RESUMO: A responsabilidade civil no âmbito familiar é tema que tem ganhado atenção jurisprudencial recente. Com o escopo de descrever tal fenômeno no âmbito conjugal em virtude de violação do dever de fidelidade, objetiva-se, inicialmente, explicitar os deveres conjugais estabelecidos na legislação. Na sequência, passa-se ao estudo do panorama geral da responsabilidade no contexto familiar para, em seguida, adentrar na temática da responsabilidade oriunda da infidelidade conjugal. Para tanto, busca-se estudar o fenômeno em questão através de análise bibliográfica e legislativa, além das manifestações jurisprudenciais nacionais nos últimos sete anos, tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto dos Tribunais de Justiça. Assim, há de se analisar a possibilidade de responsabilizar o cônjuge adúltero e o amásio em virtude de infidelidade conjugal, bem como verificar possíveis efeitos sobre a prole. Também será estudada a possibilidade de infidelidade virtual. Ao final, conclui-se que os tribunais têm se inclinado pela possibilidade de responsabilizar o cônjuge adúltero e não o amásio, bem como pela possibilidade de desconstituir a paternidade do pai que registrara como seu filho havido entre sua esposa e o amante. Também se conclui pela dificuldade probatória em questões de infidelidade virtual, o que reflete a peculiaridade do tema e a forma com que os magistrados passam a adentrar em esferas tão particulares dos relacionamentos maritais.
Palavras-chave: Infidelidade Conjugal. Responsabilidade Civil. Direito das Famílias.
CIVIL LIABILITY IN MARITAL CONTEXT: VIOLATION OF FIDELITY AND ITS DUTY INDENIZABILITY
ABSTRACT:The liability in the family is a topic that has gained recent jurisprudential attention. With the scope of describing such phenomenon within marriage, deriving of the violation of the duty of loyalty, the objective is to initially explain marital duties established by law. Following, it passes to the study of the general situation of liability in the family context to then enter the theme of the liability arising from the marital infidelity. Therefore, it seeks to study the phenomenon in question through literature and legislative analysis, and also national jurisprudential events of the last seven years, from the Superior Court of Justice and from State's Courts. Thus, one should examine the possibility of charging the adulterous spouse and concubine because of marital infidelity, and investigate its effects on the offspring. The possibility of virtual infidelity will also be studied. Finally, it is concluded that the courts have been inclined to reprobate the adulterous spouse and not the concubine as well as the possibility of desconstitute the father's paternity who had registered as his children of his wife and her lover. It also concludes about the difficulty to evidence virtual infidelity issues, which reflects the uniqueness of the subject and the way the judges start to enter into such private spheres of marital relationships.
Keywords: Conjugal Infidelity. Liability. Family Law.
1 INTRODUÇÃO
Na contemporaneidade, tem-se vivenciado uma ampla judicialização de demandas que envolvem pedidos de reparação de danos extrapatrimoniais, com fundamentos em diversas causas jurídicas. As relações familiares não têm fugido desse contexto, de maneira que se observa, com ênfase, uma perspectiva de manifestações jurisprudenciais nesse sentido.
Destarte, com o escopo de clarificar e descrever o contexto da responsabilidade civil no âmbito das relações conjugais, mais precisamente fundada em questões que envolvem infidelidade, o presente artigo objetivará analisar o dever de fidelidade estatuído no Código Civil para as relações conjugais e as respectivas consequências jurídicas civis pelo seu descumprimento tanto para o cônjuge adúltero, o traído, o (a) amante e os respectivos efeitos da infidelidade sobre a prole.
Para tanto, será feito o estudo dos dispositivos previstos na legislação civil a respeito da lealdade conjugal e dos elementos caracterizadores da responsabilidade civil, em cotejo com o que dispõe a Constituição Federal a respeito da família e da perspectiva da constitucionalização do direito civil. Ante à necessidade de analisar o efeito sobre a prole, os dispositivos relativos à filiação e ao registro público também serão estudados.
Nesse escopo, o método qualitativo de pesquisa será empregado no afã de compreender o fenômeno social e judicial estudado, bem como a complexidade e particularidades dos problemas enfrentados pelos tribunais pátrios, tendo em vista que passam a aferir aspectos da intimidade de uma família para que, eventualmente, identifiquem um abalo moral, à honra ou a imagem e estipulem um valor capaz de recompô-lo.
Será empregada, nesse passo, a análise de bibliografia no âmbito do direito das famílias e da responsabilidade civil, assim como se perscrutará a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais de Justiça Pátrios.
Em termos geográficos, o recorte da pesquisa – feita em nível descritivo - se dará em âmbito nacional, posto que se busca contextualizar o fenômeno e suas implicações nos tribunais brasileiros, mais precisamente o Superior Tribunal de Justiça e nos Tribunais de Justiça mais vanguardistas, em comparação com os mais conservadores, bem como no próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.
Outrossim, o critério temporal de pesquisa jurisprudencial terá como interstício o período de 2009 a 2016, com o intuito de averiguar os posicionamentos mais recentes das Cortes num lapso de 7 (sete) anos. A coleta dos posicionamentos dos tribunais será realizada no repositório eletrônico de jurisprudência, escolhendo-se os excertos que melhor ilustrem as questões discutidas no presente trabalho.
Diante das construções dos diversos cenários envolvendo a responsabilidade civil no âmbito da fidelidade conjugal e da análise jurisprudencial acima mencionada, concluir-se-á, por conseguinte, acerca de eventual existência de padrão decisório na referida temática e a forma pela qual os Tribunais pátrios têm se inclinado para solucionar questão tão complexa e, ao mesmo tempo, tão particular dos envolvidos em relações conjugais e familiares.
2 RELACIONAMENTOS CONJUGAIS E O DEVER DE FIDELIDADE RECÍPROCA
É inegável que o direito das famílias tem vivenciado consideráveis mudanças no decorrer das últimas décadas. Nesse sentido, pode-se salientar, dentre outros marcos, o advento da Constituição Federal de 1988, que positivou a igualdade entre os filhos havidos dentro ou fora de uma relação matrimonial, ainda que por adoção (art. 227, §6º), a proteção jurídica conferida à união estável, conferindo-lhe efeitos similares ao casamento (art. 226, §3º), assim como a previsão de núcleos familiares distintos de um modelo patriarcal e tradicionalista, salvaguardando-se, inclusive, as famílias monoparentais (art. 226, §4º).
Salienta-se, inclusive, que a própria expressão “direito das famílias” foi cunhada recentemente, em contraponto ao tradicional “direito de família”, com o escopo de deixar claro as múltiplas concepções familiares (DIAS, 2015, p. 33-34).
Nesse contexto, a afetividade se sobressai como uma base fundamentadora das relações familiares, sendo substrato jurídico de proteção às diversas formas de configuração familiares, à exemplo do que ocorreu quando do julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132, em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de vínculo familiar e a configuração de união estável entre casais do mesmo sexo. Tudo isso pautado na afetividade.
Lição doutrinária semelhante é extraído do magistério de Dias (2015, p. 52):
A afetividade é o princípio que fundamenta o Direito de Família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico. O termo affectio societatis, muito utilizado no Direito Empresarial, também pode ser utilizado no Direito das Famílias, como forma de expor a ideia da afeição entre duas pessoas para formar urna nova sociedade, a família.
