um projeto e planejamento de vida. Dessa maneira, verifica-se que “a sobrevivência humana também depende e muito da interação do afeto; é valor supremo, necessidade ingente” (MADALENO, 2013, p. 99). Portanto, a afetividade amolda esses novos tempos familiares, intimamente ligados e voltados para o melhor interesse do sujeito natural. Isso fica bastante evidenciado quando da verificação das crescentes demandas judiciais em prol da confirmação da responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações entre pais e filhos; na paternidade socioafetiva sobreposta, muita das vezes, à paternidade biológica; nas relações dos consortes entre si e destes para com seus descendentes; dentre outros.
Com relação ao princípio da convivência familiar, o jurista Paulo Lôbo (2011, p. 74) inteligentemente destaca que:
A convivência familiar é a relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum. Supõe o espaço físico, a casa, o lar, a moradia, mas não necessariamente, pois as atuais condições de vida e o mundo do trabalho provocam separações dos membros da família no espaço físico, mas sem perda da referência ao ambiente comum, tido como pertença de todos. É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as crianças.
Nesse contexto, pode-se plenamente observar que a convivência familiar é mola impulsora central da família, haja vista perfazer o nobre sentimento proveniente do ato de se constituir um núcleo familiar, pautando-se, para tanto, em experiências cotidianas comuns a todos os seus membros, com vistas à garantia de uma sadia e harmoniosa qualidade de vida entre aqueles que o compõem, cujos alicerces encontram-se sobremaneira consubstanciados na afetividade, solidariedade e responsabilidade protetora mútua de todos aqueles. É, portanto, o preceito maior que se estrutura e se consolida a partir das íntimas e salutares relações fundadas na vontade atinentes a determinadas pessoas, no sentido de unirem-se e voltarem-se, conjuntamente, perante o cotidiano familiar, em benefício de um bem comum característico a elas, propulsor dos enlaces fincados no afeto e no companheirismo.
Por fim, no que se refere ao princípio do melhor interesse da criança, impende salientar a célebre lição de Rolf Madaleno (2013, p. 100), por meio da qual aduz que:
[...] o legislador constituinte conferiu prioridade aos direitos da criança e do adolescente, ressaltando os seus direitos em primeira linha de interesse, por se tratar de pessoas indefesas e em importante fase de crescimento e de desenvolvimento de sua personalidade.
Dessa forma, seria inconcebível admitir pudesse qualquer decisão envolvendo os interesses de crianças e adolescentes fazer tábula rasa do princípio dos seus melhores interesses, reputando-se inconstitucional a aplicação circunstancial de qualquer norma ou decisão judicial que desrespeite os interesses prevalentes da criança e do adolescente recepcionados pela Carta Federal.
A partir do exposto acima, depreende-se que todas as decisões tomadas no seio familiar, entre seus membros, quando estiverem envoltos em tais relações, crianças e adolescentes, aquelas devem ter por base o que melhor beneficiar e convir para com estes últimos. Por conseguinte, tal preceito, cristalizado pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, possui a finalidade de direcionar devido resguardo às garantias e direitos intrínsecos as crianças e aos jovens, haja vista serem pessoas em pleno desenvolvimento, tanto física quanto psiquicamente. Com isso, o princípio em comento visa prover a estes indivíduos, devida e regular oportunidade de atingirem a vida adulta com efetivas condições de regerem sua vida e embasarem suas decisões pessoais de modo a realizarem e concretizarem sua prerrogativa constitucional da dignidade humana.
Ademais, é dever constitucional do Estado, por meio da instituição de políticas públicas e, sobremaneira, através da atuação do Poder Judiciário, proferir decisões judiciais sempre visando salvaguardar e zelar pelos interesses das crianças e dos adolescentes, quando da apreciação de casos jurídicos em que estes forem verificados, haja vista tratarem-se de questões singulares e que repercutirão por toda a vida dessas pessoas ora vulneráveis e em corrente estágio de desenvolvimento.
Em linhas introdutórias, no que tange à responsabilidade civil no direito brasileiro, insta preponderar uma determinada noção conceitual a respeito de tal instituto, a fim de melhor delinear suas nuances e os critérios específicos que o estruturam posteriormente, visando, ainda, conferir devido respaldo à sua explanação no que se refere ao direito das famílias e, principalmente, quanto a temática central do presente estudo, qual seja, a responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações paterno-filiais biológicas.
Nesse sentido, tendo em vista que a hodierna sociedade em que se vive é regida pelo risco social, o qual resta sobremaneira presente nas relações jurídicas realizadas no cotidiano, tem-se um sentimento de insegurança e preocupação quanto ao sucesso e concretização das eventuais relações obrigacionais pactuadas inter partes, bem como daquelas estabelecidas pelo ordenamento jurídico interno. Com isso, evidente que, a partir do momento em que as aludidas relações jurídicas obrigacionais ou legais forem descumpridas ou violadas por uma das partes envoltas nesta - tanto a níveis patrimoniais quanto morais -, passa-se a necessitar de um instrumento incumbido de ditar e ordenar determinados aspectos reparatórios ou compensatórios para aquele indivíduo que fora vitimado pela atitude lesiva perpetrada pelo agente causador do dano, qual seja, a responsabilidade civil.
Com vistas ao exposto, merece destaque a brilhante lição do insigne jurista Sérgio Cavalieri Filho (2012, p. 02):
Em seu sentido etimológico, responsabilidade civil exprime a ideia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa ideia. A essência da responsabilidade está ligada à noção de desvio de conduta, ou seja, foi ela engendrada para alcançar as condutas praticadas de forma contrária ao direito e danosas a outrem. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.
Só se cogita, destarte, de responsabilidade civil onde houver violação de um dever jurídico e dano. Em outras palavras, responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um precedente dever jurídico. E assim é porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma obrigação descumprida.
Em outras palavras, a reponsabilidade civil possui o escopo fundamental de instrumentalizar mecanismos visando reparar ou ressarcir aquele sujeito de direitos e deveres que fora lesado por determinada conduta violadora praticada por outro indivíduo nesta mesma condição, em uma relação jurídica negocial concretizada entre ambos ou, ainda, em virtude de desobediência a ditames legais. Portanto, tem-se que o instituto ora em análise visa, preponderantemente, corrigir ou regenerar - de certa forma - uma obrigação anteriormente estabelecida, a fim de se manter o status quo ante entre os envolvidos na aludida relação jurídica, ou seja, fazer valer, novamente, a situação de normalidade em que se encontravam as partes antes da ocorrência do evento danoso.
Nessa mesma linha de raciocínio, Silvio de Salvo Venosa (2013b, p. 01) constrói seu entendimento acerca do instituto ora abordado. Veja-se:
O termo responsabilidade é utilizado em qualquer situação na qual alguma pessoa, natural ou jurídica, deva arcar com as consequências de um ato, fato ou negócio danoso. Sob essa noção, toda atividade humana, portanto, pode acarretar o dever de indenizar. Desse modo, o estudo da responsabilidade civil abrange todo o conjunto de princípios e normas que regem a obrigação de indenizar.
Os princípios da responsabilidade civil buscam restaurar um equilíbrio patrimonial e moral violado. Um prejuízo ou dano não reparado é um fator de inquietação social. Os ordenamentos contemporâneos buscam alargar cada vez mais o dever de indenizar, alcançando novos horizontes, a fim de que cada vez menos restem danos irressarcidos. É claro que esse é um desiderato ideal que a complexidade da vida contemporânea coloca sempre em xeque. Os danos que devem ser reparados são aqueles de índole jurídica, embora possam ter conteúdo também de cunho moral, religioso, social, ético etc., somente merecendo a reparação do dano as transgressões dentro dos princípios obrigacionais.
Tendo em vista o exposto acima, a responsabilidade civil trata-se de instituto cuja mola propulsora é prover certo equilíbrio e equidade no mundo jurídico, face a uma violação a direitos obrigacionais anteriormente consubstanciados por meio de uma relação jurídica realizada entre indivíduos, sendo um deles o agente causador da lesão ao outro. Visa, portanto, restaurar um balanço na situação jurídica das partes, conferindo a esta, determinada dose de paridade e compensação, mediante o ressarcimento monetário pelos danos eventualmente observados, no percentual necessário para o restabelecimento da condição anterior em que figuravam as pessoas envolvidas, tudo em conformidade com o preceito do restitutio in integram, o qual se baseia na ideia de realocar o sujeito acometido pela lesão àquela situação de normalidade que restava estruturada antes da efetivação do dano, através do pagamento de determinado valor indenizatório ao indivíduo vitimado, repise-se.
Inicialmente, a responsabilidade civil foi abordada pelo Código Civil de 1916, em seu artigo 159, dispositivo este que postulava a ideia de que tal instituto só poderia ser aplicado mediante a verificação da ocorrência de culpa na conduta danosa do agente, perfazendo pressuposto intrínseco da teoria subjetiva, amplamente utilizada pela codificação civilista àquela época. No entanto, com o transcorrer do tempo, constatou-se a necessidade de entender e empregar a responsabilidade civil de forma diversa daquela até então utilizada, haja vista a existência de novas casuísticas jurídicas e sociais, insertas em um direito em constante modificação e evolução, bem como a emergência de recentes teorias provenientes de precedentes jurisprudenciais.
Tendo por base o supramencionado, impende salientar o memorável entendimento de Caio Mário da Silva Pereira (2013, p. 518):
O fundamento maior da responsabilidade civil está na culpa. É fato comprovado que se mostrou esta insuficiente para cobrir toda a gama dos danos ressarcíveis; mas é fato igualmente comprovado que, na sua grande maioria, os atos lesivos são causados pela conduta antijurídica do agente, por negligência ou por imprudência. Aceitando, embora, que a responsabilidade civil se construiu tradicionalmente sobre o conceito de culpa, o jurista moderno convenceu-se de que esta não satisfaz. Deixado à vítima o ônus da prova de que o ofensor procedeu antijuridicamente, a deficiência de meios, a desigualdade de fortuna, a própria organização social acabam por deixar larga cópia de danos descobertos e sem indenização. A evolução da responsabilidade civil gravita em tomo da necessidade de socorrer a vítima, o que tem levado a doutrina e a jurisprudência a marchar adiante dos códigos, cujos princípios constritores entravam o desenvolvimento e a aplicação da boa justiça. Foi preciso recorrer a outros meios técnicos, e aceitar, vencendo para isto resistências quotidianas, que em muitos casos o dano é reparável sem o fundamento da culpa.
Nessa esteira, surge a necessidade de mudança e, nesse caso, a responsabilidade civil deixa de ser aferida apenas mediante a verificação do pressuposto da culpa na conduta do agente, mas passa a ser considerada em virtude da observância do fator do risco que advindo da atitude tomada pelo indivíduo, isto é, para a efetivação da indenização - dever de ressarcir o dano -, insta asseverar que o que agora se prepondera é a averiguação do evento danoso, se este acarretou concreto prejuízo e malefício ao sujeito vitimado pela conduta lesiva, hipóteses basilares da teoria objetiva, a qual fora largamente abarcada pelo Código Civil de 2002, especialmente a partir de seu artigo 927.
Desta feita, resta cristalino que aquele que vier a causar prejuízos de ordem patrimonial ou moral a outrem, tem o dever de remodelar a conduta lesiva por si perpetrada, mediante o pagamento de importância monetária, com o intuito de restabelecer o equilíbrio e o balanço da relação jurídica, os quais foram violados pela conduta lesiva do agente causador do dano, agora mediante a verificação ou não de culpa, ou seja, a responsabilidade civil pode ser aplicada tanto de forma subjetiva quanto de forma objetiva.
Não obstante tudo o que acima se explanou, há ainda que se falar sobre a finalidade preventiva intrínseca à responsabilidade civil na contemporaneidade, pelo que merece primazia a notável percepção de Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 41) sobre tal aspecto:
Enfim, no direito contemporâneo a responsabilidade civil propende a uma cultura preventiva, seja por razões éticas, comportamentais e econômicas. De uma leitura mais reativa do direito de danos - focada na indenização e sanções pertinentes -, caminhamos a uma abordagem antecipatória de resultados, onde quer que seja racionalmente viável.
[...]
O ordenamento jurídico deve induzir comportamentos meritórios, especialmente os deveres positivos de evitar e mitigar danos - reduzindo as suas consequências -, objetivando tornar mais equilibrada e solidária a existência humana. Este viés preventivo, apoiado em uma concepção antropocêntrica e conectada ao significado da dignidade da pessoa humana, é o que de melhor o direito pode entregar a uma sociedade em que prevalece o discurso do risco e do medo.
Com efeito, deve-se realmente primar pela hodierna função preventiva atinente à responsabilidade civil, cujo alicerce encontra-se insculpido nos preceitos constitucionais da solidariedade e dignidade da pessoa, haja vista tratar-se de ambição voltada para a perpetuação de uma coexistência humana cada vez mais responsável, paritária, harmoniosa e salutar, com o intuito de prever danos civis e imediatamente regulá-los, mediante a aplicação do instrumento do diálogo entre os sujeitos de direitos e deveres no mundo jurídico, estruturando o ressarcimento indenizatório pelos eventuais danos causados de forma equitativa, justa e solidária.
