RESUMO: Diante das proximidades dos institutos do casamento e da união estável, consagrados pela Carta Magna, não se vislumbra como ser diferente a sucessão de bens entre eles. Todavia, a interpretação dada ao artigo 1790 do Código Civil/2002 é bastante contraditória. São questões polêmicas relacionadas ao direito sucessório dos companheiros, existindo opiniões diversas de doutrinadores, dentre as quais, destaca-se que a maior problemática está na interpretação do “Caput” em conjunto com o inciso IV do artigo 1.790. Enquanto o caput do artigo 1.790 diz que o companheiro terá direito de herdar apenas os bens adquiridos no curso do relacionamento, o seu inciso IV dispõe que, não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. Ora, a expressão totalidade da herança não deixa dúvida de que abrange todos os bens deixados, sem a limitação contida no caput. Evidente que há antinomia entre o caput do artigo e seu inciso. Entretanto, uma interpretação construtiva, que objetive justiça, pode extrair daí a solução que evite a injustiça e o absurdo de deixar um companheiro, em dadas situações, em total desamparo, e, não havendo outros herdeiros, o companheiro, por força do claro comando do inciso IV, deverá receber não apenas os bens havidos na constância da relação de forma onerosa, mas a totalidade da herança. Estas situações merecem ser analisadas através da teoria e alicerçadas pelas posições variadas.
Palavras-chave: Companheiro. Cônjuge. União Estável. Casamento. Sucessão. Código Civil/2002. Igualdade de Direitos.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 DA SUCESSÃO DOS COMPANHEIROS PREVISTA NO CÓDIGO CÍVEL/2002. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo analisar o instituto do direito sucessório entre os companheiros, haja vista que, atualmente o casamento não é mais a única forma de constituir família. Já em 1988 o poder constituinte originário observou a presente tendência, consubstanciando tal evolução no art. 226 §3º e 4º, da Carta Magna.
Situações conflituosas entre os direitos dos companheiros e dos cônjuges no direito sucessório, serão demonstradas ao longo deste artigo, bem como as principais dúvidas trazidas pela doutrina, na pretensão de se compreender a legislação vigente, em especial a nítida discriminação realizada pelo legislador no que tange ao direito sucessório dos companheiros no Código Civil vigente.
Não há dúvidas que o tema é relevante porque visa mostrar que os dois institutos mencionados merecem preocupação idêntica do legislador, posto que, são semelhantes e tem a mesma finalidade. E é por tal motivo que a doutrina e jurisprudência já assentaram entendimento que, pessoas em situações iguais devem ter os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, garantindo sempre o equilíbrio entre todos.
Em suma, o que se buscará demonstrar é a necessidade de se promover a união estável ao patamar do instituto do casamento, já que ambos encontram-se disciplinados na Constituição da República Federativa de 1988, e constituem, atualmente, a base da família perante o desenvolvimento da sociedade moderna.
2 DA SUCESSÃO DOS COMPANHEIROS PREVISTA NO CÓDIGO CÍVEL/2002
Com a promulgação do Código Civil pela Lei 10.406 de 2002, a união estável ficou inserida definitivamente no direito brasileiro. Porém, ao tratar do direito sucessório, o código civil trouxe de forma escancarada inegável prejuízo ao companheiro sobrevivente.
Diferentemente do que aconteceu nas legislações anteriores e, sobretudo, contrariando todas as tendências constitucionais e legais dos últimos anos, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o companheiro ou companheira ficou numa posição infinitamente inferior à que ostenta o cônjuge. Houve um lamentável e injustificável retrocesso.
Com efeito, se antes do advento da nova legislação, contrair matrimônio ou viver em união estável apresentava poucas diferenças com relação ao casamento, o mesmo não se pode dizer hoje em dia.
