RESUMO: O presente artigo tem como tema o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo código de processo civil. O objetivo é esclarecer o instituto à luz da Lei n° 13.015 de 16 de março de 2015. Esta análise foi elaborada através do método dedutivo e da pesquisa bibliográfica, utilizando-se, primordialmente, de fontes secundárias, tais como: livros, códigos, sites de internet e outras literaturas afetas ao tema. Em um primeiro momento, explicou-se o princípio da autonomia patrimonial. Em um segundo plano, abordou-se as teorias da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita e inversa. Depois, foi feita uma explanação sobre diversos aspectos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, são eles: natureza jurídica do instituto, desnecessidade de ação autônoma, legitimidade, hipóteses de cabimento, requisitos para a concessão, procedimento, natureza da decisão e efeitos do acolhimento do incidente.
PALAVRAS-CHAVE: Incidente. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Novo Código de Processo Civil.
ABSTRACT: This article has as its theme the incident of disregard of legal personality in the new civil procedure code. The objective is to clarify the institute in light of Law 13,015 of March 16, 2015. This analysis was elaborated through the deductive method and the bibliographical research, using primarily secondary sources such as books, codes, Internet sites and other literature related to the topic. At first, the principle of autonomy was explained. In a second plan, the theories of disregarding the juridical personality proper and inverse were approached. Afterwards, an explanation was given on several aspects of the incident of disregard of legal personality introduced by the new Code of Civil Procedure, they are: legal nature of the institute, lack of autonomous action, legitimacy, hypotheses of propriety, requirements for concession, procedure, nature Of the decision and effects of the reception of the incident. Finally, the conclusion was presented.
KEYWORDS: Incident. Disregard of Legal Personality. New Code of Civil Procedure.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Princípio da autonomia patrimonial; 2. Teoria da desconsideração da personalidade jurídica; 2.1. Bases históricas da teoria da desconsideração; 2.2. Teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil; 2.3. Efeitos da Teoria da desconsideração da personalidade jurídica; 2.4. A desconsideração inversa; 3. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica; 3.1. Natureza jurídica do incidente; 3.2. Desnecessidade de ação autônoma; 3.3. Legitimidade para instauração do incidente; 3.4. Hipóteses de cabimento; 3.5. Requisitos para concessão; 3.6. Procedimento; 3.7. Decisão que resolve o incidente; 3.8. Efeitos do acolhimento do incidente. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como tema o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Ele será abordado à luz da Lei n° 13.015 de 16 de março de 2015.
Dentro dessa seara, pretendemos buscar a resposta para o seguinte questionamento: como é tratado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo código de processo civil?
Para uma melhor explanação, várias questões foram levantadas: O que significa o princípio da autonomia patrimonial? Como surgiram as teorias da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita e inversa? Em que consiste tais teorias e quais os seus efeitos para o direito brasileiro? Qual a natureza jurídica do incidente de desconsideração da personalidade jurídica? O incidente é cabível no ordenamento jurídico brasileiro, ou a desconsideração só pode ser concedida por meio de ação própria? Quem são os legitimados para a instauração? Quais são as hipóteses de cabimento? Quais são os requisitos para a sua concessão? Qual o procedimento a ser observado? Qual a natureza da decisão que resolve o incidente? Quais os efeitos do acolhimento do incidente?
Baseado nesses questionamentos, temos o objetivo geral de elucidar a figura do incidente de desconsideração da personalidade jurídica sob a ótica do código processual civil vigente.
Objetivando cumprir o papel metodológico, a pesquisa em tela tem como objetivos específicos: explicar o princípio da autonomia patrimonial; explanar sobre o histórico, o conceito e os efeitos das teorias da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita e inversa para o direito brasileiro; esclarecer diversos aspectos em torno do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
É justificada a feitura do presente artigo por se tratar de um incidente que, antes do novo código de processo civil, suscitava polêmica quanto ao seu cabimento. Ademais, inexistia um tratamento legal de caráter processual. Assim, é indispensável o esclarecimento de várias questões processuais em torno dessa figura, agora introduzida no capítulo referente à intervenção de terceiros.
Através da realização de diversas pesquisas e da construção de uma análise construtiva e crítica acerca do tema, constatou-se que a inserção do incidente foi uma grande conquista para o ordenamento jurídico brasileiro.