A fim de conferir respaldo para o instituto da responsabilidade civil, deve-se proceder a devida análise dos parâmetros ou critérios que o alicerçam, os quais são intrínsecos ao comportamento dos sujeitos dotados de direitos e deveres na ordem civil, sendo caracterizados, respectivamente, pela conduta humana pautada na ação ou omissão, pelo dano, pela culpa e, por último, pelo nexo de causalidade. Para tanto, necessita-se ater ao disposto no artigo 186 do atual Código Civil, preceito legal este que estabelece a regra do ato ilícito, postulando que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Dessa maneira, observa-se claramente que a legislação civilista pátria aprecia em seu conteúdo normativo a responsabilidade civil considerada a partir do comportamento humano empenhado nas relações jurídicas obrigacionais ou legais, inclusive, ainda, naquelas relações envoltas pelo atributo da personalidade - de cunho moral - do sujeito.
O primeiro requisito para a ocorrência do dever de indenizar encontra esteio na conduta voluntária que é praticada pelo agente causador do dano, perfazendo, assim, o ato ilícito propriamente dito. Por sua vez, o ato ilícito é a violação direta ao bem juridicamente resguardado, pelo que se pode concluir que a responsabilidade civil não é possível de ser aferida sem a verificação de determinada atitude do homem passível de contrariar ou prejudicar o ordenamento jurídico, de modo a ensejar uma consequência lesiva e danosa a este.
Nesse sentido, merece destaque a inteligente dicção dos ilustres juristas Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 78-79):
Nesse contexto, fica fácil entender que a ação (ou omissão) humana voluntária é pressuposto necessário para a configuração da responsabilidade civil. Trata-se, em outras palavras, da conduta humana, positiva ou negativa (omissão), guiada pela vontade do agente, que desemboca no dano ou prejuízo. Assim, em nosso entendimento, até por um imperativo de precedência lógica, cuida-se do primeiro elemento da responsabilidade civil a ser estudado, seguido do dano e do nexo de causalidade.
O núcleo fundamental, portanto, da noção de conduta humana é a voluntariedade, que resulta exatamente da liberdade de escolha do agente imputável, com discernimento necessário para ter consciência daquilo que faz.
A partir do entendimento supra, vislumbra-se o fato de que existem duas espécies de condutas lesivas que podem ser tomadas pelo indivíduo, quais sejam, a comissiva e a omissiva, comportamentos estes que compõem o pressuposto do ato ilícito no ordenamento jurídico civilista, os quais acarretam, por conseguinte, a concretização da responsabilidade civil, por meio da ação ou pela ausência desta, mas sempre com base na voluntariedade do sujeito. Com isso, tem-se por conduta comissiva aquela composta pelo exercício de uma atitude ativa ou positiva em determinada situação, ou seja, é o comportamento que causa lesão imediata a direito de outrem, podendo ocorrer de forma consciente ou não. Por outro lado, no que tange à conduta omissiva, tem-se que esta rege-se pela inação ou ação negativa voluntária do indivíduo, de modo que este se abstém da prática de determinado comportamento que dele se esperava, mas que, por vontade própria não o fez, o que o obriga a indenizar os prejuízos sofridos pelo sujeito vitimado pela conduta lesiva.
Acerca do relevante requisito da conduta omissiva, Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 49) inteligentemente salienta que:
Para que se configure a responsabilidade por omissão é necessário que exista o dever jurídico de praticar determinado fato (de não se omitir) e que se demonstre que, com a sua prática, o dano poderia ter sido evitado. O dever jurídico de agir (de não se omitir) pode ser imposto por lei (dever de prestar socorro às vítimas de acidente imposto a todo condutor de veículo pelo art. 176, I, do Código de Trânsito Brasileiro) ou resultar de convenção (dever de guarda, de vigilância, de custódia) e até da criação de alguma situação especial de perigo.
Nessa esteira, verifica-se que aquela conduta humana praticada de forma contrária ao dever de não se omitir e de não se abster no que se refere a determinada convenção obrigacional inter partes ou pelo que é estabelecido pela ordem jurídica civilista, acarreta a constatação do ato ilícito, pelo que resta imediatamente evidenciado o dever de reparar o dano advindo do comportamento lesivo e violador.
Um dos elementos essenciais para a caracterização da responsabilidade civil no mundo fático e jurídico é a constatação da ocorrência de um dano. Nada há que se mencionar sobre o dever de indenizar ou reparar sem que seja verificada a existência de uma lesão, de um dano, requisito este crucial para a estipulação de uma obrigação sucessiva de ressarcir alguém monetariamente. Nesse caso, a responsabilidade civil pode ser tanto contratual quanto extracontratual, objetiva ou subjetiva; entretanto, entre tais espécies deve sempre figurar a presença de um dano[2]. Com isso, frise-se, a lesão deve sempre ser concreta e verificável, tanto fática quanto juridicamente, pelo que jamais permite-se que esta seja aferida de forma teórica ou meramente alegada, pois perfaz-se em mola propulsora e constitutiva do instituto da responsabilidade civil.
Nesse sentido, vale ressaltar a sábia lição do nobre doutrinador Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 76-77):
O dano é, sem dúvida, o grande vilão da responsabilidade civil. Não haveria que se falar em indenização, nem em ressarcimento, se não houvesse o dano. Pode haver responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade sem dano. A obrigação de indenizar só ocorre quando alguém pratica ato ilícito e causa dano a outrem. O dano encontra-se no centro da regra de responsabilidade civil. O dever de reparar pressupõe o dano e sem ele não há indenização devida. Não basta o risco de dano, não basta a conduta ilícita. Sem uma consequência concreta, lesiva ao patrimônio econômico ou moral, não se impõe o dever de reparar.
Sob tal égide, cumpre asseverar que o ato de indenizar alguém não possui eficácia ou razão sem que tenha havido lesão a esta pessoa. Todavia, a fim de conferir ao dano o consequente pressuposto da compensação, faz-se mister enaltecer determinados requisitos basilares para tanto, quais sejam, o ato de violar interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa física ou jurídica, a efetivação do dano e a permanência dos efeitos deste.
Portanto, no que se refere ao ato de violar interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de determinada pessoa física ou jurídica, reconhece-se o fato de que toda lesão pressupõe ofensa a um bem juridicamente protegido, podendo este ser dotado de caráter material ou imaterial, atinente a um sujeito de direitos na esfera civil.
Ato contínuo, agora quanto ao aspecto da efetivação do dano, impende ressaltar que determinada indenização só será devida quando for passível de constatação uma lesão concreta e plenamente evidente, não sendo permitido cogitar-se um dano eivado de suposição ou presunção.
Nessa ótica, Silvio de Salvo Venosa (2013b, p. 38) notoriamente assinala que:
O dano ou interesse deve ser atual e certo; não sendo indenizáveis, a princípio, danos hipotéticos. Sem dano ou sem interesse violado, patrimonial ou moral, não se corporifica a indenização. A materialização do dano ocorre com a definição do efetivo prejuízo suportado pela vítima.
Por outro lado, há que se falar ainda sobre o critério da permanência dos efeitos advindos da prática de um dano na esfera civil, requisito este que se perfaz pelo exaurimento do dever de indenizar o sujeito lesionado pela conduta danosa, em virtude da devida compensação do dano ocasionado a este último, isto é, a lesão já fora integralmente satisfeita pelo ofensor, com o ressarcimento voluntário dos prejuízos sofridos pela vítima, de modo que a responsabilidade civil passa agora a ser desconsiderada, visto que não há mais a necessidade de se questionar a reparação patrimonial ou extrapatrimonial perante o Poder Judiciário.
Desta feita, os pressupostos acima explanados são de grande relevância para que o dano seja considerado passível de ressarcimento. Além disso, os danos acometidos aos indivíduos vitimados pela conduta lesiva podem ser tanto de natureza patrimonial como moral, a depender da situação concreta a ser analisada.
Nessa esteira, o dano de natureza patrimonial, também tido como material, o qual se consolida mediante o pagamento do conhecimento instituto das perdas e danos, sendo este subdividido em dano emergente e lucro cessante. Sobre tal divisão, Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 302) se posiciona no seguinte sentido:
Dano emergente é o efetivo prejuízo, a diminuição patrimonial sofrida pela vítima. É, por exemplo, o que o dono do veículo danificado por outrem desembolsa para consertá-lo. Representa, pois, a diferença entre o patrimônio que a vítima tinha antes do ato ilícito e o que passou a ter depois. Lucro cessante é a frustração da expectativa de lucro. É a perda de um ganho esperado.
Em outras palavras, entende-se por dano emergente aquele pautado na ideia de perda patrimonial imediata em decorrência do dano, em diminuição ou desfalque considerável e perceptível no patrimônio econômico do indivíduo vitimado pela conduta lesiva. Por seu turno, compreende-se por lucro cessante tudo aquilo que a vítima da conduta danosa deixou ou passa a deixar de ganhar ou lucrar a partir da efetivação da lesão, ou seja, refere-se a uma perda patrimonial mediata, a qual é sentida a curto, médio ou longo prazo por aquela.
Noutro vértice, merece destaque o instituto do dano moral ou extrapatrimonial no presente trabalho acadêmico, visto tratar-se de violação a prerrogativa inerente à personalidade do sujeito de direitos e deveres na esfera civil.
Não obstante a viabilidade da indenização por danos morais estar consolidada na Constituição da República de 1988, assim como no Código Civil de 2002, ainda persistem divergências doutrinárias e jurisprudências a respeito, haja vista tratar-se de matéria abundantemente alicerçada em variados fundamentos teóricos e legais, de forma concatenada e interligada junto ao ordenamento jurídico pátrio.
Sobre a temática ora em comento, Gagliano e Pamplona Filho (2012, p. 111) de forma singular e inteligente esclarecem que:
O dano moral consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade), violando, por exemplo, sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente.
Nessa linha de raciocínio, depreende-se que o dano moral, por se tratar de bem cuja natureza é extrapatrimonial, ou seja, é o bem da vida do sujeito que não pode ser equiparado a seu eventual patrimônio econômico ou financeiro, o qual se estabelece na espécie de lesão que atinge diretamente o direito de personalidade do indivíduo, acarretando imediata transgressão de prerrogativas inerentes a sua formação física e psíquica particularmente consideradas - intrínsecas apenas à sua pessoa -, o que engloba, por conseguinte, a sua intimidade, vida privada, honra e imagem, dentre outros constitucionalmente e legalmente resguardados. Tais atributos e valores são exclusivamente atinentes à natureza humana, bens que são tutelados com o intuito de zelar pela vida, integridade e desenvolvimento físico e psíquico do indivíduo inserido em um meio social diversificado e em constante transformação.
Ademais, cumpre enaltecer que o dano moral pode ser fragmentado em duas outras acepções, quais sejam, o dano moral em sentido estrito e em sentido amplo. Acerca do assunto, Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 88-89) aduz que:
Assim, à luz da Constituição vigente podemos conceituar o dano moral por dois aspectos distintos: em sentido estrito e em sentido amplo. Em sentido estrito dano moral é violação do direito à dignidade. E foi justamente por considerar a inviolabilidade da intimidade da vida privada, da honra e da imagem corolário do direito à dignidade que a Constituição inseriu em seu art. 5º, V e X, a plena reparação do dano moral.
[...]
Resulta daí que o dano moral, em sentido amplo, envolve esses diversos graus de violação dos direitos da personalidade, abrange todas as ofensas à pessoa, considerada esta em suas dimensões individual e social, ainda que sua dignidade não seja arranhada.
Com isso, tem-se que por dano moral em sentido estrito compreende-se aquele cujo substrato violado é alicerçado pela dignidade da pessoa humana - artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 -, ou seja, evidencia-se naquela lesão causada aos atributos inerentes à formação e construção do indivíduo como ser dotado de direitos e deveres na esfera social e jurídica, prerrogativas estas representadas pela honra, nome, intimidade, privacidade e liberdade. Por sua vez, o dano moral em sentido amplo é evidenciado como aquele derivado da transgressão dos direitos da personalidade do sujeito, isto é, é aquele constatado através da conduta lesiva praticada em face de prerrogativas inatas ao homem enquanto ser social, quais sejam, a imagem, o bom nome, relações afetivas, hábitos, aspirações, ideais políticos, religiosos e filosóficos, bem como os direitos autorais.
Tendo em vista o exposto, caso eventualmente observadas quaisquer violações quanto aos direitos elencados acima, presencia-se o dever indenizatório do agente causador do dano ao indivíduo vitimado pela conduta lesiva, cuja compensação dar-se-á a título pecuniário, sempre atentando para o princípio da razoabilidade, não podendo esta ser tão ínfima a ponto de não abarcar o dano, nem tão pouco exorbitante de modo a ensejar enriquecimento ilícito do sujeito vitimado.
Aborda-se agora outro requisito também muito importante para a construção do instituto da responsabilidade civil no direito brasileiro. Tal critério denomina-se culpa, pressuposto de ampla notoriedade pela legislação, doutrina e jurisprudência pátrias. A culpa, em suma, rege-se por uma conduta eivada de ilicitude e desaprovação, contrária e avessa ao ordenamento jurídico.
