Resumo: Para que possamos compreender melhor os contratos sociais de Hobbes, Locke e Rousseau se faz necessário tecer um diálogo entre política, poder e Modernidade. A ideia de nação e criação do constitucionalismo urge com o Iluminismo, no entanto, a atual noção de Estado ainda se encontra sob influência dos preceitos da Modernidade. Nesse presente texto tem-se por objetivo contextualizar a formação do Estado para o contratualistas, bem como associar a sua origem à democracia e à cidadania.
Palavras-chave: Estado. Contratualistas. Poder. Modernidade. Democracia.
INTRODUÇÃO
Para que possamos compreender melhor o contrato social de Hobbes, Locke e Rousseau se faz necessário uma introdução a respeito da política.
Etimologicamente, “política”, oriunda do grego, significa “pólis”, cidade. Portanto, a política é a arte de governar, de gerir o destino da cidade. Explicar em que consiste a política é um problema, pois ao longo da história essa definição se modifica conforme a época, assim como variam as expectativas a respeito de como deve ser a ação do político.
A política possui relação com o poder, a força, a violência, a autoridade, a coerção, a persuasão, o Estado, o Governo etc. Podemos entender a política como luta pelo poder: a conquista, a manutenção e a expansão do poder, razão pela qual é importante abordar por quais meios as instituições políticas exercem, criam, alimentam e significam o poder.
A política trata das relações de poder. Segundo Aranha e Martins (1993, p. 267), “poder é a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos desejados sobre os indivíduos ou grupos humanos”. Sempre que houver poder existirá quem o exerça e sobre quem lhe é exercido. Para que além exerça o poder, é preciso que tenha força, uma vez que é instrumento para o exercício do poder, por vezes manifestada mediante força física, coerção e violência.
1. MODERNIDADE E ESTADO: TEMPOS DE LUZ?
Desde a Modernidade, o Estado configura-se, por excelência, como a instância do exercício do poder político em várias áreas da vida pública, de modo que possui uma condição exclusiva para usar de força física na manutenção da ordem na sociedade. No entanto, o mero uso da força física não é o suficiente para a manutenção do poder. Para que o uso da força seja legítima, o Estado precisa do consentimento dos governados.
Com o transcorrer da história foram adotados diversos princípios de legitimidade do poder: nos Estados teocráticos, o poder legítimo provinha de Deus; nas monarquias hereditárias, o poder era transmitido de geração em geração e mantido pela força da tradição; nos governos aristocráticos, apenas os melhores (ricos, fortes, nobres) exerciam funções de mando e, por fim, na democracia, o poder legítimo nasce da vontade do povo.
Com o fortalecimento das monarquias nacionais, o Estado passou a deter a posse de um território e tornou-se apto para fazer e aplicar as leis, recolher impostos, ter um exército. Além disso, com a secularização da consciência, o Estado distanciou-se da maneira de pensar característica do medievo, que era predominantemente religiosa. A tese de que todo poder emana de Deus foi substituída pela teoria da origem social feito sob o consentimento dos indivíduos.
Com a institucionalização do Estado, o governante não mais se identificou com o poder, tornando-se mero depositário da soberania popular. O poder legítimo é, portanto, um poder de direito, que repousa não mais na violência nem no privilégio de classe, mas no mandato popular. O súdito passou a ser cidadão, já que participava ativamente da comunidade cívica, e a norma passou a disciplinar as condutas desse sujeito em contexto social.
No século XVIII, sob a influência do Século das Luzes expandiu-se a defesa do Constitucionalismo, ou seja, do estudo da teoria e da prática dos limites do poder exercido pelo direito e pelas leis. Nesse contexto de valorização da norma, o poder tornou-se legítimo porque emanava do povo e estava em conformidade com a lei.
Com a cidadania, a democracia constituiu-se como um elemento necessário para essa nova roupagem do poder. Etimologicamente, a palavra “democracia” é formada por dois termos gregos “demos” e “kratia” que em conjunto significam “governo do povo”, motivo pelo qual atualmente compreendemos democracia como um governo de todos os cidadãos.