Em verdade, o atual diploma civil encampa o perfil da constitucionalização do direito como um todo, feição evidente dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, buscando não necessariamente despatrimonializar, mas sim compatibilizar institutos tradicionais civilistas (como, por exemplo, a propriedade) com o primado da dignidade humana, colocando-se o indivíduo, e não o patrimônio, no centro do ordenamento jurídico. A afetividade, portanto, é pauta da dignidade.
Essa é a dicção de Lôbo (1999, p. 103)[1] :
O desafio que se coloca aos civilistas é a capacidade de ver as pessoas em toda sua dimensão ontológica e, por meio dela, seu patrimônio. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos, que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à realidade e aos fundamentos constitucionais
O abalizado doutrinador acima expõe, no mesmo ensaio, a constitucionalização do direito de família como um todo e a denotação da afetividade como marco salutar contemporâneo:
A família atual brasileira desmente essa tradição centenária. Relativizou-se sua função procracional. Desapareceram suas funções política, econômica e religiosa, para as quais era necessária a origem biológica. Hoje, a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em comunhão de vida.
Ao passo em que a afetividade ganha cada mais relevo nas relações familiares, outras atribuições familiares ganham contornos salutares no direito das famílias, como, por exemplo, os deveres de fidelidade e respeito e consideração mútuos, inclusive positivados no vigente Código Civil.
Assim, há de se perscrutar a respeito das feições atribuídas à fidelidade em nosso ordenamento civil-constitucional.
2.1. O DEVER DE FIDELIDADE
A perspectiva contemporânea do casamento remonta à comunhão plena de vida dos consortes, de modo que, para alcançar tal consecutivo, o Código Civil estatui deveres recíprocos entre os cônjuges.
De fato, a tutela estatal no âmbito das relações matrimoniais não se restringe aos impedimentos e causas suspensivas do casamento, mas também na imposição de deveres conjugais para a manutenção hígida do respectivo vínculo.
Em verdade, o Código Civil (art. 1.566) enuncia os deveres de “I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos.” A despeito de tal previsão, aponta-se que os mesmos são meramente exemplificativos, na medida que o contexto da afetividade impõe tantos outros deveres.
Nesse sentido, como apontado, um dos deveres conjugais positivados é o de fidelidade recíproca (art. 1.566, I, do CC). Sobre o tema, defendem Farias e Rosenvald (2015, p. 245) a aproximação do dever de fidelidade da noção de monogamia[1]:
A fidelidade recíproca (inciso I) representa a expressão natural da monogamia, erigida à altitude de dever jurídico. Atualmente, não se pode proceder à análise do dever de fidelidade dissociado do dever de respeito e consideração mútuos, tratado no inciso V do referido dispositivo legal.
Nesse passo, a fidelidade conjugal representa também uma legítima expectativa dos cônjuges ao, de livre e espontânea vontade, decidirem pela união matrimonial e constituição de um novo núcleo familiar.
Em enfoque sociológico, Rodrigo Cunha Pereira (2004, p. 78-79) leciona a respeito do dever de fidelidade:
Não há cultura, socialização ou sociabilidade sem que haja proibições e interdições ao desejo. É neste sentido que o Direito funciona como uma sofisticada técnica de controle das pulsões e podemos dizer, então, que a primeira lei de qualquer agrupamento, tribo ou nação é uma lei de Direito de Família: a Lei-do-pai, ou seja, o interdito proibitório do incesto. (…) Portanto, não é apenas uma questão moral, mas de necessidade de alguma interdição, pois se não houver proibições não será possível a constituição do sujeito e, consequentemente, de relações sociais. Assim, um dos instrumentos de manutenção do regime monogâmico, a fidelidade, faz-se à custa de uma renúncia pulsional.
Nessa ótica, a fidelidade, vista enquanto dever, pode também ser vislumbrada como técnica de controle social aplicada pelo próprio Direito, no sentido da existência de um desvalor jurídico sobre a conduta infiel, o que, ao menos em tese, a desestimularia. Tudo isso com o intuito de manter a família como base da sociedade, de acordo com o que expõe o caput do art. 226 da Constituição Federal, sendo esta uma forma de o Estado protegê-la.
Ademais, a doutrina contemporânea também tem salientado que a fidelidade não está unicamente ligada ao critério sexual, isto é, não apenas vincula-se ao dever de haver apenas um parceiro ou parceira, mas também está intrinsecamente relacionada a outros deveres conjugais previstos na legislação civil, dentre os quais o de consideração e respeito mútuos, de vida em comum e de mútua assistência (art. 1.566 e incisos), conforme inclusive salientado em parágrafo anterior. Entrementes, se ressalta também que tais deveres são expostos na codificação civil de forma meramente exemplificativa, não excluindo outros.
Em verdade, a infidelidade constituía fundamento ensejador da separação judicial, conforme previsto no art. 1.572 do Código Civil:
Art. 1.572. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum.
Entretanto, a Emenda Constitucional 66/2010 deu nova redação ao §6º do art. 226 da Constituição Federal e previu que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, independentemente de causa fática ou jurídica que componha o pano de fundo do desfecho da sociedade conjugal outrora estabelecida.
Nesse sentido, diferentemente da seara negocial civil, parte da doutrina aponta que, na verdade, o efeito de tal dever jurídico previsto no âmbito do direito das famílias mais se aproxima da concepção de um princípio a ser seguido e não uma regra jurídica propriamente dita na medida em que, em virtude de seu eventual descumprimento, não haveria uma sanção jurídica consequente expressa prevista no ordenamento a ser aplicada.
Essa é a dicção dos ensinamentos de Gonçalves (2014, p. 131):
A infração a cada um desses deveres constituía causa para a separação judicial, como o adultério, o abandono do lar conjugal, a injúria grave etc. (CC, art. 1.573). Com o advento da Emenda Constitucional n. 66/2010, ficam eles contidos em sua matriz ética, desprovidos de sanção jurídica, exceto no caso dos deveres de “sustento, guarda e educação dos filhos” e de “mútua assistência”, cuja violação pode acarretar, conforme a hipótese, a perda da guarda dos filhos ou ainda a suspensão ou destituição do poder familiar, e a condenação ao pagamento de pensão alimentícia.
Destarte, pode extrair-se que a fidelidade é um dever positivado em nossa legislação civil e que possui diversos contornos, que não dizem respeito apenas ao aspecto sexual. Assim, há de se perquirir a respeito da possibilidade de responsabilização civil ante as condutas violadoras de tal dever e de que forma a experiência judicial tem se manifestado a respeito.
3 PANORAMA GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO FAMILIAR
Conforme já mencionado anteriormente, a perspectiva contemporânea da entidade familiar foge de um modelo tradicional de mero grupo formado por pai, mãe e prole, para se aproximar de um modelo que represente a união de pessoas, não apenas estritamente ligadas por vínculos biológicos, mas voltadas à consecução de objetivos pessoais de vida em busca de suas respectivas felicidades.
Nesse passo, para alcançar tais objetivos, a concepção da família remonta à princípios de índole constitucional, representados, por exemplo, pela dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar, da igualdade entre os filhos, da proteção integral à criança e adolescente, da afetividade, dentre outros.
À medida em que se amplia consideravelmente o escopo da entidade familiar, é salutar que na mesma proporção se majoram as implicações jurídicas que a envolve. Nesse contexto, a responsabilidade civil no âmbito familiar tem-se demonstrado como um fenômeno marcante da contemporaneidade.
Por exemplo, a Constituição Federal estabelece, em seu art. 229, que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Ao positivar, em sede constitucional, um dever de índole familiar, o constituinte possibilitou que eventual lesado por violação do mesmo possa cobrar o seu cumprimento judicialmente ou, ainda, requerer a responsabilização civil por dano extrapatrimonial daquele que o causou.
