RESUMO: O presente trabalho tem como principal objetivo fazer um breve cotejo analítico do conflito entre a dignidade da pessoa humana e a liberdade de imprensa num contexto de prisão de um indivíduo sob cobertura do trabalho jornalístico. Analisou-se a dignidade da pessoa humana segundo o entendimento de doutrinadores, de modo a alocá-la num lugar de destaque no ordenamento jurídico pátrio. De igual forma, abordou-se a liberdade de imprensa, faceta específica da liberdade de expressão, reconhecendo-se seu papel importante na seara do paradigma do Estado Democrático de Direito. Sob o manto de princípios, tanto a dignidade da pessoa humana quanto a liberdade de imprensa não gozam da condição de absolutas. Em que pesem os estudos que pregam o sopesamento ou a ponderação diante do conflito aparente entre princípios, nota-se que, entre a dignidade da pessoa humana e a liberdade de imprensa, a própria regra que se extrai das normas expressas na Constituição se mostram suficientes e hábeis a demonstrar a preponderância da dignidade da pessoa humana em detrimento da liberdade de imprensa, notadamente o direito à informação do cidadão. Verificou-se que não se justifica submeter o preso a tratamento desumano e degradante sob o pretexto de informar o público em geral, num espetáculo ávido por audiência, mormente quando se afronta o respeito à honra, à imagem, à integridade física e psíquica do indivíduo detido.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Liberdade de Imprensa. Preso. Mídia. Conflito entre princípios.
Num cenário midiático ávido por audiência, é possível notar que os meios empregados pela imprensa se aprofundam cada vez mais em diversas técnicas de captação da atenção das pessoas, notadamente o enfoque sensacionalista no âmbito criminal.
Nesse sentido, principalmente nos casos de prisão, o repórter, com o consentimento de agentes estatais, realiza seu trabalho, muitas vezes, expondo o preso a situações que ferem o princípio básico da dignidade da pessoa humana, sob o manto do princípio da liberdade de expressão e de informação.
É desse contexto que surgiu a pergunta que norteou o trabalho: A liberdade de expressão e informação é absoluta em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana?
Dessa maneira, o presente artigo buscou encontrar a relação que pode existir entre a liberdade e a dignidade, princípios consagrados na Constituição, de modo a se harmonizar com o que se espera de um Estado Democrático de Direito.
Pata tal mister, utilizou-se como metodologia de pesquisa a bibliográfica, consubstanciada por fontes doutrinárias, que tratam da ponderação entre princípios, notadamente entre os fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, e especificamente da dignidade da pessoa humana.
Fundamentação
O Brasil tem como alicerce o Estado Democrático de Direito, o qual se fundamenta no respeito inalienável à dignidade humana. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagra esse princípio como fundamental e o coloca já em seu art. 1º, elevando-o à condição de pilar do ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, ensina o mestre José Afonso da Silva em sua festejada obra “Curso de Direito Constitucional Positivo”:
Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-as nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana”. (SILVA, 2000, p. 109)
Em caminho consonante, Alexandre de Moraes leciona acerca da dignidade da pessoa humana, in verbis:
Dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, 2009, p. 22)
Em conformidade com a pretensão deste artigo, que passa ao largo de desejar esgotar o assunto, e muito menos de se estender em citações, é possível extrair dos ensinamentos citados que a dignidade da pessoa humana se posiciona em patamar superior ao dos direitos e garantias expressos no art. 5º da Constituição Federal, consubstanciando-se, de fato, em princípio orientador dos demais princípios e regras jurídicos.
É a partir da dignidade da pessoa humana que se fundamentam os direitos fundamentais em essência, tais como o direito à vida e à liberdade, a proteção à integridade física e da intimidade das pessoas, bem assim as garantias relativas à igualdade e à segurança. Outrossim, o princípio em comento ainda se revela como fator limitador do poder estatal na sua ação perante o indivíduo.
Em que pese sua importância, segundo a melhor doutrina, esse princípio não se reveste do caráter de absoluto, notadamente em situações de conflito aparente com outro princípio constitucional ou direito fundamental.
Após essas breves considerações acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, é preciso tratar da liberdade de imprensa, faceta da liberdade de expressão, especificamente voltada para o cotejo analítico a que busca este trabalho. Nesse sentido, é de se ter como referência a regra que se extrai do art. 220 da CRFB/1988, in verbis:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
No contexto de um Estado Democrático de Direito, a liberdade de imprensa se apresenta como pilar para o atual paradigma de estado, haja vista tal liberdade proporcionar e impulsionar a participação pública nos embates ideológicos, num movimento dialético de construção do conhecimento e difusão de ideias. Não por outra razão quis o constituinte fomentar esse movimento cooperativo, fazendo-se expressar a norma expressa no primeiro parágrafo do artigo supracitado, verbis:
§1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Nessa seara da liberdade de expressão, tomada em seu sentido amplo, ensina Pedro Lenza, já apontando as limitações que a própria Constituição impõe:
É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Veda-se a censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, § 2º), porém, apesar da liberdade acima garantida, lei federal deverá regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada. (...)