A união estável, não tem um conceito preciso. O atual Código Civil trouxe apenas suas características elencadas em seu artigo 1.723, sendo estas, a convivência pública, contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Reportando-se ao anteprojeto do Código Civil/2002, aprovado com emendas, pela Câmara dos Deputados, em 1984, não continha este nenhum dispositivo regulando a sucessão entre os conviventes. Com vistas a suprir tamanha lacuna, o Senador Nelson Carneiro apresentou ao senado Federal a Emenda n°358, aprovada com subemendas, in verbis:
Artigo 1.802. na vigência da união estável, a companheira ou companheiro, participará da sucessão do outro, nas seguinte condições: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente a que por lei será atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito a totalidade da herança.
Entretanto, tal artigo teve sua redação original alterada, ao ter a locação “quanto o bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável” inserida em seu caput sem, contudo, ajustar ao novo dispositivo e seus quatro incisos. O caput alterado recebeu o número 1.790 e conta com a seguinte redação: Art.1.790, “companheira ou companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes”.
Nota-se a imperfeição do legislador, ao tratar da sucessão dos companheiros nas disposições gerais sobre sucessão, quando na verdade o artigo 1.790 e seus incisos, deveria ter sido inserido, como foi feito na sucessão dos cônjuges, no título relativo à sucessão legítima. Esta é, portanto, a opinião dos autores que abordam o tema;
Inicialmente é estranhável a colocação do artigo 1.790 e seus incisos regulando a sucessão entre companheiros, no capitulo denominado “Disposições Gerais”, da sucessão em geral. Numa conclusão que poderia ter sido do conselheiro Acácio, personagem de Machado de Assis, não devia o artigo 1.790, estar nas “Disposições Gerais” porque de disposição geral não trata. O artigo 1.790 tinha que ficar no Capítulo que regula a ordem de vocação hereditária. (VENOSA, 2002, p. 231).
E ainda:
Merece profundo lamento o equívoco, o injusto e indiscriminatório trato que o Código Civil de 2002 confere ao direito sucessório dos companheiros. De início, chama a atenção o fato de que a regra (artigo 1.790) que trata da vocação hereditária dos companheiros, encontra-se inteiramente deslocado, situando-se nas disposições gerais, quando o adequado teria sido tratar desse tema no artigo 1.829, em conjunto com os demais herdeiros. (SANTOS, 2006, p.248).
As distorções não param por ai. A matéria sucessória dos companheiros enfrenta ainda outros problemas. Senão vejamos:
Ao analisarmos o artigo 1.790, nota-se que este limita a sucessão aos bens adquiridos onerosamente na vigência da União Estável. Assim, merece destaque à critica feira por Canellas (2004, p. 515):
Ora, “bens adquiridos na vigência da união estável” são os aquestos e destes o companheiro ou a companheira já tem direito à meação, como parte ideal, antes da abertura da sucessão, conforme dispõe o artigo 1.725, inspirado na legislação extravagante já existente, in verbis: “na união estável, salvo conversão válida entre os companheiros, aplica-se à relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens”. À meação do companheiro ou companheira sobrevivente é situação que decorre de normas obrigacionais dentro do Direito de Família, não se confundindo com herança.
O que se pode observar no novo instituto é que o legislador poderia ter optado em fazer a sucessão da união estável equivalente ao casamento, mas não o fez, restringiu apenas aos elementos essenciais. Preferiu estabelecer um sistema sucessório isolado, no qual o companheiro nem é equiparado ao cônjuge, nem estabelece regras claras para a sucessão. O artigo 1.790 do novo Código Civil, numa primeira leitura, comparando com as legislações já mencionadas, modifica substancialmente a sucessão entre companheiros.
De acordo com os dizeres de Dias, (2008. p.27):
O que precisava ser alterado não o foi e algumas das mudanças introduzidas não atendem à realidade social. Ao contrário, vincou a lei civil, injustificáveis distinções entre casamento e união estável, ao não reconhecer os mesmos direitos sucessórios a cônjuges e companheiros. A união estável está contemplada em um único artigo (CC 1.790). O companheiro foi inserido em último lugar na ordem de vocação hereditária, depois dos parentes colaterais, enquanto o cônjuge, além de figurar em terceiro lugar, foi elevado à categoria de herdeiro necessário. Mas há mais. A grande novidade que foi batizada com o nome de concorrência sucessória também concedeu aos herdeiros tratamento assimétrico. Desfruta o cônjuge de privilégios em maior extensão. Todas estas odiosas diferenças são de escancarada inconstitucionalidade.