Nesse interim, ilustre-se, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o abandono afetivo decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar da prole constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável. Para o STJ, o dever de cuidado (dever de criação, educação e companhia) que os pais devem ter para com seus filhos é um bem juridicamente tutelável e, ao omitir-se neste dever, o pai viola uma imposição legal, gerando a possibilidade de a pessoa lesada (filho) pleitear compensação por danos morais por abandono afetivo (REsp 1159242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).
Como se vê, a feição contemporânea dada à família permite que se vislumbre nela hipóteses de responsabilidade civil. Destarte, passa-se a analisar os elementos caracterizadores da responsabilidade civil antes de adentrar-se no estudo quanto à responsabilidade civil diante da infidelidade conjugal.
3.1. ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA RESPONSABILIDADE
A configuração da responsabilidade civil no âmbito familiar não foge da sistemática estabelecida na Constituição Federal e no Código Civil para a caracterização da responsabilidade de uma forma geral.
É nesse sentido que a responsabilidade no contexto familiar se fundamenta também nos ditames do art. 5º, incs. V e X que preveem e asseguram, respectivamente a indenização por violação por dano material, moral ou à imagem e a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
No mesmo passo, há de se ressaltar o que dispõe o art. 186 do Código Civil, de onde se extrai que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, estatuindo o art. 927 do diploma civilista a respectiva obrigação de reparar.
Em atenção à responsabilidade subjetiva adotada como regra pelo Código Civil como um todo e aos artigos acima mencionados, se observa que os elementos caracterizadores da responsabilidade civil e do respectivo dever de indenizar são: i) ação ou omissão; ii) dano; iii) nexo de causalidade entre a ação ou omissão do agente e o dano e; iv) dolo ou culpa (elemento subjetivo).
Outrossim, além de ser necessária a reflexão acerca da existência de ação ou omissão juridicamente relevantes para fins de configuração do dever de indenizar, é pertinente também se perscrutar a respeito da existência de possíveis excludentes de culpabilidade incidentes à espécie, como, por exemplo, culpa exclusiva da vítima ou, ainda, culpa concorrente, de forma a minorar a indenização.
A respeito dos elementos caracterizadores da responsabilidade no âmbito familiar, expôs a Min. Nancy Andrighi em seu voto no RESP 1159242/SP:
É das mais comezinhas lições de Direito, a tríade que configura a responsabilidade civil subjetiva: o dano, a culpa do autor e o nexo causal. Porém, a simples lição ganha contornos extremamente complexos quando se focam as relações familiares, porquanto nessas se entremeiam fatores de alto grau de subjetividade, como afetividade, amor, mágoa, entre outros, os quais dificultam, sobremaneira, definir, ou perfeitamente identificar e⁄ou constatar, os elementos configuradores do dano moral.
Doravante, pode-se aferir que os clássicos pressupostos caracterizadores da responsabilidade civil aplicam-se perfeitamente quando da sua configuração no âmbito familiar, sendo necessário, contudo, não perder de vista as peculiaridades da entidade familiar como um todo, o que enseja que o Poder Judiciário ingresse, sobremaneira e de forma bastante subjetiva na esfera da intimidade de um grupo familiar a fim de perscrutar eventual violação de um dever juridicamente protegível.
4 INFIDELIDADE CONJUGAL E RESPONSABILIDADE CIVIL: CENÁRIOS JURISPRUDENCIAIS DOS TRIBUNAIS
Estabelecidas as premissas acerca das feições das famílias na contemporaneidade e das perspectivas do dever de fidelidade recíproca e dos pressupostos caracterizadores da responsabilidade civil nesse contexto, passa-se ao estudo de posicionamentos jurisprudenciais emitidos pelo Superior Tribunal de Justiça e por Tribunais de Justiça a respeito da infidelidade conjugal e seus diversos reflexos no âmbito civil.
4.1. RESPONSABILIDADE DO CÔNJUGE ADÚLTERO, DO TRAÍDO E DO TERCEIRO-CÚMPLICE
Ante aos caracteres inerentes à fidelidade conjugal, outrora exposto, passa-se a demonstração da jurisprudência acerca da indenizabilidade das condutas do cônjuge adúltero e do terceiro-cúmplice em face do cônjuge inocente.
Quanto ao terceiro-cúmplice, o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se manifestar em mais de uma ocasião, no sentido de que o mesmo não detém o dever de indenizar o traído, posto que o conceito de ilicitude estaria imbricado na violação de um dever contratual ou legal, através do qual se extrairia dano para outrem, de modo que não se encontraria norma de direito público ou privado que obrigasse a terceiros velarem pela fidelidade de casamento do qual não fazem parte.
No caso em análise, julgado no RESP 1.222.547-MG (DJe: 27/11/2009), o contexto fático demonstrava que o Recorrente propusera a ação objetivando responsabilizar o amante de sua ex-esposa que com ela mantivera relacionamentos sexuais por mais de seis anos, até o conhecimento dos fatos e posterior divórcio. Em verdade, o Recorrente buscava a indenização por danos morais sob a justificiativa de que, com o ocorrido, andava “cabisbaixo, desconsolado e triste”.
O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça após ter sido julgado procedente em 1ª instância, em que o juízo de primeiro grau condenou o amante ao pagamento de indenização no valor de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais). Tal sentença foi reformada no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o que ensejou a interposição do Recurso Especial pelo cônjuge traído.
No caso em análise, o Superior Tribunal de Justiça pontuou a inexistência de relação jurídica entre o cúmplice e o traído, na medida em que a relação subsistente seria entre o cônjuge adúltero e o traído. Na dicção do STJ, a responsabilidade civil decorreria de relação contratual ou de imposição legal, de modo que entre o marido traído e o amante de sua ex-esposa, obviamente, não haveria contrato e nem tampouco disposição legal que obrigasse o amante a manter a incolumidade do casamento de outras pessoas.
Na realidade, não teria o amásio descumprido algum dever jurídico em face do marido traído, posto que inexistente norma legal que o obrigasse a manter a higidez do casamento alheio. De acordo com o STJ, não haveria ilícito civil perpetrado pelo cúmplice e nem tampouco alguma culpa juridicamente relevante.
Em interessante voto, o Ministro Relator pontuou que, a despeito da existência de uma norma moral que desestimulasse que terceiros envolvessem com pessoas casadas, presente no contexto social, o descumprimento de tal norma, embora pudesse ser sancionada no foro social, não o poderia ser no âmbito judicial. Assim, a norma jurídica seria dotada de coercibilidade, ao passo em que a norma moral não teria tal traço caracterizador. É o que se extrai do julgado:
Não é ocioso lembrar que, conquanto a matriz principiológica do direito resida, por vezes, na ideia de moral, esta e aquele não coexistem necessariamente. O direito, analisado como regra de conduta posta pelo Estado à sociedade e em face dele próprio, possui campo de ação mais limitado que a moral, não atingindo situações irrelevantes para uma ordenação social civilizada, eis que a finalidade da regra jurídica se esgota com o manter da paz social.
