RESUMO: Esse artigo tem por objetivo estudar os conceitos de cláusulas pétreas, forma federativa de Estado, poder constituinte derivado reformador e competência tributária, de forma a saber se a alteração de competência tributária de uma unidade federativa para outra viola os preceitos da federação, insculpida ao status de cláusula pétrea. Analisaremos os efeitos dessa modificação de competência tributária no âmbito da autonomia financeira dos Entes envolvidos. Critica-se a possibilidade de configuração de um federalismo centrípeto.
Palavras-Chave: federação, competência tributária, cláusulas pétreas, poder constituinte derivado reformador.
INTRODUÇÃO
A Constituição não pode ser imutável, pois precisa se adaptar às mudanças sociais, sob pena de não ter mais correspondência com a realidade e, assim, ocorrer a sua fossilização. Por isso, é previsto pela própria Constituição, através do poder constituinte originário, o poder constituinte derivado reformador, o qual se expressa por meio de emendas à Constituição.
Entretanto, as emendas constitucionais precisam observar algumas limitações materiais para que se preservem valores que o constituinte originário erigiu ao nível de cláusulas pétreas. Até junho de 2013, havia no Congresso Nacional 1.677 propostas de emendas constitucionais (PEC), o que evidencia um elevado número. Com tantas propostas de alteração e um alto grau de técnica jurídica na redação das propostas de emenda, dúvidas jurídicas podem surgir, sobre a constitucionalidade ou não, ao se deparar com algumas PECs. Esse é o caso da PEC 233/2008, que altera a competência do ICMS.
A PEC 233/2008 trata da reforma tributária, tema bastante polêmico, porém sempre presente nos debates tributaristas como uma medida necessária de tornar mais eficaz e simplificado o sistema de arrecadação fiscal, notadamente quanto ao ICMS, pois, como cada estado regulamentou seu ICMS, há 27 legislações diferentes no Brasil, o que dificulta a arrecadação pelo contribuinte e diminui a competitividade das empresas. Além disso, almeja-se, com a reforma tributária, uma redução da carga tributária, já que o Brasil tem umas das maiores do mundo.
Assim, pretendemos estudar os conceitos e as características das cláusulas pétreas, da forma federativa de Estado e analisar os limites do poder constituinte derivado reformador, relacionando esses três grandes temas de forma a saber se é constitucional ou não proposta de emenda constitucional que objetive alterar competência tributária.
Analisaremos se a alteração de competência tributária, antes de um governo local que passe a ser atribuída ao governo central, contribui para um federalismo centrípeto, ocasionando riscos para a federação de centralização excessiva de poder, bem como se fere a autonomia financeira da unidade federativa que teve sua competência tributária suprimida.
1. O instituto da competência tributária.
A competência tributária é a aptidão para criar normas jurídicas que, direta ou indiretamente, disponham sobre a instituição, arrecadação ou fiscalização de tributos[1]. “É a faculdade potencial que a Constituição confere a determinadas pessoas (as pessoas jurídicas de direito público interno) para que, por meio de lei, tributem[2]. É bom lembrar que a Constituição Federal não institui tributos, apenas fixa as competências para que as pessoas jurídicas de direito público interno criem os tributos.
A atribuição de competência para instituir impostos de forma privativa a cada pessoa política, pela Constituição, consagra o princípio federativo, pois preserva a isonomia jurídica entre as unidades federativas, já que, como sabido, não há hierarquia entre elas.
Para a repartição de competência tributária, a Constituição utilizou o critério material, conforme leciona Dirley:
“A competência tributária para instituir impostos foi partilhada sob a condução da técnica da enumeração, de modo que a Constituição enumerou taxativamente tal competência à União, aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios, respectivamente, nos art. 153, 155 e 156. Tal enumeração levou em consideração o critério material, quer dizer, o constituinte, ao fixar as competências impositivas dos impostos, descreveu objetivamente os fatos, que podem ser colocados, pelos legisladores ordinários federal, estaduais, municipais e distrital, nas hipóteses de incidência dos impostos de suas pessoas políticas.”[3]
A competência tributária tem como características o fato de ser indelegável, intransferível e irrenunciável. Não pode um Ente político, por meio de lei ordinária, delegar ou transferir sua competência tributária para outro Ente político, já que quem conferiu a sua competência foi a Constituição. É irrenunciável no sentido de que o não exercício da sua competência tributária não a faz perder, já que o exercício da competência tributária é considerado uma faculdade[4].
