RESUMO: Este trabalho objetiva confrontar as teorias sobre a interpretação do direito propostas por Hans Kelsen (teoria da moldura normativa) e Theodor Viehweg (teoria dos topoi) com a visão de Luigi Ferrajoli, de relativo sucesso em nosso país desde meados de 2005. Abordamos os principais métodos interpretativos clássicos (semântico e teleológico) e correlacionamo-los com a visão estrutural do direito daqueles dois primeiros autores, em análise dialética com a deste último.
Palavras-chave: interpretação; Viehweg; Kelsen; Ferrajoli; Tópica; Teoria Pura do Direito.
Interessante perceber a tendência de que as normas, tanto gerais como as produzidas no caso concreto, com prolação da decisão, demonstram uma interconexão no sentido de que umas advém das outras, buscando, aí, seu critério de validade.[1] A decisão judicial imposta legitima-se pela correspondência a lei que trate do assunto, que, por sua vez, encontra consonância na Constituição da República. Noutro aspecto, demonstrando essa mesma característica, a realização de eventual determinado ato administrativo encontra apoio em portaria ou resolução, este por sua vez em norma administrativa hierarquicamente superior, e assim por diante, até chegar à Constituição, norma última do ordenamento jurídico. Sendo assim, a interconexão entre as normas, no que diz respeito ao aspecto de sua validade, é inegável. Noutro prisma, verifica-se a tendência segundo a qual quanto mais superioridade hierárquica tem a norma, maior grau de abstração possuirá; assim, a decisão judicial, norma concreta, cria imposição de conduta específica, direcionada a determinado caso. Assim também constatou Kelsen:
Este processo, no qual o Direito como que se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto). É um processo de individualização ou concretização sempre crescente.[2]
Necessário, pois, perquirir se a decisão prolatada se encontra de acordo com a norma superior que a valida, correspondendo à prescrição ou assertiva que contenha, ou mesmo se há a possibilidade de aferição da concordância entre norma concreta e norma abstrata, ou, ainda, se é possível a realização do processo lógico-silogístico na aplicação da lei, e se esta é uma das pretensões do Estado de Direito como conhecemos. Porque, possível, o que acontece quando se mostrar tal método falível? Como deve o juiz agir? Antes, porém, há de se considerar a própria instituição que é o Estado, como funciona, suas características e processos pelo qual o Poder é exercido.
Tendo em vista a separação das funções do Poder (popularmente conhecida como separação dos poderes[3]), divide-se o Estado, num aspecto orgânico, no que se convencionou chamar de poderes Legislativo, Judiciário, e Executivo, cada um dos três autônomos e harmônicos entre si, entretanto, mantendo um equilíbrio de modo que as exorbitâncias de um em outro sejam limitadas a hipóteses previstas na própria Constituição (por exemplo, os arts. 52, I e II, 62, 84, VI) ou da natureza do regime democrático adotado no Brasil – trata-se do sistema de freios e contrapesos, originário da ordem jurídica americana. Também conhecido como checks and balances, reside na assunção:
(...) de que os Poderes tem funções preponderantes, mas não exclusivas. Desta forma quem legisla é o legislativo, existindo entretanto funções normativas, através de competências administrativas normativa no judiciário e no executivo. Da mesma forma a função jurisdicional pertence ao Poder Judiciário, existindo entretanto funções jurisdicionais em órgãos da administração do Executivo e do Legislativo. O Contencioso administrativo no Brasil não faz coisa julgada material pois a Constituição impõe que toda lesão ou ameaça a Direito seja apreciada pelo Judiciário (Artigo 5 inciso XXXV da CF) (...). Finalmente, é obvio que existem funções administrativas nos órgãos dos três poderes.[4]
Assim, de modo geral, cabe ao poder legislativo decidir através do processo político as normas pelas quais se regerá a sociedade; ao judiciário, o controle e o restabelecimento da ordem fática com a legal, quando provocado; e ao executivo, a gerência dos componentes federativos. Citado por Maurílio Maldonado, Montesquieu, consolidando a teoria da separação das funções do poder e argumentando, principalmente, pela independência entre a função julgadora e as demais, anota:
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou mesmo o Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria o Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.[5]
Inobstante a utilização da separação das funções em praticamente todos os países de ordem democrática, verifica-se a tendência a o fenômeno denominado “judicialização da política”. Consiste, como apresenta José Ribas Vieira et al:
De um ponto de vista institucional, (...) como um processo de transferência decisória dos Poderes Executivo e Legislativo para os magistrados e tribunais, que passam, dentre outros temas controversos, a revisar e implementar políticas públicas e rever as regras do jogo democrático.[6]
É notável, pois, que o judiciário, assim agindo, visivelmente foge de sua atribuição de aplicação/interpretação da lei para, em determinadas ocasiões, tomar decisões que, inobstante sua natureza política[7], extrapolam o grau de discricionariedade permitido pela norma interpretanda, violando sobremaneira a abertura simbiótica proporcionada pelo sistema de freios e contrapesos. Espécie deste fenômeno é o ativismo judicial, que se mostra no comportamento de magistrados no sentido de analisar temas de atribuição de outras instituições. Embora similares, a diferença consiste no fato de que aquela, “mais ampla e estrutural, cuidaria de macro-condições jurídicas, políticas e institucionais que favoreceriam a transferência decisória (...) para o Poder Judiciário”.[8]
Quando ao órgão jurisdicional é apresentada questão para que se manifeste a respeito, terá de fazê-lo estritamente em consonância com os ditames legais, obedecendo, sobretudo, aos postulados constitucionais. Não implica tal proceder no engessamento do Judiciário, primeiro porque a este são incumbidas competências legislativas e administrativas de caráter extraordinário, oriundas do check and balance; segundo, porque ao magistrado é lícito decidir no caso de omissão da lei, de acordo com a analogia, o costume e os princípios gerais de direito, sendo-lhe vedado não se pronunciar sobre a matéria sob o fundamento de ausência ou obscuridade de texto de lei (esses dois aspectos, ainda que na órbita discricionária do juiz, são possíveis por expressa dicção legal, a saber, art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e art. 126 do CPC); terceiro, pois há no ordenamento jurídico os chamados conceitos jurídicos indeterminados, a serem preenchidos de forma razoável e prudente pelo magistrado; por último, ressalte-se a possibilidade da realização do controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, a ser exercido quando restar observado que determinada lei ou ato normativo está em desacordo com a Constituição.
Desse modo, não se pode negar que a decisão judicial carrega certos elementos políticos, mas assim é por permissivo próprio da lei positiva, consciente o legislador da absoluta impossibilidade fática de se legislar sobre os mais diversos aspectos que o direito visa regular, principalmente com a volatilidade da transmissão de informação bem como a mudança de paradigmas e opiniões sobre os mais diversos temas na atual cultura de massa pós-moderna. A pretensão napoleônica de elaboração de um Código perfeito não se realiza: consubstanciar a vida ao direito é ser reducionista quanto a esta. O propósito kelseniano de elaboração de uma teoria pura do direito é, antes de tudo, o reconhecimento de tal fato.
Com a queda do absolutismo, consagrou-se o Estado de Direito e a Separação das funções legislativas e judicantes, o que, basicamente, constitui o cerne do problema. Não existe decisão jurídica baseada em lei que prescinda da atividade interpretativa.
Deve-se, então, analisar os diversos sistemas e métodos que surgiram ao longo do tempo, com os diferentes pressupostos e visões a respeito da função interpretativa e aplicadora do direito, bem como sua relação com a atividade eminentemente política do judiciário, sendo, não raro, utilizados como fatores retóricos para a legitimação das decisões.
2. Os métodos interpretativos
A busca pelo método interpretativo mais adequado, bem como pella melhor perspectiva a ser utilizada na compreensão do direito (culminando na busca da “melhor” decisão) historicamente, deu ensejo a várias doutrinas, algumas procurando desenvolver sistemas ou formas de capturar o significado da lei, outras criticando esse objetivo, negando o pressuposto de que haja, no texto legal a ser interpretado, apenas uma ou até qualquer vontade posta. Serão analisadas as principais propostas que se desenvolveram em torno da questão interpretativa, desde as que tratam do método gramatical até o chamado giro linguístico ocorrido no século XX. As diversas concepções acerca da interpretação não são necessariamente excludentes umas em relação às outras, sendo possível encontrar pontos em comum entre elas, ou mesmo um determinado método vir a ser incorporado como subsistema de outro, dado o caráter gradativo de seu desenvolvimento.