A seu passo, a moral atinge, e por consequência tutela, atos aquém e além do direito. Como é sabido, regras irrelevantes para o direito podem ostentar uma conformação moral, e cujo descumprimento apenas acarreta – se for o caso – uma sanção de foro íntimo ou religioso, como, por exemplo, a não-manutenção de relações sexuais com parentes de grau próximo, ou o não exercer a caridade para quem dela necessita. (…)
Em realidade, a norma moral se presta a um aperfeiçoamento pessoal, para a realização de um bem, cuja adjetivação como tal decorre unicamente da subjetividade de quem age, ao passo que a norma jurídica, quando proíbe ou limita, está a impor uma regra de conduta exigível, cujo descumprimento tem a virtualidade de acionar a força estatal com vistas ao retorno do status quo[2] . (REsp 1122547/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 27/11/2009)
Levando em consideração o exposto, o Superior Tribunal de Justiça sequer conheceu do recurso em julgado que assim foi ementado:
EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. ADULTÉRIO. AÇÃO AJUIZADA PELO MARIDO TRAÍDO EM FACE DO CÚMPLICE DA EX-ESPOSA. ATO ILÍCITO. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DE NORMA POSTA.
1. O cúmplice de cônjuge infiel não tem o dever de indenizar o traído, uma vez que o conceito de ilicitude está imbricado na violação de um dever legal ou contratual, do qual resulta dano para outrem, e não há no ordenamento jurídico pátrio norma de direito público ou privado que obrigue terceiros a velar pela fidelidade conjugal em casamento do qual não faz parte.
2. Não há como o Judiciário impor um "não fazer" ao cúmplice, decorrendo disso a impossibilidade de se indenizar o ato por inexistência de norma posta - legal e não moral - que assim determine. O réu é estranho à relação jurídica existente entre o autor e sua ex-esposa, relação da qual se origina o dever de fidelidade mencionado no art. 1.566, inciso I, do Código Civil de 2002.
3. De outra parte, não se reconhece solidariedade do réu por suposto ilícito praticado pela ex-esposa do autor, tendo em vista que o art.
942, caput e § único, do CC/02 (art. 1.518 do CC/16), somente tem aplicação quando o ato do co-autor ou partícipe for, em si, ilícito, o que não se verifica na hipótese dos autos.
4. Recurso especial não conhecido.
(REsp 1122547/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/11/2009, DJe 27/11/2009)
Em julgado mais recente (RESP 922.462-SP, DJe: 13/05/2013), o STJ teve oportunidade de mais uma vez debruçar-se sobre tal contexto fático e reiterou sua posição anterior no sentido de que o dever de fidelidade existe entre os cônjuges, de forma que somente estes têm o dever de observá-lo. Não haveria, portanto, dever jurídico a ser visualizado por parte do amásio a ponto de caracterizar hipótese de responsabilidade civil. Assim expõe o julgado:
EMENTA: RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALIMENTOS. IRREPETIBILIDADE. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE FIDELIDADE. OMISSÃO SOBRE A VERDADEIRA PATERNIDADE BIOLÓGICA DE FILHO NASCIDO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. DOR MORAL CONFIGURADA. REDUÇÃO DO VALOR INDENIZATÓRIO.
(...)
3. O dever de fidelidade recíproca dos cônjuges é atributo básico do casamento e não se estende ao cúmplice de traição a quem não pode ser imputado o fracasso da sociedade conjugal por falta de previsão legal.
(...)
7. Recurso especial do autor desprovido; recurso especial da primeira corré parcialmente provido e do segundo corréu provido para julgar improcedente o pedido de sua condenação, arcando o autor, neste caso, com as despesas processuais e honorários advocatícios.
(REsp 922.462/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/04/2013, DJe 13/05/2013)
Quanto à temática, a doutrina majoritária também se inclina para a posição esposada pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se extrai da dicção de Farias e Rosenvald (2015, p. 244-245):
Vale o registro de que os deveres conjugais operam efeitos, tão somente, entre as partes, não podendo impor obrigações a terceiros, naturalmente. Com isso, afasta-se a tentativa de parcela da doutrina de reconhecer a obrigação do terceiro cúmplice (o amante, em linguagem direta) de indenizar danos causados ao cônjuge ou companheiro traído. A tese não subsiste a um estudo mais cuidadoso. Isso porque os deveres conjugais (como a fidelidade e a consideração) operam efeitos intra partes, sem qualquer oponibilidade a terceiros. Efetivamente, não se pode exigir do terceiro o atendimento de um dever imposto às partes da relação afetiva. Se algum prejuízo decorreu da quebra da lealdade recíproca, deve ser imputado aos cônjuges ou companheiros reciprocamente, e não a terceiros.
Ademais, dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acima colacionados, se observa que é possível responsabilizar o cônjuge adúltero diante de seu comportamento infiel, a despeito de não se poder responsabilizar o amásio. Conforme bem pontuado, o dever de fidelidade[3] [Office4] é extensível aos integrantes do casamento e, caso haja uma violação capaz de destacar um abalo moral indenizável, é juridicamente viável responsabilizar o cônjuge adúltero.
Oportunamente, destaca-se que, apesar de parte da doutrina conferir uma matriz principiológica à concepção de fidelidade (e não de uma regra jurídica propriamente dita), é importante frisar que os princípios também configuram normas jurídicas e, se violados, podem gerar danos e o respectivo dever de reparação.
Sob a ótica de diretriz principiológica, ainda assim a infidelidade evidenciaria a quebra da legítima expectativa do cônjuge traído, de modo que o ordenamento jurídico confere ao que eventualmente sofreu um dano o direito de vê-lo reparado, posto que os princípios possuem densidade normativa suficiente a ponto de ensejar consequências jurídicas por sua não observância, mesmo que tal visualização não seja tal clara quando comparados aos efeitos do descumprimento de regras.
Ademais, é importante observar que a possibilidade de responsabilizar o cônjuge adúltero não é de todo pacífica, pois existem entendimentos divergentes nos tribunais de justiça pátrios.
Por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já se posicionou, em diversas vezes, no sentido de que a violação ao dever de fidelidade ensejaria tão somente a dissolução do vínculo conjugal e não caracterizaria a responsabilidade civil do cônjuge adúltero:
EMENTA: APELAÇÁO CÍVEL. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. DESCABIMENTO. A prática de adultério por qualquer dos cônjuges gera apenas a dissolução da sociedade conjugal, com os seus reflexos, não gerando dano moral indenizável à parte supostamente ofendida. Registro de paternidade da filha do autor como se fosse filha do réu. Circunstância que, no peculiar do caso, não indica má-fé do réu que acreditava ser a criança sua filha, pois já vinha mantendo relacionamento extraconjugal com a co-ré. NEGARAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70038967527, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 24/11/2011)
No mesmo tom, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do Estado de Minas Gerais se aproximam ao entendimento do Rio Grande do Sul, conforme excertos jurisprudenciais abaixo:
EMENTA: AÇÃO DE DIVÓRCIO - PARTILHA - MEAÇÃO DE DÍVIDAS - IMPOSSIBILIDADE - SENTIMENTO DE TRAIÇÃO - DANO MORAL - AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO - DEVER DE INDENIZAR - INEXISTÊNCIA - RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO"IN SPECIE". - A infidelidade, por si só, não gera direito à indenização por danos morais. - As desilusões e os aborrecimentos no restrito campo dos sentimentos não são suficientes para gerar indenização por abalo moral. - Não tendo o réu comprovado de forma segura a existência de dívida contraída na constância do casamento, inviável a pretensão de meação deste alegado passivo entre o casal" (Apelação Cível nº 1.0702.11.023372-4/001, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Rel. Des. Belizário de Lacerda, j. Aos 04/02/2014)
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – Indenização por danos morais – Infidelidade conjugal que – embora constitua descumprimento de um dos deveres do casamento, não constitui – por si só – ato ilícito apto a gerar abalo moral indenizável – Circunstâncias do caso concreto que não autorizam a condenação do réu – Sentença de improcedência mantida – Apelo desprovido.