A questão, entretanto, é se uma emenda constitucional pode alterar competência tributária de uma unidade federativa para outra, por exemplo, competência antes dos Estados e Distrito Federal para a União, sem incorrer em violação aos preceitos da Federação.
2. Poder constituinte derivado reformador e suas características.
Poder constituinte é o poder de criar ou alterar uma Constituição. Pode ser divido em poder constituinte originário, derivado.
O poder constituinte originário, ou poder constituinte de primeiro grau, é o poder de fato que fundamenta a validade da Constituição.
O poder constituinte originário possui como características o fato de ser inicial, ilimitado juridicamente, ser um poder de fato e incondicionado. Inicial significa que dele se origina o ordenamento jurídico, instaurando uma nova ordem jurídica. É ilimitado juridicamente, pois não é objeto de nenhuma ordem jurídica, assim, não deve respeito ao direito anterior. É um poder de fato e não um poder jurídico, tem natureza pré-jurídica. É incondicionado juridicamente, pois a sua manifestação não se submete a uma forma pré-fixada.
O poder constituinte derivado, ou poder constituinte de segundo grau, é aquele criado pelo poder constituinte originário, devendo obediência aos limites e condicionamentos impostos pelo poder constituinte originário, ou seja, é subordinado a ele. Diferentemente do poder constituinte originário, que tem natureza de poder de fato, o poder constituinte derivado tem natureza jurídica, é um poder jurídico.
São espécies do poder constituinte derivado: o decorrente, o revisor e o reformador. O poder constituinte derivado decorrente é a capacidade que os Estados-membros e o Distrito Federal[5] possuem de estruturar suas Constituições estaduais. O poder constituinte derivado revisor está previsto no art. 3° do ADCT como a competência para rever, uma única vez, a Constituição, pelo menos cinco anos após sua publicação. Poder constituinte derivado reformador é a capacidade de alterar o texto da Constituição Federal, por meio de procedimento específico de emenda constitucional, previamente estabelecido pelo poder constituinte originário.
O fundamento do poder de reforma é evitar o engessamento do texto original da Constituição, devido à evolução dos fatos sociais. Assim, para evitar que o poder constituinte originário se manifeste para promover mudanças pontuais, há a previsão do poder constituinte de reforma.
O estudo do poder de reforma só ganha importância nas constituições rígidas, as quais estabelecem um procedimento mais rigoroso para alterar o texto constitucional, distinguem o poder constituinte originário e o poder derivado, além de reforçar a supremacia da Constituição, pois evita que o legislador ordinário vá de encontro ao texto constitucional e seus valores. O poder de reforma acarreta, também, a instituição de mecanismos de controle de constitucionalidade das leis, para garantir a superioridade da Constituição.
Entretanto, o poder constituinte derivado reformador se submete a limitações circunstanciais e materiais. Limites circunstanciais (art. 60, §1°, da CF/88) são aqueles que impedem a manifestação do poder constituinte derivado reformador em determinadas circunstâncias adversas e tidas como “anormais”, como durante intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio. Os limites materiais são aqueles que excluem do âmbito do poder de reforma algumas matérias previstas explicita ou implicitamente na Constituição. É importante observar que “na verdade, essas limitações impedem as reformas constitucionais tendentes a abolir ou suprimir da Constituição certas matérias, cujo conteúdo mínimo foi considerado imutável”[6]. Assim, diz-se que há um núcleo material irredutível instituído pelo poder constituinte originário que não pode ser abolido pelo poder constituinte derivado reformador.
Registre-se, ainda, que pode haver mudança no sentido, significado e alcance do texto constitucional por meio de procedimento não formal, o que é chamado de mutação constitucional. Isso é possível já que a norma constitucional não se confunde com o texto constitucional.
3. Cláusulas pétreas e limites explícitos e implícitos ao poder constituinte reformador.
As limitações matérias são também chamadas de cláusulas pétreas. Pode-se afirmar que as cláusulas Pétreas são as matérias que não podem ser abolidas pelo poder constituinte derivado reformador ou revisor. A existência desse núcleo material irredutível baseia-se em três fundamentos: na superioridade do poder constituinte originário sobre o derivado; na necessidade de segurança jurídica; e na necessidade de manter uma identidade mínima da Constituição. Conforme leciona Mendes:
“Como quer que seja, o que explica a consagração dessas cláusulas de perpetuidade é o argumento de que elas perfazem um núcleo essencial do projeto do poder constituinte originário, que ele intenta preservar de quaisquer mudanças intitucionalizadas. E o poder constituinte pode estabelecer essas restrições justamente por ser superior juridicamente ao poder de reforma.”[7]
A superioridade do poder constituinte originário em relação ao poder constituinte derivado reformador fundamenta-se no pressuposto de que o poder constituinte originário é a expressão da vontade do povo e que as limitações que este impõe destinam-se a restringir a vontade dos representantes do povo, no exercício dos poderes constituídos[8].
