DEBORAH MARQUES PEREIRA CLEMENTE: Mestre em Desenvolvimento Social. Docente Faculdade Guanambi – FG.
RESUMO: Atualmente, principalmente no tocante às relações amorosas, espera-se dos companheiros a observância dos padrões de lealdade e confiança, essenciais para a convivência afetiva. No entanto, em algumas situações, excede-se no exercício do direito, sendo relevante a interferência jurisdicional para tutelar as situações em que ocorre afronta aos ditames jurídicos. Diante disso, o presente trabalho objetiva suscitar a reflexão sobre o aspecto jurídico que perdura sobre as relações de namoro, especialmente com relação ao estelionato sentimental. Para tanto, tratar-se-á das implicações jurídicas advindas da violação de direitos pela conduta abusiva do indivíduo que, durante as relações de namoro, comete lesão ao seu companheiro. Buscando demonstrar a concretude da Responsabilidade Civil nas relações de namoro e a incidência do estelionato sentimental, o presente estudo analisou a decisão proferida pelo Juiz da 7º Vara Cível de Brasília, no Acórdão n. 866800 e a Apelação de n. 20130110467950-APC. Salienta-se ainda que a análise foi feita à luz das determinações civilistas que pairam sobre o abuso do direito e da boa-fé objetiva. Assim, admite-se que o direito corrobora com o entendimento de que as relações de namoro requerem atenção à lealdade, confiança e boa-fé, sendo as condutas abusivas danosas tratadas no âmbito da responsabilidade civil objetiva.
Palavras-chave: Abuso do Direito. Boa-fé objetiva. Dano. Ilícito. Obrigação.
ABSTRACT: Nowadays, mainly with regard to romantic relationships, the partners are supposed to keep the loyalty and trust patterns, essential for the affective living. However, in some situations, in the right exercise, there are abuses, witch makes relevant the judicial intervention to coordinate situations in which occurs affront to the legal dictates. Therefore, this article’s objective is to evoke the reflection about the juridical aspect that is maintained at the dating relationships, especially in the sentimental ploy. To do so, it will be discussed about the juridical consequences that come from the violation of rights caused by the abusive conduct of the person who meanwhile the dating relationships hurts the partner. To demonstrate the concreteness of the Civil Responsibilities in the dating relationships and the incidence of the sentimental ploy, this study analyzed the decision made by the judge of the 7th Civil Court from Brasilia, Alcoran number 866800 and Appeal of number 20130110467950-APC. It is emphasized that the analysis was made with the civil determinations, which hover above the abuse of rights and the objective good-faith. Therefore, assuming that the Law reaffirms the understanding that the dating relationships require attention, loyalty, trust and good-faith, the damaging abusive conducts are dealt by the objective civil responsibility.
Keywords: Abuse of rights. Damage. Good objective faith. Illicit. Obligation.
1 INTRODUÇÃO
As relações de namoro, muito embora não sejam caracterizadas como uma entidade familiar, em certas ocasiões, vêm produzindo implicações na seara jurídica, em especial acerca da assistência mútua dos companheiros no curso do namoro, bem como a possibilidade de reparação pelos danos materiais e morais, decorrentes da Responsabilidade Civil (SENA, 2011).
Sendo assim, o presente trabalho, adotando a Responsabilidade Civil como forma de regulamentar o estelionato sentimental, visa analisar este instituto mediante o estudo de caso da decisão proferida pelo Juiz da 7º Vara Cível de Brasília (Acórdão n.866800, 20130110467950 APC), levando-se em consideração o vínculo afetivo presente nas relações de namoro, o qual se dá por meio da construção de um arcabouço teórico a respeito da responsabilização civilista, mediante a teoria do abuso do direito, da afetividade, bem como dos deveres que decorrem do princípio da boa-fé objetiva nas relações jurídicas. (TJ/DFT, 2015).
O termo estelionato sentimental foi utilizado na referida decisão para exprimir a ideia de exploração econômica na constância do relacionamento, tendo em vista que, no curso do namoro, ficou evidenciado o pagamento de várias despesas por parte da namorada (autora), sempre com o compromisso de ser ressarcida. Vale lembrar, que o ordenamento jurídico brasileiro veda o enriquecimento ilícito, bem como a conduta abusiva do indivíduo que comete ato ilícito, razão pelo qual pode incorrer em responsabilização civil.
Frisa-se que todos têm o livre-arbítrio de escolher de que modo viver, sem que haja qualquer interferência por parte do Estado. Entretanto, no momento em que qualquer dos envolvidos na relação pratica uma conduta ilícita, exercendo o direito de forma abusiva e violando os ditames da boa-fé objetiva, de modo a locupletar-se, essa ação faz jus a tutela do Estado, carecendo de intervenção sempre que provocado.
Logo, o presente trabalho se justifica pela relevância da tutela jurisdicional no tocante à responsabilidade civil presente nas relações de namoro, tendo em vista que as condutas praticadas de maneira contrária ao ordenamento jurídico brasileiro, violando princípios gerais e desrespeitando os padrões socialmente indicados, devem ser reprimidas pelo Estado, sobretudo diante da violação dos direitos da personalidade, assim como à dignidade da pessoa humana.
2 BREVES APONTAMENTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
O Instituto da Responsabilidade Civil vem disciplinado no Código Civil de 2002, Parte Especial, Livro I, Título IX. De modo geral, o artigo 927 dispõe que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (BRASIL, 2002). De plano, verifica-se que a responsabilidade civil está ligada a um dever jurídico de reparar o dano, sempre que houver lesão a um bem jurídico tutelado.
Segundo Gonçalves (2012, p. 42) “o instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal consequência da prática de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar o dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resolve em perdas e danos”. Como se nota, a responsabilidade civil está pautada na ideia de obrigação decorrente da efetiva lesão a um bem jurídico tutelado, que causa dano à terceiro.
Em suma, a responsabilidade civil consiste na utilização de medidas que impõe aos agentes o dever de reparar os danos causados, em virtude de sua conduta ilícita perpetrada contra terceiros (DINIZ, 2014).