Assim, depreende-se que a “culpa é a violação de dever objetivo de cuidado, que o agente podia conhecer e observar, ou, como querem outros, a omissão de diligência exigível” (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 32). Dessa forma, vislumbra-se que a culpa refere-se a violação e transgressão - de forma intencional ou não - de obrigações inerentes ao indivíduo, ou seja, o sujeito de direitos e deveres na ordem civil necessita zelar por determinada racionalidade e concatenação de atitudes junto ao meio social, de modo a realizar atos em conformidade com a legislação.
Para a caracterização da culpa, merecem destaque determinados elementos que a compõe em seu sentido amplo, quais sejam, a conduta voluntária do agente, a previsibilidade e a infringência a um dever de cuidado.
No que tange à conduta ou comportamento voluntário do agente, importa asseverar que tal componente da culpa constitui-se mediante a ocorrência de uma atitude composta por intenção de agir, pela vontade ou livre arbítrio que o indivíduo possui de executar e realizar determinado procedimento. Por outro lado, referindo-se agora ao elemento da previsibilidade, insta salientar que este se estabelece mediante a constatação de que a conduta ilícita perpetrada pelo agente, ensejadora de culpa, é plenamente provável e esperada pela legislação pátria. Noutro vértice, menciona-se ainda o pressuposto da infringência de um dever de cuidado, o qual se constitui pela prática de um comportamento, pelo agente, apto a romper determinado preceito de zelo e proteção que dele se esperava fosse devidamente salvaguardado.
Ademais, há ainda que se falar acerca das duas grandes características da culpa, sobremaneira verificáveis no ordenamento jurídico pátrio, as quais são estabelecidas através da culpa em sentido amplo e da culpa em sentido estrito. Dessa maneira, cumpre preponderar a célebre dicção do nobre jurista Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 262), o qual estabelece que:
Se a atuação desastrosa do agente é deliberadamente procurada, voluntariamente alcançada, diz-se que houve culpa lato sensu (dolo). Se, entretanto, o prejuízo da vítima é decorrência de comportamento negligente e imprudente do autor do dano, diz-se que houve culpa stricto sensu.
O juízo de reprovação próprio da culpa pode, pois, revestir-se de intensidade variável, correspondendo à clássica divisão da culpa em dolo e negligência, abrangendo esta última, hoje, a imprudência e a imperícia. Em qualquer de suas modalidades, entretanto, a culpa implica a violação de um dever de diligência, ou, em outras palavras, a violação do dever de previsão de certos fatos ilícitos e de adoção das medidas capazes de evitá-los.
Em outras palavras, caso o agente causador da conduta lesiva atue com vistas a atingir ou alcançar determinado fim por ele buscado, com livre e espontânea vontade ou empenho para tanto, verifica-se a concretização da denominada culpa em sentido amplo, a qual é sobremaneira pautada na presença de dolo - vontade de causar o dano - na conduta do indivíduo.
Por seu turno, a culpa em sentido estrito refere-se àquela atitude do agente, consubstanciada nos componentes ativos da imprudência, negligência ou imperícia. Por imprudência, entende-se ser o pressuposto regido pelo comportamento maculado pela vontade não razoável e desenfreada que o indivíduo possui de perpetrar determinado ato submetendo-se a riscos desnecessários e totalmente evitáveis, ou seja, é a conduta humana regada por precipitação e irresponsabilidade encadeada na esfera civil. Quanto ao elemento da negligência, observa-se que é constituído pela ausência de obediência à obrigação de precaução relativa a determinado preceito resguardado pela lei, ou seja, constata-se pelo desleixo do indivíduo, praticado por meio de uma conduta omissiva. Por último, no que se refere ao componente da imperícia, este decorre da carência de capacidade ou qualidade pormenorizada para a persecução de uma dinâmica regada por parâmetros técnicos e científicos, ou seja, é a eventual falha quando da execução de determinada prática profissional, a título exemplificativo.
Em linhas gerais, a culpa é hodiernamente entendida no direito brasileiro com esteio nos pressupostos acima explanados e detidamente abordados, perfazendo-se em um dos mais importantes requisitos ensejadores da responsabilidade civil, isto é, os componentes integrados na culpa acarretam o eventual dever de indenizar. Tal instituto ora em comento será também abordado mais adiante, quando mencionar-se acerca da responsabilidade subjetiva do indivíduo.
Um dos mais importantes requisitos para a averiguação e posterior caracterização da responsabilidade civil perante o caso concreto, é o nexo de causalidade existente entre o ato ilícito e a respectiva lesão por ele produzida no mundo civil, ou seja, é o elo que vincula a conduta ilegal ao dano por ela perpetrado. Todavia, tal critério nem sempre é facilmente perceptível nas situações cotidianas, haja vista que a relação que se dá entre a causa e a consequência de determinada conduta por vezes torna obscura a constatação do eventual intento indenizatório em virtude da aludida lesão material ou moral.
Por conseguinte, cumpre salientar que quando se tratar de casuística envolvendo a espécie da responsabilidade civil objetiva, o pressuposto na culpa do agente causador do dano é cristalinamente impertinente de aplicação, todavia, isso não pode ser dito do nexo causal, o qual perfaz-se em requisito veementemente indispensável para a estruturação do dever de indenizar, uma vez que norteia e organiza a conduta lesiva verificada ao sujeito violador de ditames normativos.
Sobre a temática em análise, é digno de relevância o distinto entendimento de Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 458):
Destarte, não é a culpabilidade que determina a medida da responsabilidade, mas a causalidade. Com efeito, antes de se determinar se o agente é imputável (discernimento), conduziu-se de forma antijurídica (liberdade) e com ofensa a um dever de cuidado (intenção), faz-se necessário averiguar a configuração do nexo causal entre o seu agir e os danos por ele porventura causados.
[...] na teoria objetiva da responsabilidade civil sequer se cogitará da ilicitude e da culpa, o que propiciará ao elemento do nexo causal ainda maior destaque, pois independente da existência de culpabilidade, haverá a necessidade de qualificar juridicamente um determinado fato, no interno de uma norma ou de uma atividade de risco.
Nessa linha de pensamento, insta salientar que o nexo de causalidade possui estrutura jurídica independente à do critério da culpa na casuística concreta, pelo que existe pela verificação do liame eventualmente existente entre o comportamento do indivíduo e a consequente lesão advinda daquele, pressupostos estes que, caso existentes, ensejaram o dever de ressarcir por parte do agente causador do dano. A partir disso, destaca-se que o instituto do nexo de causalidade é constituído por três imprescindíveis teorias que melhor o delineiam na esfera jurídica, quais sejam, a teoria da equivalência das condições, a teoria da causalidade adequada e a teoria da causalidade direta ou imediata.
Quando da análise da aclamada teoria da equivalência das condições, também denominada de conditio sine qua non, cristalizada pelo saudoso jurista alemão Von Buri, em meados do século XIX, depreende-se que todos os atos empenhados para a ocorrência do evento convergem entre si, acarretando a constatação do dano no mundo fático e jurídico, gerando, por conseguinte, o dever de indenizar aquele que foi ofendido. Com isso, evidencia-se a ideia de que todas as causas preexistentes ao evento danoso foram sobremaneira preponderantes para o efeito e consequência que este ocasionou a alguém, ou seja, todos os fatores antecedentes ao acontecimento são tidos como essenciais para a sua execução, sem os quais não haveria que se falar em concretização de lesão a outrem.
Dessa forma, tem-se que tal teoria abarca uma infinidade de situações particulares e que, muita das vezes, não possuem relação de causa e efeito capaz de caracterizar eventual dano, motivo pelo qual não é aplicada pelo ordenamento jurídico pátrio, em sua esfera civil. Intentando elucidar essa temática, impende ressaltar a eminente citação do insigne jurista Anderson Schreiber (2009, p. 55):
O retumbante inconveniente de sua aplicação está em ampliar ilimitadamente o dever de reparar, imputando-o a uma multiplicidade de agentes e eventos que, apenas remotamente, se relacionam ao dano produzido sobre a vítima. Com razão já se afirmou que a adoção da teoria da equivalência das condições em âmbito civil tornaria cada homem responsável por todas as desgraças que atingem a humanidade.
Com esteio no expendido acima, resta cristalina a inviabilidade do emprego da teoria da equivalência das condições junto ao postulado normativo civil brasileiro, visto que baseia-se em premissas deveras abrangentes, pois engloba situações relativas a causa e efeito de forma indiscriminada, aduzindo serem responsáveis por eventual dano uma gama considerável de pessoas, sem nem ao menos instituir um liame fático entre o razão da conduta lesiva e consequência causada por esta, o que na responsabilidade civil pátria não se pode admitir.
Ato contínuo, há que se falar acerca da teoria da causalidade adequada, elaborada em conformidade com as concepções apregoadas pelo jurisconsulto alemão Von Kries, a qual pressupõe a existência prévia de uma causa tida como a mais apta e propensa a ensejar o resultado consubstanciado no evento danoso. Com isso, tem-se que nem todas as situações prévias ao dano merecem ser consideradas como justificativa ao acontecimento lesivo, motivo pelo qual atribui-se apenas a figura do magistrado a função de realizar o juízo de probabilidade no caso concreto que é levado à sua apreciação, no sentido de verificar se a conduta praticada pelo agente é capaz de ocasionar o eventual resultado danoso.
Nesse sentido, objetivando aclarar a teoria acima delineada, impende acentuar o clarividente entendimento de Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 51):
Causa, para ela, é o antecedente não só necessário mas, também, adequado à produção do resultado. Logo, se várias condições concorreram para determinado resultado, nem todas serão causas, mas somente aquela que for a mais adequada à produção do evento.
Diferentemente da teoria anterior, esta faz distinção entre causa e condição, entre os antecedentes que tiveram maior ou menor relevância. Estabelecido que várias condições concorreram para o resultado, e isso é feito através do mesmo processo hipotético (até aqui as duas teorias seguem os mesmos caminhos), é necessário agora verificar qual foi a mais adequada. Causa será apenas aquela que foi mais determinante, desconsiderando-se as demais.
Logo, frisa-se que a teoria da causalidade adequada norteia suas diretrizes conceptíveis a fim de estabelecer que determinado evento danoso só será passível de responsabilidade civil por parte do agente, mediante a verificação da existência de uma causa abstrata mais adequada e pertinente para a efetivação do resultado lesivo.
Por último, vale ainda mencionar a teoria da causalidade direta ou imediata, também denominada de teoria da interrupção do nexo causal, elaborada pelo respeitado jurista brasileiro Agostinho Avim. A teoria em comento estabelece a existência de um evento fático necessariamente e intrinsecamente caracterizador de um resultado danoso, acontecimento aquele que se solidifica sem a ingerência de outra circunstância consecutiva, devendo o agente reparar civilmente a lesão que sua conduta direta e imediatamente acometeu a outrem.
Quanto ao tema em apreço, sábias são as palavras de Anderson Schreiber (2009, p. 58), in verbis:
Em meio às críticas dirigidas ao caráter incerto das teorias já examinadas, alcançou papel de destaque a chamada teoria da causalidade direta ou imediata, que, em sua formulação mais simples, considera como causa jurídica apenas o evento que se vincula diretamente ao dano, sem a interferência de outra condição sucessiva. [...] Além disso, sob o ponto de vista da sua extensão, a teoria da causalidade direta ou imediata, também chamada teoria da interrupção do nexo causal, tem o condão de restringir a relevância do comportamento humano, para fins de responsabilização, aos acontecimentos mais próximos da geração do prejuízo, o que evita injustiças flagrantes como aquelas já suscitadas na análise da teoria da equivalência das condições.
Em outras palavras, considera-se ser a teoria da causalidade direta ou imediata aquela melhor alicerçada pelos pressupostos da razoabilidade e proporcionalidade, uma vez que pauta sua ideia de aplicação da responsabilidade civil às ocorrências fáticas mais adjacentes ao efeito danoso, de modo a limitar o dever de indenizar àquele sujeito que causou determinada lesão a outra pessoa.
Em linhas gerais, mostra-se ser o elo vinculador entre a conduta humana e o dano dela advindo no mundo fático, perfazendo-se e estruturando-se no sistema jurídico civilista brasileiro, em conformidade com a melhor doutrina, pela teoria da causalidade direta ou imediata - teoria da interrupção do nexo causal -, especificamente disposta no artigo 403 do hodierno Código Civil.
O instituto da responsabilidade civil é estruturado de diversas formas no que tange às especificações e tipologias que o constituem, pelo que ora vale primar por aquelas que diretamente e preponderantemente interferem na proposta amplamente delineada no presente trabalho, no que tange, genericamente, ao direito das famílias e, especificamente, a temática da responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações paterno-filiais biológicas.
Com isso, são elencadas as seguintes espécies caracterizadoras da responsabilidade civil: no que se refere ao fato gerador, tem-se a aplicação da responsabilidade contratual e da extracontratual; quanto à fundamentação, verifica-se a responsabilidade subjetiva e a objetiva; e, ao final, com relação ao agente causador do dano, constata-se a responsabilidade direta e a indireta.