O artigo 1790 do Código Civil de 2002 é visto por muitos como inconstitucional, já que fere princípios basilares do direito, dentre eles, o princípio do retrocesso social, que afirma que nenhum texto advindo do constituinte originário pode sofrer retrocesso que lhe dê alcance jurídico social inferior ao já originariamente posto.
Todavia, antes de perseguirmos a crítica do artigo 1.790, é interessante ressaltarmos o questionamento de Venosa sobre o disposto no artigo 1.725 do Código Civil de 2002. Venosa (2014, p.125) faz a seguinte indagação: ”Havendo contrato entre os companheiros que adotem outro regime, diferente da comunhão parcial de bens, terá o regime escolhido repercussão no direito sucessório?” Frente à omissão do legislador, que deveria ter previsto esta hipótese, entende o ilustre jurista que a resposta deverá ser negativa, aduzindo:
Não há de se levar em conta que o contrato escrito entre os conviventes tenha o mesmo valor jurídico de o pacto antenupcial, o qual obrigatoriamente segue as regras de forma e de registro. Desse modo consoante aos termos peremptórios do artigo 1.790, o convivente somente poderá ser aquinhoado com patrimônio mais amplo do que aquele ali definido por meio de testamento. O contrato escrito que define eventual regime patrimonial entre os companheiros não pode substituir o testamento.
Feita essa breve ressalva, voltamos à criticada limitação, quanto aos bens que serão objeto da sucessão, dada pelo artigo 1.790.
Primeiramente, meação não se confunde com herança. A primeira decorre de uma relação patrimonial, existente em vida e estabelecida por lei ou por vontade das partes. O meeiro já é dono de sua cota parte antes da abertura da sucessão. Já a herança tem sua origem na morte, sendo transmitida aos sucessores na forma da lei, ou pela última vontade do falecido via testamento. Abrilhantando o assunto, discorre Hironaka (2002, p.69-70):
Como se vê, a meação é deferida, pela nova lei, relativamente aos bens adquiridos na constância da união estável. Nada mais justo. O paradigma, afinal, é o regime conjugal da separação parcial dos bens! A meação é naturalmente justa e decorre de uma relação patrimonial estabelecida entre aqueles que constituem uma entidade familiar. (...) herdar significa obter, por estar na situação de sucessão de alguém que falece, o patrimônio, por este deixado, por transmissão que se opera legalmente, como é a hipótese de sucessão legítima, ou que se opera voluntariamente, como é a hipótese da sucessão testamentária. São situações, como se vê, diametralmente distintas,e uma mesma pessoa pode portar simultaneamente, ambas as posições jurídicas, a de meeiro e a de herdeiro.
Assim, o dispositivo supracitado, ao limitar o direito sucessório dos companheiros aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável poderá levar a uma grande injustiça, como bem observa Veloso (2002, p.223):
Restringir a incidência do direito sucessório do companheiro sobrevivente aos bens adquiridos pelo de cujus na vigência da união estável não tem nenhuma razão, não tem lógica alguma, e quebra todo o sistema, podendo gerar conseqüências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro se este não adquiriu outros bens durante o tempo de convivência. Ficará esta mulher – se for pobre- literalmente desamparada, mormente quando o falecido não cuidou de beneficiá-la em testamento. O problema se mostra mais grave e delicado se considerarmos que o Código Civil de 2002 nem fala de direito real de habitação sobre o imóvel destinado a residência da família, ao regular a sucessão entre companheiros, deixando de prever, em outro retrocesso, benefício já estabelecido no artigo 7º, parágrafo único, da lei nº 9.278/96.
Com efeito, a redação do art. 1.790 contraria todo o sistema sucessório, pois, entende-se por herança todo acervo hereditário do falecido, menos o passivo. Pelo dispositivo acima estariam fora da sucessão os bens particulares do de cujus, e isto não tem razão de ser, haja vista se, não houver meação, mas somente bens particulares exclusivos do autor da herança, o companheiro ou a companheira, como no exemplo dado por Veloso, nada herdaria, ficando literalmente desamparado.