De acordo com o conceito apresentado por Diniz (2014, p. 23-24):
A responsabilidade civil pressupõe uma relação jurídica entre a pessoa que sofreu o prejuízo e a que deve repará-lo, deslocando o ônus do dano sofrido pelo lesado para outra pessoa que, por lei, deverá suportá-lo, atendendo assim à necessidade moral, social e jurídica de garantir a segurança da vítima violada pelo autor do prejuízo. Visa, portanto, garantir o direito do lesado à segurança, mediante o pleno ressarcimento dos danos que sofreu, restabelecendo-se na medida do possível o status quo ante. Logo, o princípio que domina a responsabilidade civil na era contemporânea é o da restitutio in integrum, ou seja, da reposição completa da vítima à situação material correspondente ou de indenização que represente do modo mais exato possível o valor do prejuízo no momento de seu ressarcimento, respeitando assim, sua dignidade.
Infere-se que a responsabilidade civil se fundamenta na garantia da segurança jurídica, tendo em vista a sua atuação de maneira a restabelecer o estado anterior dos indivíduos lesados. Ora, cabe aquele que descumpriu uma norma jurídica, causando dano material ou moral a outrem, o dever de reparar.
Vale ressaltar a classificação doutrinária acerca da responsabilidade civil subjetiva, mediante verificação de culpa e a responsabilidade civil objetiva, independentemente de culpa. No que tange às modalidades acima mencionadas, leciona Gonçalves (2015, p. 54) que:
Diz-se, pois, “subjetiva”, a responsabilidade quando se esteia na ideia de culpa. A prova da culpa do agente passa a ser o pressuposto necessário do dano indenizável. Dentro desta concepção, a responsabilidade do causador do dano somente se configura se agiu com dolo ou culpa. A lei impõe, entretanto, a certas pessoas, em determinadas situações, a reparação de um dano cometido sem culpa. Quando isto acontece diz-se que a responsabilidade é legal ou “objetiva”, porque prescinde da culpa e se satisfaz apenas com o dano e o nexo de causalidade.
No que se refere à responsabilidade subjetiva, a culpa é requesito essencial para sua configuração. Para dar ensejo a essa modalidade de responsabilidade, o elemento culpa pode ser utilizado tanto de forma ampla, quando há a presença de dolo na conduta ilícita do agente, quanto de maneira culposa, em que não se verifica a intenção do agente, mas a verificação de negligência, imprudência ou imperícia (PEDRO, 2011). Para tanto, na responsabilidade civil objetiva, regulada no parágrafo único do art. 927 e art. 944, ambos do Código Civil brasileiro de 2002, o requisito subjetivo culpa, pode ou não ser verificado, tendo em vista que para o seu ensejo, basta a presença dos elementos dano e nexo. (CAVALIERI FILHO, 2014).
A responsabilidade civil objetiva está consubstanciada nas cláusulas gerais elencadas no Código Civil de 2002. Dentre as cláusulas, a presente pesquisa destacará a perspectiva do abuso do direito, tendo em vista que é requisito preponderante para a construção da responsabilidade civil nas relações de namoro, tópico que será analisado posteriormente.
Em se tratando da evolução do instituto da responsabilidade civil, houve uma significativa modificação no que se refere à disciplina dada a responsabilidade civil, uma vez que na vigência do Código Civil de 1916 a responsabilidade era necessariamente subjetivista, regulada por um dispositivo geral, o art. 159 que relatava: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano” (BRASIL, 2002). O sistema era voltado para a responsabilidade subjetiva com a verificação de culpa. O desenvolvimento da responsabilidade civil se deu ao longo do século XX, por meio da revolução industrial, do desenvolvimento científico e tecnológico e da busca pela justiça social, de maneira a construir uma sociedade solidária por meio da intervenção do Estado a fim de garantir uma vida digna (CAVALIERI FILHO, 2014).
O dispositivo geral do Código Civil de 1916, que regulava especialmente a responsabilidade subjetiva, passou a ser insuficiente, de modo que foram surgindo leis específicas que passaram a disciplinar e prestigiar também a responsabilidade objetiva.
Apesar de todas as causas mencionadas, o grande e principal fator para a evolução da responsabilidade civil foi atribuído pela Constituição Federal de 1988, consagrando em seu art. 5º, incisos V e X, a reparação por dano material e moral (CAVALIERI FILHO, 2014).
A noção da responsabilidade civil vem se aprimorando cada vez mais, haja vista a constante evolução do ordenamento jurídico, que deve se adaptar às transformações que ocorrem no meio social. Outrossim, o crescimento das formas e dos pressupostos do dano surge em meio a esse contexto, uma vez que a sociedade se torna cada vez mais complexa (NADER, 2010).
Nesse contexto, observa-se que o instituto da responsabilidade civil tem se alargado a cada dia, tendo em vista que os danos são representações da sociedade, e estas por sua vez, se encontram em constantes modificações.
2.1 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL
O Código Civil de 2002, em seu artigo 186 dispõe acerca dos pressupostos da responsabilidade civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Em sendo assim, os elementos essenciais que dão ensejo à responsabilidade civil subjetiva são: conduta culposa, nexo de causalidade e dano. Por sua vez, os requisitos que devem ser preenchidos para caracterizar a responsabilidade objetiva são: conduta, nexo de causalidade e dano. Verifica-se que a distinção entre as modalidades reside, precisamente, no elemento subjetivo culpa. Nos subtópicos subsequentes serão apresentadas as características elementares das responsabilidades que pairam o Direito Civil brasileiro (BRASIL, 2002).
2.1.1 Conduta
A conduta é o primeiro pressuposto que enseja a responsabilidade civil, caracterizada pelo ato praticado pelo agente que importa em uma violação a um bem juridicamente protegido, conforme preceitua Cavalieri Filho (2014, p. 38) a conduta é “o comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas”. Nesse sentido, entende-se por conduta, a ação ou omissão, direcionada a um resultado. Enquanto a conduta comissiva se dá por um comportamento positivo, um fazer, a conduta omissiva diferencia-se pelo não fazer, pela abstenção de um comportamento devido (CAVALIERI FILHO, 2014). Ademais, a conduta humana pode ser lícita ou ilícita, isso porque, não é somente a conduta ilícita que pode dar ensejo à responsabilidade civil, uma vez que os atos lícitos também podem justificar a obrigação de reparar (GONÇALVES, 2012).