Quando se fala acerca da responsabilidade contratual, necessita-se asseverar que tal espécie de reparação civil advém de um comportamento de descumprimento de determinado ônus obrigacional antecedente, tanto unilateral quanto bilateral, ou seja, perfaz-se por uma violação a dever jurídico pactuado inter partes mediante a estipulação de direitos e deveres recíprocos entre os contratantes, o que acarreta, por conseguinte, a caracterização de ato ilícito contratual, o qual resta clarividente pelo inadimplemento obrigacional.
Sobre o tema em análise, merece destaque a célebre dicção de Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 305), douto jurista que esclarece que:
Haverá responsabilidade contratual quando o dever jurídico violado (inadimplemento ou ilícito contratual) estiver previsto no contrato. A responsabilidade contratual não está no contrato, como equivocadamente alguns a definem. O que está no contrato é o dever jurídico preexistente, a obrigação originária voluntariamente assumida pelas partes contratantes. A responsabilidade contratual surge quando uma delas (ou ambas) descumpre esse dever, gerando o dever de indenizar.
Em apertada síntese, responsabilidade contratual é o dever de reparar o dano decorrente do descumprimento de uma obrigação prevista no contrato. É infração a um dever estabelecido pela vontade dos contratantes, por isso decorrente de relação obrigacional preexistente. A norma convencional já define o comportamento dos contratantes e o dever específico, a cuja observância ficam adstritos.
Há que se preponderar, por oportuno, que a responsabilidade contratual prescinde da verificação do elemento culpa, ou seja, não existe a necessidade do credor em demonstrar a culpa do devedor quando do inadimplemento da obrigação, basta, portanto, que aquele prove a infringência contratual perpetrada por este - desrespeito da obrigação anteriormente pactuada por ambos - para em seguida pleitear a eventual indenização por perdas e danos. Nesse caso, o dever de provar o critério da culpabilidade recai sobre a pessoa do devedor, isto é, este precisa demonstrar que não concorreu de forma culposa para a ocorrência do dano, a fim de se isentar do encargo de reparar civilmente o credor na relação contratual, tendo em vista a inversão do ônus probatório.
Nessa esteira, cumpre asseverar que a responsabilidade contratual encontra-se prevista nos artigos 389 e 393 do atual Código Civil brasileiro. Veja-se:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
[...]
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Com vistas ao exposto, o ato de infringir cláusula contratual no sentido de desrespeitar obrigação contraída pelas partes quando da assinatura e aceitação dos termos do contrato de forma voluntária, configura a responsabilidade civil contratual, o que repercute no pagamento de perdas e danos a parte contratante lesada, sendo que, nessas situações, a regra é de que o dever de indenizar é sempre presumido.
Por outro vértice, observa-se a existência da responsabilidade civil extracontratual, também denominada de aquiliana, na qual vale frisar o fato de que nada há que se mencionar acerca da caracterização de determinado negócio jurídico ou qualquer espécie de vínculo prévio entre as partes envolvidas - ofensor e ofendido -, haja vista decorrer da violação de um preceito legal, ato a partir do qual emerge o requisito da culpabilidade, o qual deve ser detidamente demonstrado no caso concreto pelo indivíduo vitimado pela conduta lesiva.
Estabelecida nos artigos 186 a 188 e 927 e seguintes, do Código Civil pátrio, a responsabilidade civil extracontratual decorre, portanto, da prática de um ato ilícito, de um abuso de direito e de demais casos especificamente previstos no postulado civilista. Assim, incorre em dever de indenizar aquele que pratica ato contrário à norma vigente, violando direitos e causando malefícios a outra pessoa, cuja conduta resta caracterizada por imprudência, negligência ou imperícia (institutos estes já analisados alhures). Da mesma forma, enseja o dever de reparar, aquele comportamento praticado por um detentor de um direito no sentido de ultrapassar os marcos impostos por sua finalidade maior, acarretando violação de ordem econômica ou social, à boa-fé ou aos bons costumes insertos no ordenamento jurídico.
Desta feita, vislumbra-se a ideia de que a responsabilidade civil extracontratual tem sua origem “na inobservância do dever genérico de não lesar, de não causar dano a ninguém (neminem laedere)” (GONÇALVES, 2012, p. 39), isto é, por se tratar de pressuposto previsto em lei, espera-se que a norma seja obedecida por todos, uma vez que é pública - portanto, de conhecimento geral - e zela pela ordem jurídica, cujo objetivo final é de inibir condutas atípicas a uma boa evolução, desenvolvimento e harmonia entre os sujeitos de direitos e deveres na esfera civil.
Em suma, evidencia-se que a responsabilidade civil contratual é aquela que advém da transgressão de uma obrigação contratual, instituída mediante negócio jurídico pactuado conforme a vontade das partes envolvidas - sem a necessidade de haver culpa -, enquanto que a responsabilidade civil extracontratual refere-se àquela constatada a partir da infringência de um dever abrangido e protegido pelo ordenamento jurídico.
Neste ponto, cumpre asseverar que a hodierna responsabilidade civil no direito brasileiro ainda se subdivide em responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva, o que agora será melhor analisado.
Com isso, preliminarmente, quando se fala sobre a responsabilidade civil subjetiva, tem-se sempre evidenciado o requisito da culpabilidade inserto na conduta praticada pelo sujeito causador do dano, motivo pelo qual o dever de compensar a lesão fica sobremaneira adstrito a ideia de ato ilícito acometido a certa pessoa, de modo que a culpa passa a figurar como critério definidor desta obrigação pecuniária.
O atual Código Civil pátrio estabelece o instituto da responsabilidade civil subjetiva em meio a seus artigos 186 e 927 da maneira exposta abaixo:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
[...]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Destaque-se, portanto, que para a caracterização da responsabilidade civil é imprescindível o pressuposto da culpa, uma vez que esta é fundada na prática de um comportamento de agir ou de se omitir voluntariamente, ensejando uma infringência ou lesão a direito de outra pessoa, ainda que de forma unicamente moral, tendo por base os requisitos da negligência ou imprudência - conforme já demonstrado anteriormente -, incorre em ilícito civil.
Nesse sentido é a respeitosa lição de Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 40):
Diz-se, pois, ser “subjetiva” a responsabilidade quando se esteia na ideia de culpa. A prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Nessa concepção, a responsabilidade do causador do dano somente se configura se agiu com dolo ou culpa.
Em outras palavras, a título de complementação, reprise-se que a responsabilidade civil subjetiva só é possível de ser aferida mediante a verificação da existência da condição de culpa na conduta praticada pelo causador do dano, o que gera a este o dever de indenizar monetariamente aquela pessoa que teve um direito seu ofendido na esfera civil.
Por outro lado, constata-se, sucessivamente, a existência da responsabilidade civil objetiva, a qual possui como alicerce e basilar a tão aclamada teoria do risco, prescindindo, por conseguinte, da observância aos critérios de culpa e dolo no comportamento exercido pelo sujeito ofensor a direito de outrem, bastando, nesse caso, a averiguação do pressuposto do nexo de causalidade entre a atitude do agente e o prejuízo suportado pelo indivíduo vitimado, situação em que a culpa é sempre tida como presumida.
Sabiamente, os doutrinadores Farias, Rosenvald e Braga Netto (2014, p. 505-506) entendem a temática da responsabilidade objetiva da seguinte forma:
Descarta-se o elemento subjetivo da culpa pela objetiva constatação da ocorrência do evento e de sua relação de causalidade com o dano. O fato danoso, e não o fato doloso ou culposo, que desencadeia a responsabilidade. No próprio direito civil francês, substituiu-se a ideia do elemento subjetivo do “faute” (culpa) pelo elemento do “fait” (fato). A necessidade de demonstração de um ilícito culposo desnuda a teoria subjetiva, que se revela como instituto jurídico destinado à preservação da propriedade e de privilégio. Nada obstante, ao deslocar a discussão do ilícito para o resultado lesivo, a teoria objetiva investe no fortalecimento da cidadania e na garantia de acesso a direitos. Seres humanos que antes eram alijados da sociedade civil - após uma infrutífera “luta pelo direito” em demandas reparatórias -, passam a contar com uma responsabilidade civil alargada, um modelo jurídico hábil a deferir uma compensação financeira, muitas vezes decisiva para a sobrevivência digna do ofendido e/ou seus familiares.
Dessa maneira, nota-se que a responsabilidade civil objetiva pauta seu arcabouço jurídico no cumprimento do critério do fato danoso, e não mais na verificação da culpa no ato ilícito praticado pelo agente, ou seja, fundamenta seu ideal no sentido de conferir segurança jurídica ao sujeito prejudicado, o qual só tem o ônus de provar se o dano que sofreu emanou de uma conduta empenhada pelo ofensor.
Nessa esteira, vale enaltecer a ilustre compreensão de Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 152) sobre a mencionada teoria do risco:
Risco é perigo, é probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente. A doutrina do risco pode ser, então, assim resumida: todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano.
Em suma, a teoria do risco, abarcada pela responsabilidade civil objetiva, encontra esteio na ideia de que caso alguém que desenvolva determinada atividade dotada de perigo vier a causar dano a outrem, estará obrigado a indenizar o indivíduo que foi vitimado pelo fato antijurídico ocorrido.
Ato contínuo, cumpre salientar que a responsabilidade civil objetiva, juntamente com a teoria do riso, encontra suporte legal no parágrafo único do artigo 927 do vigente Código Civil, ao cristalinamente estabelecer que haverá o dever de reparar o prejuízo ou a lesão “independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Portanto, evidencia-se que todo aquele sujeito que gera risco de dano a determinada pessoa, possui o encargo legal de indenizar os malefícios provenientes do fato consumado, mesmo que não tenha concorrido de forma culposa para a concretização do resultado lesivo, uma vez que a atividade que desencadeou o dano é eivada de risco ou perigo para a sociedade.
Em linhas gerais, intentando elucidar a presente temática, vale ressaltar, portanto, que enquanto a responsabilidade subjetiva é amplamente caracterizada pelo imprescindível pressuposto da culpabilidade na conduta do agente perpetrador do dano, nos moldes do artigo 186 e 927 do Código Civil; a responsabilidade objetiva, compreendida pela plausível teoria do risco, alicerça-se na ideia de não necessidade da comprovação do requisito da culpa na conduta do ofensor, pois é presumida por lei, bastando tão somente a constatação do evento danoso no mundo fático e jurídico, tendo em vista a periculosidade acometida ao meio social pela atividade que ensejou a lesão, bem como a verificação da relação de causalidade entre o comportamento adotado e o dano dele advindo.
Neste tópico, prepondera-se agora os institutos da responsabilidade civil direta e da responsabilidade civil indireta, as quais são particularmente distintas.
No que tange à responsabilidade civil direta, também denominada de simples ou por fato próprio, cumpre asseverar que esta advém da existência de determinado sujeito perpetrador do dano, o qual viola direito de outrem e, por conseguinte, responde civilmente pelos atos violadores que praticou, tendo o dever de reparar o prejuízo por si causado. Nesse caso, o agir ou omitir do agente ofensor fica apenas condicionado à comprovação do nexo causal eventualmente existente entre sua conduta e o dano concretizado no mundo civil. Com isso, a responsabilidade civil direta é sobremaneira caracterizada por ser proveniente “de um fato pessoal do causador do dano, resultando, portanto, de uma ação direta de uma pessoa ligada à violação ao direito ou ao prejuízo ao patrimônio, por ato culposo ou doloso” (DINIZ, 2014, p. 579).
Por outro lado, há que se falar agora sobe a responsabilidade civil indireta, a qual possui como basilar a particularidade de derivar de um ato praticado por terceiro estranho a determinada relação jurídica, ou seja, o sujeito que efetiva o dano é indivíduo diverso daquele que deverá responder e arcar com o prejuízo causado, tendo em vista o pressuposto de que tal terceiro possui uma espécie de vínculo direto de responsabilidade sobre a pessoa ou a coisa que perpetrou a conduta lesiva, ensejando o dano. Dessa forma, entende-se por responsabilidade indireta aquela em que “alguém responderá, indiretamente, por prejuízo resultante da prática de um ato ilícito por outra pessoa, em razão de se encontrar ligada a ela, por disposição legal” (DINIZ, 2014, p. 581). Portanto, cristalino é que a responsabilidade civil indireta advém de conduta iniciada por terceiro, semoventes ou coisas inanimadas, mas que estão sob o âmbito de ingerência do efetivo responsável, pelo que este tem o dever de reparar o prejuízo causado a outrem.
Desta feita, merece destaque o fato de que, enquanto no instituto da responsabilidade civil direta o sujeito causador do dano responde unicamente por aquilo que produziu de resultado danoso, no que se refere a responsabilidade civil indireta, o responsável por compensar o malefício causado a alguém não foi aquele que realmente causou o dano, contudo, assim é considerado pois possui poder de influência ou autoridade para com aquele que efetivamente perpetrou a lesão.
Neste tópico do presente trabalho acadêmico, insta salientar os deveres dos pais para com a pessoa de seus filhos, à luz da legislação civil, doutrina e precedentes jurisprudenciais pátrios, todos basilares e norteadores da temática da responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações paterno-filiais biológicas, cuja ideia central pauta-se no dever constitucional e infraconstitucional dos genitores em conferir e prestar afeto a seus descendentes, pelo que, constatada a violação desta obrigação jurídica, resta caracterizado o dever de proceder-se à indenização do filho acometido da prática de dano moral a sua pessoa.