Contudo, não bastasse essas limitações impostas aos companheiros pelo artigo 1.790, foram alteradas, também, as regras da sucessão em si.
Pela redação do inciso I do artigo 1.790, se concorrer o companheiro sobrevivente com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente à que por lei foi atribuída ao filho. Essa divisão ocorrerá independente do número de descendentes, não havendo aqui uma injustificável distinção entre a sucessão do companheiro e a sucessão do cônjuge.
Mas, num aspecto, apresenta-se vantajoso o direito sucessório do companheiro em relação ao cônjuge, talvez o único. Vejamos. Sendo o regime legal aplicado à união estável o da comunhão parcial de bens, terá o companheiro direito à sua meação mais uma cota equivalente à dos seus herdeiros. Diversamente, o cônjuge sobrevivente terá direito a concorrer na herança dos descendentes e ascendentes se não for casado com o autor da herança no regime de comunhão universal, na separação obrigatória de bens, ou se, no regime da comunhão parcial, o falecido não houver deixado bens particulares. Portanto, em havendo um só dos conviventes, o companheiro ou a companheira sobrevivente, receberá 50% (cinqüenta por cento) dos bens por meação e mais uma cota pela concorrência da outra metade da meação do autor da herança com o(s) filho(s). Se o de cujus fosse casado e, não houvesse bens particulares o cônjuge viúvo receberia apenas 50% dos bens a título de meação.
Assim, nas palavras de Oliveira (2003, p.215):
Se não se admite tratamento discriminatório, prejudicial ao companheiro em outros pontos, tampouco se mostra compatível com o princípio isonômico esse benefício maior que o novo código concede a quem não tenha sido casado.
Lado outro, se concorrer com descendentes só do autor da herança, diz o artigo 1.790, inciso II, que tocará ao companheiro sobrevivente a metade do que couber a cada um daqueles. Surge aqui, outra problemática não prevista pela novel legislação. Como se dará o cálculo do quinhão hereditário concorrendo filhos comuns e filhos só do autor da herança, uma vez que estes são portadores de iguais direitos entre si?
Hironaka (2003) expõe três alternativas, quais sejam:
aplicar somente o inciso I, dando ao companheiro quinhão equivalente ao dos filhos comuns; aplicar os incisos I e II, dando ao companheiro a metade do que couber a cada um dos filhos exclusivos do autor da herança, concedendo ainda ao sobrevivente supérstite uma cota daquela que couber aos filhos comuns; e, por fim, dividir a herança proporcionalmente entre os filhos comuns e filhos exclusivos do falecido.
Já o inciso III do artigo em análise dispõe que, se concorrer com outros parentes sucessíveis (ascendentes e colaterais), terá o companheiro sobrevivo direito a um terço da herança. Denota-se aqui, além de uma discriminação, uma injustificável redução no direito sucessório dos companheiros, como bem observa Oliveira (2003, p.211):
Favorável ao companheiro, sem dúvida, o concurso na herança com descendentes e ascendentes do falecido, tal como se reconhece também ao cônjuge sobrevivente. Mas não se compreende que o companheiro se sujeite à concorrência dos demais parentes sucessíveis, quais sejam os colaterais até o quarto grau. Trata-se de evidente retrocesso no critério no sistema protetivo da união estável, pois no regime da lei 8.971/94 o companheiro recebia toda a herança na falta de descendentes ou ascendentes.
Neste mesmo entendimento, pronuncia-se Veloso (2002, p.236-237):
Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tal parentes mal se conhecem, raramente se encontram. (...) Por que privilegiar a estes extremos vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferência sobre a família afetiva (que em tudo é compatível à família conjugal) do hereditando?
Já estava, portanto, consolidado há muito no direito sucessório brasileiro que na falta de parentes em linha reta do de cujus, o companheiro sobrevivo herdaria a totalidade da herança.
