Resumo: Tem-se como objetivo a conceituação de boa-fé (aspectos objetivo e subjetivo) e função social enquanto princípios fundamentais (os quais redundam em verdadeira conditio sine qua non do direito obrigacional) estabelecidos pelo ordenamento pátrio aos contratos e suas implicações, bem como a aplicação dos referidos princípios no caso concreto e sua análise.
Palavras-chave: princípios contratuais, boa-fé objetiva, função social.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS E ASPECTOS HISTÓRICOS DA BOA-FÉ. 2. DIFERENCIAÇÃO ENTRE BOA FÉ SUBJETIVA E BOA-FÉ OBJETIVA. 3. ASPECTOS GERAIS ACERCA DA BOA-FÉ OBJETIVA. 4. BOA-FÉ: APLICAÇÃO EM CASOS CONCRETOS. 5. ASPECTOS GERAIS ACERCA DA FUNÇÃO SOCIAL. 6. FUNÇÃO SOCIAL: APLICAÇÃO EM CASOS CONCRETOS. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
Os contratos são, indubitavelmente, a principal fonte do Direito Obrigacional. Decorrem de ato humano entre partes distintas, bastando a tais, precipuamente, o consenso acerca do estabelecido.
A visão tradicional que deu à luz ao Código Civil de 1916 vê nas relações obrigacionais vínculo de subordinação do devedor frente ao credor (o dominus da relação), de forma que este tem o direito de receber seus créditos e aquele, apenas o dever de adimplir a obrigação.
À luz de 1988, todavia, percebe-se nitidamente que, para além do já afirmado, cabe ao credor o cumprimento do que lhe compete, assim como ao devedor, o direito de adimplir a obrigação. A partir do texto constitucional (que vem romper com um passado essencialmente liberal e patrimonialista) as relações obrigacionais veem-se, mais do que nunca, baseadas em princípios e carentes de tais para, fatalmente, obrigar as partes e produzir efeitos de fato.
O presente artigo objetiva elucidar recorrentes dúvidas acerca dos conceitos de dois princípios fundantes a partir, sobretudo, da óptica social que predomina (ou deve predominar) as relações contratuais pós-1988: a boa-fé – objetiva e subjetiva – e a função social.
De acordo com o art. 422 do Código Civil, o princípio da boa-fé consiste na exigência de que ambas as partes se comportem de maneira correta durante a formação e o cumprimento do contrato, bem como durante as tratativas.
O princípio da boa-fé recomenda ao juiz que esta seja presumida, devendo ser comprovada a má-fé por quem a alega. Segundo Gonçalves,
“deve este [juiz], ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, sendo atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar” (2012, pág. 54).
A regra da boa-fé é cláusula geral para a aplicação do direito obrigacional, que junto da consideração de outros princípios jurídicos e de fatores não-jurídicos, colaboram para a resolução do caso.
O antigo ordenamento civil que existia no nosso país privilegiava os princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade dos contratos, seguindo um viés individualista. Já o novo sistema civil implantado fornece ao juiz um novo instrumental, tendo como base os princípios da sociabilidade e operabilidade que deu nova feição aos princípios fundamentais dos contratos, incorporando novos institutos, especialmente a boa-fé e a probidade.
Pondera Gonçalves que “o juiz deve rigorosamente aplicar no julgamento das relações obrigacionais: a boa-fé objetiva, o fim social do contrato e a ordem pública”. (2012, pág. 55). Assim, percebe-se o quão fundamental é a boa-fé nas relações jurídicas obrigacionais.
A boa-fé subjetiva pode ser facilmente percebida como “dizer o que se acredita e acreditar no que se diz”. Era presente no Código Civil de 1916. Está diretamente vinculada, via de regra, a um entendimento equivocado quanto à realidade fática. A esse respeito, Venosa afirma que “o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um estado de consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado” (2013, pág. 396).