Preliminarmente, nessa linha de raciocínio, há que se falar sobre o instituto do poder familiar, o qual perfaz-se em um dos principais deveres envoltos em um ambiente familiar, cuja atribuição de exercício pertence aos pais, sendo realizado com o intento de zelar e salvaguardar os interesses de seus filhos, proporcionando o sadio e regular desenvolvimento destes, tanto físico quanto psíquico.
Sobre o tema em comento, Paulo Lôbo (2011, p. 298) sabiamente aduz que:
O poder familiar é, assim, entendido como uma consequência da parentalidade e não como efeito particular de determinado tipo de filiação. Os pais são os defensores legais e os protetores naturais dos filhos, os titulares e depositários dessa específica autoridade, delegada pela sociedade e pelo Estado. Não é um poder discricionário, pois o Estado reserva-se o controle sobre ele.
Tendo por base o entendimento supra, verifica-se que o poder familiar estrutura-se a partir da situação em que se encontram harmonizados pais e filhos, sendo os primeiros responsáveis por garantir o bom crescimento físico e mental dos segundos, com vistas a assegurar a estes, os preceitos constitucionais fundamentais estabelecidos no artigo 227 da Carta da República de 1988 (vida, saúde, alimentação, educação, lazer, dignidade, respeito, dentre outros), de modo a garantir, ainda, a inclusão das crianças e dos jovens em um processo de convivência familiar próspera e salutar para suas progressões existenciais.
Desse modo, cumpre ressaltar que o exercício do poder familiar pelos pais em favor dos filhos, decorre de divisões mútuas e isonômicas de funções e responsabilidades entre aqueles, com a incessante articulação de atividades e iniciativas conjuntamente, em exclusivo privilégio da prole; conforme expressa disposição do artigo 229 da Constituição Federal de 1988, estipulando que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores [...]”. Portanto, trata-se de preceito constitucional irrevogável e irrenunciável pelos genitores, devendo o poder familiar ser amplamente cultivado e incentivado no cotidiano da família.
Nesse sentido, importa destacar a posição do Código Civil de 2002 a respeito do poder familiar, tema este que se encontra insculpido entre os artigos 1.630 a 1.638 desta codificação civilista. Veja-se, portanto, a dicção do artigo 1.634 do postulado em comento, a qual trata especificamente do exercício do poder familiar:
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Para a temática envolta no presente trabalho, prepondera as disposições constantes dos incisos I e II do artigo colacionado acima, as quais, atribuídas exclusivamente aos genitores, referem-se, respectivamente, à criação e educação dos filhos, bem como ao fato de tê-los sob sua companhia e guarda. Com isso, resta cristalina a efetivação do princípio da convivência familiar e do princípio da afetividade no âmbito de vigência do poder familiar, tendo em vista que os filhos, a partir de uma convivência cotidiana com seus pais, criam laços de familiaridade e identidade com estes, o que acarreta o conseguinte surgimento de um forte vínculo de afetividade no seio familiar, tendo por base uma harmônica criação e educação neste ambiente de recíproca consolidação de sentimentos e experiências de vida.
Ato contínuo, o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº 8.069/1990 -, igualmente solidifica o instituto do poder familiar em seu texto normativo, especialmente em seus artigos 21 e 22, conforme se observa abaixo:
Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência.
Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.
Nessa esteira, vislumbra-se que o Estatuto em apreço abertamente confirma os ditames consubstanciados pelo postulado civilista no que tange ao poder familiar, afirmando que este deve necessariamente ser desempenhado no cerne familiar de maneira equitativa e igualitária entre os genitores, de modo a proteger o melhor interesse de seus filhos, garantindo-lhes o devido sustento, guarda e educação; o que caracteriza, por conseguinte, a possibilidade de que a prole alcance o seu regular desenvolvimento e sua posterior autodeterminação junto ao meio social em que se encontra inserida.
Ademais, o instituto ora abordado é tão imprescindível a uma entidade familiar que o hodierno Código Civil prescreveu em seu artigo 1.638, determinadas hipóteses que, caso verificadas no caso concreto, tanto o pai quanto a mãe podem vir a perder judicialmente o poder familiar sobre seus filhos, quais sejam, castigar imoderadamente o filho, deixar o filho em abandono, praticar atos contrários a moral e aos bons costumes e, por último, cometer reiteradamente comportamentos de abuso de autoridade e de destruição dos bens dos filhos.
Desta feita, observando-se os preceitos amoldados na Constituição Federal de 1988, no Código Civil de 2002 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, verifica-se que estes postulados, quando analisados e aplicados conjuntamente, apregoam em seu cerne um dever imprescindível a ser prestado pelos pais em relação a seus filhos, qual seja, aquele referente ao ato de conferir afeto, amor e carinho à sua prole. Com isso, vale lembrar o ilustre entendimento de Maria Berenice Dias (2013, p. 440):
[...] o que talvez seja o mais importante dever dos pais com relação aos filhos: o dever de lhes dar amor, afeto e carinho. A missão constitucional dos pais, pautada nos deveres de assistir, criar e educar os filhos menores, não se limita a vertentes patrimoniais. A essência existencial do poder familiar é mais importante, que colocar em relevo a afetividade responsável que liga o pai e o filho, propiciada pelo encontro, pelo desvelo, enfim, pela convivência familiar. Daí a atual orientação jurisprudencial que reconhece a responsabilidade civil do genitor por abandono afetivo, em face do descumprimento do dever inerente à autoridade parental de conviver com o filho, gerando obrigação indenizatória por dano afetivo.
Em suma, vislumbra-se a ideia de que o pressuposto da convivência familiar - pautado no ideal central da afetividade - é inegavelmente preponderante para a relação entre pais e filhos, na medida em que, respectivamente, viabiliza o regular desenvolvimento do âmago personalíssimo da criança ou do adolescente, possibilita o ensinamento de diretrizes valorativas a estes, bem como proporciona a autoafirmação e a edificação do caráter dos filhos enquanto seres existenciais e inseridos em um contexto histórico particular. Além do mais, atribui-se aos genitores a fulcral incumbência de ofertar a seus filhos os mecanismos norteadores para a compreensão, construção e efetivação do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana em meio a sociedade em que se encontram inseridos.
Objeto central deste trabalho, a responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações paterno-filiais biológicas caracteriza-se a partir da omissão paternal em relação a obrigação jurídica de prestar afeto, cuidado e afago ao filho menor, ainda sob a égide do poder familiar. Portanto, não se refere aqui sobre o dever legal dos genitores de proporcionar suporte material ou financeiro à sua prole, mas sim do encargo de conferir afeto e zelo a seus filhos, vez tratar-se de requisito fundamental para a regular consolidação da personalidade e da dignidade humana destes.
Impende ressaltar que o abandono afetivo pode ocorrer de variadas formas, quais sejam, na vigência de determinado casamento ou pela convivência em união estável - perfazendo-se por atitudes desidiosas praticadas por um ou ambos os cônjuges ou companheiros -, assim como nas situações de guarda unilateral ou guarda compartilhada do menor, após a dissolução do vínculo marital ou da anterior convivência estável.
Nesse sentido, cumpre mencionar que o abandono afetivo apresenta-se ao mundo jurídico como mais uma hipótese de infringência ao poder familiar, uma vez que o preceito da afetividade refere-se a uma obrigação paternal que deve, necessariamente, ser efetivada e cumprida pelos genitores para com seus filhos, motivo pelo qual nada influi a relação de convivência existente entre os pais - estando juntos ou não -, pois ambos são amplamente responsáveis para conferir cuidado e atenção à sua prole, conforme disposição expressão do artigo 1.634, incisos I e II do Código Civil de 2002 (já visto e analisado alhures).
Com isso, infere-se que, nos moldes do artigo 1.632 do atual Código Civil, a “separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos”. Em outras palavras, mesmo confirmado eventual exaurimento da vida em comum entre os pais - por quaisquer das espécies expostas acima -, ainda cabe a estes a prerrogativa de conviver e dividir experiências com seus filhos, tanto pelo genitor que detém a guarda judicial (artigos 1.583 a 1.590 do Código Civil) destes quanto pelo outro que possui o direito de visita àqueles devidamente regulamentado em juízo. Esse é o caso da guarda unilateral, instituto no qual correntemente se evidencia o abandono afetivo nas relações paterno-filiais.
Sob esse enfoque, o doutrinador Paulo Lôbo (2011, p. 311-312) afirma que:
Entendemos que o princípio da paternidade responsável estabelecido no art. 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória. O art. 227 da Constituição confere à criança e ao adolescente os direitos “com absoluta prioridade”, oponíveis à família - inclusive ao pai separado -, à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, que são direitos de conteúdo moral, integrantes da personalidade, cuja rejeição provoca dano moral. O poder familiar do pai separado não se esgota com a separação, salvo no que concerne à guarda, permanecendo os deveres de criação, educação e companhia (art. 1.634 do Código Civil), que não se subsumem na pensão alimentícia.
Assim, não mais se admite que o genitor apenas se comprometa a arcar economicamente ou financeiramente no que se refere aos gastos e despesas cotidianas de seus filhos - pensão alimentícia -, mas deve, sobretudo, direcionar-lhes afeto, cuidado e atenção durante o estágio de desenvolvimento destes, pois, caso contrário, os atributos da personalidade e da dignidade de sua prole serão sobremaneira comprometidos e prejudicados neste interstício de transição para a vida adulta, ensejando consequências maléficas aos menores, tanto psíquicas quanto emocionais, já que, assim, desfaz-se um vínculo afetivo biologicamente concebido.
Sobre a importância do requisito da afetividade no processo de desenvolvimento da criança e do adolescente, Mahoney e Almeida (2004, p. 61) sabiamente aduzem que:
A criança precisa ser assistida todo o tempo e suas reações precisam ser completadas e interpretadas pelos adultos que lhe são próximos. Seus gestos, portanto, vão provocar intervenções úteis ou desejáveis do meio humano.
O estado de simbiose afetiva entre a criança e o seu meio ambiente deixa-a na estreita dependência daqueles de quem recebe os cuidados. Quando tais cuidados faltam ou quando se limitam a simples atenções materiais, a criança sofre não só no que diz respeito ao seu desenvolvimento psíquico, mas também no físico [...].
Nessa esteira, vislumbra-se o fato de que a inexistência de uma sadia e regular conexão familiar entre pais e filhos, acarreta drásticas lesões morais à vida, personalidade e dignidade destes últimos, caracterizando veemente dever de reparar o dano acometido à vítima prejudicada, uma vez que esta - a criança -, desde sua tenra idade, vivencia situações desidiosas e omissas quanto ao seu direito de receber afeto, atenção, carinho e dedicação dos que a cercam, especialmente de seus genitores, os quais, por natureza, precisam direcionar a ela estas prerrogativas.
Assim, merece relevância a célebre lição de Farias e Rosenvald (2013a, p. 194) acerca da infringência do direito da personalidade do indivíduo:
Sem dúvida, a violação dos direitos da personalidade acarreta graves consequências na órbita personalíssima, impondo danos de ordem extrapatrimonial (moral). Nesse passo, são previstas sanções jurídicas dirigidas a quem viola os direitos da personalidade de outrem, mediante a fixação de indenização por danos não-patrimoniais (reparação de danos), bem como através da adoção de providências de caráter inibitório (tutela específica), tendentes à obtenção do resultado equivalente, qual seja, o respeito aos direitos da personalidade.
Em outras palavras, caso seja verificada determinada violação aos direitos personalíssimos intrínsecos e exclusivamente atinentes a um indivíduo singularmente considerado, de sua honra e moral próprias, de sua intimidade e particularidade existencial perante aqueles que o rodeiam, consolida-se a obrigação legal de proceder-se ao ressarcimento do sujeito vitimado pela conduta lesiva praticada em relação a sua pessoa, in casu, refere-se ao direito do filho de ser indenizado pelo abandono afetivo que sofreu de um ou de ambos seus genitores.
Urge destacar, portanto, a determinação dos artigos 11 e 12 do Código Civil de 2002, dispositivos estes que consubstanciam a devida proteção aos direitos da personalidade do sujeito, in verbis:
Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Com isso, verifica-se a ampla salvaguarda aos direitos personalíssimos do indivíduo, insculpidos na legislação civilista, de modo que são considerados intransmissíveis e irrenunciáveis, conferindo-lhes vigorosa regulação e efetividade, no sentido de afastar quaisquer violações perpetradas em desfavor destes, sendo que, caso constate-se alguma lesão a esses preceitos legais, emerge o dever jurídico de prover a devida reparação civil ocasionada pelo dano, conforme o que se evidencia da regra do artigo 12 do Código Civil, elencado acima.