As limitações materiais podem ser explícitas ou implícitas. Os limites explícitos estão expressamente previstos no texto da Constituição Federal (art. 60, §4°, da CF/88)[9].
Os limites implícitos “são aquelas limitações não previstas expressamente no texto da Lei Maior, mas que, sem embargo, são inerentes aos regimes e princípios que ela adota”[10]. Conforme Barroso, o fundamento dos limites materiais implícitos está no fato de possuírem natureza declaratória:
“Aliás, na medida em que os limites materiais expressam a identidade da Constituição e as salvaguardas democráticas, sua natureza é declaratória, e não constitutiva. Por essa razão, a presença de cláusulas pétreas no texto não exclui a possibilidade de se reconhecer a existência de limites implícitos.”[11]
Conforme Barroso[12], são quatro os limite implícitos, quais sejam: a impossibilidade de se alterar a titularidade do poder constituinte originário, pois a soberania popular é pressuposto do regime democrático; a impossibilidade de se alterar a titularidade do poder constituinte derivado reformador; a impossibilidade de se alterar o procedimento que disciplina a reforma da Constituição; e a impossibilidade de se excluir as próprias limitações expressas.
Deve-se observar que as limitações materiais não significam intangibilidade literal, mas sim proteção ao núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege[13]. Esse é o entendimento do STF:
“A ‘forma federativa de Estado’ - elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República - não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto às futuras emendas à Constituição; de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege.”[14]
Assim, até aqui, constata-se que não há, no art. 60, §4°, da CF/88, referência direta a limites expressos à proposta de emenda constitucional que pretenda alterar competência tributária. Também não há proteção pelos limites materiais implícitos, reconhecidos pela doutrina e jurisprudência. Esses são os argumentos utilizados por aqueles que defendem que a alteração de competência tributária não violaria preceitos constitucionais, pois se a Constituição conferiu competências tributárias para determinados Entes federados, pode muito bem, por meio de emenda constitucional, alterar essas competências.
4. A preservação da autonomia financeira dos Entes políticos como forma de garantir a forma federativa de Estado.
A forma de Estado se refere à divisão do poder dentro de determinado território. “O modo de exercício do poder político em função do território dá origem ao conceito de forma de Estado”[15], o qual pode ser unitário ou federal.
Estado unitário é aquele em que há uma unidade do poder em um determinado território. Há um só centro de poder. Podemos citar como exemplos a França, Chile, Uruguai e Paraguai.
Já no estado federal, há uma descentralização do poder entre as unidades autônomas regionais. Descentralização “é a distribuição de competência de uma para outra pessoa, física ou jurídica”[16].
A palavra federação tem origens no latim foedus, foederis[17] e significa pacto, aliança. A forma federativa de estado nasceu com a Constituição de 1787 dos Estados Unidos a partir da “Convenção da Philadelphia”, na qual as treze colônias, descontentes com os altos impostos cobrados, decidiram ceder parte de sua soberania, tornando-se autônomas, em prol do Estado Federal, este sim soberano.
No Brasil a federação passou a ser a forma de estado adotada a partir de 1889, com o Decreto n° 1, de 15/11/1889.
Uma das características da federação é a distinção entre autonomia e soberania. A autonomia dos Entes Federados se apresenta sob quatro aspectos[18]: capacidade de auto-organização, autogoverno, auto-administração e auto-legislação. Auto-organização é a capacidade dos Estados-membros e Municípios de se organizarem pelas Constituições ou Leis-Orgânicas que adotarem. Autogoverno é a capacidade de elegerem os seus representantes políticos. Auto-administração é a capacidade de prestar e gerir os serviços que estão sobre sua competência. Por fim, auto-legislação é a capacidade de produzir suas próprias leis gerais e abstratas.