Nesse contexto, cumpre apontar a conduta pautada na ideia de culpa e aquela decorrente de risco, conforme distinção elencada por Cavalieri Filho (2014, p. 179) que dispõe que “também na responsabilidade objetiva teremos uma atividade ilícita, o dano e o nexo causal. Só não será necessário o elemento culpa, razão pela qual fala-se em responsabilidade independentemente de culpa”. Nisto, pode-se entender pela responsabilidade civil subjetiva e objetiva, razão pela qual, enquanto a responsabilidade subjetiva decorre da culpa, a responsabilidade objetiva caracteriza-se pelo risco, e outras situações descritas na legislação (CAVALIEIRI FILHO, 2014).
Vale lembrar que a culpa é elemento essencial da responsabilidade subjetiva, e em razão disso, a culpa pode ser definida em sentindo amplo (lato sensu) ou em sentido estrito (stricto sensu), uma vez que a noção de culpa lato sensu está ligada a toda conduta humana contrária ao Direito, seja de forma direcionada a causar dano (dolo), ou por violar um dever jurídico de cuidado (culpa), sendo externada pela negligência, imprudência e imperícia (CAVALIEIRI FILHO, 2014).
Dessa forma, é oportuno afirmar que a conduta ilícita é elemento que ocasiona a responsabilidade civil subjetiva, sendo requisito relevante para ensejar o dever de indenizar. Para tanto, em meio aos óbices de provar a culpa ou dolo dos agentes, é que emergiram as hipóteses concernentes à responsabilidade civil objetiva, de modo que para sua caracterização basta comprovar a verificação do evento danoso, isto é, independente da ocorrência de uma conduta ilícita. Diante do exposto, nota-se que na responsabilidade civil objetiva a conduta é lícita e independe comprovação do ato ilícito (ALTHEIM, 2006).
Por conseguinte, a conduta é própria ou de outrem, no sentido de que a responsabilidade civil é atribuída àquele que lhe deu causa, ou seja, por fato próprio, e de outrem nas situações em que o Código Civil de 2002 faz insurgir a responsabilidade decorrente de fato de terceiros, conforme art. 932 da referida legislação (GONÇALVES, 2012).
Em última análise, verifica-se que a conduta ou ato ilícito representa as ações ou omissões, praticados com dolo (culpa em sentido amplo), culpa (em sentido estrito) ou ainda por meio de atos lícitos, que viola direitos de terceiros causando-os prejuízos.
2.1.2 Nexo de Causalidade
O nexo causal é o segundo pressuposto da responsabilidade civil, caracterizada pelo liame existente entre a conduta e o resultado, consoante Cavalieri Filho (2014, p. 63) “o nexo causal é um elemento referencial entre a conduta e o resultado. É um conceito jurídico-normativo através do qual poderemos concluir quem foi o causador do dano”. A relação de causalidade entre a conduta e o dano é elemento essencial para ensejar qualquer das responsabilidades civis, visto que a sua ausência não é capaz de ensejar o dever de indenizar.
A par disso, Tepedino (2002, p. 07) assevera que:
No direito brasileiro, em ambas as espécies de responsabilidade civil, objetiva ou subjetiva, o dever de reparar depende da presença do nexo causal entre o ato culposo ou a atividade objetivamente considerada, e o dano, a ser demonstrado, em princípio, por quem o alega (onus probandi incubit ei qui dicit, non qui negat), salvo nas hipóteses de inversão do ônus da prova previstas expressamente na lei, para situações específicas.
Como se nota, tanto na responsabilidade civil subjetiva, quanto na responsabilidade civil objetiva, o nexo de causalidade é elemento fundamental para que nasça a obrigação de indenizar. Esse pressuposto da responsabilidade civil se dá entre o dano e as condutas ilícitas (responsabilidade civil subjetiva) ou lícitas (responsabilidade civil objetiva). A comprovação, no caso concreto, do nexo causal é complexo, precisamente quando se está diante de várias causas que contribuem para a consumação do dano. Diante disso, foram desenvolvidas teorias que pudessem resolver estas situações (ALTHEIM, 2006).
No que se refere às teorias acerca do nexo de causalidade, Gonçalves (2012, p. 463) aduz que “três são as principais teorias a respeito: a da equivalência das condições, a da causalidade adequada e a que exige que o dano seja consequência imediata do fato que o produziu”. Fala-se em teoria da equivalência das condições quando várias causas são adequadas a produzir o resultado, de modo que todas as causas são consideradas equivalentes entre si. Em contrapartida, pela teoria da causalidade adequada, entende-se que apenas é considerada como causa do dano aquela que por si só é a responsável pela produção do resultado (GONÇALVES, 2012). Por fim, pela teoria dos danos diretos e imediatos Cavalieri Filho (2014, p. 68) explica que “o dano deve ser consequência necessária da inexecução da obrigação”. Nesse sentido, a referida teoria aprecia como causa somente aquela que esteja diretamente ligada ao dano, sem que haja qualquer influência de outras condições.
Segundo Gonçalves (2012) a teoria adotada pelo Código Civil atual foi a da teoria do dano direto e imediato, em razão do art. 403 extraído do Código Civil de 2002, que assim dispõe: “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato”. Assim, a ideia fundamental da teoria é no que se refere à causa mais direta e ensejar o evento danoso.
Há certos acontecimentos que rompem o nexo de causalidade existente entre o ato ilícito e o evento danoso, o que enseja a exclusão da responsabilidade civil, visto que, a ausência de qualquer dos pressupostos da responsabilidade impede a obrigação de indenizar (CAVALIERI FILHO, 2014). As principais excludentes da responsabilidade civil conforme preceitua Gonçalves (2012, p. 465) são: “o estado de necessidade, a legítima defesa, a culpa da vítima, o fato de terceiro, a cláusula de não indenizar, e o caso fortuito e a força maior”. A ocorrência de qualquer dessas causas impede o dever de indenizar, hipótese que ocasiona, conforme já mencionado, a exclusão da responsabilidade civil.
2.1.3 Dano
Num primeiro momento, faz-se necessário ter em mente que, o dano é pressuposto preponderante para a caracterização da responsabilidade civil, tendo em vista que o dano surge como consequência dos prejuízos causados ao agente. Para Pereira (1998) o dano deve ser certo e atual. Certo no sentido de que o fato deve ser preciso, isto é, que não seja puramente hipotético; e atual o dano que já exista ou tenha existido no momento da conduta praticada pelo agente. Em suma, o dano é uma lesão ao bem jurídico que afeta tanto os bens patrimoniais da vítima, quanto os atributos da personalidade, emergindo daí a ideia da classificação do dano em patrimonial e extrapatrimonial (CAVALIERI FILHO, 2014).