Se, durante as manifestações acima expostas, houver violação da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, será assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da violação (art. 5º, X). (LENZA, 2011, p. 888).
Assim, também a liberdade de imprensa não se reveste do caráter de absolutidade. Na própria Constituição são encontrados diversos limitadores da liberdade de imprensa, como a vedação do anonimato; o direito de resposta e eventual indenização por danos; o respeito à honra, à imagem, à vida privada e à intimidade; condições para o exercício profissional; e a proteção ao sigilo da fonte.
A partir dessas limitações, é possível compreender que aquelas que restringem a liberdade de imprensa com referência à honra, à imagem, à vida privada e à intimidade são fundamentadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental. É a posição do STF, nas palavras de Gilmar Mendes, especificamente quanto ao objetivo central deste artigo:
Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto, como meio para a satisfação de algum interesse imediato.
O ser humano não pode ser exposto – máxime contra a sua vontade – à mera curiosidade de terceiros, para satisfazer instintos primários, nem pode ser apresentado como instrumento de divertimento alheio, com vistas a preencher o tempo de ócio de certo público. Em casos assim, não haverá exercício legítimo da liberdade de expressão. (MENDES, 2010, p. 467)
Dessa maneira, havendo tais restrições na própria letra da norma constitucional, rompe-se a expectativa deste artigo no sentido de se invocar os valorosos estudos de Robert Alexy e Ronald Dworkin, notadamente quanto a ponderação de princípios quando em aparente conflito. Resta claro, que a própria regra extraída da Constituição já expõe a preponderância da dignidade da pessoa humana diante da liberdade de imprensa.
Conclusão
Tendo em conta as breves explanações acerca da dignidade da pessoa humana e da liberdade de imprensa, é possível reconhecer que a reiterada exposição de presos na mídia, em todas as suas formas, capitaneadas por agentes estatais e recheadas de sensacionalismo por jornalistas, afronta veementemente o princípio da dignidade da pessoal humana.
O indivíduo preso, em que pesem as condutas tipificadas nas quais foi enquadrado, não deve ter sua dignidade violada, mas tão somente se sujeitar às limitações impostas pelo ordenamento jurídico como um todo, garantindo-lhe o respeito à honra, à imagem, à integridade física e psíquica, bem assim ao contraditório e à ampla defesa.
Por certo, não se reconhece, sob os holofotes da imprensa, o estabelecimento de um tribunal informal, que transfere à opinião pública a visão una de um fato, do qual decorrem julgamentos precipitados e capazes de gerar estados de ânimo muitas vezes em desproporcionalidade com o que se pode considerar como justo.
Dessarte, o exercício da liberdade de imprensa não pode servir de subterfúgio para macular a dignidade da pessoa humana, notadamente por haver na própria Constituição normas que limitam expressamente a violação de direitos fundamentais.
A situação ganha em gravidade quando se está diante de um preso em flagrante, na medida em que o indivíduo se encontra privado de sua liberdade ainda sem uma sentença final condenatória irrecorrível. Todo o espetáculo midiático se constrói a partir do fato da prisão, colocando também em xeque também a presunção de inocência ou da não culpabilidade, afinal o que mais importa é a audiência, é o “show”.
A liberdade de imprensa, mesmo ancorada no direito à informação por parte do cidadão, não pode subjugar o princípio da dignidade da pessoa humana. É possível noticiar a prisão e o fato delituoso sem ter que expor o preso na mídia da forma que se observa nos dias atuais, com sensacionalismo exacerbado, desrespeito desmedido e a certeza da ausência de sanções para agentes e profissionais de imprensa.
Portanto, por ser um princípio fundamental, basilar do Estado Democrático de Direito, deve a dignidade da pessoa humana prevalecer diante da liberdade de imprensa, ainda que não houvesse disposições expressas nesse sentido no próprio texto Constitucional e mesmo que tal liberdade também disponha de lugar de destaque no ordenamento jurídico.
BRASIL. Código Penal (1940). Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>. Acesso em: 28 jul. 2016.
___________. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 28 jul. 2016.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 15. ed. rev. atul. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martins; et al. Curso de direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. .
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Newton de Paiva. Pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes. MBA/Especialização em Gestão Estratégia no Serviço Público pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Liliane Orzil Costa de. Breve análise do conflito entre dignidade da pessoa humana e liberdade de imprensa: o preso e a mídia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2016, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47742/breve-analise-do-conflito-entre-dignidade-da-pessoa-humana-e-liberdade-de-imprensa-o-preso-e-a-midia. Acesso em: 22 nov 2024.
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