2. ESTADO E DEMOCRACIA: LUGAR DE PLURALISMO
Segundo Marilena Chauí (1980, p. 156), “as determinações constitutivas do conceito de democracia são as ideias de conflito, abertura e rotatividade”. A ideia de conflito está relacionada às divergências comuns à sociedade pluralista e a democracia tem por intuito respeitar o pensamento divergente, admitindo uma heterogeneidade essencial, por isso, o conflito de poderes é inevitável. Na sociedade democrática, o conflito se dá pela discussão e pelo conflito, pretendendo-se descobrir a melhor solução para a maioria.
Dentre as características da democracia está a abertura que se faz presente através da livre circulação e produção de informações, bem como pelo fato da cultura ser um direito comum. A rotatividade, típica das democracias, decorre do fato de o poder na democracia não ter por finalidade o privilégio de um grupo ou uma classe, razão pela qual permite que qualquer cidadão represente legitimamente o seu Estado por um período.
A democracia tem como antagonismo o totalitarismo e o autoritarismo, pois “o poder personalizado não é legitimado pelo consentimento da maioria e depende do prestígio e da força dos que o possuem” (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 270). Dentre os regimes totalitários, o nazismo e o fascismo apresentaram algumas características principais em comum, como a intervenção do Estado em todos os setores, a ausência da propriedade privada e autonomia, a inexistência de pluralismo partidário, a disciplina é exaltada, a subordinação dos Poderes Legislativo e Judiciário ao Executivo, o controle dos meios de propaganda pelo Estado, a propagação de ideologia oficial às massas, o apelo aos sentimentos e à imaginação das pessoas, o uso de campos de concentração e de extermínio, além da prática de censura. Desse modo, o totalitarismo destrói a autonomia dos indivíduos ao impor um regime baseado numa ideologia através do terror.
Os regimes autoritários se assemelham aos totalitários no que tangem a anulação das liberdades individuais em benefício da segurança nacional, de maneira a fazer uso à maciça propaganda política, exercendo a censura e fazendo uso de repressão. No entanto, a ideologia propagada era de que o governo autoritário serviria “para a construção da nova sociedade”. Com esse objetivo, os militares saíram do quartel para integrar a instituição política mais importante da nação. Foi o que de fato ocorreu em 1964, com o golpe militar no Brasil.
Segundo Aranha e Martins (1993, p. 272),
O equilíbrio das forças políticas é sempre instável e por isso exige a atenção constante para os riscos de desvio do poder. Por isso mesmo a condição do fortalecimento da democracia encontra-se na politização das pessoas, que devem abandonar a passividade política e o individualismo para se tornarem mais participantes e conscientes da coisa pública.
A democracia é um modelo a ser construído pelo diálogo, pelo enfrentamento dos conflitos de opiniões divergentes, tendo em vista o bem comum. A liberdade democrática supõe que o cidadão assuma seus deveres pela conscientização das exigências do convívio social de seu tempo.
3. TEORIAS DO CONTRATO SOCIAL: MAQUIAVEL, HOBBES, LOCKE E ROUSSEAU
O Estado Moderno foi teoricamente analisado por Maquiavel e pelos contratualistas Hobbes, Locke e Rousseau, que discutem diferentes aspectos do liberalismo nascente.
Maquiavel desenvolveu ideias republicanas nas suas obras “O príncipe” e “Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio”. Ao contextualizar a atualidade de seu país, defendia a necessidade de um príncipe que conquistasse e mantivesse o poder de unir a Itália que naquele momento estava dividida. Com essa lógica, Maquiavel justificava o poder absoluto que, após alcançar a estabilidade, deveria ser substituído pelo governo republicano.
Maquiavel também desenvolveu implicitamente ideias democráticas no Capítulo IX de “O Príncipe” ao afirmar que o governante tem a necessidade de ter o apoio do povo para governar. Ainda, o autor supracitado faz uso de uma política realista, tendo como base “como o homem age de fato”. Em seus textos, analisou os riscos da corrupção, que faz prevalecer os interesses particulares sobre os coletivos e reconhece na lei o instrumento eficaz para forçar as pessoas a respeitarem o bem comum. Além disso, para Maquiavel o conflito é inevitável como consequência da atividade política e que essa se faz a partir da conciliação de interesses divergentes.