A autonomia dos Entes federados se manifesta, também, pela sua autonomia financeira, administrativa e política. Quanto à autonomia financeira, entende-se que as unidades federadas precisam prover-se de recursos públicos por seus próprios meios, sem que precise se submeter a solicitar recursos para outras unidades federadas, colocando-se em uma posição desconfortável. Assim, o conceito de autonomia está ligado a capacidade financeira dos Entes federados:
“Autonomia pode ser definida como a capacidade de autogoverno, sendo caracterizada por uma ampla gama de atribuições, como a capacidade orçamentária, administrativa, legislativa, financeira e, principalmente, tributária.”[19]
Soberania “é a faculdade que, num dado ordenamento jurídico, aparece como suprema”[20]. Quem tem a soberania tem o poder supremo, não reconhecendo outro poder acima de si.
É preciso observar que a União é uma unidade federativa, ordem central, dotada de autonomia, enquanto quem detém a soberania é a República Federativa do Brasil, formada pela reunião da União, Estados, Distrito-Federal e Municípios.
A distinção entre Estado federal (República Federativa do Brasil), União e Estados-membros é feita por José Afonso da Silva:
“Estado Federal é o todo, dotado de personalidade jurídica de Direito Público internacional. A União é a entidade federal formada pela reunião das partes componentes, constituindo pessoa jurídica de Direito Público interno, autônoma em relação aos Estados e a que cabe exercer as prerrogativas da soberania do Estado brasileiro. Os Estados-membros são entidades federativas componentes, dotadas de autonomia e também de personalidade jurídica de Direito Público interno.[21]”
Podemos sintetizar como características da federação: a existência de descentralização política; repartição de competências feita constitucionalmente; Constituição rígida como pressuposto jurídico; inexistência do direito de secessão; atribuição da soberania ao Estado federal; a previsão da possibilidade de intervenção; a auto-organização dos Estados-membros por meio de suas Constituições estaduais; a existência de órgão representativo dos Estados-membros para participar na formação da vontade nacional; existência de um guardião da Constituição; igualdade jurídica entre as unidades federadas e repartição de receitas.
No funcionamento esperado de uma federação os Entes federados são autônomos e a extensão da sua autonomia é determinada pela repartição de competências pela Constituição. No modelo americano, por exemplo, os estados federados possuem ampla autonomia para legislar, por exemplo, sobre direito penal (o que no Brasil é de competência privativa da União), para legislar sobre direito tributário, de forma a existir uma grande descentralização do poder. A comparação do modelo americano com o brasileiro, guardadas as devidas proporções, faz refletir sobre se há realmente descentralização no modelo brasileiro, já que em vários segmentos há traços de centralização.
5. Argumentos a favor da alteração de competência tributária
Parte da doutrina entende que não haveria violação à federação caso ocorresse alteração de competência tributária. Inicialmente, pontua Luís Eduardo Schoueri que não haveria razão para o constituinte ter repartido competências pois:
“a discriminação de competências tributárias não é requisito de um sistema federal. Este exige que se assegure às pessoas jurídicas de direito público autonomia financeira. Entretanto, autonomia financeira implica discriminação de rendas, o que não se confunde com discriminação de competências.”[22](grifos nossos).
A distinção entre discriminação de rendas e competência tributária é o argumento principal dos defensores da ideia de que a alteração de competência tributária não afeta a federação, pois as normas orçamentárias garantem a repartição de rendas. Com a garantia das receitas para cada Ente federado estaria satisfeita a autonomia financeira do Ente público, sem, necessariamente, precisar utilizar da imposição tributária, que, sob essa perspectiva, assumiria uma posição secundária na captação de recursos.
Tácio Lacera Gama defende que é possível que entidades tenham autonomia financeira sem competências tributárias impositivas, pois essa autonomia pode decorrer de duas formas: da imposição de tributos ou de repasses de receitas. Adotando o pensamento de Sampaio Dória, segundo o qual a discriminação de receitas tributárias pode ser feita tanto pela fonte quanto pelo produto, Lacerda Gama afirma que a repartição de receitas tributárias pode assegurar recursos necessários à autonomia do ente federativo.
Conforme Lacerda Gama, ainda que houvesse concentração de captação de tributos em um Ente federativo (União, por exemplo), a norma orçamentária, de natureza constitucional e obrigatória, garante a repartição das receitas, resultando em ilusória a aparente desigualdade arrecadatória dos Entes políticos.