Impende ressaltar que os métodos de abordagem e de pesquisa utilizados no desenvolvimento da pesquisa foram o dedutivo e o bibliográfico, respectivamente.
Quanto ao procedimento, pautou-se nos métodos histórico e comparativo.
Já no que diz respeito a abordagem, foi empregada a pesquisa qualitativa e exploratória.
O presente artigo foi elaborado em três capítulos, seguidos de uma conclusão.
No primeiro capítulo, foi apresentado o princípio da autonomia patrimonial. O segundo capítulo, por sua vez, tratou do histórico, do conceito e dos efeitos das teorias da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita e inversa.
No terceiro capítulo, foram analisados diversos aspectos do incidente de desconsideração da personalidade jurídica: natureza jurídica do incidente, desnecessidade de ação autônoma para a decretação da desconsideração, legitimidade para a instauração, hipóteses de cabimento, requisitos para a concessão, procedimento, natureza da decisão que resolve o incidente e efeitos do seu acolhimento. E por fim, a conclusão.
1. Princípio da autonomia patrimonial ou separação patrimonial
O princípio da autonomia patrimonial está inserido no art. 1024 do CC, ipsis literis:
“Art. 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”.
Consoante o mencionado princípio, a pessoa jurídica tem personalidade própria e patrimônio autônomo, distinto e independente de seus membros. Assim, os bens dos sócios não poderão responder pelas dívidas da empresa. Sendo, portanto, incabível a responsabilização do membro da pessoa jurídica por obrigação assumida em nome da pessoa jurídica.
Ramos ressalta a relevância do princípio:
“O princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, consagrado no art. 1024 do Código Civil, constitui uma importantíssima ferramenta jurídica de incentivo ao empreendedorismo, na medida em que consagra a limitação de responsabilidade – a depender do tipo societário adotado – e, consequentemente, atua como importante redutor do risco empresarial” (p. 413, 2015).
Ocorre que, há muito o supracitado princípio vem sendo utilizado pelas pessoas jurídicas como escudo para o cometimento de ilícitos e fraudes.
Nessa seara, preconiza Ramos:
“(...) a história das relações econômicas demonstrou que o uso das pessoas jurídicas e a consagração do princípio da autonomia patrimonial podem dar ensejo a abusos. Empresários maliciosos, não raro, utilizavam-se das mais variadas artimanhas para fraudar seus credores, usando a personalidade jurídica e beneficiando-se da separação patrimonial como um verdadeiro escudo protetor contra os ataques ao seu patrimônio pessoal” (p. 414, 2015).
Diante desse contexto, e com a finalidade de evitar o uso abusivo da personalidade jurídica e da separação patrimonial, foi criada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. E, posteriormente, a teoria da desconsideração inversa.
2. Teoria da desconsideração da personalidade jurídica
2.1. Bases históricas da teoria da desconsideração
A teoria da desconsideração (disregard doctrine) “é fruto de construção jurisprudencial, notadamente a jurisprudência inglesa e norte-americana” (RAMOS, p. 414, 2015).
A doutrina majoritária cita o caso inglês Salomon v. A. Salomon & Co. Ltd, de 1987, como o leading case da referida teoria.
Nesse contexto, preceitua Fredie Didier:
“O caso inglês Salomon v. A. Salomon & Co. Ltd. [ ( 1 897) AC 2 2 ] é provavelmente o mais famoso caso judiciário em direito societário. Ele é visto como a “pedra fundamental” da doutrina da autonomia da pessoa jurídica. Habitualmente, ele é citado como o leading case da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, embora apenas a primeira decisão e a decisão da corte de Apelação tenham realmente sido nesse sentido. A decisão final – dada pela House of Lords – reverteu a decisão da Corte de Apelação e garantiu a autonomia da pessoa jurídica.
Aron Salomon era um fabricante de botas de couro e sapatos na segunda metade do Século XIX. (...) Após uma série de greves, o governo inglês, que era o principal cliente de Salomon, resolveu diversificar seus fornecedores de sapatos e botas de couro. Os estoques da A. Salomon Ltd. cresceram exponencialmente e não conseguiu dar vazão à produção. A sociedade entrou em dificuldades financeiras. Os aportes feitos pelo próprio Salomon, pela esposa e por um terceiro (Edmund Broderip, que emprestou 5.000 libras para a sociedade e recebeu títulos de dívida – “debêntures” – remunerados com 10 % de juros) também não foram suficientes para reerguer a sociedade. Na segunda metade de 1893, a sociedade entrou em liquidação. A discussão, a partir daí, passou a ser sobre a imputação de responsabilidade ao Aron Salomon pelo pagamento das dívidas da sociedade insolvente” (p. 514, 2015).