Partindo de seu caráter eminentemente subjetivo (como evidencia sua denominação), é fundamental que o intérprete considere a intenção do sujeito. Não à toa, é também denominada concepção psicológica da boa-fé.
Por sua vez, a boa-fé objetiva tem compreensão diversa. Essa concepção ética de boa-fé corresponde a “uma regra de conduta e um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos”, elucida Venosa.
Gonçalves sustenta que o elemento inovador da boa-fé no Código de 2002, com profundo impacto na gênese da relação obrigacional, é seu aspecto objetivo, “que se constitui em norma jurídica fundada em um princípio geral do direito, segundo o qual todos devem comportar-se de boa-fé nas suas relações recíprocas” (2012, pág. 56).
Diz o art. 422 do Ordenamento Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Tal norma legal é aberta, uma vez que, aduz Gonçalves, cabe ao julgador entender como o contratante deveria ter procedido frente a determinada circunstância. Deve haver uma comparação entre as atitudes que seriam tomadas pelo “homem médio” naquela situação e as que de fato ocorreram.
“Se houver contrariedade, a conduta é ilícita porque violou a cláusula da boa-fé, assim como veio a ser integrada pela atividade judicial naquela hipótese. Somente depois dessa determinação, com o preenchimento do vazio normativo, será possível precisar o conteúdo e o limite dos direitos e deveres das partes” (GONÇALVES, 2012, pág. 58).
Depreende-se do exposto no artigo supracitado que a boa-fé deve se fazer presente não apenas em pontos específicos da relação contratual, mas antes, durante e após a obrigação ter sido celebrada, e é de tal forma abrangente que o descumprimento de algum dever anexo ou colateral compromete a boa-fé objetiva da relação como um todo, sendo identificado o inadimplemento do contrato. “Esses deveres anexos”, afirma Gonçalves, “excedem o poder de prestação e derivam diretamente do princípio da boa-fé objetiva” (2012, pág. 59). São exemplos os deveres de esclarecimento, de proteção, de conservação, de lealdade, de cooperação etc.
Venosa e Gonçalves aludem à função limitadora do princípio da boa-fé – “veda ou pune o exercício de direito subjetivo quando se caracterizar abuso da posição jurídica” (2012, pág. 60).
Elemento digno de destaque é a proibição de venire contra factum proprium, a qual
“protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra de princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte” (2012, pág. 60).
Sabiamente formulado, o Enunciado 362 da IV Jornada de Direito Civil aponta para essa direção, afirmando que “a vedação do comportamento contraditório funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos artigos 187 e 422 do Código Civil” (2012, pág. 61).
Suppressio, surrectio e tu quoque são conceitos correlatos à boa-fé objetiva identificados por Gonçalves, haja vista a função integrativa que esta assume ao suprir as lacunas do contrato e trazer deveres implícitos às partes contratuais.
A suppressio corresponde à literal supressão de direito que, em razão do seu não exercício continuado, não poderá posteriormente sê-lo, por contrariar a boa-fé; a surrectio, por sua vez, sendo a outra face da suppressio, corresponde ao nascimento de direito a partir de repetitiva prática de determinado ato; o tu quoque “veda que alguém faça contra o outro o que não faria contra si mesmo” (2012, pág. 62).
Para melhor esclarecer de que forma a boa-fé configura uma cláusula geral para a aplicação do direito obrigacional, permitindo-se assim a solução do caso levando em consideração fatores metajurídicos e princípios jurídicos gerais, faz-se necessário que se analise casos concretos.
a) Ementa:
“APELAÇÃO CÍVEL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE RISCO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS COMPROVADA. ÊXITO PROCESSUAL. HIPÓTESE EM QUE A RÉ CONTRATOU OUTROS PROFISSIONAIS PARA AJUIZAR DEMANDA COLETIVA, EM DETRIMENTO DO ADVOGADO CONTRATADO. FRUSTAÇÃO DO PAGAMENTO. REVOGAÇÃO DO MANDATO APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. APLICAÇÃO DOS ARTS. 112 E 422 DO CÓDIGO CIVIL. ART. 22 DO ESTATUTO DA OAB. SENTENÇA REFORMADA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. POR UNANIMIDADE, DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. (APL Nº 70050737121 – TJ/RS)”.