6. Da violação indireta da cláusula pétrea da forma federativa de Estado e configuração de um federalismo centrípeto.
Seguindo a Classificação de Dirley da Cunha Júnior[23], quanto à maior ou menor concentração do poder, o federalismo pode ser centrípeto, centrifugo ou de equilíbrio. Centrípeto é o que tem maior concentração do poder no governo central. Centrífugo é o que tem maior poder para os governos regionais. Federalismo de equilíbrio é o que há uma divisão equilibrada do poder entre os governos centrais e regionais. O Brasil se propõe a ser um federalismo de equilíbrio.
Aqui, em nosso estudo, vai interessar analisar o risco de a União estar concentrando muitas competências de forma a caracterizar um federalismo centrípeto e estabelecer um federalismo de “fachada”, visto que, embora se pretenda ser um federalismo de cooperação, pode acabar tornando-se um federalismo de subordinação.
Como visto, a forma federativa de Estado é cláusula pétrea e não pode ser suprimida. A violação dessa cláusula pétrea não envolve apenas a proposta de emenda constitucional que vise tornar o Brasil em Estado unitário. Conforme Dirley:
“(...) devemos entender que quando a Constituição veda proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, ela na verdade está proibindo suprimir os elementos constitutivos e conceituais da federação brasileira, como por exemplo, a autonomia dos Estados e Municípios.”[24]
Assim, chegamos a uma importante conclusão de que suprimir a autonomia dos Estados e Municípios é violar a cláusula pétrea da forma federativa de Estado. Essa autonomia precisa ser preservada em suas três vertentes: autonomia financeira, administrativa e política. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal que violar a autonomia financeira dos Estados é ferir a cláusula pétrea da forma federativa de Estado:
“Na espécie, cuida-se da autonomia do Estado, base do princípio federativo amparado pela Constituição, inclusive como cláusula pétreas (art. 60, §4°, I). Na forma da jurisprudência desta Corte, se a majoração da despesa pública estadual ou municipal, com a retribuição dos seus servidores, fica submetida a procedimentos, índices ou atos administrativos de natureza federal, a ofensa à autonomia do ente federado está configurada.” (ADPF 33-MC, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, julgmanto 29/10/2003, Segunda Turma, DJ de 6-8-2004).
Dessa forma, com base numa interpretação sistemática e considerando o entendimento dos Tribunais Superiores sobre o tema, constatamos que o ordenamento jurídico brasileiro não veda a alteração de competência tributária de um Ente político para outro, devendo, apenas, preservar a autonomia financeira de cada um para que se abasteçam de verbas para dar conta de suas máquinas públicas e executar seus serviços.
Não há clausula pétrea que proíba diretamente a alteração de competência tributária, mas para garantir os preceitos do Estado Federal, o qual é sim cláusula pétrea, faz-se necessário observar a autonomia financeira das pessoas jurídicas de direito público interno. Esse é o entendimento de Mendes e Branco:
“A repartição de competências é crucial para a caracterização do Estado Federal, mas não deve ser considerada insuscetível de alterações. Não há obstáculo à transferência de competências de uma esfera da Federação para outra, desde que resguardado certo grau de autonomia de cada qual.”[25]
7. A Emenda Constitucional 233/2008.
A emenda constitucional 233/2008 tem o objetivo de simplificar o sistema de arrecadação fiscal brasileiro ao promover uma reforma tributária, necessária em nosso país. Há atualmente 27 legislações estaduais que regulamentam os seus respectivos ICMS (imposto sobre a circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação), o que revela um quadro de alta complexidade, dificultando a arrecadação pelos contribuintes.
Na tentativa de atrair investimentos para seus territórios, os Estados promovem diversos benefícios fiscais, caracterizando uma “guerra fiscal”, perniciosa para a Federação brasileira, que se diz uma federação de cooperação.
Com a emenda constitucional 233/2008, o ICMS passa a ser de competência conjunta dos Estados e Distrito Federal, sendo instituído por meio de uma lei complementar federal. Ou seja, haveria apenas uma única lei nacional a ser seguida pelas unidades federadas. Note-se que a sua instituição seria pela União, por meio da lei complementar, a qual não faria às vezes de estabelecer normas gerais, mas sim instituir o imposto.
Entendemos que não há violação à federação brasileira. A autonomia financeira dos Estados é preservada na medida em que é garantida a repartição das receitas aos Estados, não havendo déficit na arrecadação dos Entes federados para prover seus serviços. Também, mantém-se uma parcela de participação dos Estados na instituição do ICMS, já que a regulamentação do imposto se daria por meio de um órgão colegiado, algo como hoje é o Confaz.