A Constituição Brasileira de 1988, art. 5º, incisos V e X tratou do direito ao dano material e moral decorrente da violação aos direitos da personalidade, in verbis:
Art. 5.º [...]
V- é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (BRASIL, 1988).
Diferente do dano material, que resulta da diminuição do patrimônio e dos bens do indivíduo, o dano moral, por sua vez, atua na esfera dos direitos da personalidade, nas situações em que ocorre prejuízo no ânimo psicológico, moral e intelectual do indivíduo. Ademais, se enquadra na moral o dano que ocasiona uma anormalidade no comportamento da vítima, de maneira que deverá ser analisada em cada caso concreto (NADER, 2010).
Ocorre que há lesões que não ensejam a responsabilidade civil decorrente de dano extrapatrimonial, tendo em vista que somente ensejará o dano moral quando a conduta do agente que praticou o ilícito estiver diretamente ligada à dignidade do ofendido. De acordo com os ensinamentos de Nader (2010, p. 5):
Dadas as relações sociais cada vez mais amplas e diversificadas em sua forma, multiplicam-se as possibilidades de danos, especialmente os de natureza moral. Os tribunais vêm distinguindo, entretanto, ofensas morais de simples aborrecimentos do cotidiano. A vida em sociedade exige um certo grau de tolerância das pessoas, sem que esta atitude implique, todavia, renúncia a quaisquer direitos.
Ademais, o Enunciado n. 444 da V Jornada de Direito Civil aduz que “o dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de sentimentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento” (BRASIL, 2015, p. 2135). Para ensejar o dano moral é necessário que haja ofensa à dignidade da pessoa humana, de modo que essa agressão interfira no comportamento psicológico do agente, causando desequilíbrio ao indivíduo (CAVALIERI FILHO, 2014).
Nesse sentido, Diniz (2014, p. 111), aduz que “o direito não repara qualquer padecimento, dor ou aflição, mas aqueles que forem decorrentes da privação de um bem jurídico sobre o qual a vítima teria interesse reconhecido juridicamente”. Assim, meros dissabores e contrariedades não caracterizam violação a um direito passível de reparação, tendo em vista ser apenas consequência do dano causado.
Nessa esteira, cumpre trazer à baila uma espécie peculiar de dano moral que vem sendo objeto de discussões, notadamente na jurisprudência, o dano moral afetivo. Este se distingue do dano moral lato sensu, em razão de incidir no seio das relações familiares. Apesar das relações de namoro não serem abrangidas pelo Direito de Família, o Poder Judiciário vem se evoluindo no tocante ao reconhecimento de novas entidades familiares (RIZZARDO, 2015).
3 RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE NAMORO
Sabe-se que há uma fragilidade das relações de namoro como uma entidade familiar, isso porque, o namoro não é caracterizado de tal forma, mas, por outro lado, muito se assemelham entre si (SENA, 2011). Diante disso, faz-se necessário observar os posicionamentos jurídicos acerca do conceito de namoro e posteriormente analisar a responsabilidade civil decorrente dessas relações amorosas.
3.1 O ENTENDIMENTO JURÍDICO ACERCA DA RELAÇÃO DE NAMORO
O namoro é marcado pela relação contínua, fundamentada em vínculos afetivos que se dirigem a partilhar momentos, que passam pela possibilidade de progresso do relacionamento amoroso até se chegar ao casamento (BARROS, 2015). Corroborando com este entendimento, depreende-se que o namoro pode ser definido como sendo uma relação não prevista em lei, por meio do qual, duas pessoas convivem publicamente, estando presente a fidelidade recíproca, bem como a constância e durabilidade da relação (SENA, 2011).
Por oportuno, ressalta-se o posicionamento de Xavier (2011, p. 84), no que tange ao entendimento acerca do namoro, in verbis:
[...] um mero namoro não é, por si só, um fato tutelado pelo direito, assim como ocorre com outras espécies de interação conjugal consideradas fugazes. No entanto, são de particular complexidade as situações em que estão em pauta namoros que configuram convivência pública, contínua e duradoura entre as partes. O relacionamento, então, deixa de ser frágil e passa a refletir para sociedade ares de família.
Com efeito, Xavier (2011) ainda defende a posição de que o namoro pode ser uma espécie de família, haja vista nas entidades familiares possuir três importantes características que também podem ser suscitadas no namoro, quais sejam, a estabilidade, a afetividade e a ostensibilidade.
Atualmente, muito se discute acerca da distinção entre a união estável e as relações de namoro. Isso porque, há uma considerável semelhança de seus requisitos, essenciais para sua caracterização. Nesse sentido, Figueiredo (2013, p.5) sustenta que “os namoros dos dias de hoje tendem a ter requisitos muitos próximos, para não dizer idênticos, aos da união estável, com intimidade ímpar”. Sucede que, devido à omissão legislativa quanto à diferenciação dos institutos, compete à doutrina e a jurisprudência o desenvolvimento dos referidos elementos distintivos, conforme certifica Figueiredo (2013).
Diante do exposto e segundo o que dispõe o Ministro Sálvio de Figueiredo, em se tratando de um julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a diferenciação entre os institutos da união estável e o namoro é precisamente o elemento subjetivo de constituir família, nesse sentido:
[...] IV- Seria indispensável nova análise do acervo fático-probatório para concluir que o envolvimento entre os interessados se tratava de mero passatempo, ou namoro, não havendo a intenção de constituir família (REsp 474.962/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 23.09.2003, DJ 01.03.2004 p. 186).
Do mesmo modo, elucida a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em sede de recurso especial:
[...] 2.1 O propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável - a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado "namoro qualificado" -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída (Recurso Especial Nº 1.454.643/RJ, Terceira Turma, Superior Tribunal de Justiça, Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, Julgado em 03/03/2015. DJe 10/3/2015).
Por conseguinte, o Código Civil de 2002 consagra em seu artigo 1.723 que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002).
Logo, depreende-se que o namoro apresenta todos os requisitos da união estável, a convivência pública, contínua e duradoura, no entanto, a diferença reside, precisamente, no elemento subjetivo de constituir família.