Neste caso, RENATO BONFIGLIO ingressou com Ação de Cobrança de Honorários Advocatícios em face de ADRIANE ELISE VIEIRA. Alegou que em 02/08/1993 a requerida lhe outorgou mandato para propor demanda perante o INSS, junto a 1ª Vara Federal de Piracicaba-SP. Sustentou que, quando o processo já se encontrava em fase de execução de sentença, ficou sabendo que a demandada já havia recebido o que estava sendo pleiteado, visto que havia ingressado, anteriormente, por meio de órgão regulador de sua classe profissional, com ação coletiva. Disse que nunca havia sido comunicado pela requerida sobre a existência de outro processo tratando do mesmo pedido. Declarou que nada recebeu pelo trabalho realizado, sendo que foi contratado com a autora o recebimento de 15% da vantagem financeira que decorreria da procedência da demanda. Afirmou que a requerida optou por receber em ação coletiva, apesar de ter obtido a procedência do pedido através de seus serviços, devendo efetuar o pagamento dos honorários com base no que foi recebido naquela demanda. Aduziu que atuou com zelo e prudência, cumprindo os atos para os quais foi designado. Requereu a procedência do pedido com a condenação da ré ao pagamento de 15% sobre o valor recebido na ação coletiva. Postulou seja juntado aos autos cópia do precatório recebido na referida ação, para que reste comprovado o montante recebido.
Por conseguinte, percebe-se que, em suas razões de apelação, o autor discorre a respeito da natureza jurídica do contrato de mandato e de prestação de serviços advocatícios, asseverando que embora o objeto tenha sido aleatório (de risco), não autoriza a demandada a contratar outros profissionais para patrocinar o mesmo objeto - por meio de ação coletiva - sem comunicar e pagar o demandante, que continuou trabalhando até o fim da demanda ajuizada, cumprindo o contrato e o mandato que lhe fora outorgado. Desta forma, em razão do trabalho prestado e êxito no feito ajuizado, entende que a demandada deve responder pelo percentual contratado (15%), nos termos do art. 422 do Código Civil, em detrimento da má-fé da ré, que se valeu de manobra ardilosa, consistente na expectativa de qual demanda seria julgada primeiro. Por fim, informa que a apelada somente não recebeu a vantagem financeira obtida no feito ajuizado pelo autor, porquanto já havia recebido nos autos da ação coletiva proposta por outros profissionais. Pede o provimento para julgar procedente a ação, o que é conferida por unanimidade pelos Desembargadores integrantes da Décima Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado.
Dessa forma, notadamente se percebe que a conduta praticada pela ré não somente mostra-se injusta, como também se manifesta ardilosa e incompatível com o princípio da boa-fé, qual seja, o dever das partes de agir de forma correta, eticamente aceita, antes, durante, e depois do contrato. Na visão de Gonçalves:
“O princípio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar”. (2012, p. 54)
Além disso, cabe destacar – e que inclusive também motivou os Desembargadores a julgarem procedente por unanimidade a ação – o fato de que o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94, art. 22, caput), dispõe que a prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil o direito aos honorários advocatícios convencionados, aos fixados por arbitramento judicial, e aos de sucumbência.
b) Ementa:
“CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. COMPRA E VENDA DE APARELHO CELULAR - COMPANHIA TELEFÔNICA QUE VENDE, MAS NÃO ENTREGA APARELHO TELEFÔNICO A CONSUMIDOR – RECURSO NÃO PROVIDO – SENTENÇA MANTIDA. (ACJ 2005.10.1.004733-2 – TJ/DF)”.