No plano doutrinário, o maior precursor da teoria foi o alemão Rolf Serick, que estabeleceu as bases da disregard doctrine, em 1953, em sua tese de doutorado.
“O que se firmou, portanto, a partir dos precedentes mencionados, foi a possibilidade de afastamento dos efeitos da personalização da sociedade – autonomia e separação patrimonial – nos casos em que a personalidade jurídica fosse utilizada de forma abusiva, em prejuízo aos interesses dos credores. Nesses casos, poderia o juiz ou tribunal desconsiderar os efeitos da personalidade jurídica, permitindo-se, assim, a execução do patrimônio pessoal dos sócios por dívidas da sociedade (RAMOS, p. 415, 2015).
2.2. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil
No Brasil, o primeiro a defender a teoria foi o jurista Rubens Requião. Em 1969, ele apresentou o intitulado “Abuso de Direito e Fraude através da personalidade jurídica”, em uma conferência realizada no Estado do Paraná.
Desde 2001 a teoria é aplicada pela jurisprudência brasileira em casos de comprovado desvio de finalidade das sociedades:
“PROCESSUAL CIVIL E DIREITO COMERCIAL. FALÊNCIA. EXTENSÃO DOS EFEITOS. COMPROVAÇÃO DE FRAUDE. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. RECURSO ESPECIAL.DECISÃO QUE DECRETA A QUEBRA.NATUREZA JURÍDICA. NECESSIDADE DE IMEDIATO PROCESSAMENTO DO ESPECIAL. EXCEÇÃO À REGRA DO ART. 542, § 3° DO CPC. DISSÍDIO PRETORIANO NÃO DEMONSTRADO. I – Não comporta retenção na origem o recurso especial que desafia decisão que decreta a falência. Exceção à regra do § 3°, art. 542 do Código de Processo Civil. II – O dissídio pretoriano deve ser demonstrado mediante o cotejo analítico entre o acórdão recorrido e os arestos paradigmáticos. Inobservância ao art. 225 do RISTJ. III – Provada a existência de fraude, é inteiramente aplicável a Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica a fim de resguardar os interesses dos credores prejudicados. IV – Recurso Especial não conhecido” (STJ, REsp n° 211619/SP, TERCEIRA TURMA, Relator(a) Ministro(a): EDUARDO RIBEIRO, Julgado em 16/02/2001, Publicado no DJ em 23/04/2001). (destaque nosso)
Entretanto, somente em 1990 a teoria foi normatizada em nosso ordenamento jurídico brasileiro, com a edição da Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
Posteriormente, outras leis foram editadas prevendo a disregrad doctrine, são elas: Lei n° 8.884/1994 (dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações à ordem econômica) e Lei n° 9.605/1998 (regula os crimes ambientais).
Sobre as leis supracitadas (Lei n° 8.078/90, Lei n° 8.884/1994 e Lei n° 9.605/1998), pontua Ramos:
“A despeito de terem sido inovadoras, as três leis acima mencionadas, além de não servirem como regra geral de aplicação da teoria, por terem sua incidência restrita as matérias específicas que regulam, receberam duras e justas críticas da doutrina, sobretudo dos comercialistas. Com efeito, as normas acima transcritas não condizem com as formulações doutrinárias que deram origem à disregrad doctrine, prevendo a sua aplicação em casos para os quais o ordenamento jurídico já contém remédios eficientes, como acontece nas situações de excesso de poder ou de prática de ato ilícito, com infração da lei, dos estatutos ou do contrato social”.
Ademais, a previsão normativa constante do art. 28, § 5°, do CDC, copiada pela lei de crimes ambientais, consagra a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica quando há a demonstração de mero prejuízo do credor, o que não se justifica” (p. 417, p. 2015).
Mais tarde, foi editado o Código Civil de 2002. Nele o legislador refletiu com fidelidade os ideiais originais da teoria. Isto é, restringiu a sua aplicação aos casos de abuso de personalidade jurídica, caracterizados pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial (art. 50 do CC).