Nesse sentido, Gonçalves preceitua que:
Não configuram união estável, com efeito, os encontros, amorosos mesmo constantes, ainda que os parceiros mantenham relações sexuais, nem as viagens realizadas a dois ou o comparecimento juntos a festas, jantares, recepções, etc., se não houver da parte de ambos o intuito de constituir uma família [grifo nosso] (2010, p. 591).
Verifica-se, pois, que as relações de namoro devem estar pautadas na convivência pública, contínua e duradoura, por meio do qual os companheiros não tenham a intenção de constituir família. Assim sendo, destaca-se que nas relações de namoro deve haver um vínculo, não é uma questão de durabilidade que não se analisa o tempo, mas sim o tipo de namoro e como as pessoas se reconhecem como tal.
3.1.1 A Afetividade nas relações de namoro
A afetividade desempenha um papel essencial para o desenvolvimento do ser humano, uma vez que o indivíduo necessita de atenção, afeto, valorização, companhia, indispensáveis para a integração no meio social. Destarte, os autores Rehbein; Schirmer (2010, p. 5) sustentam que “O afeto é um sentimento extremamente necessário para o convívio entre humanos [...], tornando-se, assim, indispensável para e responsável pela formação e continuidade de qualquer relação advinda entre os sujeitos”. Ademais, o afeto se tornou necessário para a felicidade dos indivíduos, porquanto sua vida se assenta nos sentimentos.
Seguindo o mesmo entendimento, Rizzardo (2013, p. 682) salienta que:
Se alguém depende e se aproxima de outra pessoa, à qual se une, se entrega e deposita plena confiança, inclusive abdicando de sua individualidade e liberdade, é porque assim reclama e impõe o organismo humano, constituindo essa tendência um impulso inato, a qual, se suprimida, impede o pleno desenvolvimento da pessoa e traz uma carência que limita a realização nas necessidades básicas e fundamentais.
As relações afetivas objetivam realizar a troca desses elementos, de maneira que os companheiros depositem plena confiança, inclusive limitando a sua liberdade. O impedimento da afetividade ou o desprezo desses sentimentos implica na lesão do mundo interior, de maneira a interferir no desenvolvimento psicológico dos indivíduos.
Em suma, o afeto intervém diretamente no desempenho dos indivíduos, isto é, implica tanto na forma física, quanto psicológica, sendo este último o mais prejudicado, tendo em vista que os sentimentos, de certa forma, estão ligados ao desenvolvimento emocional (REHBEIN; SCHIRMER, 2010).
Em que pese, é no seio das relações afetivas que o afeto se desenvolve, além disso, esse sentimento passou a ser visto nas diferentes áreas que pairam as relações humanas. Nesse sentido, Rehbein; Schirmer (2010, p. 10) elucidam que:
Tendo-se em vista a importância e a necessidade desse sentimento perante a conduta e o desenvolvimento do ser humano, o sistema judiciário precisou se adaptar e estabelecer em suas decisões o seu valor, buscando novas soluções e criando novos paradigmas para solucionar os conflitos, atendendo satisfatoriamente às novas demandas sociais.
Portanto, é a partir desse contexto que surge a necessidade de analisar a responsabilidade civil decorrente da violação dos elementos afetivos, uma vez que não pode o Direito deixar que certas situações de abalo psicológico passe despercebido sem a sua devida proteção e ou reparação.
3.2 NOÇÕES CARACTERIZADORAS DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE NAMORO
O fundamento máximo da responsabilidade civil se encontra no elemento culpa, no entanto, em muitas ocasiões há o ensejo da obrigação de reparar o dano sem que esteja presente este requisito. Nessa mesma linha, Pereira (2014, p.537) preconiza que “a responsabilidade civil tem procurado libertar-se do conceito tradicional de culpa”. Desta sorte, a responsabilidade objetiva, por meio de cláusulas gerais expressamente previstas no ordenamento jurídico, estabelece a obrigação reparatória dos danos.
O presente trabalho parte da premissa da teoria do abuso do direito para analisar a responsabilidade civil nas relações de namoro. Isso porque, conforme será discutido nos tópicos e subtópicos seguintes, a possibilidade de reparação civil decorrente do caso concreto em análise, se deu em razão do abuso do direito com a consequente violação dos preceitos da boa-fé objetiva.
Partindo dessa concepção e do entendimento do que seja a relação de namoro, é importante observar os requisitos que ensejam a responsabilidade civil nas relações amorosas, notadamente quanto ao abuso do direito e a quebra da boa-fé objetiva, caracterizando o estelionato sentimental, termo que será delineado nos próximos subtópicos.
3.2.1 Abuso do Direito
A teoria do abuso do direito é cláusula geral da responsabilidade civil e está fundamentada no art. 187 do Código Civil de 2002, assim disposto: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. O exercício irregular dos preceitos legais configura abuso do direito, ensejando a responsabilidade civil. (BRASIL, 2002).
Por conseguinte, em suas lições, Pereira (1998, p.160) preceitua que “todo direito se faz acompanhar de um dever, que é o de exercer perseguindo a harmonia das atividades”. Ao analisar o ensinamento do nobre jurista, cumpre ressaltar que o fundamento do abuso do direito é impedir que o sujeito exercite o seu direito de maneira distinta daquela a qual ele fora criado, isto é, o agente deve agir dentro dos limites legais, pois não atuando dessa maneira, sobrevém a ilicitude e o consequente exercício abusivo de seu direito.
No que concerne à responsabilidade civil por abuso do direito, o requisito culpa é elemento pura e simplesmente secundário para a sua caracterização do dever de indenizar. O que se verifica não é o ato ilícito em si, mas a maneira pela qual o direito do indivíduo é exercido (GUERRA, 2015). Corroborando esse entendimento, a I Jornada de Direito Civil, por meio do enunciado nº 37, dispôs que: “A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico” (BRASIL, 2015, p.2118). Nesse sentido, verifica-se que a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe da conduta culposa do agente, sendo necessária para sua caracterização a presença de um direito subjetivo aliado ao seu exercício de forma irregular. Em suma, o instituto do abuso do direito incide sobre diversas áreas do direito, como forma de conter o exercício irregular dos direitos subjetivos (GONÇALVES, 2012).