Maquiavel consolidou o conceito moderno de Estado, porém, foi Bodin quem criou a ideia de soberania. Para Bodin, é a soberania que mantém a unidade de todos os membros e partes que formam o corpo da República. Para garantir a coesão e a independência do Estado, a soberania deve ser perpétua e absoluta.
O fortalecimento do Estado moderno levou ao absolutismo real. Desde o século XVI, o poder absoluto foi sustentado pela teoria do direito divino dos reis. Entretanto, com a secularização do pensamento político, os filósofos procuraram fundamentar racionalmente o poder soberano, de modo a legitimá-lo sem intervenção religiosa. Daí a temática recorrente do contrato social dos filósofos Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau.
Segundo Aranha e Martins (1993, p. 302),
Os filósofos contratualistas partiam da hipótese do estado de natureza, em que o indivíduo viveria como dono exclusivo de si e dos seus poderes. Esses pensadores queriam compreender o que teria justificado abandonar um fictício estado de natureza para constituir o Estado Político, mediante contrato, bem como discutir que tipo de soberania deveria resultar desse pacto.
Os contratualistas buscavam a origem do Estado, entendido no sentido lógico, dando ênfase a legitimidade da ordem social e política, ou seja, a base legal do Estado, de modo que a legitimidade do poder passou a se fundar na representatividade e no consenso, temática essa abordada por Hobbes.
Hobbes contribuiu com o pensamento político através de suas obras “De cive” e “O Leviatã”. O autor vivenciou o ápice e a decadência do absolutismo, podendo visualizar alguns benefícios iniciais, como o favorecimento da economia mercantilista e a vantagem da proteção às indústrias nascentes.
Para Hobbes (1974, p. 82), no estado de natureza, o ser humano tem direito a tudo:
O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam “jus naturale”, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e, consequentemente, de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.
Enquanto durasse esse estado, não haveria segurança nem paz alguma. A situação dos indivíduos deixados a si próprios é de anarquia, o que geraria insegurança, medo e angústia. Os interesses individuais predominariam, motivo pelo qual cada um tornar-se-ia o lobo para o outro. As divergências seriam capazes de provocar uma guerra de todos contra todos, o que traria prejuízos de maneira direta e indireta para todos os indivíduos.
Hobbes afirmava que a renúncia à liberdade só teria sentido com a transferência do poder a determinada pessoa, de modo que o contrato seria a transferência mútua de direitos, voluntariamente. A nova ordem seria celebrada com um pacto pelo qual todos abririam a mão de sua vontade em favor de um representante. Assim, o medo da desordem e o desejo de paz levariam os indivíduos a fundar um estado social e uma autoridade política, através da abdicação de seus direitos em favor do soberano.
Para o autor supramencionado, o poder do soberano deveria ser absoluto, pois a transmissão do poder dos indivíduos para o soberano deveria ser total. Era dever do soberano julgar o que era bem e mal, justo e injusto; e ninguém podia discordar dele. O poder do Estado seria exercido pela força, pois só a iminência do castigo poderia amedrontar os indivíduos.
Assim como Hobbes e posteriormente Rousseau, Locke priorizou a união dos indivíduos mediante contrato social para constituir a sociedade civil, ou seja, apenas o pacto tornava legítimo o poder do Estado. Para Locke, no estado de natureza, cada um era juiz em causa própria, o que aumentava os riscos das paixões e da parcialidade, podendo desestabilizar as relações entre os indivíduos. Por isso, visando a segurança e a tranquilidade necessárias ao gozo da propriedade, todos consentiram em instituir o corpo político.
Locke afirmava que os direitos humanos iriam desaparecer com esse consentimento, mas subsistiriam para limitar o poder do Estado. Tratava-se de uma relação de confiança em que o poder era um depósito confiado aos governantes em que o objetivo era o bem público, de modo que era permitido aos governados a retirada dessa confiança para oferecer a outro alguém.