A lide iniciou com a não entrega de aparelho celular comprado via telemarketing pelo valor de R$ 49,00. Apesar das várias ligações de reclamação da demora da entrega do aparelho para o número de atendimento da empresa BRASIL TELECOM CELULAR S/A, a mesma recusava-se a enviar o aparelho que havia sido pago na data estabelecida. Ainda que tenha apresentada contestação alegando que houve erro no cadastramento e que a operadora do telemarketing ofereceu por R$ 49,00 um aparelho que custava R$ 499,00 e se comprometido a devolver o valor pago, a empresa foi sentenciada a entregar o aparelho no modelo comprado, no prazo de 10 dias e, a título de indenização por danos morais, pagar a quantia de R$ 3.000,00 à parte autora. A empresa de telefonia recorreu. O recurso não foi provido e a sentença foi mantida. A sentença do juiz foi motivada, dentre outros princípios, pelo princípio da boa-fé objetiva (artigo 4º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor). Afirmou o Sr. Juiz Antônio da Silva Lemos, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que “a boa-fé objetiva representa o padrão de conduta esperado do fornecedor na sua atuação no mercado”. Visto que a autora agiu de boa-fé, uma vez que escolheu comprar aparelho pelo valor anunciado pela própria empresa, esperava-se a mesma boa-fé da parte ré na clareza e adequação de informações sobre o produto, para que a consumidora pudesse ter sua expectativa correspondida. Fica caracterizada má-fé da empresa no momento em que a mesma formaliza a venda sem mencionar a diferença do preço e, após tudo contratado, e adimplido pela autora, a empresa não cumpre a obrigação de entregar o aparelho. Em resumo, a empresa foi obrigada a entregar o produto anunciado e no valor anunciado, afinal, entendeu-se que o consumidor não deveria arcar com os erros de informação da empresa.
c) Ementa:
INDENIZAÇÃO. CONTA CORRENTE BANCÁRIA. CHEQUE ESPECIAL. CORRENTISTA QUE VÈ SEU SALDO DEVEDOR AUMENTAR PAULATINA E PROGRESSIVAMENTE, ENQUANTO DEIXA DINHEIRO APLICADO EM INVESTIMENTO RECOMENDADO PELO RÉU. RESGATE DA APLICAÇÃO SUBSTANCIALMENTE DESTINADO A COBRIR O SALDO DEVEDOR DA CONTA CORRENTE. HIPÓTESE EM QUE A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DEVE SER OBRIGADA A INDENIZAR O PREJUÍZO, POR NÃO TER AGIDO COM A BOA-FE EXIGÍVEL. CONCORRÊNCIA DE CULPAS CONFIGURADA. DANO MORAL DA AUTORA CARACTERIZADO. DEVER DE INDENIZAR. RECURSO DA AUTORA PROVIDO EM PARTE. (APL N° 1.318.755-2 TJ/SP).