2.1 Método gramatical
Com o advento do Estado Liberal e a queda dos regimes absolutistas, tornou-se imperativo para o poder político agora dominante, consubstanciado na burguesia, o afastamento das arbitrariedades e demais malefícios perpetrados pelo Antigo Regime. Mudou-se então a estrutura política e o modo de funcionamento da máquina estatal, sendo que a solução encontrada foi, para estabelecer igualdade entre as pessoas, elaborar normas apoiadas na vontade da maioria, que trouxessem segurança e inspirassem legitimidade. A tarefa, então, foi incumbida ao poder legislativo. Analisando o fenômeno, Marcelo Mazotti aduz:
A forma encontrada de se proteger o novo sistema estava na soberania das Assembleias Legislativas. Por meio de um corpo plural, eleito pelos cidadãos e que decidia por vontade da maioria, os espíritos mais autoritários se enfraqueceram, e não conseguiriam, por meio das Assembleias, realizar sua vontade senão pelo voto da maioria.[9]
Trazendo a conexão entre a representatividade popular por meio do órgão legislativo e a valoração do método gramatical, continua o autor, ao afirmar que a lei:
Pressupunha também mecanismos de preservação e manutenção da mesma, de modo que os ideais revolucionários não sucumbissem. Para esses fins, a interpretação representava uma ameaça frente ao Código napoleônico (...), que temia ali uma volta ao absolutismo. Além do mais, por que haveria de se realizar uma investigação subjetiva e personalista do texto legal, se a norma e o Direito expressavam fielmente a razão?[10]
Assim sendo, inadmissível se mostrava a pretensão de dar significados diversos aos obtidos através da interpretação literal do texto, eis que a sua mera leitura, na pretensão liberal-iluminista, bastava para a resolução dos casos e representava a verdade e a vontade popular. Tanto é que uma das características conhecidas do Código Napoleônico é a exaustividade.
Consiste então o método gramatical no conhecimento dos elementos gramaticais integrantes do texto: analisa-se as palavras inseridas na oração, a semântica decorrente de sua conexão, bem como os métodos sintáticos pelas quais estão dispostas, tudo na percepção do sentido literal do texto, devendo guardar compatibilidade com a vontade popular que o legitima.
É certo, porém, que pretensões como a de completude e autossuficiência não se percebem. Como se sabe, o caráter transmutatório da linguagem faz com que palavras mudem de significado, significados múltiplos apareçam a um mesmo vocábulo, determinadas frases ou expressões se mostrem dúbias ou obscuras... Sem contar que a própria língua acompanha o processo de evolução da sociedade, criando palavras novas e pondo em desuso as velhas.
Apesar de o método gramatical-literal ser o primeiro a ser utilizado quando da aproximação e análise do intérprete, pois primeiro se lê a frase e se investiga a relação das palavras que a formam, muitas vezes há incoerência ou dubiedade entre a oração literalmente analisada e demais textos do ordenamento jurídico, ou mesmo entre as palavras componentes do texto e o próprio texto por elas composto.
Reconhecida a insuficiência do método gramatical, passou-se a buscar nova referência no modo de conhecimento dos textos legais. Apesar de parte da doutrina tratar o método exegético como sinônimo do gramatical[11], resta evidenciada a diferença entre um e outro pelo fato de que, neste último, busca-se a análise do significado literal do texto legal, pretensamente esclarecedor e nunca contraditório, enquanto naquele realiza-se uma digressão que vá até o legislador, na busca de sua vontade. Nas palavras de Mazotti:
(...) há uma distinção entre o método gramatical com seu apego aos enunciados literais da lei e o método exegético que apura a vontade do legislador, sem impedir que os dois dialoguem (talvez daí o tratamento igualitário e, às vezes, confuso dado pela maior parte da doutrina).[12]
É verdade, no entanto, que tal digressão deve partir senão do entendimento gramatical da norma, a ser posteriormente comparado com a voluntas legislatoris descoberta. Difere da interpretação literal, porém, até porque tal perquirição “admite que, se a intenção do legislador é onde reside o sentido da norma, então o enunciado legal não é perfeito e pode estar equivocado, o que promoverá o afastamento do método literal e a quebra do culto à lei”.[13]
Percebe-se, daí, certa similaridade entre a ação exegética e a teleológica. Se uma procura estabelecer a vontade do legislador, realizando digressões a partir do texto de lei ou analisando historicamente o agir do legislador bem como os documentos acerca e à época da discussão da lei, a outra procura estabelecer a finalidade da norma jurídica.