Ademais, não se pode olvidar o fato de que o hodierno ordenamento jurídico brasileiro, no que tange à entidade familiar, prepondera o princípio da paternidade responsável como um de seus primordiais alicerces, haja vista considerar que, uma vez instituída uma família e desta advierem filhos, há que se ter em mente o dever de prestar regular convivência, cuidado, afeto e atenção para com estes, pois, caso tais atributos não sejam conferidos aos filhos, incorre-se no risco de submeter a criança ou o adolescente a sérias lesões de ordem moral, emocional e psíquica, fatores estes que sãos deveras prejudiciais ao salutar e uniforme desenvolvimento destes. Todavia, caso constatadas estas violações ao patrimônio moral e afetivo do indivíduo em pleno estágio de crescimento, em virtude da prática de abandono afetivo paternal a este, evidencia-se o dever jurídico de ressarci-lo pelo dano que sofreu.
Nesse contexto, a culta jurista Valéria Silva Galdino Cardin (2012, p. 162) inteligentemente elucida que:
Realmente, o afeto não é algo que pode ser monetarizado, contudo, a falta acarreta inúmeros danos psicológicos a uma criança ou adolescente, que se sente rejeitado, humilhado perante os outros amigos em que os pais são presentes, dentre outras situações. É óbvio que esta criança ou adolescente terá dificuldades em se relacionar no futuro. Logo, a indenização teria como proporcionar que esta pessoa recebesse auxílio psicológico para tratar das sequelas oriundas da falta de visitação, do descaso, da não orientação ética, moral e intelectual, etc.
O planejamento familiar em nosso ordenamento jurídico é livre, contudo a paternidade deve ser exercida atendendo ao princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, aqueles que não querem se comprometer com o mínimo de assistência afetiva, moral, intelectual e material que não tenham filhos.
Dessa maneira, pode-se constatar o fato de que a paternidade responsável deve sobremaneira ser observada pelos genitores em relação a seus filhos, objetivando não acometer eventuais prejuízos de ordem psicológica e comportamental a estes últimos, uma vez que, caso o requisito da convivência paterno-filial seja descumprido, caracteriza-se, ainda, séria violação a personalidade e a dignidade daqueles sujeitos ainda em fase de concepção e afirmação de suas existências. Todavia, caso determinadas pessoas que se relacionam amorosamente não estejam preparadas para prestar cuidado, afeto, atenção e educação a eventuais futuros filhos, que não os concebam, pois tais requisitos são atualmente inerentes à condição jurídica da paternidade - englobando-se no termo, também, a maternidade.
Com vistas ao expendido alhures, sobressai-se que o abandono afetivo perfaz-se em conduta perpetrada por certo genitor em relação a seu filho, no sentido de voluntariamente desincumbir-se dos encargos legais de conviver, resguardar, criar e educar - todos norteados pelo pressuposto basilar da afetividade - o seu descendente, ultrajando, por conseguinte, a condição personalíssima e digna de existência destes perante o meio social em que se encontra inserido.
No que tange ao instituto do abandono afetivo, Paulo Lôbo (2011, p. 312) posiciona-se da seguinte maneira:
Portanto, o “abandono afetivo” nada mais é que inadimplemento dos deveres jurídicos de paternidade. Seu campo não é exclusivamente o da moral, pois o direito o atraiu para si, conferindo-lhe consequências jurídicas que não podem ser desconsideradas.
Por isso, seria possível considerar a possibilidade da responsabilidade civil, para quem descumpre o múnus inerente ao poder familiar.
Com fulcro o célebre entendimento elencado acima, tem-se que o abandono afetivo consiste na violação dos deveres particularmente atinentes a responsabilidade civilista de ser pai - ou mãe -, ou seja, concretiza-se a partir do descumprimento da obrigação de conviver, resguardar, criar e educar o filho, balizando-se através do preceito jurídico maior da afetividade, insculpido em meio ao texto constitucional e legal junto aos requisitos ora mencionados, infringência esta, repise-se, amplamente estruturadora do dever de reparar o dano sofrido pela conduta lesiva livremente adotada pelo genitor.
Assim, resta cristalina a natureza ilegal emergida da prática do abandono afetivo, uma vez que infringe os preceitos da dignidade da pessoa humana, da afetividade e o da personalidade do indivíduo, todos sobremaneira orientados pelas normas inscritas na Carta da República de 1988 e no Código Civil de 2002, assim como nas construções doutrinárias e jurisprudenciais pátrias, conforme já largamente abordados anteriormente.
Por conseguinte, cumpre preponderar que a responsabilidade civil por abandono afetivo encontra-se definida na legislação civilista, especialmente consubstanciada nos moldes do parágrafo único do artigo 927 do hodierno Código Civil, dispositivo este que aduz o que abaixo segue:
Art. 927. [...]
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Nessa esteira, verifica-se que a responsabilidade civil intrínseca ao instituto do abandono afetivo é de espécie objetiva, uma vez que consta balizada pelo fato de prescindir da comprovação do requisito da culpa na conduta do genitor, pois esta é presumida por lei, necessitando-se tão somente da constatação do evento danoso no mundo fático e jurídico, ou seja, basta a ocorrência do abandono afetivo em si, sopesando-se a relação de causalidade entre o comportamento adotado pelo genitor e o dano dele advindo ao filho que teve sua dignidade e personalidade infringidas por aquele, restando acometido de fortes sequelas psíquicas e emocionais; para a consolidação do dever jurídico de ressarcir os prejuízos afetivos que sofreu.
A partir de então, deve-se ter em mente que a fixação da indenização em favor do filho, em virtude do abandono afetivo perpetrado a ele por um de seus genitores, necessita obrigatoriamente ser efetivada com observância aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, objetivando que o magistrado não a estipule em valor ínfimo a ponto de não satisfazer o real dano sofrido pela lacuna afetiva ocasionada pelo abandono, bem como que o nobre julgador não a determine em quantia exorbitante, de modo a enriquecer ilicitamente o filho lesionado pela conduta do pai, pois tal ato não é admitido pelo ordenamento jurídico pátrio, vez que fere a boa-fé objetiva inerente às relações civis.
Ademais, para a concretização do dever de ressarcir o dano ocasionado pelo abandono afetivo, faz-se imprescindivelmente necessária a “intersecção entre a responsabilidade civil e o Direito de Família, além do recurso à Psicologia e ao Serviço Social” (SANTOS, 2011, p. 195). Em outras palavras, previamente à determinação da obrigação de reparar o dano pela alegada falta de afeto, é preciso que o juiz analise, perante o caso concreto, por meio do auxílio de equipe interprofissional - e, em certos casos, multiprofissional - da Comarca em que tramita a ação de responsabilidade civil, mediante a realização de estudos comportamentais e de saúde concretos e específicos em relação ao filho que aduz ter sofrido de abandono afetivo por um de seus genitores, a fim de constatar-se a efetiva ocorrência do dano afetivo e a viabilidade da estipulação da indenização por abandono afetivo em comento.
Com isso, caso seja passível de comprovação o nexo causal entre a conduta deliberada do pai ou da mãe em faltar com a prestação de cuidado, afeto e atenção para com seu filho, bem como o real prejuízo de ordem psíquica e emocional sofrido por este último, tem-se caracterizada a obrigação jurídica de proceder-se à indenização do descendente pela lesão afetiva que sofreu.
Acerca do cabimento da indenização em decorrência da conduta de abandono afetivo observado na relação paterno-filial, o insigne doutrinador Romualdo Baptista dos Santos (2011, p. 196) memoravelmente esclarece que:
No caso do abandono afetivo, o que se tem é uma agressão direta à estrutura psíquica, com o que a vítima se sente diminuída na sua condição de pessoa humana. O pai - em regra, mas pode também ser a mãe - deixa de prestar comportamentos pró-afetivos, isto é, aqueles capazes de proporcionar o surgimento e a manutenção de laços de afetividade. Vale dizer que não se trata simplesmente de uma omissão, mas sim de uma ação deliberada com o sentido de causar na vítima um sentimento de menos-valia. Essa situação, quando ocorrente, caracteriza agressão à estrutura psíquica do filho e enseja a fixação de um valor a título de reparação pelos danos morais.
Em linhas gerais, o instituto do abandono afetivo, caracterizado pela existência de uma lacuna afetiva na vida de uma criança ou de um adolescente, causada por conduta lesiva do pai ou da mãe destes, acarreta malefícios por vezes irrecuperáveis e irreversíveis àqueles, haja vista infringir diretamente o âmago personalíssimo psíquico e emocional do filho, pois a convivência, o afeto, o cuidado, a criação e a educação familiar são imprescindíveis para a regular composição da identidade e da autodeterminação do descendente em meio a um processo de constante desenvolvimento, tanto no que tange à edificação da personalidade quanto da dignidade humana do menor.
Derradeiramente, a título meramente informativo, cumpre salientar a existência do Projeto de Lei nº 700/2007, originário do Senador Federal, proposto pelo Senador Marcelo Bezerra Crivella, o qual intenta alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente para consolidar de uma vez por todas o instituto do abandono afetivo dos filhos na legislação infraconstitucional, tratando da matéria como um ilícito tanto civil quanto penal. Tal projeto visa, em suma, caracterizar a natureza indenizatória decorrente da prática de lesão afetiva por um dos genitores a seu filho menor, faltando-se com a prestação injustificada de assistência moral a este, prejudicando, assim, o seu desenvolvimento psicológico e social no meio em que se encontra inserido.
No que se refere ao instituto do abandono afetivo ora abordado, vale sobrelevar o fato de que a hodierna jurisprudência vem cada vez mais dedicando devida atenção e destaque para a temática objeto do presente trabalho, em diversos casos concretos - que chegam às portas do Judiciário - em que determinado pai ou mãe que não mais se encontra convivendo com seu filho - em decorrência de término da relação conjugal ou de convivência entre os genitores -, apenas cumpre com o dever de sustento material e financeiro deste, abstendo-se das obrigações paternais de prestar afeto, cuidado, atenção, educação e convivência para com seu filho, o qual se encontra pleno em processo de desenvolvimento e afirmação pessoal.
Com isso, os precedentes jurisprudenciais se modernizam ao ponto de exigir tanto o cumprimento do dever legal pecuniário - subsumidos nos alimentos - dos pais para com sua prole, bem como com a obrigatoriedade de conferir devida afetividade e cuidados paternais a seus filhos, sob pena de, caso contrário, acarretar-se ao genitor o dever de indenizar o seu descendente, em virtude da prática de abandono afetivo.
O que se verifica, portanto, com a implementação do instituto do abandono afetivo no ordenamento jurídico brasileiro, é a ânsia de fazer valer as máximas constitucionais da afetividade e da dignidade da pessoa, in casu, da criança e do adolescente em face do genitor que o abandona, e não a eventual obrigação deste último em prestar amor àquele - como repisam aqueles que são contrários a implementação deste instituto -, pois isso não se pode exigir ou demandar de alguém, vez tratar-se de sentimento e, portanto, condição personalíssima do sujeito. Dessa forma, busca-se com a responsabilidade civil por abandono afetivo, a devida reparação ao filho carente do afeto e da convivência paterno-filial, imprescindível para o sadio desenvolvimento psíquico e emocional do indivíduo desde sua tenra idade.
Assim, parte-se agora a efetiva averiguação do entendimento jurisprudencial pátrio acerca do abandono afetivo insculpido no Poder Judiciário.
Inicialmente, cabe salientar o caso concreto vanguardista relacionado ao assunto em comento - o qual cristaliza a fundamentação expendida neste trabalho acadêmico -, advindo da 2ª Vara Cível da Comarca de Capão da Canoa, do Estado do Rio Grande Sul, cuja decisão foi prolatada em 15 de setembro de 2003, pelo insigne magistrado Mário Romano Maggioni, membro do colendo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), nos autos do Processo nº 141/1030012032-0. Veja-se:
A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto-afirme. Desnecessário discorrer acerca da importância da presença do pai no desenvolvimento da criança. A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido ou em desenvolvimento violam a sua honra e a sua imagem. Basta atentar para os jovens drogados e ver-se-á que grande parte deles derivam de pais que não lhe dedicam amor e carinho; assim também em relação aos criminosos. De outra parte se a inclusão no SPC dá margem à indenização por danos morais pois viola a honra e a imagem, quanto mais a rejeição do pai (TJRS, 2ª Vara Cível da Comarca de Capão da Canoa, Processo nº 141/1030012032-0, juiz Mário Romano Maggioni, julgamento em 15/09/2003).
Nesse sentido, o nobre julgador fez transparecer em sua decisão os deveres paternais que necessariamente devem ser direcionados aos filhos, haja vista tratarem-se de prerrogativas inerentes a personalidade e da dignidade do descendente, pessoa ainda em constante processo de desenvolvimento e evolução, tanto física quanto psíquica. Portanto, resta ao genitor a obrigação de dedicar atitudes harmônicas ao bom e sadio crescimento de seu filho, com convivência, proteção, afeto, atenção, carinho e educação familiar.