Nesse toar, dispõe Ramos:
“Ao prever a aplicação da teoria da desconsideração apenas quando demonstrado o abuso de personalidade jurídica, e caracterizando a ocorrência destes nos casos de desvio de finalidade e ou confusão patrimonial, o Código Civil manteve-se fiel aos postulados fundamentais da disregrad doctrine, mas, infelizmente, não revogou as equivocadas regras especiais sobre o tema existentes em nosso ordenamento jurídico, as quais, por isso, continuam em vigor. Nesse sentido é o Enunciado 51 do CJF: “A teoria da desconsideração do Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”” (p. 417, 2015).
Ramos arremata:
“A previsão normativa do art. 50 do Código Civil, (...), deveria ser a única regra legal sobre o tema em nosso ordenamento jurídico. O legislador do Código deveria ter revogado as demais disposições legais sobre o tema, que o tratam de maneira equivocada e geral insegurança jurídica” (p. 421, 2015).
Em que pese a previsão do instituto em lei material, carecia de regulamentação processual. Suprindo tal lacuna, o novo Código de Processo Civil disciplinou todo o procedimento para a sua concessão nos arts. 133 a 137, de forma a garantir a efetivação do contraditório e da ampla defesa.
2.3. Efeitos da desconsideração da personalidade jurídica
Decretada a desconsideração, será imputado ao(s) sócio(s) ou administrador(es) os ilícitos praticados pela pessoa jurídica. Assim, “os bens particulares dos sócios que concorreram para a prática do ato respondem pela reparação dos danos provocados pela sociedade” (THEODORO JÚNIOR, p. 401, 2016).
É mister salientar que a desconsideração não acarreta o fim da pessoa jurídica, mas sim a “suspensão temporária dos efeitos da personalização num determinado caso específico, não estendendo seus efeitos para as demais relações jurídicas das quais a pessoa jurídica faça parte” (RAMOS, p. 422, 2015).
Nesse sentido, já decidiu o STJ:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. ARTIGOS 472, 593, II E 659, § 4°, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 248/STF. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA. MEDIDA EXCEPCIONAL. OBSERVÂNCIA DAS HIPÓTESES LEGAIS. ABUSO DE PERSONALIDADE. DESVIO DE FINALIDADE. CONFUSÃO PATRIMONIAL. DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE. ATO EFEITO PROVISÓRIO QUE ADMITE IMPUGNAÇÃO. BENS DOS SÓCIOS LIMITAÇÃO ÀS QUOTAS SOCIAIS. IMPOSSIBLIDADE. RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS COM TODOS OS BENS PRESENTES E FUTUROS NOS TERMS DO ART. 591 DO CPC. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, IMPROVIDO. (...) VI – A desconsideração não importa em dissolução da pessoa jurídica, mas se constitui apenas em um ato de efeito provisório, decretado para determinado caso concreto e objetivo, dispondo, ainda, os sócios incluídos no polo passivo da demanda, de meios processuais para impugná-la. (...)” (REsp 1169175/DF, TERCEIRA TURMA, Relator(a) Ministro(a): MASSAMI UYEDA, Julgado em 17/02/2011, Publicado no DJe em 04/04/2011). (destaque nosso)
2.4. A desconsideração inversa
Ao contrário da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a desconsideração inversa não possuía previsão legal, embora fosse reconhecida a sua aplicação pela doutrina majoritária e pela jurisprudência.
Consiste no “afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador” (STJ, REsp n° 1236916/RS, TERCEIRA TURMA, Relator (a) Ministro(a): NANCY ANDRIGHI, Julgado em 22/10/2013, Publicado no DJe em 28/10/2013).
Atualmente está disciplinada no art. 133, § 2° do novo Código de Processo Civil, restando, dessa forma, suprida a lacuna legal e consolidada a jurisprudência a respeito.
3. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica
3.1. Natureza jurídica do incidente
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica tem natureza de intervenção de terceiros, já que “provoca o ingresso de um terceiro em juízo – para o qual se busca dirigir a responsabilidade patrimonial” (DIDIER, p. 514, 2015).
3.2. Desnecessidade de ação autônoma
Antes da edição do novo Código de Processo Civil, a questão era controversa na doutrina. Enquanto uns só admitiam a desconsideração da personalidade jurídica por meio de ação própria, outros entendiam que era cabível a sua decretação por meio de incidente.
