INTRODUÇÃO
Fato público e notório que o serviço público de saúde no Brasil é precário, problema típico de Países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Ocorre que não raras as vezes que o cidadão, necessitado, ingressa com ação judicial para obter o tratamento de saúde ou o fornecimento do medicamento através do Judiciário.
Neste cenário, pairam dúvidas a respeito da competência e organização dos entes federativos (União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios), isto é, a quem compete a prestação do serviço de saúde – direta ou indiretamente, especialmente sob o ponto de vista do Supremo Tribunal Federal.
Sobre o tema, passamos a discorrer abaixo.
SERVIÇO DE SAÚDE E A COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERATIVOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Segundo o autor Celso Antônio Bandeira de Mello, serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo[1].
Em síntese, serviço público é toda atividade do Estado voltada a conceder alguma utilidade ou comodidade à sociedade.
Na Constituição Federal de 1988 são estabelecidos diversos serviços a serem prestados direta ou indiretamente pelos entes federativos. Dentre eles destaca-se o serviço de saúde, que, além de ser um direito social, sobretudo é um direito individual, corolário do princípio fundamental do direito à vida digna (CF/88, art. 5º, caput c/c art. 6º, caput).
A Carta Magna dispõe no seu Título III sobre a organização do Estado e, especificamente sobre o serviço de saúde, prevê que:
CF/88, Art. 30. Compete aos Municípios:
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; [2]
Para reforçar, tamanha a relevância e a essencialidade do serviço de saúde, que a Constituição Federal tem capítulo específico sobre o tema (Título VIII - da Ordem Social, capítulo II, seção II – da Saúde). Lá, dispõe que o serviço integra uma rede regionalizada e hierarquizada, em forma de sistema único. Confira-se:
CF/88, Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo.[3]
De logo, é possível compreender que o serviço de saúde é da responsabilidade de todos os membros federativos, direta e indiretamente. Pelos dispositivos constitucionais acima, entende-se que a descentralização consiste na prestação direta pelos Municípios, entes locais, porquanto estão mais próximos da população e são mais capazes de identificar onde, como e quais serviços específicos de saúde urbana deverão ser prestados. Por sua vez, ciente que os serviços de saúde são bastante onerosos e os recursos municipais são limitados, estabeleceu-se a competência dos Estados e da União Federal para prestarem cooperação técnica e financeira, ou seja, a prestação indireta do serviço.
Ocorre que corrente forte da doutrina e da jurisprudência defende que a competência é comum para a prestação do serviço e que todos os entes federativos são responsáveis direta e igualmente. Justificam o raciocínio no artigo 23, inc. II, da Constituição Federal, in verbis:
CF/88, Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;[4]
No entanto, é possível notar que o disposto no inciso II do artigo 23 não trata do serviço público de saúde em si, mas especificamente da saúde dos portadores de deficiência, haja vista as necessidades especiais que essas pessoas demandam. Como visto, quando a Constituição Federal se referiu ao serviço geral de saúde pública, o fez expressamente nos artigos 30, inc. VII, e 198, inc. I, nos quais foi clara ao indicar a prestação descentralizada e hierarquizada, ou seja, diretamente pelos Municípios e indiretamente (cooperação técnica e financeira) pelos Estados e pela União Federal e assim o fez por uma questão organizacional, estrutural e sobretudo de eficiência (consagração do princípio constitucional da eficiência).
Em regulamentação, a Lei n° 8.080/90 detalha as atribuições de cada ente da federação em relação ao SUS. É possível perceber que à União Federal são atribuídas as funções de gestão e organização, mas em nenhum dispositivo indica a execução direta do serviço. Vejamos:
Lei n° 8.080/90, Art. 16. A direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:
I - formular, avaliar e apoiar políticas de alimentação e nutrição;
II - participar na formulação e na implementação das políticas:
a) de controle das agressões ao meio ambiente;
c) relativas às condições e aos ambientes de trabalho;
III - definir e coordenar os sistemas:
a) de redes integradas de assistência de alta complexidade;
b) de rede de laboratórios de saúde pública;
c) de vigilância epidemiológica; e
IV - participar da definição de normas e mecanismos de controle, com órgão afins, de agravo sobre o meio ambiente ou dele decorrentes, que tenham repercussão na saúde humana;
V - participar da definição de normas, critérios e padrões para o controle das condições e dos ambientes de trabalho e coordenar a política de saúde do trabalhador;
VI - coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica;
VII - estabelecer normas e executar a vigilância sanitária de portos, aeroportos e fronteiras, podendo a execução ser complementada pelos Estados, Distrito Federal e Municípios;
VIII - estabelecer critérios, parâmetros e métodos para o controle da qualidade sanitária de produtos, substâncias e serviços de consumo e uso humano;
IX - promover articulação com os órgãos educacionais e de fiscalização do exercício profissional, bem como com entidades representativas de formação de recursos humanos na área de saúde;
X - formular, avaliar, elaborar normas e participar na execução da política nacional e produção de insumos e equipamentos para a saúde, em articulação com os demais órgãos governamentais;
XI - identificar os serviços estaduais e municipais de referência nacional para o estabelecimento de padrões técnicos de assistência à saúde;
XII - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde;
XIII - prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o aperfeiçoamento da sua atuação institucional;
XIV - elaborar normas para regular as relações entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e os serviços privados contratados de assistência à saúde;
XV - promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal;
XVI - normatizar e coordenar nacionalmente o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados;
XVII - acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde, respeitadas as competências estaduais e municipais;
XVIII - elaborar o Planejamento Estratégico Nacional no âmbito do SUS, em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal;
XIX - estabelecer o Sistema Nacional de Auditoria e coordenar a avaliação técnica e financeira do SUS em todo o Território Nacional em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal. (Vide Decreto nº 1.651, de 1995)
Parágrafo único. A União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional.[5]
Excepcionalmente, nos casos de calamidade grave que escapem do controle dos demais entes federados, é que a Lei prevê a competência da União Federal para executar diretamente ações de saúde, vide art. 16, parágrafo único.