Ato contínuo, o juiz Mário Romano assevera que não cabe ao Poder Judiciário compelir alguém a vir a ser pai ou mãe de forma indistinta ou indiscriminada - sem esteio na legislação pátria -, vez tratar-se de exercício da livre autonomia da vontade da pessoa. Todavia, aquele indivíduo que desejou de forma conscientemente deliberada figurar como pai ou mãe perante o mundo fático e jurídico, deverá necessariamente arcar com as responsabilidades e encargos advindos da paternidade ou da maternidade perante sua prole, pois, caso assim não o faça, atrairá para si a obrigação de ressarcir os prejuízos ocasionados aos menores. Observe-se trecho da decisão em análise que enfatiza essa situação:
Por óbvio que o Poder Judiciário não pode obrigar ninguém a ser pai. No Entanto, aquele que optou por ser pai - e é o caso do autor -, deve se desincumbir de sua função, sob pena de reparar os danos causados aos filhos. Nunca é demais salientar os inúmeros recursos para se evitar a paternidade (vasectomia, preservativos, etc.). Ou seja, aquele que não quer ser pai deve se precaver. Não se pode atribuir a terceiros a paternidade. Aquele, desprecavido, que deu origem ao filho deve assumir a função paterna não apenas no plano ideal, mas legalmente. Assim, Não estamos diante de amores platônicos, mas sim de amor indispensável ao desenvolvimento da criança (TJRS, 2ª Vara Cível da Comarca de Capão da Canoa, Processo nº 141/1030012032-0, juiz Mário Romano Maggioni, julgamento em 15/09/2003).
Com vistas ao delineado acima, o magistrado ressalta a inegável importância dos princípios constitucionais da paternidade responsável e da convivência paterno-filial, já que tais pressupostos apregoados pela Carta Magna de 1988 são imprescindíveis para o salutar enriquecimento cognitivo, psíquico e emocional do menor, estritamente dependente de seus pais no que se refere a ampliação do seu ganho sensorial e de tratamento para com as demais pessoas, na medida em que cresce e evolui.
Por derradeiro, em sua inédita decisão, o ínclito magistrado repisa que o dever paternal ou maternal não se limita tão somente ao cumprimento do encargo monetário ou financeiro - consubstanciado na pensão alimentícia - do genitor em relação a seu filho, haja vista lhe ser atribuída, ainda, a responsabilidade de direcionar afeto, atenção e cuidado, com base na exegese do ordenamento jurídico. Veja-se:
A função paterna abrange amar os filhos. Portanto, não basta ser pai biológico ou prestar alimentos ao filho. O sustento é apenas uma das parcelas da paternidade. É preciso ser pai na amplitude legal (sustento, guarda e educação) Quando o legislador atribui aos pais a função de educar os filhos, resta evidente que aos pais incumbe amar os filhos. Pai que não ama o filho está não apenas desrespeitando função de ordem moral, mas principalmente de ordem legal, pois não está bem educando seu filho (TJRS, 2ª Vara Cível da Comarca de Capão da Canoa, Processo nº 141/1030012032-0, juiz Mário Romano Maggioni, julgamento em 15/09/2003).
Sob essa ótica, infere-se que a função paternal é muito mais ampla e envolvente do que a simples assistência material do pai ou mãe em relação a seu filho, pois abarca, também, a obrigação insculpida perante a moral e a lei, de conferir carinho e ternura à criança, a partir do exercício da guarda, criação, regular educação e constante convivência com esta, edificando, assim, sua personalidade e caráter.
Noutro patamar, sobreleva-se o julgado que mais foi objeto de debate e análise pela doutrina e jurisprudência pátrias, bem como pela mídia e sociedade como um todo. Trata-se aqui da Apelação Cível instituída sob o nº 408.550-5, originária do pretérito Tribunal de Alçada de Minas Gerais (TAMG), cujo julgamento, amparado no voto do Relator Desembargador Unias Silva, realizado em 01 de abril de 2004, apenou um pai a prover indenização em favor de seu filho, no valor de R$44.000,00 (quarenta e quatro mil reais), em decorrência da deliberada ausência de afeto por aquele em relação a este último. Veja-se, portanto, os termos da decisão:
INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. RELAÇÃO PATERNO-FILIAL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE.
A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito a convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana.
[...]
A relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade possui fundamento naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar compensação indenizatória em face de danos que pais possam causar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quanto a ele é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave (TAMG, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 408.550-5, Relator Desembargador Unias Silva, julgamento em 01/04/2004).
A par da decisão em comento, observa-se que aos genitores incumbe-se a obrigação de dedicar os meios necessários para que seu filho, pessoa em novel idade, obtenha resultado satisfatório no que tange ao desenvolvimento e incremento de suas faculdades mentais, em especial no que se refere a sua psique humana, fazendo valer, com isso, a concretização de suas prerrogativas dignas e personalíssimas para a realização de uma salutar e harmônica vida em sociedade, proporcionando que a criança, futuramente, alcance lugar característico e relevante neste meio social que a envolve e que dela demanda a constante supressão de obstáculos e adversidades.
A partir do julgado retro, o genitor do filho abandonado afetivamente, inconformado com a decisão contrária a seus interesses econômicos, interpôs Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), registrado sob o nº 757.411/MG, com julgamento ocorrido em 29/11/2005, o qual teve seu conhecimento e provimento confirmados pelo relator Ministro Fernando Gonçalves, tendo sido, ainda, apreciado conjuntamente pelos Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini, Cesar Asfor Rocha e Raphael de Barros Monteiro Filho, os quais, pelo voto da maioria, também deram provimento ao referido recurso e determinaram a reforma da decisão prolatada pelo Tribunal de Alçada de Minas Gerais (TAMG).
Não obstante, importa salientar que o insigne Ministro Raphael de Barros Monteiro Filho, posicionou-se de forma contrária ao entendimento dos demais membros da colenda Corte Superior, aduzindo ser plenamente possível a responsabilidade civil em virtude de abandono afetivo. Veja-se o voto do ministro:
O Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou o réu a pagar 44 mil reais por entender configurado nos autos o dano sofrido pelo autor em sua dignidade, bem como por reconhecer a conduta ilícita do genitor ao deixar de cumprir seu dever familiar de convívio e afeto com o filho, deixando assim de preservar os laços de paternidade. Esses fatos são incontroversos. Penso que daí decorre uma conduta ilícita da parte do genitor que, ao lado do dever de assistência material, tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto.
[...]
Creio que é essa a hipótese dos autos. Haveria, sim, uma excludente de responsabilidade se o réu, no caso o progenitor, demonstrasse a ocorrência de força maior, o que me parece não ter sequer sido cogitado no acórdão recorrido. De maneira que, no caso, ocorreram a conduta ilícita, o dano e o nexo de causalidade. O dano resta evidenciado com o sofrimento, com a dor, com o abalo psíquico sofrido pelo autor durante todo esse tempo.
Considero, pois, ser devida a indenização por dano moral no caso, sem cogitar de, eventualmente, ajustar ou não o quantum devido, porque me parece que esse aspecto não é objeto do recurso. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 757.411/MG - 2005/0085464-3 -, Relator Ministro Fernando Gonçalves, julgamento em 29/11/2005).
Dessa maneira, o ínclito ministro não conheceu do Recurso Especial, pelo se manifestou pela não procedência deste, assegurando que a hipótese de compensação civil pelo descumprimento dos deveres de prestar afeto, convivência e paternidade responsável, encontra-se amplamente abrangida e salvaguardada tanto pela legislação constitucional quanto infraconstitucional, vez tratar-se de fator relevante para a efetivação da dignidade e personalidade do filho lesado pelo genitor.
Ademais, prepondera lembrar que do julgamento do Recurso Especial acima delineado, o autor da ação - o filho lesionado moralmente pelo abandono afetivo -, manejou Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal (STF) em 15 de outubro de 2007, gravado sob a numeração de 567.114, o qual não foi conhecido pela então Ministra Ellen Gracie, pelo que foi arquivado, tendo ela aduzido se tratar de violação reflexa ou indireta ao texto constitucional.
Em seguida, após todo o exposto, merece destaque o julgamento ocorrido em 05 de junho de 2004, circunscrito nos autos do Processo nº 01.036747-0, originário do juízo da 31ª Vara Cível Central da Comarca de São Paulo, de titularidade do nobre magistrado Luis Fernando Cirillo, sob a jurisdição do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o qual será delineado a seguir.
Ao prolatar sua decisão, o juiz Luis Cirillo inicialmente não vislumbrou a possibilidade de conceder reparação civil em decorrência de uma lacuna afetiva causada na vida de um filho pelo deliberado afastamento praticado por seu pai, chegando a afirmar que “em princípio não se afigura razoável que um filho pleiteie em juízo indenização por dano moral porque não teria recebido afeto de seu pai, de quem sua mãe se separou ainda na infância do autor” (TJSP, 2004 / Processo nº 01.036747-0). Todavia, ao final de sua decisão, no tópico referente ao dispositivo, o magistrado determinou ao pai o pagamento da quantia de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) a título de ressarcimento ao filho, em virtude da constatação do abandono afetivo.
Nesse sentido, importa frisar o seguinte apontamento feito pelo aludido juiz:
Não se pode rejeitar a possibilidade de pagamento de indenização do dano decorrente da falta de afeto simplesmente pela consideração de que o verdadeiro afeto não tem preço, porque também não tem sentido sustentar que a vida de um ente querido, a honra, a imagem e a dignidade de um ser humano tenham preço, e nem por isso se nega o direito à obtenção de um benefício econômico em contraposição à ofensa praticada contra esses bens (TJSP, 31ª Vara Cível Central da Comarca de São Paulo, Processo nº 01.036747-0, juiz Luis Fernando Cirillo, julgamento em 05/06/2004).
Elucidando-se a posição decisória do juiz, tem-se por clarividente a ideia de a ausência de concessão de afeto ou amor - considerando-se os sentidos literais destas expressões - pelo genitor em favor do filho, não ensejaria o dever de indenizar este último. Ocorre que, quando se fala em afeto no mundo jurídico, tem-se por base os princípios da convivência paterno-filial, da paternidade responsável e, acima de tudo, da dignidade da pessoa e da regular construção da personalidade. Sendo assim, é plenamente cabível a obrigação do pai de ressarcir o filho pelo descumprimento dos deveres de prestação de afeto, cuidado e atenção em meio a novel vida deste último.
Outra célebre lição extraída do julgado em referência, é aquela alicerçada na seguinte proposição consubstanciada pelo magistrado Luis Cirillo, in verbis:
Vê-se, portanto, que não há fundamento jurídico para se concluir, primeiro, que não haja dever do pai de estabelecer um mínimo de relacionamento afetivo com seu filho e, em segundo lugar, que o simples fato da separação entre pai e mãe seja fundamento para que se dispense quem não fica com a guarda do filho manter esse relacionamento (TJSP, 31ª Vara Cível Central da Comarca de São Paulo, Processo nº 01.036747-0, juiz Luis Fernando Cirillo, julgamento em 05/06/2004).
Da análise deste trecho da decisão em comento, verifica-se que a ocorrência de eventual separação entre determinados cônjuges ou conviventes em uma relação familiar, possuidores de filhos em comum, não justifica aquele que não detém a guarda da criança, limitar-se a cumprir tão somente a obrigação de manutenção material de seu filho, mas deve, também, se fazer presente e manter um convívio regular com seu filho, vez tratar-se de condição intrínseca para que este alcance um desenvolvimento sadio e próspero, bem como para edificar a dignidade e personalidade humana desse ser ainda em tenra idade.
Contextualizando-se ainda mais a presente temática, vale frisar impende ressaltar a Apelação Cível nº 70021427695, originária da Comarca de São Gabriel, sob a jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), cujo julgado foi proferido pelo Relator Desembargador Claudir Fidélis Faccenda, o qual conferiu parcial provimento ao apelo do autor (filho) da demanda judicial, confirmando os termos da sentença de primeiro grau no que tange ao dever do réu (pai) de proceder ao pagamento de compensação civil por danos morais àquele, em decorrência da prática de abandono afetivo. Veja-se a decisão em análise:
É perfeitamente possível o filho buscar reparação pecuniária do pai por danos morais, em casos onde há a efetiva comprovação de que houve negativa de amparo afetivo, moral e psicológico de que toda criança necessita. A violação dos direitos da personalidade do filho, como a honra, a imagem, dignidade e a reputação social, é passível de reparação no âmbito da responsabilidade civil e assegurada pela Constituição Federal - art. 5º, inciso X (TJRS, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70021427695, Relator Desembargador Claudir Fidélis Faccenda, julgamento em 29/11/2007).
À luz dessa decisão, observa-se o merecido destaque ao preceito constitucional da dignidade da pessoa e ao pressuposto civil da personalidade do indivíduo, ambos basilares para a formação a afirmação do ser humano no meio social em que se encontra inserido e no qual perpetua suas relações sociais e afetivas.
Ato contínuo, impera relevar a decisão prolatada em 20/10/2009, nos autos da Apelação Cível de nº 0007035-34.2006.8.19.0054, sob a análise da Relatora Desembargadora Ana Maria Oliveira, integrante da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Veja-se o teor do referido julgado:
Responsabilidade civil. Ação de indenização por dano moral que a Autora teria sofrido em razão do abandono material e afetivo por seu pai que somente reconheceu a paternidade em ação judicial proposta em 2003, quando ela já completara 40 anos. Procedência do pedido, arbitrada a indenização em R$ 209.160,00. Provas oral e documental. Apelante que tinha conhecimento da existência da filha desde que ela era criança, nada fazendo para assisti-la, diferentemente do tratamento dispensado aos seus outros filhos. Dano moral configurado. Quantum da indenização que adotou como parâmetro o valor mensal de 2 salários mínimos mensais que a Apelada deixou de receber até atingir a maioridade. Indenização que observou critérios de razoabilidade e de proporcionalidade. Desprovimento da apelação (TJRJ, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 2009.001.41668, Relatora Desembargadora Ana Maria Oliveira, julgamento em 20/10/2009).