Importante ter em mente que a interpretação com base na vontade da lei é historicamente posterior à metódica exegética, sendo que se volta novamente à lei como ponto de partida na acepção do significado, a ser colhido não sob o aspecto gramatical ou formal da linguagem, mas de acordo com os fatores sociais e conflitos de interesses que busca regular. O fim da norma é o resultado, com a elaboração do texto, da tentativa de apaziguar os conflitos de interesse.
As principais críticas feitas à escola da exegese residem, principalmente, em ser difícil a tarefa de encontrar a vontade do legislador. O que acontece, por exemplo, quando este, ao regular determinado assunto, não se manifesta acerca de determinado aspecto seu – assim se deu porque esqueceu de fazê-lo ou porque julgou que não seria conveniente? Poder-se-ia argumentar pela aplicação de analogia, costumes etc.? Esse último questionamento leva a mais um: o que acontece na análise das conexões de diferentes normas jurídicas, promulgadas em diferentes tempos por diferentes legisladores? E, ainda, como se revela o espírito legislador contido na norma X quando esta é discutida, emendada e aprovada por um órgão colegiado? Demonstrando, em certa medida, a conexão entre os conceitos “vontade da lei” e “vontade do legislador”, não sem também procurar refutá-los, observa Ronald Dworkin, criticando o conceito de interpretação como o ato de conhecimento efetuado para compreender o que quis dizer o interlocutor (transcrevemos o trecho completo, dada a lucidez do seu pensamento):
O estado de espírito de quais pessoas serviu para fixar a intenção que subjaz à Lei (...)? Seria o dos membros do Congresso que a promulgaram, inclusive daqueles que votaram contra? Seriam as idéias de alguns – por exemplo, daqueles que falaram, ou falaram com mais freqüência nos debates – mais importantes que as idéias de outros? Que dizer dos funcionários e auxiliares administrativos que prepararam os projetos iniciais? E o que dizer do presidente que assinou o projeto e o transformou em lei? Será que suas intenções não tem mais valor que a de qualquer senador em particular? E o que dizer dos simples cidadãos que escreveram cartas a seus congressistas, prometeram ou ameaçaram votar a favor ou contra eles, fazer ou negar-se a fazer contribuições de campanha, dependendo do modo como eles votassem? E quanto aos vários lobbies e grupos de ação que desempenharam seu papel, atualmente considerado normal? Qualquer visão realista do processo legislativo inclui a influência desses grupos; se eles contribuíram para a elaboração da lei, será que Hermes tem alguma boa razão para não levar em conta suas intenções ao determinar que lei eles criaram? Há uma complicação adicional. Uma lei deve sua existência não apenas à decisão de algumas pessoas para promulgá-la, mas igualmente à decisão de outras pessoas, posteriormente, no sentido de não a emendar ou revogar. (...) Será que Hermes deveria levar em consideração as intenções dos vários legisladores que poderiam ter revogado a lei no decurso de anos e décadas, mas não o fizeram?[14]
O método da busca da intenção do legislador é de longe um dos que mais impossibilidade prática de execução demonstra. A busca interpretativa pelo critério teleológico (apesar de guardar-lhe semelhanças, sendo a busca dos fins da lei, em última análise, a busca da intenção política do legislativo), se mostra um sistema mais aberto ao aspecto histórico da sociedade, sob o enfoque pragmático, bem como possível de colmatar a omissão legislativa tendo em vista os fins da norma, aplicando-se ao caso análogo. “Descobrir a finalidade da lei é uma atividade relacionada a critérios empíricos verificados nos efeitos sociais (...). As necessidades e vontades da sociedade devem ser saciadas na legislação (...)”.[15]
Os métodos apresentados, que pressupõem a atividade interpretativa como ato de conhecimento (no sentido de que é possível extrair aparente a essência), historicamente, não satisfizeram as necessidades hermenêuticas.
Theodor Viehweg, na obra “Tópica e Jurisprudência – Uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos” estabelece um modo de pensar o direito que constituía o paradigma filosófico vigente na Grécia Antiga, anteriormente ao desenvolvimento do raciocínio cartesiano: trata-se da tópica.