O Superior Tribunal de Justiça, antes do advento do novo CPC, se manifestou contrário à exigência de ação autônoma, vejamos: “preenchidos os requisitos legais, não se exige, para a adoção da medida, a propositura de ação autônoma” (REsp n° 1326201/RJ, TERCEIRA TURMA, Relator (a) Ministro(a): NANCY ANDRIGHI, Julgado em 07/05/2013, Publicado no DJe 16/05/2013).
O novo Diploma, consolidando o entendimento jurisprudencial, estabeleceu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, no capítulo referente à intervenção de terceiros (arts. 133 e ss. do CPC).
Vale ressaltar que a desconsideração da personalidade jurídica também poderá ser requerida na petição inicial, conforme reza o art. 134, § 2° do CPC.
“Conclui-se, assim, que a desconsideração pode ser postulada em caráter incidental, isto é, no curso do processo ajuizado em face do devedor, ou em caráter principal, em que a desconsideração é requerida como pretensão inicia, paralela à de cobrança e na qual o sócio figura desde logo como réu” (GONÇALVES, p. 261, 2016). (destaque no original)
3.3. Legitimidade para instauração do incidente
De acordo com o art. 133, caput, do Código de Processo Civil, o incidente poderá ser requerido pela parte ou pelo Ministério Público, sendo vedada a atuação ex officio.
Sobre a legitimidade, Gonçalves destaca: “como o art. 113, caput, não restringe, o Ministério Público poderá requerer a desconsideração tanto como parte autora como nos casos em que intervenha na condição de fiscal da lei. É indispensável, porém, que se trate de processo em que haja a sua intervenção” (p. 261, 2016).
3.4. Hipóteses de cabimento
Segundo o art. 134 do Código de Processo Civil, o incidente poderá ser instaurado em qualquer processo (cognitivo ou executivo), seja qual for o procedimento adotado (comum ou especial). Também é cabível em qualquer fase processual (inclusive no cumprimento de sentença), desde que presentes os requisitos necessários para a desconsideração.
“É possível, inclusive, que o incidente se instaure perante os tribunais, seja nos processos de competência originária, seja em grau de recurso, como se extrai do disposto no parágrafo único do art. 136, que prevê a possibilidade de decisão do incidente por relator” (CÂMARA, p. 116, 2016).
3.5. Requisitos para a concessão
De acordo com o art. 133, § 1°, do CPC, “o pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei”.
Conforme visto, o novo Código de Processo Civil não prevê os requisitos para a concessão do incidente. Tais pressupostos estão elencados no direito material, e variam conforme a natureza do direito discutido no caso concreto (art. 133, § 1°, CPC).
Nas causas que versem sobre direito Civil, incidirá o art. 50 deste diploma:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Portanto, constituem requisitos para a concessão do incidente: a insuficiência patrimonial (requisito objetivo) e o desvio de finalidade ou confusão patrimonial por meio de fraude ou abuso de direito (requisitos subjetivos).
Por outro lado, se a relação jurídica subjacente ao processo for regida pelo Código de Defesa do Consumidor, aplica-se o art. 28, caput, e § 5°, do CDC.
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
Neste caso, será cabível o incidente quando se verificar: abuso de direito, excesso de poder, infração à lei, fato ou ato ilícito, violação ao estatuto ou contrato social, ou, ainda, se verificada a falência, o estado de insolvência, o encerramento ou a inatividade da pessoa jurídica, desde que provocados por má administração. Também poderá ser efetivada a desconsideração, sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores.
Por sua vez, nas causas regidas pelo Direito Ambiental, incidirá o art. 4° da Lei 9.605/1998:
“Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.
Logo, o único requisito é que a sociedade não tenha patrimônio suficiente para assegurar a reparação do dano, sendo irrelevante a presença de dolo, fraude ou má-fé por parte do poluidor.
Frise-se que os referidos dispositivos falam apenas em desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, sendo aplicados à desconsideração inversa por meio de interpretação teleológica.
Vale salientar, ainda, que o Código Civil adotou a teoria maior da desconsideração, vez que exige a configuração de requisitos objetivos e subjetivos para a sua aplicação. Já as demais previsões normativas, adotaram a teoria menor da desconsideração, pois exigem apenas a comprovação de requisitos objetivos.
3.6. Procedimento
A parte interessada ou o Ministério Público, ao suscitar o incidente, deverá indicar na petição: o suscitado, o pedido, a causa de pedir e os meios de prova que se pretende utilizar. No tocante à causa de pedir, deverá haver a demonstração dos pressupostos legais específicos (arts. 133, § 1° e 134, § 4°). Ou seja, de alguma das hipóteses descritas na lei material.