A contenda inicia-se com cobrança de saldo devedor de conta bancária. A parte autora – cliente – alega que o banco ITAU/SA – parte ré – agiu de má-fé, pois o que ocorreu foi o seguinte: Mesmo tendo renda mensal baixa, a cliente do banco foi aconselhada a utilizar cheque especial e teve seu limite aumentado para R$ 50.000,00. Ao mesmo tempo, foi também acordado verbalmente que a aplicação de regime de resgate automático que a cliente tinha neste banco deixasse de ter esse tipo de resgate, ficando o montante a lucrar no banco. Ocorre que a cliente continuou a retirar o dinheiro que acreditava serem os rendimentos de sua aplicação quando, na verdade, estava sacando do limite. Quando o saldo devedor chegou próximo aos R$ 50.000,00 do limite, a cliente foi chamada ao banco para adimplir esse saldo devedor, a fim de que a cliente pagasse com o dinheiro de sua aplicação. A Justiça entendeu que o banco não agiu com a diligência exigível, mas que a cliente também foi negligente, pois não foi averiguar junto ao banco o porquê de não estar mais recebendo os extratos mensais. O banco errou, pois fez um contrato verbal que implicava em grandes mudanças e com informações as quais uma senhora de idade podia não ter o entendimento necessário para medir as consequências. Pelo exposto, o Tribunal concluiu que estava configurada concorrência de culpas: culpa da autora por não examinar os lançamentos (dever do correntista de diligência mediana) e deixar os fatos tomarem as proporções que tomaram, e culpa do réu que não agiu com a boa-fé exigível em qualquer relação contratual, agindo de forma a violar deveres como proteção de informação e lealdade (mesmo sendo deveres secundários devem ser sempre observados). O que um cliente espera é que o profissional do banco detenha o conhecimento necessário para detectar situações como esta e não de usar esse conhecimento em desfavor do cliente. Já que a concorrência de culpas foi a conclusão a qual o Tribunal chegou, a sentença foi a seguinte: divisão igualitária dos prejuízos. Ficando também configurado o “sofrimento psíquico” da parte autora, que perdeu suas economias, foi-lhe atribuída indenização no valor de R$ 8.220,00.
O Código de 2002 adota o princípio da sociabilidade, em que prevalecem os valores coletivos sobre os individuais, garantindo o papel fundamental da pessoa humana. O sentido social é uma das características mais marcantes do novo diploma. A função social do contrato está relacionada com a função social da propriedade prevista na Constituição Federal de 1988, tendo como objetivo a realização da justiça, de modo a igualar substancialmente os contraentes.
Segundo Gonçalves, o art. 421 do Código Civil
“subordina a liberdade contratual à sua função social, com prevalência dos princípios condizentes com a ordem pública. Considerando que o direito de propriedade, que deve ser exercido em conformidade com a função social, proclamada na Constituição Federal, se viabiliza por meio dos contratos, o novo Código estabelece que a liberdade contratual não pode afastar-se daquela função” (2012, pág. 52).
A função social do contrato é um princípio moderno que deve ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos, tornando-se um dos pilares da teoria contratual. Essa função social serve como limitação dos princípios tradicionais, especialmente da autonomia da vontade. Em situações de conflito entre autonomia e interesse social, deve prevalecer esse último, mesmo que essa restrição atinja a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório.
De acordo com Gonçalves, “a função social do contrato somente estará cumprida quando a sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social” (2012, pág. 26).
A aplicabilidade da função social está condicionada a dois aspectos: um, individual, que diz respeito à satisfação pessoal dos interesses dos contratantes; e outro, público, que é o interesse da coletividade sobre o contrato.
É importante ressaltar que a função social do contrato é uma cláusula geral, bem como a que exige um comportamento condizente com a probidade e boa-fé objetiva. Caberá ao juiz utilizar como recurso valores jurídicos, sociais, econômicos e morais para solucionar no caso concreto. Conforme Nery Junior, sendo “normas de ordem pública, o juiz pode aplicar as cláusulas gerais em qualquer ação judicial, independentemente de pedido da parte ou do interessado, pois deve agir ex officio” (2003, pág. 416-417).
Para Araken de Assis, o contrato cumprirá a sua função social “respeitando sua função econômica, que é a de promover a circulação de riquezas, ou a manutenção das trocas econômicas, na qual o elemento ganho ou lucro jamais poderá ser desprezado, tolhido ou ignorado, tratando-se de uma economia de mercado” (2007, pág. 85-86).
Com isso, percebe-se que todo contrato que inibe o “movimento natural do comércio jurídico” e que prejudica os demais integrantes a sociedade na obtenção dos seus bens descumpre sua função social.