Por esta se entende a atividade que busca estabelecer, a partir do problema dado, os possíveis caminhos a serem tomados. Não lhe compete, porém, apontar qual decisão tomar, mas sim estabelecer o método prévio em que se apresentarão as opções possíveis.
Parte-se, então, do problema dado, desenvolvendo-se, através da retórica, a gama de opções possíveis a serem escolhidas, o que denominou Viehweg de topoi. Segundo ele, sua função “consiste, pois, no fato de servir à discussão dos problemas”[16], sendo que “no alterar de situações e de casos particulares se deve encontrar, pois, cada vez mais, novas informações para se fazer tentativas de resolver o problema”[17].
Evidenciada fica a oposição entre a visão de mundo que encontra ápice nos métodos gramaticais e exegéticos de interpretação e a visão problemática oferecida pela tópica, que não consiste propriamente um método de interpretação, e sim pressuposto diferente (do cartesiano-dedutivo) para a criação de métodos de decisão. Caminha a tópica na estrada em direção oposta aos métodos tradicionais, no sentido de que nela os problemas são o ponto de partida para as divagações a respeito dos diversos topoi aptos a resolvê-los, enquanto que o método dedutivo parte de um sistema prévio, que não presume aporias (embora estas existam[18]), resolvendo os conflitos através da aplicação do sistema ao problema.
Nesse diapasão, podem ser traçadas várias linhas que conectam o pensamento de Viehweg com o do jurista alemão Hans Kelsen, em que pese a este ser atribuído, muitas vezes, o adjetivo de segregador, reducionista, etc., não raro com conotações pejorativas – pensamento do qual se deriva a falsa idéia de que a proposta kelseniana e a de Viehweg sejam excludentes e/ou contraditórias entre si[19]. A obra de Kelsen não refuta a influência da moral e da justiça no direito – a abordagem que conduz é unicamente no sentido de analisá-lo numa perspectiva científica, separada de tais temas. Não significa, com isso, que tente expulsar valores e ideologias quaisquer – é claro que esses lhe são ínsitos, pois de que se formaria um Direito “puro”? Obviamente, de nada.
A construção do direito é sempre uma construção política, e isso está evidenciado em sua obra. A formulação realizada por Kelsen é no sentido de abordar o ordenamento jurídico do ponto estritamente técnico, não querendo dizer, com isso, que assim seja ou deva ser o juiz no momento da tomada de decisão. Muito pelo contrário, Kelsen não admite que o pronunciamento judicial (ou qualquer outra tipo de construção do direito), qualquer que seja, constitua um ato jurídico-científico. A escolha judicial será, sempre, de natureza jurídico-política.[20] Tanto é que o jurista nega terminantemente que a decisão judicial tenha cunho cognoscitivo:
A ideia, subjacente à teoria tradicional da interpretação, de que a determinação do ato jurídico a pôr, não realizada pela norma jurídica aplicanda, poderia ser obtida através de qualquer espécie de conhecimento do Direito preexistente, é uma auto-ilusão contraditória, pois vai contra o pressuposto da possibilidade de interpretação. A questão de saber qual é, de entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer (...) um problema da teoria do Direito, mas um problema de política do Direito.[21]
À medida que o pensamento kelseniano se mostra, sua conexão com a Tópica é inegável. O raciocínio lógico-dedutivo (e, assim, silogístico) encontrado na teoria pura não faz parte da interpretação e tomada de decisões, apenas descreve o ordenamento jurídico como um todo, e é completamente diferente da utilização do silogismo como método de interpretação. Aduzindo que a ciência jurídica não comporta orientar a tomada de decisões, sendo tais critérios eminentemente políticos, pode-se muito bem se utilizar dos topoi e do raciocínio retórico-argumentativo, partindo da identificação do problema para se pautar na busca pela decisão.
Traça-se, então, um paralelo entre a moldura da norma os topoi: à medida em que estes são derivados diretamente do problema posto (apesar de muitas vezes servirem a diversas situações, ou seja, a ajudar na busca da solução de mais de um tipo de problema, tendo, por isso, característica de lugares-comuns[22]), não se fazendo possível que o topoi escolhido não se relacione com o problema do qual deriva, à moldura também se faz necessário estarem adequadas as diversas possibilidades de construção da norma concreta, não se admitindo uma decisão fora da moldura.