(TJ-SP - APL: 01435056020118260100 SP 0143505-60.2011.8.26.0100, Relator: José Carlos Ferreira Alves, Data de Julgamento: 26/05/2015, 2ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/05/2015)
Por outro lado, o Tribunal de Justiça de Pernambuco e de Rondônia convergem ao entendimento pela indenizabilidade:
Dano Moral. Infidelidade conjugal. Dever de fidelidade e lealdade. Violação pelo cônjuge. Esposa traída. Motivo de chacota. Depressão. Abalo psicológico. Extensão. Caracterização. Valor da condenação. Majoração. Possibilidade. Viola os deveres de fidelidade e lealdade o cônjuge que - após uma relação extraconjugal, da qual advém uma gravidez - ocasiona imenso sofrimento à esposa, até mesmo quadro de depressão, donde emerge o dano moral. No tocante ao quantum indenizatório por dano moral, o valor da condenação deve ser majorado quando não se coaduna com a extensão dos danos sofridos pela vítima. O juiz deve primar pela razoabilidade na fixação dos valores de indenização, dependendo sempre do grau de culpa, intensidade da repercussão e condições do ofensor e do ofendido.
(TJ-RO - APL: 02623247520088220001 RO 0262324-75.2008.822.0001, Relator: Desembargador Miguel Monico Neto, Data de Julgamento: 20/01/2010, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: Processo publicado no Diário Oficial em 29/03/2010.)
EMENTA: DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE DIVÓRCIO C/C DANOS MORAIS E MEDIDA CAUTELAR DE SEPARAÇÃO DE CORPOS C/C GUARDA. (…) DANOS MORAIS DECORRENTES DE INFIDELIDADE CONJUGAL COMPROVADA NOS AUTOS. (...) INDENIZAÇÃO DEVIDA, NO VALOR DE R$2.000,00 (DOIS MIL REAIS). (...) Por unanimidade de votos deu-se provimento às apelações, observando-se o voto do relator com os acréscimos postos no voto do revisor.
(TJ-PE - APL: 3044317 PE, Relator: José Carlos Patriota Malta, Data de Julgamento: 29/08/2013, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: 11/10/2013)
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte julgou um curioso caso que envolvia infidelidade conjugal. Nos autos da Apelação Cível nº 2012.009983-9, julgada em 29 de janeiro de 2015, observou-se que o marido traído ajuizara ação buscando responsabilizar a sua então esposa em virtude dos relacionamentos extraconjugais da mesma, justificando-se que os fatos ficaram amplamente conhecidos na cidade de Mossoró de modo que o traído tivera sua imagem e sua honra demasiadamente abaladas perante à sociedade.
Não obstante, a esposa propôs reconvenção em face do marido traído, argumentando que, a despeito dos relacionamentos extraconjugais, fora o próprio esposo que espalhara a notícia pela cidade de Mossoró, denegrindo a sua própria imagem e a imagem dela, enquanto respeitada médica daquele Município. Frisou, por conseguinte, que ela é quem havia sofrido danos de ordem moral por conduta do cônjuge traído, que deliberadamente noticiara a traição na cidade, para conhecimento de todos.
Tomando como base os depoimentos testemunhais colhidos em instrução, o juízo de 1º grau considerou que os fatos só ganharam repercussão social por conta da conduta do autor (esposo traído), que divulgara na cidade e no meio médico a traição de sua esposa, de modo que esta teve sua honra demasiadamente abalada pela conduta do seu marido. Assim, a ação principal acabou por ser julgada improcedente e a reconvenção foi julgada procedente para determinar ao autor reconvindo o pagamento de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) de indenização.
Interpostas as apelações, o TJRN considerou que, embora reconhecidamente ocorrida a traição, tal fato não teve o condão de, por si só, gerar um abalo moral no autor, sendo um mero dissabor suportável no âmbito das relações afetivas. No mesmo tom, considerou que o esposo traído passou a divulgar os fatos com o intuito de denegrir a imagem de sua então esposa, listando o rol de homens com quem ela teria se relacionado sexualmente, inclusive no meio médico, onde exercia seus labores, tentando persuadir a sua demissão em cooperativa de atendimento médico.
Assim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte considerou que quem havia praticado ato ilícito seria o esposo traído, ao divulgar os próprios aspectos da intimidade do casal, ao buscar formas de ensejar a demissão de sua esposa e até mesmo a constranger outros homens em cargos de direção na cooperativa médica a sancioná-la, sob pena de listá-los no rol de homens com quem sua esposa se relacionara extraconjugalmente.
Portanto, além de o esposo traído não ter sofrido um dano indenizável em si, praticou ato ilícito ao divulgar tais fatos desmedidamente e a buscar punir a sua então esposa, em tom de vingança. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça manteve a sentença do juízo de 1º grau, negando provimento às apelações e confirmando o dever do esposo traído em indenizar a sua agora ex-esposa.
O julgado ficou assim ementado:
EMENTA: DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. APELAÇÕES CÍVEIS. PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO DO AUTOR. JUNTADA DE FOTOCÓPIA DO COMPROVANTE DE PAGAMENTO DA GUIA DO PREPARO RECURSAL. ADMISSIBILIDADE. CÓDIGOS DE BARRAS DO COMPROVANTE COM TERMINAÇÃO IDÊNTICA A EXPOSTA NA GUIA. REJEIÇÃO. PRELIMINAR DE APRECIAÇÃO DE AGRAVOS RETIDOS. NÃO CONHECIMENTO, POR INEXISTÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO DO AGRAVO EM AUDIÊNCIA. MÉRITO: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DECORRENTES DE INFIDELIDADE CONJUGAL E RECONVENÇÃO. SENTIMENTO DE TRAIÇÃO. DANO MORAL. AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO. DEVER DE INDENIZAR. INEXISTÊNCIA. RECONVENÇÃO. ABALO À HONRA DA DEMANDADA EM DECORRÊNCIA DA PROPALAÇÃO DE BOATOS DE FATOS ÍNTIMOS E INVERÍDICOS. LESÃO A DIGNIDADE DA RÉ/RECONVINTE. DANO MORAL CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO FIXADA DE FORMA RAZOÁVEL E PROPORCIONAL. HONORÁRIOS FIXADOS NOS TERMOS DA LEI. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS.
(TJRN – AC 2012.009983-9. Julgamento: 29/01/2015. Órgão Julgador: 1ª Câmara Cível. Classe: Apelação Cível. Relator: Des. Dilermando Mota)
O acórdão foi objeto de recurso especial, o qual foi inadmitido pelo TJRN, sendo, na sequência, interposto agravo em recurso especial, de forma que este recurso foi remetido ao Superior Tribunal de Justiça e aguarda julgamento.
Como se vê, em que pese o ato infiel gerar mágoa considerável ao cônjuge traído, o mesmo não é, por si só, suficiente para denotar um dano extrapatrimonial indenizável. É necessário, portanto, a caracterização do abalo a um direito de personalidade, juridicamente tutelável.
Nesse sentido, a jurisprudência apontou que, eventualmente, o cônjuge traído pode experimentar tal violação aos seus direitos de personalidade, e daí se perquirir acerca da indenização, sendo também possível que o cônjuge traído, estando magoado, se exceda em suas manifestações e viole direitos de personalidade do cônjuge infiel, gerando o direito deste último ser indenizado.