Em vista disso, o abuso do direito se fundamenta na ideia da utilização dos preceitos jurídicos e a maneira como ele se exterioriza, de modo que o conflito entre o direito e a sua finalidade caracteriza o ato em ilícito. Assim, sempre que a conduta ilícita do agente se afastar dos valores éticos, econômicos e sociais, o ato será abusivo.
Nesse sentido, explica Marcacini (2006, p.78,79):
[...] a locução abuso do direito não é equivocada e muito menos contraditória. Ela expressa a existência de um direito, que pode ser exercido por qualquer pessoa, mas, no exercício desse direito, este não foi utilizado em consonância com as normas éticas, com a boa-fé, com os bons costumes e com a sua finalidade social e econômica.
A priori, o art. 187 do Código Civil de 2002, confere alguns limites ao abuso do direito, quais sejam: fim econômico ou social, boa-fé e bons costumes. Enquanto o primeiro incide sobre como o direito é exercido, os demais são restrições gerais, de forma que devem ser obedecidos no exercício de qualquer direito (CAVALIERI FILHO, 2014).
Não há que se ouvidar que a teoria do abuso do direito impede que o agente pratique uma conduta ilícita, descumprindo a finalidade das normas e violando os preceitos da boa-fé e dos bons costumes. Infere-se que, aquele que excede tais limites e viola tais preceitos, causando danos a terceiros, enseja a obrigação de indenizar.
3.2.2 Princípio da Boa-fé Objetiva
A boa-fé está compreendida na definição do abuso do direito, e se assenta no art. 187 do Código Civil, consistente em uma restrição ao exercício de direitos subjetivos e incide sobre a conduta correta, leal e adequada do indivíduo.
Segundo Cavalieri Filho (2014, p. 214): “A boa-fé objetiva é o padrão de conduta necessária à convivência social para que se possa acreditar, ter fé e confiança na conduta de outrem”. Ademais, é um comportamento que perdura em todas as relações sociais.
Conceitua Pereira (2014, p. 20):
A boa-fé objetiva não diz respeito ao estado mental subjetivo do agente, mas sim ao seu comportamento em determinada relação jurídica de cooperação. O seu conteúdo consiste em um padrão de conduta, variando as suas exigências de acordo com o tipo de relação existente entre as partes.
Com efeito, o instituto da boa-fé pode ensejar duas modalidades distintas, quais sejam, a subjetiva e a objetiva. Em se tratando da boa-fé subjetiva, o que se analisa é a intenção do agente, isto é, o comportamento que paira sobre a consciência e a vontade danosa daquele que a pratica. Em contrapartida, a boa-fé objetiva, e é essa que nos interessa, parte do pressuposto do comportamento adequado que se espera do homem correto, e consiste em uma norma geral de conduta que impõe o modo pelo qual as pessoas devem a agir conforme o modelo de atuação leal (FERRARO, et al., 2006).
É certo que, no ordenamento jurídico brasileiro, a boa-fé objetiva desempenha papel essencial, visto que além da função de regulamentar é indispensável nas relações dos indivíduos. Sendo assim, Cavalieri Filho (2014, p. 214-215) sustenta que:
Em sua função de controle, que aqui nos interessa, a boa-fé representa o padrão ético de confiança e lealdade indispensável para a convivência social. As partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Essa expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um componente indispensável na vida de relação. Conforme já destacado, a boa-fé, em sua função de controle, estabelece um limite a ser respeitado no exercício de todo e qualquer direito subjetivo.
O reconhecimento do princípio da boa-fé objetiva como cláusula geral prevista no Código Civil de 2002, contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento do instituto na doutrina e jurisprudência, como forma de regulamentar diferentes relações no âmbito jurídico, de maneira que impõem aos agentes uma limitação à prática de todo e qualquer direito subjetivo (PEREIRA, 2014).
3.2.3 Estelionato Sentimental
Num primeiro momento, importante destacar que a origem da expressão “estelionato sentimental” decorre de uma decisão proferida pelo Juiz da 7º Vara Cível de Brasília, por meio da qual envolveu uma série de discussões acerca da condenação do ex-namorado em ressarcir à autora pelas despesas referentes aos gastos e empréstimos efetuados na constância do relacionamento. No referido julgamento, restou demonstrado que houve exploração econômica pelo namorado na constância do relacionamento amoroso, emergindo daí o que se intitulou de “estelionato sentimental”.
Em suma, o estelionato trata-se de um delito tipificado pelo Código Penal brasileiro, que consiste em um comportamento conduzido no sentido de obter vantagem ilícita, utilizando-se, para tanto, meios ardis e fraudulentos que ocasionam prejuízos econômicos à vitima, e esta, por sua vez, é mantida em erro. Nesse sentido, dispõe o artigo 171, caput, do Código Penal, in verbis:
Estelionato
Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa (BRASIL, 1940).
Com efeito, nota-se que o estelionato agrupa vários requisitos, quais sejam, a vantagem ilícita, o erro, o meio fraudulento e o prejuízo alheio. No que tange ao meio fraudulento, a forma ardilosa consiste no emprego de meios capazes de atingir a confiança e a lealdade da vítima, gerando erro e falsa compreensão dos sentimentos. O erro, por sua vez, caracteriza-se pela falsa percepção da realidade, resultando em vantagem ilícita e prejuízo a vitima (RIO DE JANEIRO, 2003)[1].
Seguindo a mesma linha, o penalista Greco (2014, p. 236) assevera que:
Desde que surgiram as relações sociais, o homem se vale de fraude para dissimular seus verdadeiros sentimentos, intenções, ou seja, para, de alguma forma, ocultar ou falsear a verdade, a fim de obter vantagens que, em tese, lhe seriam indevidas.
Diante do exposto e do sentido empregado pela referida decisão, entende-se por estelionato sentimental toda forma de obter vantagem ilícita do seu namorado na vigência do relacionamento, valendo-se de meios fraudulentos e dirigindo a sua conduta em desrespeito aos deveres decorrentes da boa-fé-objetiva.
Como se nota, a jurisprudência do Tribunal do Distrito Federal e Territórios valeu-se de uma definição penal para elucidar o direito à reparação. Em que pese isso é possível? O sentimento então é passível de direito?