O autor fazia distinção entre o público e o privado, inclusive defendendo que deveriam ser regidos por leis diferentes. Assim, o poder político não devia ser determinado pelas condições de nascimento nem sofrer alterações do Estado, uma vez que deveria garantir livre exercício da propriedade, da palavra e da iniciativa econômica.
Para Locke o Poder Legislativo era o poder supremo, que deveria ter como subordinados o Executivo e o Federativo. Ainda, os indivíduos deixariam o estado de natureza para preservar a propriedade, sendo essa composta pelo o que pertencia a cada indivíduo: a sua vida, a sua liberdade e os seus bens.
De maneira semelhante à Locke, Rousseau também critica ao absolutismo real que propunha o pacto social para legitimar o governo. Há, entretanto, uma diferença na sua teoria: a novidade da democracia direta. Rousseau resolveu a questão da legitimidade do poder fundado no contrato social criando a hipótese de que os indivíduos viviam em estado de natureza, sadios, cuidando de sua própria sobrevivência, até o surgimento da propriedade, em que uns passaram a trabalhar para os outros, gerando escravidão e miséria.
Para Rousseau (1973, p. 39), o contrato social só seria legítimo se surgisse do consentimento unânime dos cidadãos. A abdicação dos direitos individuais era em favor da comunidade. Como todos abdicavam igualmente, nenhum sujeito perderia direitos, pois
[...] este ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia e que, por ser mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.
Pelo pacto, o indivíduo abre mão de sua liberdade, porém, essa retornaria ao seu cidadão por ser parte integrante e ativa de todo social, ou seja, ao obedecer à lei, obedeceria a si mesmo e, portanto, é livre. Isso significa que para Rousseau o contrato não faria o povo perder a soberania, pois não seria possível criar um Estado separado dele mesmo.
Há uma distinção entre os conceitos de soberano e governo. Para Rousseau, soberano é o corpo coletivo que expressa a vontade geral através de lei. A soberania do povo manifestada pelo legislativo seria inalienável. Segundo a concepção de democracia do autor, toda lei não ratificada pelo povo deve ser nula, por isso, o ato pelo qual o governo é instituído pelo povo não submete este a aquele.
Rousseau priorizava a democracia direta ou participativa, mantida por meio de assembleias participativas frequentes com a presença de todos os cidadãos. No entanto, o autor parecia crer que o povo assumiria uma qualidade de súdito, pois seria obediente e se submeteria a uma soberania passiva.
Distinguia-se também a pessoa pública da pessoa privada. A pessoa privada possui uma vontade individual que geralmente visa os seus interesses e à gestão de seus bens particulares. Já a vontade de todos ou da maioria, é a soma das decisões baseadas nos benefícios individuais. Entretanto, cada indivíduo particular também pertence ao espaço público, faz parte da coletividade com interesse comuns, expressos pela vontade geral. Nem sempre os interesses coincidem, pois o que beneficia a pessoa privada pode prejudicar o coletivo. Por isso, não se deve confundir a vontade de todos com a vontade geral, pois o somatório dos interesses privados tem uma origem diferente do interesse comum.
CONCLUSÃO
Em tempos modernos elaborou-se um novo paradigma da política em que rompeu com a ideia de bom governo que perdurou na Antiguidade e na Idade Média. Com base em uma postura realista, Maquiavel buscou compreender o sistema de forças que atuavam de fato no interior da sociedade e do poder. Posteriormente, Hobbes e Locke, se opondo à visão religiosa medieval, procuravam a ordem racional e laica para os conceitos de soberania e contrato social, consentimento e obediência política, visando a coesão do Estado e a segurança dos indivíduos. Com ousadia, Rousseau defendeu convicções democráticas que fecundariam o século XIX.
Na Modernidade foram esboçadas as novas linhas que orientaram daí por diante as ideias liberais e os primeiros passos em direção à conquista da cidadania e da democracia.
REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1980.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1974.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1973.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1973.
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VELASCO, Liziane Bainy. O Estado e a legitimidade do poder para os contratualistas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47681/o-estado-e-a-legitimidade-do-poder-para-os-contratualistas. Acesso em: 22 nov 2024.
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