Para que “a função social do contrato avalie-se na concretude do direito” (VENOSA, 2013, p. 398), faz-se necessário que casos concretos sejam analisados.
a) Ementa:
“AGRAVO INTERNO. DECISÃO MONOCRÁTICA MANTIDA. Não é lícita a alteração unilateral da cláusula contratual que autoriza os descontos em conta corrente, a qual deve ser tida como condição da própria contratação, visando à preservação da pacta sunt servanda e das cláusulas gerais da boa-fé objetiva e função social do contrato. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. UNÂNIME. (AGRAVO Nº 70054153952 – TJ/RS)”.
Trata-se de agravo interposto por LEONEL CORREIA COSTA contra decisão monocrática proferida nos autos do recurso de agravo nº. 70054018692. No qual “requer a reconsideração de tudo exposto, deferindo a medida liminar pleiteada, tendo em vista levar à Câmara Recursal o agravo. Alega existirem cláusulas que devem ser revisadas no contrato por serem ilegais. Postula o afastamento das cláusulas abusivas e excessivas, devendo a posse do veículo ser mantida pela agravante e a exclusão do nome nos cadastros de inadimplentes.” Contudo, após vistos, relatados e discutidos os autos, acordam os Desembargadores integrantes da Décima Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade em negar provimento ao agravo interno, já que os argumentos trazidos pelo recorrente não apontam motivos para a reforma da decisão monocrática anteriormente proferida.
No voto do Desembargador Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard (relator do processo), afirma-se que não se mostra lícita a alteração unilateral da cláusula contratual que autoriza os descontos em conta corrente, a qual deve ser tida como condição da própria contratação, visando à preservação da pacta sunt servanda e das cláusulas gerais da boa-fé objetiva e função social do contrato, apresentando-se esta última, modernamente, como um dos pilares da teoria contratual.
Dessa maneira, conclui-se com o processo supracitado, que a função social do contrato constitui um princípio moderno no qual deve ser observado pelo intérprete na aplicação dos contratos. De forma, nas palavras de Jones Figueirêdo Alves, a promover uma realização de uma justiça comutativa, aplainando as desigualdades substanciais entre os contraentes.
b) Ementa: “AGRAVO INTERNO. SEGUROS. PLANO DE SAÚDE. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. DEFERIMENTO. PRESENÇA DA VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES E NECESSIDADE DE URGÊNCIA NA CONCESSÃO DO PROVIMENTO. ART. 273 DO CPC. (AGRAVO Nº 70054391537 – TJ/RS)”. |
Trata-se de um caso em que a autora ajuizou uma ação no Tribunal de Justiça do RS, contra o seu plano de saúde -UNIMED- com a pretensão de obter um tratamento cirúrgico. A autora possuía indicação médica e o procedimento fazia-se necessário para uma melhor qualidade de vida e exercício pleno de suas funções, as quais se encontravam comprometidas. A parte requerente ingressou com um pedido de liminar para obter uma autorização do procedimento. Em primeiro grau, foi concedida a autorização, pois, estavam presentes todos os requisitos necessários para tal, uma vez que a autora corria o risco de lesão grave. A parte requerida (UNIMED), na tentativa de impedir que fosse dado provimento à realização do procedimento, ingressou com um agravo para que fosse suspensa a medida. Todavia, não obteve êxito, já que estavam presentes todos os requisitos necessários para que o pedido da parte requerente fosse atendido; inclusive foi estabelecida uma multa diária, caso não fosse realizado o procedimento.
Dessa forma, diante da análise do conceito de função social presente neste artigo, conclui-se que tal decisão atingiu a função social, uma vez que atende ao Princípio da Solidariedade, princípio este que serve de base para função social, além de preservar os direitos de todos os consumidores que se valem do plano de saúde.