De plano, o termo estelionato foi utilizado, não como uma conduta típica a ensejar a responsabilidade civil nas relações de namoro, mas, pura e simplesmente como adaptação do seu significado em si, com vistas a demonstrar, com mais anseio, a definição jurídica da palavra. Certo é que, uma vez empregada como infração penal, essa seria regulada no âmbito criminal e não na seara civilista. Ademais, o sentimento pressupõe que a conjuntura do fato se deu no seio de uma relação afetiva, precisamente a relação de namoro, que por sua vez, não importa em afirmar que o sentimento é passível ou não de direito. Do estudo realizado pelo presente trabalho, o que é levado em conta para o ensejo da responsabilidade civil são os requisitos que ensejam a sua reparação, isto é, os atos que pairam sobre o ordenamento jurídico brasileiro.
O que não é permitido é a exploração econômica, o enriquecimento sem causa e um abuso desenfreado do direito, e uma vez existindo, em tese, pode haver reparação civil pelo órgão jurisdicional. Ora, o judiciário deve intervir nessas situações com o intuito de tutelar as condutas lesivas presentes nas relações afetivas.
Neste ínterim, a questão do “estelionato sentimental” acaba por gerar, de certa forma, mais cautela entre os indivíduos em uma relação de namoro, de tal modo que, não é pelo fato do namoro não ser definida como uma entidade familiar que não produzirá consequências jurídicas, tendo em vista que, conforme já exposto no decorrer do trabalho, pode haver responsabilidade civil nas relações de namoro, desde que presente os requisitos que a caracterizam como tal.
4 ANÁLISE FÁTICA E JURÍDICA DO ACÓRDÃO N.866800 E DA APELAÇÃO 20130110467950 APC
O Juiz da 7º Vara Cível de Brasília, ao proferir uma decisão de término de relacionamento, reconheceu a necessidade de reparação por danos materiais, mediante a vedação do enriquecimento sem causa, sobretudo em decorrência do abuso do direito e da inobservância dos deveres impostos pela boa-fé objetiva. A partir disso, será analisado o acórdão do recurso de apelação da 5º turma cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios acerca da referida decisão. Nesse sentido, segue a ementa:
PROCESSO CIVIL. TÉRMINO DE RELACIONAMENTO AMOROSO. DANOS MATERIAIS COMPROVADOS. RESSARCIMENTO. VEDAÇÃO AO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. ABUSO DO DIREITO. BOA FÉ OBJETIVA. PROBIDADE. SENTENÇA MANTIDA. 1. [...] depreendendo-se que a autora/ apelada efetuou continuadas transferências ao réu; fez pagamentos de dívidas em instituições financeiras em nome do apelado/réu; adquiriu bens móveis tais como roupas, calcados e aparelho de telefonia celular; efetuou o pagamento de contas telefônicas e assumiu o pagamento de diversas despesas por ele realizadas, assim agindo embalada na esperança de manter o relacionamento amoroso que existia entre os ora demandantes. Corrobora-se, ainda e no mesmo sentido, as promessas realizadas pelo varão-réu no sentido de que, assim que voltasse a ter estabilidade financeira, ressarciria os valores que obteve de sua vítima, no curso da relação. 2. Ao prometer devolução dos préstimos obtidos, criou-se para a vítima a justa expectativa de que receberia de volta referidos valores. A restituição imposta pela sentença tem o condão de afastar o enriquecimento sem causa, sendo tal fenômeno repudiado pelo direito e pela norma [...].
(TJDF. Acórdão n.866800, 20130110467950APC, Relator: CARLOS RODRIGUES, Revisor: ANGELO CANDUCCI PASSARELI, 5ª Turma Cível, Data de Julgamento: 08/04/2015, Publicado no DJE: 19/05/2015. P. 317).
O acórdão em análise trata-se do recurso de apelação n. 20130110467950 APC, da 5º Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, apreciado no dia 08 de abril de 2015, pelos desembargadores Angelo Passareli – Revisor e Carlos Rodrigues- Relator. Versa acerca do recurso de apelação movido pelo apelante/réu em face da sentença de parcial procedência (Processo n. 0012574-32.2013.8.07.0001) que o condenou a restituir à apelada/autora por todos os danos materiais decorrentes de empréstimos e demais gastos realizados na constância do relacionamento.
A autora/apelada alega ter existido um relacionamento com o réu/apelante de 2010 até 2012, logo após ter descoberto que o mesmo havia contraído um matrimônio, cujo enlace se deu no curso do relacionamento com a autora/apelada. Afirma que o réu/apelante no fim de 2010 começou uma sucessão de pedidos, tanto de diversos empréstimos, quanto de compras mediante o uso do cartão de crédito, sempre afirmando pelo compromisso de pagamento futuro. Declara ainda a autora/apelada, que para quitar as dívidas exercidas pelo réu/apelante, foi obrigada a realizar empréstimos que totalizam um débito de R$101.537,71. Assim sendo, a autora/apelada postulou indenização por danos materiais e morais, decorrentes do que se intitulou de “estelionato sentimental” (TJ/DFT, 2015).
Os pedidos da autora/apelada foram julgados parcialmente procedentes, sendo o réu/apelante condenado a devolver: todos os valores passados por meio de transferência bancária; os débitos em titularidade do réu/apelante que foram quitados pela autora/apelada; o valor pago referente a sapatos e roupas; os valores atinentes a contas telefônicas, tudo comprovado nos autos da decisão (TJ/DFT, 2015).
Em suas razões recursais, após impugnar os argumentos da contestação, o réu apela arguindo que os valores e todos os benefícios que auferiu da autora/apelante foram ajudas de livre e espontânea vontade, não sendo certo a autora/apelada cobrar por valores que ela mesma ofertou. Sustenta que o propósito da autora/apelada é a de vingança, em razão do término do relacionamento. Salienta ainda, que o juízo a quo se equivocou ao descrever que o réu/apelante teria prometido a pagar a autora/apelada, e ademais, que não incorre no dever de indenizar diante da inexistência dos pressupostos da responsabilidade civil, quais sejam: conduta culposa, nexo de causalidade e dano. Assim, pleiteia pela reforma da decisão para que os pedidos da inicial sejam julgados totalmente improcedentes (TJ/DFT, 2015).