Nesse caso, negou-se provimento à apelação interposta pelo réu (pai), o qual foi condenado, em sentença de primeiro grau, ao pagamento de indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo que perpetrou em face de sua filha (autora), vez que aquele não dedicou a ela o suporte afetivo e moral necessário para a salutar construção e perpetuação da dignidade e da personalidade desta.
Desta feita, posteriormente a este procedimento de averiguação do posicionamento jurisprudencial acerca do instituto do abandono afetivo, pode-se verificar que os Tribunais de Justiça e a Corte Superior conferem respaldo à possibilidade de indenização em decorrência da abstinência de prestar afeto, cuidado, atenção, convivência paternal ou maternal, bem como a paternidade responsável, vez que tal atitude viola os preceitos constitucionais elencados nos artigos 227 e 229 da Constituição da República de 1988 e, ainda, as prerrogativas atinentes aos direitos da personalidade do indivíduo (artigos 11 e 12) e ao poder familiar (artigo 1.634), ambos constantes do Código Civil de 2002.
A fim de melhor elucidar este assunto, faz-se importante asseverar que o instituto da responsabilidade civil por abandono afetivo pode ser devidamente consolidado, tanto fática quanto juridicamente, de forma independente do dever - já há muito cristalizado na esfera civil - de ofertar alimentos ao filho menor, a qual, uma vez descumprida, refere-se ao instituto do abandono material ou financeiro. Assim, mesmo que haja a devida adimplência quanto a obrigação de fornecer suporte econômico ao filho menor, pode restar configurada a ausência de prestação de assistência moral, afetiva e de regular convivência a este, fato que sobremaneira caracteriza veemente dano ao patrimônio moral da criança, ensejando, por conseguinte, a incumbência jurídica de pagar quantia ao indivíduo em tenra idade, relativa a indenização por danos morais decorrentes da prática de abandono afetivo.
Derradeiramente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial registrado sob o nº 1.159.242 (2009/0193701-9), originário do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), cuja Relatora foi a ínclita Ministra Nancy Andrighi, considerou plenamente valida e aplicável a reponsabilidade civil por abandono afetivo ocasionado pelo genitor em face de seu filho, conforme demonstrado abaixo:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.
6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido (STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.159.242-SP - 2009/0193701-9 -, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 24/04/2012).
Considerando o julgamento em referência, por meio de seu voto neste Recurso Especial de nº 1.159.242 (2009/0193701-9), a ilustre Ministra Nancy Andrighi prolata decisão inédita e vanguardista no Superior Tribunal de Justiça (STJ), na qual consubstanciou condenação do pai em proceder ao pagamento de indenização por dano moral em favor de sua filha, no importe de R$200.000,00 (duzentos mil reais), em decorrência das lacunas de afeto, cuidado e convivência paternal provocada na vida desta, violadoras de sua dignidade e personalidade.
Com isso, a partir da visão da nobre Ministra frisa que, vislumbra-se o fato de que apesar do pressuposto afetivo ser voluntário por parte do pai, trata-se de preceito devidamente circunscrito nos deveres de cuidado, convivência e paternidade responsável que necessita obrigatoriamente cumprir para com seu filho, em virtude de vigorosa determinação constitucional e infraconstitucional nesse sentido.
Dessa maneira, vale sobrelevar certas passagens do julgado em comento, imprescindíveis para a consolidação do instituto ora analisado. Veja-se:
Essa percepção do cuidado como tendo valor jurídico já foi, inclusive, incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível - o amor - mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.
Negar ao cuidado o status de obrigação legal importa na vulneração da membrana constitucional de proteção ao menor e adolescente, cristalizada, na parte final do dispositivo citado: “(...) além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência (...)”.
Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo - a impossibilidade de se obrigar a amar.
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
[...]
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever (STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.159.242-SP - 2009/0193701-9 -, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgamento em 24/04/2012, grifo nosso).
Tendo em vista os termos amoldados no insólito julgamento em análise, observa-se que cabe ao genitor, amparada em um prévio animus de possuir um filho em meio ao mundo civilista, atrai para si certas responsabilidades paternas ou maternas inarredáveis, tais como, o dever de conferir afeto, cuidado e atenção a sua criança, pautando-se, para tanto, pelos ideais constitucionais da dignidade da pessoa humana, paternidade responsável, convivência familiar e, ainda, na seara civil, pelos direitos da personalidade inerentes a cada indivíduo particularmente considerado. Portanto, caso quaisquer desses preceitos sejam infringidos por um pai ou uma mãe em relação a seu filho, caracteriza-se o agora amplamente conhecido dever de indenizar advindo da desidiosa conduta do abandono afetivo.
Em linhas gerais, a responsabilidade civil por abandono afetivo intenta, sobretudo, inibir a verificação de lacunas afetivas na vida de uma criança ou de um adolescente, visto tratar-se de pessoa em pleno processo de desenvolvimento de suas faculdades mentais, comportamentais, sociais e afetivas, com a finalidade maior de salvaguardar a ainda novel psique humana intrínseca a esse indivíduo recentemente inserido neste mundo repleto de obstáculos e empecilhos cotidianos, a fim de viabilizar com que este construa e edifique sua vida aos moldes de prósperas conquistas, saúde, harmonia, felicidade e paz de espírito.
Ante todo o exposto, merece evidencia a situação de que a atitude de amar, prestada pelo genitor a seu filho, refere-se a simples intuito facultativo daquele para com este, pois relaciona-se a sentimentos e emoções personalíssimas que não podem ser impostas por qualquer ordenamento jurídico. Não obstante, tal fato diferencia-se por completo da máxima constitucional da proteção integral que deve ser direcionada àquelas pessoas de tenra idade, o que inclui, portanto, de forma consubstanciada e cristalizada na Carta da República de 1988, os pressupostos do afeto, do cuidado, da responsabilidade paternal e da convivência fraternal em âmbito familiar, pois tratam-se de requisitos exaustivamente delineadores da personalidade e da dignidade humana do indivíduo introduzido na hodierna sociedade. Com isso, consolida-se que, em consonância com a célebre proposição que ecoará pela eternidade, aduzida pela culta Ministra Nancy Andrighi, “amar é faculdade, cuidar é dever”.
Em linhas gerais, a título de conclusão deste trabalho, viu-se que este possuiu como finalidade a realização de uma averiguação sobre a questão jurídica intrínseca a responsabilidade civil por abandono afetivo nas relações paterno-filais biológicas, ou seja, objetivou demonstrar as situações em que determinado pai ou mãe se afasta deliberadamente de seu filho, faltando com os deveres de convivência, paternidade responsável, educação, guarda, afeto, cuidado e atenção em relação a criança.
Verificou-se amplamente, portanto, que tais condutas supramencionadas causam um sério transtorno a vida de uma pessoa em pleno processo de desenvolvimento psíquico, emocional e de caráter. Assim, quando certo genitor descumpre os pressupostos constitucionais e infraconstitucionais inerentes ao regular exercício da paternidade ou maternidade para com seu filho, causando a este veemente dano de ordem moral, infringindo sua dignidade humana, sua personalidade e honra; faz nascer para si a obrigação de proceder ao pagamento de uma indenização em favor de seu filho, decorrente da lacuna afetiva ocasionada a vida deste, violando o seu cerne existencial enquanto ser humano.
Com cristalino respaldo na mais culta doutrina brasileira, observou-se que esta matéria vem ganhando fortes adeptos e apoiadores, pois passa-se agora a considerar o abandono afetivo como uma prática em total desconformidade e descompasso com a legislação, princípios e valores pátrios, dentre estes a dignidade da pessoa humana, a convivência familiar, a proteção integral do menor e o direito da personalidade. Dessa forma, a maneira mais viável encontrada para hostilizar este infeliz comportamento adotado por determinados pais, foi a aplicação do instituto da responsabilidade civil aos casos concretos, a fim de reprimi-los com a fixação de indenização pela lacuna afetiva causada a vida dos filhos, bem como fazê-los entender, através do caráter pedagógico desta sanção, a ilicitude e profunda lesão que tal conduta efetiva na novel vida de um indivíduo.
Nesse sentido, com vistas a rechaçar essa conduta do cotidiano social e forense brasileiro, a hodierna jurisprudência vem admitindo a procedência de demandas judiciais ajuizadas pelo filho em situações de privação e desemparado provocadas por seu pai ou por sua mãe, no que se refere a seus direitos de receber os devidos cuidados que sua pouca idade requer, assim como educação, atenção, afeto, resguardo e companhia que necessita para a edificação de uma personalidade pautada nos moldes da integridade e da saúde física e psíquica, fatores os quais perfazem a completude de sua dignidade humana.
À luz do acima exposto, portanto, evidencia-se a ampla possibilidade de incidência da responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo, a qual se caracteriza pela objetividade, isto é, a fixação de indenização por dano moral em virtude da conduta de um pai ou uma mãe de submeter seu filho a desassistência moral, compreendida pela abstinência de prestação de cuidado, companhia, educação e salvaguarda em relação ao menor; consolida-se de forma direta e objetiva, sem a necessidade de comprovação da condição da culpa por parte do genitor, bastando tão somente a constatação do liame entre a conduta ilegal perpetrada por este e o dano ou lesão sofrida por aquele filho.
Conforme amplamente visto neste trabalho, a convivência familiar é intrínseca para o salutar desenvolvimento do caráter inerente a criança e ao adolescente, pois tratam-se de pessoas em constante crescimento quanto a suas faculdades mentais - razão, psique e emoção -, fatores estes inteiramente viabilizadores do surgimento de elos de afeto e sentimento entre indivíduos já biologicamente conectados e interligados entre si, bem como do regular estabelecimento de relações interpessoais de respeito, carinho e compreensão, firmados e renovados diuturnamente. Nesse sentido é o distinto Projeto de Lei nº 700/2007, o qual intenta consubstanciar em meio a legislação, o dever paterno e materno de conferir assistência moral e afetiva ao filho, conforme já sobrelevado em tópico próprio anteriormente.
Diante de todo o exposto, conclui-se, especialmente com fulcro no inédito, vanguardista e célebre julgamento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em 24/04/2012, com Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que conferiu solidez e confirmação ao instituto da responsabilidade civil por abandono afetivo praticado pelo pai ou pela mãe em face do filho, decisão a partir da qual vislumbrou-se o pressuposto maior de que aos pais incumbe o encargo parental de dedicar os devidos cuidados ao menor - incluindo-se guarda, educação, convivência familiar e paternidade responsável -, o que perfaz condição basilar e norteadora para a construção e oportuna consolidação da dignidade humana da criança, de sua personalidade e da efetivação de seu bem estar, possibilitando-a, ainda, a concretização de um crescimento salutar, feliz, inclusivo e ampliador de boas relações e comportamentos.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014 (Série Vade Mecum).
______. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Organização do texto: Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014 (Série Vade Mecum).
______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Organização do texto: Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014 (Série Vade Mecum).
______. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Recurso Especial nº 757.411/MG (2005/0085464-3). Recorente: V. DE P. F. DE O. F. Recorrido: A. B. F. (menor). Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Brasília, 29 de novembro de 2005. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=595269&sR
eg=200500854643&sData=20060327&formato=PDF>. Acesso em: 10 nov. 2014.
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[1] O Supremo Tribunal Federal, em julgamento histórico prolatado em 05/05/2011, posteriormente publicado no DJe em 14/10/2011, nos autos da ADI nº 4277-DF, cujo relator fora o Ministro Ayres Britto, reconheceu a união estável instituída entre pessoas do mesmo sexo, consolidando-a como uma nova espécie de entidade familiar no direito brasileiro.
[2] Nessa linha de raciocínio, há que se ressaltar ainda a teoria da perda de uma chance, vislumbrada em insólitos julgamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, nos autos dos Recursos Especiais de nº 788.459-BA, de Relatoria do Ministro Fernando Gonçalves, publicado no Diário de Justiça em 13/03/2006; e de nº 1.079.185-MG, de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, publicado no Diário de Justiça em 04/08/2009. Tais julgados evidenciam a situação da perda da concretização de uma futura oportunidade por alguém, em decorrência de determinado comportamento lesivo perpetrado por outra pessoa, acarretando àquela, o desaparecimento de eventual proveito próprio, fato este que enseja o dever do agente provocador do evento danoso, de indenizar a vítima inserida nessa situação desfavorável.
Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA). Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus (FDDJ). Advogado em Belém-PA, sócio proprietário do escritório Willian Praia Advocacia e associado ao escritório Nelson Wilians & Advogados Associados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRAIA, Willian Kleber Cardoso. O abandono afetivo praticado pelo genitor face a seu filho e a responsabilização civil que tal conduta denota Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 out 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47605/o-abandono-afetivo-praticado-pelo-genitor-face-a-seu-filho-e-a-responsabilizacao-civil-que-tal-conduta-denota. Acesso em: 22 nov 2024.
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