De fato, conforme se vislumbrou no julgamento oriundo do TJRN, a esposa que traíra o marido sofreu violação aos direitos de sua personalidade ao ser constrangida ante seus pares profissionais de sua cidade.
Assim, há de se asseverar que a mágoa, por si só, não é indenizável. O norte do dever de indenizar se retrata através do dano destacado na violação de algum direito da personalidade.
4.2. INFIDELIDADE VIRTUAL E SUA INDENIZABILIDADE
A contemporaneidade tem demonstrado uma massificação dos meios de comunicação social e, por via de consequência, das formas com que as pessoas se relacionam e interagem entre si. É notório que a última década foi intensamente marcada pelo crescimento das redes sociais, o que facilitou o contato virtual entre as pessoas.
Tomando como base a experiência da internet nas relações socioafetivas, dispõe Maria Berenice Dias (2015, p. 171):
No campo dos relacionamentos afetivos, o uso do computador possibilitou a utilização do véu virtual, rompendo com a necessidade antes inafastável do contato físico. Mas como não há "crime" perfeito, de modo bastante frequente acabam os parceiros descobrindo que seus cônjuges, companheiros ou namorados mantêm vínculos afetivos bastante intensos, íntimos e até tórridos no interior do próprio lar. Muitas vezes, na presença desatenta do par.
Nesse contexto, uma nova feição aos deveres conjugais tem sido evidenciada, de forma que passa a se discutir a respeito da existência de infidelidade virtual, a qual é conceituada pela Prof.ª. Marilene Silva Guimarães como “um relacionamento erótico-afetivo mantido através da Internet”.
Destarte, surge o questionamento acerca da possibilidade de o relacionamento virtual implicar em violação ao dever de fidelidade.
A respeito do tema, discorrem Rosenvald e Farias (2015, p. 245-246):
Aliás, já se fala, contemporaneamente, em adultério virtual, em alusão à possibilidade de práticas sexuais pela Internet, o que, sem dúvida, pode violar o respeito e a lealdade esperados, naturalmente, nas relações afetivas. Esse relacionamento afetivo virtual motiva o imaginário da pessoa humana, rompendo a necessidade de contato físico para a troca de afetos, já tendo sido explorado por películas holywoodianas. É claro que o adultério virtual não implica em violação ao dever de fidelidade, pela falta de contato físico, mas sim em martirização ao dever conjugal de respeito e lealdade. Quebra a confiança, a lealdade, esperada entre as partes.
Assim, consoante a dicção dos autores acima relacionados, a infidelidade virtual não representaria violação ao dever de fidelidade ante a falta de contato físico propriamente dito, de modo que representaria a violação de outros deveres conjugais.
Questionando acerca da própria ofensividade do comportamento virtual, a Prof.ª. Marta Vinagre [5] (2000, p. 29) reafirma que a infidelidade virtual não representaria uma forma de adultério, já que não haveria consumação física:
Mas será que tal tipo de infidelidade simboliza a forma mais agressiva de ataque à família? Em outras palavras, será que o "adultério virtual" é a tipificação do crime que espelha a base de nossa tradicional família monogâmica? Por certo que não, pela falta da consumação do ato sexual. Trocas de e-mails, conversas, ainda que erotizadas, via rede, é sabido, não são adultério. (…) Na verdade, é uma forma de infidelidade moral.
A doutrina de Carlos Roberto Gonçalves (2014, p. 131) não é diferente:
Quando a conduta pessoal reflete uma variedade de situações desrespeitosas e ofensivas à honra do consorte, uma forma de agir inconveniente para pessoas casadas, inclusive a denominada “infidelidade virtual” cometida via Internet, pode também caracterizar-se a ofensa ao inciso V do aludido art. 1.566, que exige “respeito e consideração mútuos”.
Das lições acima delineadas, observa-se que a denominada infidelidade virtual diverge do que é entendido como adultério, na medida em que haveria ausência de contato físico. Portanto, não haveria violação ao dever de fidelidade propriamente dito, conforme estatuído no art. 1.566, I, do Código Civil, a despeito do termo “infidelidade” ser empregado antes do adjetivo “virtual”.
Nesse passo, de acordo com a doutrina, estar-se-ia mais próximo de violação de outros deveres conjugais ou, ainda, aproximando-se de uma infidelidade “moral”, consoante a dicção de DIAS (2015, p. 171).
Entrementes, a imputação de responsabilidade civil em virtude da infidelidade virtual tem se mostrado controvertida, na medida em que tal comportamento não seria tão grave quanto àquela fisicamente consumada. É dizer, em outras palavras, que a dificuldade enfrentada pelos tribunais em atribuir responsabilidade civil em casos de infidelidade física é ainda majorada quando se trata de infidelidade virtual.
No mais, ainda não se encontra muita jurisprudência sobre o tema, ao passo em que este assunto é relativamente novo e, somado a isso, também existe certa dificuldade probatória, na medida em que para a demonstração de infidelidade virtual seria necessário demonstrar condutas do cônjuge que geralmente estão protegidas através de senhas ou até mesmo albergadas pelo direito constitucional da não-violação das comunicações privadas.
Em interessante julgado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que, a despeito da esposa recorrente ter demonstrado a existência da infidelidade virtual do seu marido, obteve tais provas através de meio ilícito ao devassar sua correspondência virtual. Assim, na colisão entre os deveres conjugais e o direito constitucional à inviolabilidade das comunicações, ponderou o TJRS por preferir este último.
Em outras palavras, a Corte gaúcha realizou uma digressão a respeito do arcabouço legal relativo ao direito à privacidade no que se refere à proteção jurídica dispensada às comunicações, ainda que por meio virtual, o que não poderia ser desprezado.
Assim, em que pese o esposo ter violado deveres conjugais ao manter um relacionamento virtual, teria infringido apenas deveres civilmente previstos, ao passo em que a esposa que acessou seus e-mails sem autorização teria violado um direito constitucionalmente assegurado à nível fundamental, pelo que, no choque entre as condutas e em atenção aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, entendeu-se pela ilegitimidade dos documentos extraídos do e-mail pessoal do esposo.
O julgado assim ficou ementado:
Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INFIDELIDADE VIRTUAL. DESCUMPRIMENTO DO DEVER DO CASAMENTO. PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. PREPONDERÂNCIA DO DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. O dever de reparar o dano advindo da prática de ato ilícito, tratando-se de ação baseada na responsabilidade civil subjetiva, regrada pelo art. 927 do Código Civil, exige o exame da questão com base nos pressupostos da matéria, quais sejam, a ação/omissão, a culpa, o nexo causal e o resultado danoso. Para que obtenha êxito na sua ação indenizatória, ao autor impõe-se juntar aos autos elementos que comprovem a presença de tais elementos caracterizadores da responsabilidade civil subjetiva. Ainda que descumprido o dever fidelidade do casamento, a comprovação de tal situação não pode ocorrer a qualquer preço, sobrepondo-se aos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente, devendo cada caso submeter-se a um juízo ponderação, sob pena de estar preterindo bem jurídico de maior valia, considerado no contexto maior da sociedade. A prova, a princípio considerada ilícita, poderá ser admitida no processo civil e utilizada, tanto pelo autor, quanto pelo réu, desde que analisada à luz o princípio da proporcionalidade, ponderando-se os interesses em jogo na busca da justiça do caso concreto. E procedendo-se tal exame na hipótese versada nos autos, não há como admitir-se como lícita a prova então coligida, porquanto viola direito fundamental à intimidade e à vida privada dos demandados. Precedentes do STF e do STJ. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70040793655, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leonel Pires Ohlweiler, Julgado em 30/03/2011)
Ademais, ainda não se encontrou manifestação no Superior Tribunal de Justiça a respeito da temática da infidelidade virtual.