Quanto aos Estados-membros, a Lei 8.080/90 determina que compete promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde, bem como prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios. Também, a lei é expressa ao indicar que a execução direta do serviço de saúde pelos Estados é supletiva, ou seja, complementar. Confira-se:
Lei n° 8.080/90, Art. 17. À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
I - promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde;
II - acompanhar, controlar e avaliar as redes hierarquizadas do Sistema Único de Saúde (SUS);
III - prestar apoio técnico e financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde;
IV - coordenar e, em caráter complementar, executar ações e serviços (...) (sem grifos no original)[6]
Para arrematar, a Lei 8.080/90 deixa claro que incumbe aos entes locais (Municípios e o Distrito Federal) a execução direta do serviço de saúde. In verbis:
Lei n° 8.080/90, Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:
I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde;” (sem grifos no original)
Apesar de parecer simples a conclusão no sentido da descentralização da execução direta do serviço de saúde para os entes locais (supletivamente aos Estados e excepcionalmente à União Federal), com base na legislação em vigor (Constituição Federal e Leis infraconstitucionais), não são raras as decisões judiciais que determinam ser comum a competência para a execução direta. Para fundamentar a conclusão, encontram respaldo no julgado proferido pelo Supremo Tribunal Federal em Repercussão Geral no REx n° 855.178, segundo o qual a responsabilidade dos entes federativos para a prestação do serviço de saúde à população é solidária. Transcreve-se trechos do julgado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente.[7]
Ora, o Supremo Tribunal Federal reafirmou o texto constitucional, no sentido de que os entes federativos (todos) competem a prestação do serviço de saúde, cada um na medida de sua competência. Todavia, isso não quer dizer que a execução direta seja comum e, nesse ponto, foi omisso o Acórdão, o que ensejou a oposição de Embargos de Declaração, os quais ainda pendem de julgamento até o momento.
Provavelmente, o Supremo Tribunal Federal integrará a decisão proferida no sentido de que, apesar de a competência para a prestação do serviço de saúde ser comum, cada ente possui atribuições específicas e peculiares, cabendo, como regra, a execução direta aos entes locais, supletivamente aos Estados-membros e, apenas excepcionalmente, à União Federal.
Afinal, nesta mesma linha o Conselho Nacional de Justiça, órgão da estrutura do Poder Judiciário e composto essencialmente por Ministros do próprio STF, definiu:
CNJ – I Jornada de Direito da Saúde – Enunciado n° 08 – Nas condenações judiciais sobre ações e serviços de saúde devem ser observadas, quando possível, as regras administrativas de repartição de competência entre os gestores.[8]
CNJ – II Jornada de Direito da Saúde – Enunciado n° 60 - A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento.[9]
Com acerto o entendimento do Conselho Nacional de Justiça, que, apesar de não vinculante, serve de parâmetro para todo o Poder Judiciário ao esclarecer a descentralização administrativa e hierarquizada do serviço de saúde.
Entretanto, muitos juízes insistem em ignorar esse entendimento e, ao julgarem, determinam a condenação da União Federal e dos Estados na prestação direta do serviço de saúde, como solução ao erro do advogado do particular que não direcionou a ação contra o respectivo ente local (proposital ou despropositadamente)
CONCLUSÃO
Em conclusão, não restam dúvidas de que a competência para a prestação do serviço de saúde é de todos os entes federativos, mas se deve observar a repartição das atribuições que cabem a cada um deles e que, no tocante à execução direta incumbe aos entes locais, segundo a constituição federal e legislação infraconstitucional.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal seja congruente e, com base na letra da Constituição Federal e das normas esparsas, integre o julgado neste sentido, uniformizando a jurisprudência nacional.
[1] Mello, Celso Antônio Bandeira – Curso de Direito Administrativo, Ed. 2004, pag. 620
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[4] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[5] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm
[6] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm
[7] http://stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4678356
[8] http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saude/i-jornada-de-direito-da-saude
[9] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79430-ii-jornada-da-saude-aprova-enunciados-para-subsidiar-juizes
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), ocupa o cargo de Advogado da União (AGU) desde 2013, aprovado e nomeado anteriormente em outros cargos públicos de relevo, como Procurador da Fazenda Nacional (PGFN - concurso 2012), Analista Judiciário do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE - concurso 2007), dentre outros.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Rodrigo Pimentel de. O direito à saúde e a competência dos entes federativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 nov 2016, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/47765/o-direito-a-saude-e-a-competencia-dos-entes-federativos. Acesso em: 22 nov 2024.
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