Nos ensinamentos de Veloso (2002), colocar o companheiro que manteve a mais íntima e completa relação com o falecido, que sustentou com ele uma convivência séria, sólida, com animus de constituição de uma família, atrás de parentes colaterais do de cujus na ordem de vocação hereditária, com certeza, não foi uma solução sensata, tampouco, justa.
Noutro sentido, se não houver parente sucessíveis, receberá o companheiro sobrevivente, a totalidade da herança (inciso IV, do artigo 1.790). Ou seja, não havendo nem ascendentes e nem colaterais até o 4º grau, o companheiro ou a companheira sobrevivente, herdará a totalidade da herança. Há aqui uma dificuldade de interpretação quanto à expressão totalidade da herança. O que quis dizer o legislador quanto a isso? A questão é controvertida.
Segundo Oliveira (2006, p.211-212):
Enquanto a cabeça do artigo refere-se ao direito de herança somente sobre os bens adquiridos durante a convivência, o seu inc. IV diz que, na falta de parentes sucessíveis, o companheiro recebe a totalidade da herança. Embora o inciso deva ser interpretado em consonância com o caput do artigo, sempre resta alguma dúvida sobre a extensão do conceito de herança naquela hipótese, de não haver parentes sucessíveis.
A totalidade da herança a que o companheiro ou companheira têm direito a recolher, diz respeito somente aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência. Ademais, afirma o autor que pelo fato do caput ter se referido apenas aos bens percebidos na constância da união estável e por este comando imperativo da norma, o direito sucessório dos companheiros restringe-se aos mesmos (RODRIGUES, 2004).
Preceitua Veloso (2002) que “ao restringir a herança do companheiro ou companheira sobrevivente aos bens adquiridos durante a união estável, deveria o legislador, ter reescrito e adaptado, à nova ordem, os incisos do indigitado artigo”.
Há, contudo, aqueles que entendem de maneira diversa, dando ao assunto uma interpretação sistemática para escapar da injusta solução imposta pela legislação civil.
Assim, assinala Canellas (2004, p. 518):
..., no caso dos incisos III e IV do artigo 1.790, o código de 2002 não teria tratado do direito à cota-parte, mas, sim, do direito há herança a que têm os companheiros, não a restringindo, portanto, somente aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, mas abrangendo, inclusive, os bens particulares do falecido, já que, nestes dois casos, o legislador usou a palavra “herança”. Então, segundo esse entendimento, o companheiro sobrevivo terá direito à todos os bens do companheiro morto, conforme já previa o inciso III do artigo 2º da lei nº 8.971/94, só que, de acordo com aquela lei especial, o companheiro ou a companheira afastava os colaterais, quando, nesta, concorrem também com os colaterais.
E ainda, no entendimento:
É de se indagar se, face da limitação do cc 1.790 caput, o legislador ordinário quis excluir o companheiro da sucessão desses bens, fazendo com que a sucessão fosse deferida à Fazenda. Parece-nos que não, por três motivos: a) o cc 1844 manda que a herança seja devolvida ao ente público, apenas na hipótese de o de cujus não ter deixado cônjuge, companheiro ou parente sucessível: b) quando o companheiro não concorre com parente sucessível a lei expressa em mencionar que o companheiro terá direito a totalidade da herança (cc 1790IV), fugindo do comando do caput, ainda que sem muita técnica legislativa: c) a abertura de herança jacente dá-se quando não há herdeiro legítimo (cc 1819) e, apesar de não contar do rol do cc 1829, a qualidade sucessória do companheiro é de sucessor legítimo e não testamentário. (NERY JÚNIOR: NERY, 2002, p. 600).
Pois bem, ultrapassada a análise das disposições previstas no artigo 1790 e incisos do Código Civil de 2002, o que fica claro é que se interpretarmos que os incisos de I a III da referida norma legal estão concatenados ao caput do referido dispositivo, e segundo este, a companheira ou companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, estar-se-á uma das maiores injustiças. Ou seja, se os bens da herança forem particulares do falecido, nada herdará o companheiro sobrevivo, pois serão herdeiros apenas os parentes sucessíveis, até o 4º grau. E mais, não havendo parente algum, os bens particulares serão arrancados e adjudicados ao Município ou ao Distrito Federal, se localizadas nas respectivas circunscrições, e a União, quando os bens se localizarem em territórios federais.