Destarte, do que foi exposto acima pode-se dessumir que é possível que o cônjuge que esteja envolvido em relacionamentos virtuais possa ser civilmente responsabilizado por sua conduta, desde que presentes os pressupostos caracterizadores da responsabilidade civil que, nesta hipótese específica, são de mais difícil comprovação, até porque não se estaria a violar o dever de fidelidade especificamente exposto no art. 1.566, inc. I, do Código Civil, mas outros deveres conjugais civilmente explicitados, como, por exemplo, o dever de lealdade e respeito.
5 INFIDELIDADE E IMPLICAÇÕES SOBRE A PROLE: DA DESCONSTITUIÇÃO DA PATERNIDADE[6]
[Office7] Além do contexto conjugal, é oportuno ressaltar que a infidelidade pode também retratar efeitos sobre a prole, notadamente no que diz respeito ao cônjuge que registra filho de outrem como se fosse seu, sem ter conhecimento de que a criança é fruto de um relacionamento extramarital. Nesse contexto, questiona-se acerca da possibilidade de desconstituição da paternidade registral.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de se debruçar sobre a questão no Recurso Especial Nº 1.330.404-RS (DJe: 19/02/2015). O caso sob análise do STJ dizia respeito de uma ação negatória de paternidade em que o pai, após ciência de que o filho por ele voluntariamente registrado, era, na verdade, fruto de um relacionamento que sua convivente mantivera com outro homem, tentava retificar o registro público de nascimento.
Conforme se extrai do acórdão e do voto do Min. Marco Aurélio Bellizze (relator), o Tribunal a quo havia julgado improcedente a negatória da paternidade, sob a justificativa de que o demandante havia registrado a criança por ato de espontânea vontade e com ela teria estabelecido vínculos socioafetivos por aproximadamente seis anos quando só então tomou conhecimento de que não era o pai biológico. Assim ementou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
A inexistência de filiação biológica entre o autor e o menor/réu, demonstrada na ação negatória de paternidade, esbarra na filiação socioafetiva entre os litigantes, evidenciada nos autos, onde a criança tem no pai registral seu verdadeiro pai, estruturando sua personalidade na crença desta paternidade, assim demonstrado no processo, ensejando a improcedência da ação.
Portanto, a controvérsia cingiu-se a respeito da possibilidade de desconstituir a paternidade registral que estava em desacordo com a biológica, por iniciativa do homem que, no curso de união estável com a mãe da criança, acreditou ser pai biológico do infante por aproximadamente seis anos. Havia, destarte, uma colisão entre os vínculos socioafetivos até então estabelecidos e a paternidade biológica, assim como o próprio desejo do homem em se manter como “pai” da criança.
Na oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça considerou que a divergência entre a paternidade registral e a biológica, por si só, não tem o condão de invalidar o registro. Frisou a Corte Superior que ao marido/companheiro caberia comprovar a ocorrência de erro ou falsidade.
No caso concreto sob sua análise, o STJ vislumbrou que, a despeito da relação de afeto firmada entre pai e filho registrais nos primeiros seis anos de vida do infante, a mesma afigurou-se completamente rompida a partir do momento em que o pai registral soube que não era o pai biológico da criança. Foi definitivamente quebrada a relação estabelecida entre ambos, bem como não haveria possibilidade de restabelecimento ao status quo tamanho o dissídio em enfoque.
A Corte da Cidadania expôs que a socioafetividade surge a partir da vontade livremente manifestada pelas partes, o que havia ocorrido quando do registro da criança pelo pai que a presumira como sua. Contudo, a mesma não continuara a subsistir após a ciência de que o infante era fruto de um relacionamento extraconjugal. Assim, vislumbrou-se tanto que o pai fora induzido em erro substancial quando do registro da criança e também que fora rompida a vinculação socioafetiva logo após o conhecimento da verdade dos fatos pelo até então genitor.
Expôs o Ministro Relator:
Sem proceder a qualquer consideração de ordem moral, não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira. Como assinalado, a filiação sociafetiva pressupõe a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim reconhecido juridicamente, circunstância, inequivocamente, ausente na hipótese dos autos.
Destarte, o Superior Tribunal de Justiça levou em consideração que a vontade do suposto pai ao registrar a criança, embora livre e espontânea, era eivada de um vício que afetava sobremaneira sua validade, porquanto induzido em erro, na medida em que não conhecia o relacionamento extraconjugal da mãe e que o filho que registrara como seu, era, na verdade, do amante.
Relacionando o erro enquanto vício de vontade e a paternidade socioafetiva, o Ministro Relator votou:
Em conclusão, é de se acolher a pretensão de desconstituição da paternidade registral, porquanto evidenciado: i) que o declarante, ao proceder o registro de nascimento, sob a presunção pater is est, foi induzido em erro; ii) que a relação de afeto então estabelecida entre pai e filho registrais, igualmente calcada no vício de consentimento originário, restou definitivamente rompida; e iii) que não houve manifestação consciente e voluntária do apontado pai registral de ser reconhecido juridicamente como tal (pressuposto da configuração da filiação socioafetiva), após saber que não é o genitor da criança.
Sendo acompanhado pelos demais ministros componentes da Terceira Turma, o Ministro considerou que se o pai registral, após a ciência da verdade dos fatos, ainda assim mantivesse uma relação de afeto com o infante, consolidar-se-ia de forma definitiva a filiação socioafetiva, o que, in casu, não ocorrera. Nesse sentido, deu-se provimento ao Recurso Especial para determinar a retificação do assento de nascimento e a retirada do nome do recorrente enquanto pai da criança.
Portanto, conforme se viu dos parágrafos acima, a infidelidade conjugal pode projetar efeitos além da esfera dos cônjuges e do terceiro-cúmplice, alcançando até mesmo a prole eventualmente havida no curso do relacionamento, de forma que é possível a desconstituição da paternidade registral daquele que registrou filho como se biologicamente seu fosse, mas que, na verdade, era do amante de sua esposa.
6 CONCLUSÃO
Com as exposições e análises acima realizadas, observou-se, em primeiro lugar, que a Constituição Federal alçou a família a [8] uma posição especial no ordenamento jurídico, de forma que o plexo de relações e até mesmo as formas de configuração de tal entidade foram significativamente ampliadas, o que também implicou, por conseguinte, num fenômeno de judicialização de demandas que as envolvem, inclusive no que tange à responsabilidade civil.
Nesse interim, denotou-se também que o Código Civil de 2002 conferiu uma série de deveres aos cônjuges dentro do contexto marital, donde se extraiu o dever de fidelidade, além de outros tais como a lealdade, consideração e respeito mútuo.
Pontuou-se que o dever de fidelidade se aproxima da noção conceitual de monogamia, embora na contemporaneidade também se vislumbre a formação de famílias poliamorosas e que há vozes na doutrina que defendem que deve ser conferida à tais entidades poliafetivas a mesma proteção jurídica destinada às demais famílias protegidas pelo Direito, inclusive quanto à fidelidade entre o grupo.