Alguém poderia perguntar: “Sabe-se que os topoi derivam do problema, tendo aí seu limite. Quais, então, os limites da moldura?” Ora, a própria natureza do ordenamento jurídico na visão de Kelsen responde a pergunta. Se este é constituído por diversas normas que se encontram hierarquizadas, e se uma encontra seu pressuposto de validade em outra de maior grau no escalão, os limites da moldura serão também postos pelo juiz no momento da aplicação da norma concreta, eis que a norma abstrata que se estabelece como parâmetro para a escolha na decisão judicial também é analisada, ainda que por via reflexa, na mesma decisão.
Também a moldura na qual está contida, parece-nos, é de questão político-jurídica, nunca da ciência do direito. Ao construir a norma individual (concreta), o juiz também está a interpretar a lei imediatamente e hierarquicamente superior fixando-a como parâmetro da moldura donde estão contidas as diversas possibilidades de construção (note-se a semelhança com os topoi de Viehweg), pressupondo que a lei está de acordo, por sua vez, com outra lei, a esta superior, que lhe dá validade, e assim por diante, até a norma hipotética fundamental. Caso aquela lei (a imediatamente supeior à decisão judicial) fosse por ele considerada inconstitucional (o que também se caracterizaria um ato de vontade), a decisão teria que estar em conformidade com outra norma que, por sua vez, seria parâmetro para a afixação da moldura. Torna-se, então, impossível encontrar decisão judicial fora da moldura, do mesmo jeito que não se concebe a utilização de topoi não ligado ao problema.
A doutrina garantista mostra incompatibilidade com as premissas apresentadas por Kelsen e Viehweg, quanto à construção, no plano judicial, do direito. Kelsen demonstra que a decisão é, senão, ato de vontade, e, complementando, Viehweg aponta a insuficiência do raciocínio silogístico em detrimento do tópico.
O garantismo, como apresentado por Ferrajoli, no entanto, em nenhum momento se mostra uma teoria ou uma construção metafísica do (modo de pensar e construir o) direito. Se o faz parecer, disfarça opinião de cognição. Serve-se mais como uma ideologia do Estado voltada ao Direito, tanto em sua elaboração pelo poder legislativo quanto da construção da norma concreta pelo juiz. Peca, porém, em relação a este último, pois atribui à ideologia garantista os meios para se tomar a decisão correta, sendo que qualquer outro modo de decidir que não o garantista se consideraria eminentemente político[23]. Com rara lucidez, Alexandre da Maia identifica que:
Apesar de uma teoria firmemente comprometida com ideais democráticos, há que ser feita a seguinte pergunta ao Prof. Ferrajoli: como fixar um conteúdo ao que seja um direito fundamental? Tal pergunta, como vimos acima, é respondida utilizando-se os princípios de secularização cultural que formariam os direitos fundamentais. Parece óbvio que isso não responde à pergunta.[24]
No máximo, o garantismo pode ser considerado uma teoria da atual tendência constitucional da proteção de direitos liberais e, em momento posterior, sociais. Na opinião de Marco Aydos, em ferrenha crítica à obra de Ferrajoli:
O que Ferrajoli esquece de dizer é que o tipo-ideal garantista, que julga por critérios de utilidade e equidade, é irracional no modo de compreensão de Max Weber. Mas para Luigi Ferrajoli irracionais são os outros. Resulta disso que a obra construída pode ser algo diferente do que o autor propõe.[25]
A opinião do autor italiano é, então, a de que o ordenamento jurídico só demonstra validade e legitimação em sua melhor forma enquanto fundado sob os preceitos de liberdade individual e social. Embora a tendência contemporânea seja realmente a mantença e a ampliação de tais direitos, essa é apenas uma constatação empírica, e não metafísica. Os dez axiomas por ele criados, já discutidos no tópico 1.3.2, como bem observa Aydos, são falaciosos, não em seu conteúdo, porque muitos são válidos na ordem constitucional vigente na maioria dos países democráticos, mas no fato de serem tratados como verdades apriorísticas. Melhor seria chamá-los de enunciados sustentadores da perspectiva ideológica garantista, ou algo menor, mas igualmente verdadeiro.
Assim, o perigo reside na acepção do garantismo como um modelo que deve ditar o modus operandi do Direito, tanto na construção das leis (o que, se realizado, é apenas uma opção ideológica do legislador, vinculado unicamente à Constituição) como na sua aplicação (eventualmente de acordo com os ditames garantistas, dependendo das disposições do poder legiferante e da manutenção do atual paradigma constitucional) pelo juiz, bem como o modo de concebê-lo.