Ementa: “APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. SERVIÇOS DE TELEFONIA NÃO CONTRATADOS. DANO MORAL. SERVIÇOS NÃO CONTRATADOS. ÔNUS DA PROVA: As provas produzidas são suficientes para a demonstrar a inexistência de contratação havida entre as partes, de pacotes adicionais. O ônus da prova do fato impeditivo, extintivo ou modificativo ao direito da parte adversa é da ré, nos termos do inciso II do artigo 333 do Código de Processo Civil, ônus do qual não se desincumbiu. Sentença mantida. MULTA POR DESCUMPRIMENTO: Cabível a fixação de multa diária para hipótese de descumprimento de obrigação de fazer, ou seja, novo cadastramento em banco de dados negativos por serviços não contratados e identificados na inicial. REPETIÇÃO DO INDÉBITO: O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso. Inteligência do art. 42, parágrafo único do CDC. PRESCRIÇÃO: Cabível a restituição integral desde que iniciada a cobrança, observado o prazo prescricional de cinco anos. DANO MORAL: Incontroverso nos autos a ocorrência de cobranças por serviços não contratados por parte da operadora de telefonia demandada. Configurada a falha na prestação de serviços por parte da demandada, que não conseguiu atender as irresignações da parte na esfera extrajudicial, restam reconhecidos como verdadeiros os fatos alegados pela autora, o que culmina na fixação de danos morais. Sentença reformada. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS: Majorados. Inteligência do artigo 20, §3º, do Código de Processo Civil. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DA RÉ; E DERAM PROVIMENTO AO APELO DO AUTOR. (APL Nº 70054763347 – TJ/RS)”.
Neste caso, a parte autora ingressou com uma ação, também no Tribunal de Justiça do RS, contra uma companhia telefônica – BRASIL TELECOM CELULAR S.A. OI- em razão da cobrança de servidos não contratados, requerendo a devolução em dobro, daquilo que foi cobrado indevidamente, além de danos morais em razão do constrangimento causado à requerente. Em primeiro grau, a ação foi julgada parcialmente procedente, ou seja, foi concedido o pedido de devolução em dobro, dos valores que foram cobrados por serviço não contratado e, foi considerado improcedente o pedido de indenização por dano moral. Em virtude disso, a autora recorreu ao STJ que, decidiu pelo provimento do dano moral. A parte ré também recorreu, todavia não obteve êxito.
Assim sendo, ao analisar a sentença deste caso, reafirma-se mais uma vez a importância do princípio da função social nas relações contratuais. Nessa situação, pode-se dizer que houve também um abuso de direitos da parte ré ao cobrar por serviços que não foram contratados, fato este que, provavelmente tenha motivado a decisão do STJ de dar provimento ao pedido de indenização por dano moral. Além disso, mostra-se evidente que tal atitude por parte da companhia telefônica atinge diretamente o código de defesa do consumidor, o qual tem por dever a priorização da função social dentro dos contratos.
A nova ordem jurídica brasileira proporcionou numerosos avanços na construção de um direito menos individual e mais coletivo. Tal se percebe a partir da análise da construção doutrinária e jurisprudencial de boa-fé objetiva e função social. De fato, estes são fundamentos relativamente jovens no ordenamento pátrio, porém basilares à concepção jurídica obrigacional efetiva hodierna.
Ser probo e agir com boa-fé objetiva é requisito indispensável a qualquer celebração contratual, sem, contudo, olvidar-se da função social, instrumento crucial para a efetivação da equidade e a implementação da justiça.
ASSIS, Araken de. Comentários ao Código Civil brasileiro. Volume V. Coord. de Arruda Alvim e Thereza Alvim. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume III: Contratos e Atos Unilaterais. 9. ed., São Paulo: Saraiva, 2012.
NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil – Apontamentos gerais. In: O novo Código Civil: Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. Coord. de Domingos Franciulli Netto, Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins Filho. São Paulo: LTr, 2003.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Volume II – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2013.
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VELASCO, Liziane Bainy. Boa-fé e função social dos contratos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 out 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47654/boa-fe-e-funcao-social-dos-contratos. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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