Ora, a cláusula pétrea da forma federativa de Estado não é afetada, pois os Estados continuarão com previsão de receitas, mesmo que de forma de repartição de receitas. Note-se que essa previsão de repartição é de natureza constitucional e não contratual, o que garante maior estabilidade e segurança jurídica para os Estados, não havendo violação da autonomia financeira dos Estados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A forma federativa de Estado é cláusula pétrea em nossa Constituição Federal. A federação brasileira se fundamenta na autonomia dos entes federados, bem como na igualdade jurídica entre eles.
Não há, entre as cláusulas pétreas, a proibição explícita de se alterar a competência tributária, capaz de fazer com que, por exemplo, o ICMS, que é de competência dos Estados, passe a ser de competência da União. Assim, a princípio, não há proibição e se alterar a competência tributária.
Entretanto, como a autonomia se subdivide em autonomia financeira, administrativa e política, é preciso analisar se essa mudança de competência tributária não afeta a autonomia financeira do ente federado que teve sua competência tributária retirada. Isso porque as unidades federativas precisam suprir-se de rendas com seus próprios meios para poder dar conta da sua máquina pública, bem como gerir seus serviços. Desprover uma unidade federativa de suas fontes de rendimentos é colocá-la em posição de desigualdade fático-econômica perante as demais, pois propicia um ambiente ideal para que esta unidade federativa, que teve sua competência tributária suprimida, fique dependente de transferências voluntárias de outros entes para se socorrer economicamente. Ou seja, haveria uma quebra da igualdade entre os Entes políticos, apregoada pelo princípio federativo. Com isso, restaria violada a cláusula pétrea que veda a abolição da forma federativa de Estado.
Com uma maior concentração de competências no Governo central, a federação brasileira corre o risco de se caracterizar como uma federação centrípeta, em que há maior concentração do poder no Governo central em detrimento dos Governos locais.
Entendemos que para saber se é constitucional ou não uma proposta de emenda constitucional que pretenda alterar competência tributária faz-se necessário investigar, sobretudo, a extensão dos efeitos financeiros que irar causar. É preciso saber se haverá repasse constitucional, de natureza obrigatória, para evitar que um entre político fique se submetendo a outro para angariar verbas, por meio de transferências voluntárias.
Assim, adotamos a postura de que a diminuição acentuada da autonomia financeira de um ente político agride a federação indiretamente, pois afeta a característica fundamental de um ente federado, que é sua autonomia, além de instituir uma desigualdade fática e econômica entre as unidades federadas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. 2ª eddição. São Paulo: Noeses, 2009.
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SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009.
[1]GAMA, Tácio Lacerda. Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. 2ª eddição. São Paulo: Noeses, 2009. p. 65.
[2]CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 27ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 535.
[3]CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 6ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 255.
[4] Ressalvamos aqui os debates em torno do art. 11 da Lei Complementar 101/99, que dispõe que: “Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.” Entretanto, entendemos que o referido dispositivo não tem força de obrigatoriedade.
[5] STF, RE 577.025, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 11.12.2008, Plenário, DJE de 06.03.2009.
[6]CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 6ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 255.
[7] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 138.
[8] Idem, Ibidem. p. 137.
[9]“Art. 60. (...) § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.”
[10] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 6ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 258.
[11] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 165.
[12] Idem, Ibidem. p. 166.
[13] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 141.
[14] STF, ADI-MC 2024 DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento 27/10/1999, Pleno, DJ 01-12-2000.
[15]SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 98.
[16] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23ª edição. São Paulo: Atlas, 2010, p. 410.
[17] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 9ª edição. São Paulo: Saraiva. 2009, p. 76.
[18] Idem, Ibidem. p. 77.
[19] AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 107.
[20] CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 27ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 139.
[21] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional. 32ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 100.
[22] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 260.
[23] CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 6ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012, página 902.
[24] Idem, Ibidem, p. 255.
[25]MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 143.
Procurador do Município de São Paulo. Pós-graduado em direito constitucional. Graduado em direito na UFPE. Foi pesquisador bolsista Pibic/CNPQ. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEVES, Eduardo Constantino das. Modificação de competência tributária e os limites do poder constituinte derivado reformador na federação brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 out 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47606/modificacao-de-competencia-tributaria-e-os-limites-do-poder-constituinte-derivado-reformador-na-federacao-brasileira. Acesso em: 22 nov 2024.
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