Atente-se que não se está, aqui, querendo negar a validade de enunciados como o da presunção de inocência, da anterioridade da lei penal, etc. Não. Mas não se lhes nega validade e aplicação porque são garantistas, e sim porque são constitucionais, e, única e exclusivamente por isso, válidos. O seu fundamento jurídico é a constituição, e chamá-los de garantistas é apenas adjetivá-los sem nada identificar do seu substrato.
A inversão realizada por Ferrajoli é evidente, e aí fica fácil injetar postulados (por ele denominados axiomas) eminentemente políticos ao seu sistema. Vejam-se, pois, os “axiomas” III, IV e V, respectivamente, nulla lex (poenalis) sine necessitate, nulla necessitas sine injuria, nulla injuria sine actione. O primeiro não guarda qualquer compatibilidade com texto constitucional ou mesmo infraconstitucional positivado (lembrando que Ferrajoli diz que uns não decorrem dos outros, na ordem em que são apresentados[26] - note-se, ainda, que apenas os postulados I e II, relacionados a direito material, encontram-se expressos no texto constitucional), sendo que a alusão à ausência de lei penal sem necessidade é preponderantemente política, seria ingênuo pensar o contrário. Marco Aydos, ciente disso, assevera, de modo crítico e corajoso:
Quem diz o que é necessário? Quem tem legitimidade para dizer que pena é necessária e em que quantidade e qualidade?
Basta formular uma pergunta simples para perceber que o pai de todos os problemas da política retorna: o da soberania. Ferrajoli dispensa a soberania, logo precisa de acesso a uma autoridade que lhe dê legitimação para decidir por nós o que é necessário para nós. E a autoridade mais formidável que alguém pode ter na época moderna, em que a Religião não oferece fundamento para a ordem política, não pode ser outra senão a Ciência. Não é por outro motivo que de modo recorrente Ferrajoli insiste em que não existem no garantismo escolhas políticas, apenas conclusões científicas. O que evidentemente não é verdade, e basta discutirmos o terceiro axioma para perceber. Mas o edifício teórico é sedutor porque parece ciência.[27]
O segundo, por sua vez, fala que não há necessidade sem injúria, que, pensamos, deverá ser entendido como não havendo necessidade sem dano. Pode ser, porém, que algo que em determinado momento histórico possa ser considerado dano e, em outro, não, o que quebra o caráter axiomático do postulado. Em democracias como a vigente na Grécia Antiga, onde a escravidão era legítima, seria lícito ao cidadão que possuidor de escravos dispor a seu respeito com bem entendesse, não sendo isso considerado um dano, diferentemente da democracia vigente na atual ordem jurídica, onde o a liberdade é considerada, junto com a vida, o maior dos patrimônios.
O terceiro, que trata da ação como fundamental à configuração do delito, também chamado de “princípio da materialidade”[28] – também se mostra defeituoso, pois o delito não é perpetrado somente por meio de ações, mas também por omissões, sendo que na maior parte dos países ocidentais (principalmente os com forte herança anglo-germânica) segue essa linha de raciocínio, sem falar que o uso da palavra “materialidade” nesse caso gera confusões, pois que confunde-se com as noções de materialidade delitiva, de cunho processual penal, e a de crime material, de cunho penal. Não se pode falar, portanto, em nulla injuria sine actione (não pelo menos no Direito brasileiro) quando há previsões como o art. 135 do Código Penal (crime de omissão de socorro, classificado como omissivo próprio pela doutrina) e o art. 13, § 2º, do mesmo código, ao proclamar que “a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado”.
4. Conclusões
Como se vê, a pretensão ferrajoliana não se concretiza, não se concebendo como uma teoria do direito, não, pelo menos, sem admitir-lhe um fator ideológico preponderante. Assim, não deve utilizar de suas premissas para fundamentar decisões, a não ser que, coincidentemente, tais premissas já se encontrem previstas no ordenamento jurídico. Apesar de a construção da norma concreta pelo julgador seja, como dito por Kelsen, político-jurídica, não se deve utilizar do garantismo para, em seu nome, exercer função política disfarçada de cognitiva. Ironicamente, volta aquele que realiza a interpretação autêntica ao modus operandi exegético e gramatical, principais expoentes daqueles que admitem o ato decisório como ato de conhecimento.