Destarte, como estão tratadas as regras na novel legislação civil, é notório o rebaixamento do companheiro ao quarto lugar da ordem de vocação hereditária, posto que, só terá direito a totalidade da herança, conforme a posição que se adote, em caso de não haver outros parentes sucessíveis do falecido, conforme dispões o artigo 1.790.
Alerta-se, ainda, para um outro problema criado pelo Código Civil de 2002. Deixou o novo estatuto civilista de prever o direito real de habitação, benefício este já estabelecido pelo artigo 7º, parágrafo único da lei nº 9.278/96, o que se configura numa flagrante discriminação aos direitos dos companheiros, visto que ao cônjuge foi conferido semelhante direito (artigo 1.831 da lei civil).
Nota-se daí que a situação do direito real de habitação dos companheiros causa grandes controvérsias. O Código de 2002 é omisso quanto a este direito previsto na lei nº 9.278/96, posto que o único artigo que trata do direito de habitação (art. 1.831), não elenca os companheiros como titulares deste direito, mas apenas os cônjuges. Ademais, o único artigo que trata dos direitos sucessórios dos companheiros supérstites é o artigo 1.790, que não menciona, dentre os direitos ali assegurados, o direito real de habitação. Não garantindo esse direito aos companheiros sobreviventes, o estatuto civilista agrava ainda mais a situação do companheiro.
A pergunta que se faz é se o direito real de habitação foi mantido, no sistema do Código Civil, em relação aos companheiros. Parece-me mais acertada a posição de Venosa, defensor da mantença desse direito embora seja outro o entendimento de CARVALHO NETO.
Ademais, parte da doutrina, considera o parágrafo único do artigo 7° da Lei 9278/96, como sendo norma especial (norma geral não revoga especial) e por aplicação analógica e simétrica dos artigos 1.831 do Código Civil de 2002 e artigo 6º da Constituição Federal de 1988, entende-se que o companheiro faz jus ao direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado a residência da família.
Vejamos o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
Enunciado 117 do STJ: Art. 1.831: o direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da lei nº 9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo art. 6º, caput, da CF/88.
Referente a este ponto, é o entendimento de Pazini (2009. p. 210):
A união estável não é uma família de segunda categoria. Os companheiros merecem a mesma preocupação por parte do legislador que os cônjuges. Portanto, a tutela legal do matrimônio não é limite para a tutela legal da união estável. Ambos os institutos têm regulamentação legal independente, embora o ideal seja que se dispense tratamento mais equiparado possível, dadas as semelhanças entre essas duas espécies de família. Sendo assim, entendemos possível a outorga dos dois direitos reais ao companheiro, ainda que não tenham sido outorgados ao cônjuge.
Das doutrinas e legislações existentes, referentes ao direito real de habitação, citadas neste trabalho, a que se pretende reforçar, é a da teoria que garante o direito aos companheiros, previsto no artigo 7º, parágrafo único, da Lei 9.278/96, e que desta forma não pode ser considerado revogado, por não ter sido contemplado no novo Código Civil, apesar da tentativa de se absorver todas as matérias do contexto.
Dentre outras divergências a respeito do direito dos companheiros, a também que se mostrar a possibilidade de conversão da união estável em casamento, que é assegurada constitucionalmente (Constituição da república de 1988, art. 226 § 3°), e que o Código Civil de 2002 no art. 1.726, impõe que esta conversão deverá ser feita em juízo, com posterior assento no registro civil. Neste ponto, muito bem colocada a posição de Dias (2009, p.148), ao dizer que:
A exigência de intervenção judicial afronta a própria recomendação constitucional de que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento. Ora, a necessidade de processo judicial, que implica contratação de advogado, pagamento de custas e, quem sabe, até produção de provas, é fator complicador.
O que conclui após as considerações postas nesta pesquisa é que o legislador ao tratar do assunto em artigo fora da ordem de vocação hereditária pecou em não incluir a companheira ou companheiro como herdeiro na ordem vocacional do art. 1.829. Neste sentido, quis o legislador incluí-los como meros participantes da herança, quantos aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.