Assim, questionou-se, em tese, se o descumprimento dos deveres poderia ensejar a responsabilidade civil dos cônjuges, notadamente no que diz respeito a infidelidade conjugal.
Vislumbrou-se, por conseguinte, um panorama geral de responsabilidade civil no âmbito das relações familiares, destacando-se os seus elementos caracterizadores, quais sejam, a ação ou omissão; o dano; o nexo de causalidade entre a ação ou omissão do agente e o dano e; o dolo ou culpa, elencado como elemento subjetivo.
Assim, ao adentrar no mérito do presente trabalho, passou-se a analisar cenários jurisprudenciais, com a finalidade de entender de que forma os tribunais se manifestavam acerca das possibilidades de responsabilização civil em virtude de infidelidade conjugal.
Em primeiro lugar, retratou-se que os tribunais têm dificuldade em imputar a responsabilidade civil em face do amásio, na medida em que entendem que os deveres conjugais não são oponíveis a terceiros, mas exigíveis apenas entre os cônjuges em si. Inclusive, consoante a dicção do próprio Superior Tribunal de Justiça, frisou-se que o terceiro-cúmplice não detém dever legal de zelar pelo casamento alheio, motivo pelo qual se afastou a responsabilidade do amante nos julgados analisados.
Por outro lado, no que diz respeito à responsabilidade do cônjuge adúltero, vislumbrou-se que os tribunais entendem pela possibilidade de impor a esses o dever de indenizar o cônjuge traído, desde que preenchidos os demais requisitos ensejadores da responsabilização.
Outrossim, denotou-se que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte já entendeu pela responsabilização do cônjuge traído em face do cônjuge adúltero, na medida em que aquele divulgou na cidade os acontecimentos por vontade própria e tentou denegrir a imagem da respectiva consorte com a finalidade de desestabilizá-la profissionalmente. Portanto, é possível que o traído seja condenado a indenizar o adúltero.
Vislumbrou-se, por conseguinte, que a mágoa experimentada pelos pares não é suficiente para caracterizar um abalo indenizável. O norte indenizatório se denota através de alguma violação capaz de abalar direitos de personalidade do cônjuge.
Ademais, notou-se que a infidelidade conjugal pode gerar efeitos além da esfera dos próprios cônjuges, de forma que o Superior Tribunal de Justiça manifestou entendimento pela possibilidade de desconstituição da paternidade quando o pai registral tomou conhecimento de que fora induzido a erro e, na verdade, não era pai biológico da criança anteriormente registrada como sua. Assim, a infidelidade conjugal pode, inclusive, gerar efeitos no registro público a ponto de modificar uma certidão de nascimento.
Além disso, acrescentou-se que, com o fenômeno da virtualização das comunicações sociais, tornou-se crescente as hipóteses de infidelidade virtual, em que os cônjuges acabam mantendo relacionamentos interpessoais e até mesmo de conotação sexual sem que haja, contudo, contato físico, o que poderia até mesmo melhor ser representada como uma infidelidade moral.
Nestas hipóteses, a despeito da pouca manifestação jurisprudencial sobre o tema, retratou-se a dificuldade probatória, na medida em que os consortes precisariam ter acesso a senhas e e-mails pessoais dos outros, de maneira que, se a prova fora obtida ilicitamente, a jurisprudência a tem preterido em favor da cláusula constitucional de proteção das comunicações e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada.
Ademais, a judicialização de demandas que envolvem responsabilidade civil oriunda de infidelidade conjugal não foge do contexto da ampliação de judicialização de demandas como um todo que é observada, enfaticamente, nos últimos anos.
A experiência judicial, afinal, tem mostrado que os magistrados e magistradas precisam, cada vez mais, se imiscuir em aspectos tão pessoais da intimidade das pessoas a fim de solucionar os conflitos que lhe são apresentados, o que também evidencia, por conseguinte, a complexidade dos relacionamentos familiares e sociais como um todo.
REFERÊNCIAS
BEMBOM, Marte Vinagre. Infidelidade Virtual e Culpa. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2016.
BRASIL. Código Civil (2002). Lei Federal nº 10.406/2002: publicada em 10 de janeiro de 2002. Disponível em . Acesso em 15 ago. 2016.
______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em . Acesso em 15 ago. 2016.
______. Superior Tribunal de Justiça. RESP nº 1159242/SP. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Diário Eletrônico de Justiça. Brasília, 10/05/2012.
______. Superior Tribunal de Justiça. RESP nº 1122547/MG. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Diário Eletrônico de Justiça. Brasília, 27/11/2009.
______. Superior Tribunal de Justiça. RESP nº 922462/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Diário Eletrônico de Justiça. Brasília, 13/05/2013.
______. Superior Tribunal de Justiça. RESP nº 1330404/RS. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Diário Eletrônico de Justiça. Brasília, 19/02/2015.
______. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível Nº 1.0702.11.023372-4/001. Relator: Des. Belizário de Lacerda. Diário Eletrônico de Justiça. Belo Horizonte, 04/02/2014.
______. Tribunal de Justiça de Pernambuco. Apelação Cível Nº 3044317. Relator: Des. José Carlos Patriota Malta. Diário Eletrônico de Justiça. Recife, 11/10/2013.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. Apelação Cível Nº 2012.009983-9. Relator: Des. Dilermando Mota. Diário Eletrônico de Justiça. Natal, 29/01/2015.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70038967527. Relator: Des. Rui Portanova. Diário Eletrônico de Justiça. Porto Alegre, 24/11/2011.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70040793655. Relator: Des. Leonel Pires Ohlweiler. Diário Eletrônico de Justiça. Porto Alegre, 30/03/2011.
______. Tribunal de Justiça de Rondônia. Apelação Cível Nº 02623247520088220001. Relator: Des. Miguel Monico Neto. Diário Eletrônico de Justiça. Porto Velho, 29/03/2010.
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[1] Outro debate que se lança mão na contemporaneidade diz respeito ao poliamorismo, através do qual um agrupamento de pessoas está unido através de vínculos afetivos a ponto de constituir uma unidade familiar. Além de um casal, podem existir três, quatro ou mais pessoas afetivamente ligadas entre si a fim de constituir uma união. Assim, discute-se a respeito da possibilidade de existência de infidelidade no âmbito de uma família poliafetiva. De acordo com Dias (2015), pautada no que chama de democratização de sentimentos e no respeito e consideração mútuos que deve existir no núcleo familiar, à família poliafetiva deve ser conferida a mesma proteção jurídica destinada às demais famílias reconhecidas pelo Direito. Tendo em vista a interação recíproca entre os componentes de tal entidade, o conhecimento das inter-relações parece ser a chave desse grupo familiar. Nesse sentido, em teoria, pode-se defender que a infidelidade conjugal seria vislumbrável quando um dos membros da entidade poliamorosa se envolvesse com terceiros além daquele grupo conhecido. Entrementes, ante à novidade desse debate, a discussão doutrinária acerca da infidelidade no âmbito poliamoroso ainda é rala, notadamente quando também há muita divergência, ainda, acerca da configuração do grupo como uma entidade familiar propriamente dita.
Advogado. Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal - RN - Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MAIA, Angelus Emilio Medeiros de Azevedo. Responsabilidade civil no âmbito conjugal: da violação do dever de fidelidade e de sua indenizabilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 fev 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49131/responsabilidade-civil-no-ambito-conjugal-da-violacao-do-dever-de-fidelidade-e-de-sua-indenizabilidade. Acesso em: 25 nov 2024.
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