REFERÊNCIAS
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[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 221-224.
[2] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 263.
[3] Nesse sentido, ARAUJO apud PAGANELLA, Marco Aurélio: “O Poder é uno e indivisível. Em outras palavras, o poder de determinar o comportamento de outras pessoas não pode ser fracionado. Assim, a edição de uma lei, de um ato administrativo ou de uma sentença, embora produto de distintas funções, emana de um único pólo irradiador do poder: o Estado”. O Direito, as funções do Estado e a importância do Poder Judiciário. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 256, 20 mar. 2004. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2011.
[4] SILVA, Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. A separação dos poderes, as concepções mecanicistas e normativas das Constituições e seus métodos interpretativos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 495, 14 nov. 2004. Disponível em: . Acesso em: 23 maio 2011.
[5] MALDONADO, Maurílio. Separação de poderes e sistema de freios e contrapesos: desenvolvimento no estado brasileiro. Disponível em . Acesso em: 26 maio 2011.
[6] VIEIRA, José Ribas et al. Ativismo judicial, judicialização da política e garantismo no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: Acesso em: 23 maio 2011.
[7] A esse respeito, conferir o ponto 2.3 deste capítulo.
[8] SILVA, Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. A separação dos poderes, as concepções mecanicistas e normativas das Constituições e seus métodos interpretativos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 495, 14 nov. 2004. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/5924>. Acesso em: 23 maio 2011.
[9] MAZOTTI, Marcelo. As escolas hermenêuticas e os métodos de interpretação da lei. São Paulo: Minha Editora, 2010, p. 53.
[10] MAZOTTI, Marcelo. As escolas hermenêuticas e os métodos de interpretação da lei. São Paulo: Minha Editora, 2010, pp. 53-54.
[11] Nesse sentido, cf. CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3ª ed., rev., e at. Rio de Janeiro e São Paulo: Renovar, 2003, pp. 65-68.
[12] MAZOTTI, Marcelo. As escolas hermenêuticas e os métodos de interpretação da lei. São Paulo: Minha Editora, 2010, pp. 53-54.
[13] MAZOTTI, Marcelo. As escolas hermenêuticas e os métodos de interpretação da lei. São Paulo: Minha Editora, 2010, p. 56.
[14] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 380.
[15] MAZOTTI, Marcelo. As escolas hermenêuticas e os métodos de interpretação da lei. São Paulo: Minha Editora, 2010, p. 73.
[16] VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 39.
[17] VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 39.
[18] Esse é justamente o foco pelo qual Viehweg critica a utilização do método dedutivo-silogístico. Nas suas palavras: (...) o quadro que resulta é o seguinte: poderá apresentar-se o caso extremo de que só exista um sistema A, por meio do qual todos os problemas deverão ser reagrupados em problemas solúveis e insolúveis (...), considerando que uma prova em contrário só seria possível por meio de um sistema B (...). Em outras palavras: procedendo-se de um sistema, tem-se como consectário, uma seleção de problemas. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 35.
[19] A esse respeito, conferir, por exemplo, os seguintes artigos: e[20] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 395-396.
[21] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 392-393.
[22] VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 38.
[24] MAIA, Alexandre da. Ontologia Jurídica: O Problema de sua Fixação Teórica (com relação ao garantismo jurídico). Porto Alegre: Livraria do advogado, 2000, p. 98.
[26] Interessante, no entanto, notar que dispõe os dez de modo que o último substantivo do antecessor é igual ao primeiro do posterior. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 91.
[28] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 91.
Advogado - OAB/PE nº 35.114. Formado em Direito pela Faculdade ASCES em junho de 2012; advogado criminal desde setembro de 2013; aprovado em julho de 2016 no concurso público para provimento de vagas no cargo de Delegado de Polícia do Estado de Pernambuco (32º lugar).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Walkis Pacheco Sobreira. Interpretação jurídico-judicial: confronto das teorias Viehwegiana e Kelseniana com a proposta de Luigi Ferrajoli Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jan 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/48907/interpretacao-juridico-judicial-confronto-das-teorias-viehwegiana-e-kelseniana-com-a-proposta-de-luigi-ferrajoli. Acesso em: 22 nov 2024.
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