Do mesmo modo como melhorou a posição do cônjuge sobrevivo, naquilo que respeita aos problemas de ordem sucessória, no novo código civil, onde foram ampliados os direitos que lhe assistem, era de esperar que o companheiro sobrevivente tivesse também sua condição melhorada, para que tivesse garantida a igualdade de direitos relativamente ao cônjuge sobrevivente, fazendo-se, assim, valer o dizer constitucional em sua amplitude,(HIRONAKA, 2008).
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo que foi analisado, resta evidente que o Código Civil/2002, no tocante á matéria sucessória dos companheiros, está em descompasso com as grandes transformações e avanços ditados pela Constituição Federal de 1998.
Com efeito, a Carta Magna, equiparou a união estável ao casamento, elevando-a á condição originária de entidade familiar constitucionalmente protegida.
A família advinda do casamento como a fundada na União Estável, bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, são consideradas entidades familiares dotadas de ampla proteção pela Lei Maior (art. 226, §§ 3° e 4°), sendo, portanto, merecedoras de igual respeito.
Desta forma, verifica-se que o legislador constituinte não teve a intenção de assentar a união estável em nível inferior ao matrimônio. Pelo contrário, o artigo disposto por Lex Mittor, visa a reconhecer uma situação de fato, facilitando a sua conversão em casamento. Portanto, com a promulgação da Constituição de 1998, está superada esta visão suplantada e preconceituosa de que o casamento é a única forma legítima de constituição de família.
Entretanto, apesar da Constituição ter legitimado a entidade familiar proveniente de união estável, tal proteção constitucional não atribuiu direito sucessório á companheira ou companheiro, o que foi só possível com o advento das Leis da união estável (Leis n° 8.971/94 e n°9.278/96). Assim, com a regulamentação destas, o companheirismo recebeu amplo resguardo, passando a ser admitida a sucessão causa mortis, similar ao direito consagrado ao cônjuge pelo Código Civil de 1996.
Acontece que as referidas Leis não podem apresentar para os conviventes alguns requisitos e limitações que, nas mesmas hipóteses, vigoravam para os cônjuges.
Diante disso, competia à nova Lei uma moderada intervenção que estabelecesse o equilíbrio, e a paridade das situações.
Porém, não foi o que ocorreu. Contrariando estas expectativas, o Código Civil/2002 promove um recuo notável, colocando o companheiro em posição infinitamente inferior com relação ao que ostenta o cônjuge, como demonstrado ao longo deste trabalho.
Ora, se o princípio da igualdade obriga que se coloque no mesmo plano a família matrimonial como a família decorrente da união estável; se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, como se pode admitir tamanha discriminação no tratamento conferido aos conviventes? A nova codificação, no tocante a matéria sucessória dos companheiros, além de contrariar o sedimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais.
Ante o exposto, resta patente a inconstitucionalidade do artigo (1.790 Código Civil de 2002), devendo o legislador, atento às demandas sociais, corrigir o problema, através de uma alteração legal que promova o aperfeiçoamento da legislação em vigor, passando a tratar juntamente cônjuges e companheiros, deferindo a ambos a mesma proteção dada pela Constituição Federal de 1998, para assim atingir a aplicação mais justa e social do Direito.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 28 de setembro de 2016.
CANELLAS, Maria Isabel Jesus Costa. Do Direito Sucessório dos cônjuges. Análise em paralelo com a sucessão do convivente. In: Hironaka, Giselda Maria Fernandes Novaes. (Coord). Novo Código Civil: Interfaces no ordenamento jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey. 2004.
DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5 ed. ver., atual. e ampl.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
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Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Graduada em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de João Monlevade. Especialista em Direito Notarial e Registral, Direito de Família e Sucessões, Direito Processual Penal e em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVERNAZ, Andréa de Cássia Penna. O direito sucessório dos companheiros no Código Civil vigente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48410/o-direito-sucessorio-dos-companheiros-no-codigo-civil-vigente. Acesso em: 22 nov 2024.
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