Destarte, ao fundamentar a sua decisão, o relator entende que o apelo do réu/apelante não merece prosperar, tendo em vista a comprovação, por meio dos autos, que a autora/apelada efetuou diversos pagamentos de titularidade do réu/apelado, além de diversas outras despesas, como contas telefônicas, roupas, sapatos, bens móveis e outros, sempre na expectativa de ser ressarcida assim que o réu/apelante voltasse a ter condições financeiras. Para o relator, o argumento do réu/apelante no sentido de que recebeu as ofertas da autora/apelada de forma espontânea, não prospera em virtude da situação financeira que se encontrava o apelante, tendo em vista que por meio de mensagens de texto trocadas pelas partes foram comprovados que os benefícios recebidos pelo réu/apelante, eram por ele solicitados (TJ/DFT, 2015).
Sustenta o nobre relator que “o mínimo que se espera nas relações intersubjetivas é que as pessoas envolvidas atuem com boa-fé, sinceridade nas palavras, lealdade e transparência” (TJ/DFT, 2015). Assevera que a boa-fé, por se tratar de cláusula geral, permite que seja amoldada a diversas situações de litígio. Assim, em suas palavras:
Por encontrar-se hospedada em cláusula geral, a boa-fé permite ao juiz adaptar as normas jurídicas às situações fáticas dos conflitos de interesses submetidos à sua apreciação. A partir dela o juiz, a quem se conferem amplas prerrogativas exegéticas, está habilitado a descortinas a justiça sem, contudo, perder de vista as fronteiras da autonomia da vontade, evitando-se excessos (TJ/DFT, 2015, p. 07).
Depreende-se que a ajuda financeira, embora seja lícita nos relacionamentos, pode derivar de ilicitude, insurgindo o dever de indenizar. Isso porque, o réu/apelante atuou de forma contrária aos preceitos legais, tendo em vista que no momento que aceitou diversas importâncias da autora/apelada, por intermédio do desrespeito dos ditames da boa-fé objetiva, abusando desse direito, agiu de forma ilegítima (TJ/DFT, 2015).
Em sequência, para o ilustre julgador em regra, a responsabilidade quanto ao dever de indenizar é por meio da culpa (lato sensu). Todavia, quando a conduta decorre do abuso do direito e da violação dos deveres conexos, conforme o caso em tela, a responsabilidade independe de culpa.
Ainda no sentido de fundamentar o seu voto, o relator pronuncia no sentido que:
[...] a partir do instante em que se comprometeu a devolver os valores despendidos pela apelada/autora, criou nela uma justa expectativa de receber de volta referidos valores, sob pena de aceitar-se o enriquecimento de forma indevida, o qual é vedado pelo direito.
[...] verificam-se diversas mensagens nas quais o apelante-réu solicitava concessões financeiras por parte da apelada-autora, com promessas de restituição, tudo isso em meio a declarações amorosas e sinais de confiança conquistada à custa da vítima (TJ/DFT, 2015, p. 10).
Diante do exposto, o relator entende que as vantagens recebidas pelo réu/apelante se deu mediante a confiança conquista pela autora/apelada, por meio de sua conduta ilícita “ao utilizar de artifícios para se locupletar de forma indevida”. Assim, negou provimento ao recurso, mantendo a sentença na sua integralidade (TJ/DFT, 2015).
Depreende-se que o posicionamento do Tribunal está pautado no dever de indenizar, previsto no art. 927 do Código Civilista de 2002, levando-se em consideração a vedação expressa do ordenamento jurídico no que tange ao enriquecimento sem causa (art.884 CC/02), baseada na conduta abusiva, em desrespeito aos preceitos da boa-fé objetiva (art. 187 CC/02).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da exposição levantada pelo presente trabalho, foi possível perceber o alcance da Responsabilidade Civil na esfera das relações de namoro, sobretudo quanto à possibilidade de reparação pelos danos materiais decorrentes da conduta abusiva, aliada ao desrespeito da boa-fé objetiva. Por essa razão, o artigo científico destacou a perspectiva do abuso do direito presente nas cláusulas gerais elencadas no Código Civil de 2002, dando ênfase à Responsabilidade Civil Objetiva.
A relação de namoro é marcada por seu caráter contínuo, público e duradouro, sem o animus de constituir família, sendo uma relação não prevista em lei, mas que, de forma implícita, produz efeitos na esfera jurídica. Cumpre salientar que a responsabilidade civil nas relações de namoro, para o seu ensejo, leva em consideração os elementos que impliquem em uma conduta contrária às normas jurídicas.
Restou evidente que amar não é um dever jurídico, e ademais, é inadequada a interferência do poder jurisdicional nos sentimentos dos indivíduos, contudo, aquele que pratica um ato ilícito, violando a boa-fé objetiva, incorre em uma sanção, dando ensejo a responsabilidade civil. Sendo assim, considerando todo o exposto, é normal que no curso das relações, os namorados cubram despesas uns dos outros, contudo, o que o Direito veda é a quebra da boa-fé objetiva, a confiança e a lealdade presente nessas relações.
No que tange ao entendimento jurídico dos julgadores na decisão proferida pelo Juiz da 7º Vara Cível de Brasília, bem como no recurso de apelação, entenderam que quanto ao dever de ressarcir a vítima por todas as despesas empreendidas no curso do relacionamento, restou fundamentada na teoria do abuso do direito, por meio da conduta ilícita do ex-namorado, que violou os deveres da boa-fé-objetiva. Em contrapartida, com relação aos danos morais sofridos, entenderam não ser possível, uma vez que meros dissabores somente são passíveis de configurar dano moral quando estiverem diretamente ligados a uma lesão à dignidade humana. Desta feita, é notório que para os nobres julgadores, sempre que restar caracterizada uma exploração no curso do relacionamento, por meio de uma conduta abusiva, pode haver o ensejo da Responsabilidade Civil.
Sendo assim, a relevância do tema na seara jurídica está, precisamente, em demonstrar a responsabilidade daquele individuo que não respeita os sentimentos alheios, simulando gostar do outro para obter qualquer tipo de vantagem.
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[1] Cartilha apresentada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretária de Segurança Pública e Programa Delegacia Legal, em Junho de 2003. Revisores: Professora Maria Isabel Maia Marmello e Professor Paulo Sérgio de Carvalho Alvarenga. Equipe técnica: Programa Delegacia Legal.
Bacharelanda em Direito - Faculdade Guanambi.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Ana Laiz Oliveira. Estelionato sentimental: a responsabilidade civil nas relações de namoro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 nov 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47759/estelionato-sentimental-a-responsabilidade-civil-nas-relacoes-de-namoro. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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