Após analisar o preenchimento ou não dos requisitos, o juiz (ou o relator, em sede de recurso ou em casos de competência originária) poderá indeferir o incidente de plano ou recebê-lo. Neste caso, o incidente será instaurado.
Instaurado o incidente, deverá o cartório de distribuição de ações ser imediatamente comunicado, para efetuar o registro da demanda incidental contra o suscitado (art. 134, § 1°, do CPC). “Tal providência permitirá, se for o caso, a distribuição por prevenção de eventuais ações conexas movidas em desfavor do sócio ou administrador (ou da pessoa jurídica, se a desconsideração for inversa), a quem se imputou a responsabilidade” (DONIZETTI, p. 334 e 335, 2016).
Deverá também, ser determinada a citação do sócio ou da pessoa jurídica, para que apresentem manifestação no prazo de 15 (quinze) dias, junto com as provas que entenderem necessárias (art. 135 do CPC).
Frise-se que, instaurado o incidente, o processo principal ficará suspenso até o julgamento daquele (art. 134, § 3°, do CPC).
Regularmente citado, o suscitado (o sócio, na desconsideração propriamente dita, ou a pessoa jurídica, na desconsideração inversa) terá o prazo de 15 (quinze) dias para apresentar defesa, sob pena de revelia.
Gonçalves preconiza que:
“Além da manifestação do sócio, o pedido de desconsideração poderá ser impugnado, na desconsideração direta, também pela pessoa jurídica, como reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça. Embora as partes do incidente sejam o suscitante e o sócio (no caso da desconsideração direta), a pessoa jurídica poderá se manifestar-se, postulando o não acolhimento do incidente. Pelas mesmas razões, na desconsideração inversa, embora as partes sejam o suscitante e a pessoa jurídica, o sócio poderá manifestar-se, postulando o indeferimento do pedido. Nesse sentido, o REsp 1208852” (p. 262, 2016).
Surgindo pontos controversos e havendo necessidade de instrução probatória, ela será desenvolvida no próprio procedimento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Concluída a instrução, o juiz (ou o relator, em sede de recurso ou em casos de competência originária) decidirá o incidente.
Vale salientar a importância do incidente para a concretização do contraditório e da ampla defesa no processo:
“(...) este incidente vem assegurar o pleno respeito ao contraditório e ao devido processo legal no que diz respeito à desconsideração da personalidade jurídica. É que sem a realização desse incidente o que se via era a apreensão de bens de sócios (ou da sociedade, no caso de desconsideração inversa) sem que fossem eles chamados a participar, em contraditório, do processo de formação da decisão que define sua responsabilidade patrimonial, o que contraria frontalmente o modelo constitucional de processo brasileiro, já que admite a produção de uma decisão que afeta diretamente os interesses de alguém sem que lhe seja assegurada a possibilidade de participar com influência na formação do aludido pronunciamento judicial (o que só seria admitido, em caráter absolutamente excepcional, nas hipóteses em que se profere decisão concessiva de tutela provisória, e mesmo assim somente nos casos nos quais não se pode aguardar pelo pronunciamento prévio do demandado). Ora, se ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, então é absolutamente essencial que se permita àquele que está na iminência de ser privado de um bem que seja chamado a debater no processo se é ou não legítimo que seu patrimônio seja alcançado por força da desconsideração da personalidade jurídica” (CÂMARA, p.114, 2016).
3.7. Decisão que resolve o incidente
A decisão que acolhe ou denega o pedido é de natureza interlocutória (art. 136, caput, CPC). Se for proferida por juiz de primeiro grau, contra ela caberá agravo de instrumento (art. 1015, IV, do CPC). Mas, se for decretada pelo relator, em sede de recurso, ou em ações de competência originária do tribunal, caberá agravo interno (art. 136, § único, do CPC).
Segundo Wambier e Talamini, “a decisão do incidente fará coisa julgada material, assim que transitar em julgado (i.e., uma vez que não interposto recurso ou exaurido todos os cabíveis). Trata-se de uma decisão interlocutória de mérito, apta a fazer coisa julgada material (arts. 356, § 3°, e 502 do CPC)” (p. 377, 2016). Logo, após o trânsito em julgado, somente poderá ser desconstituída através de ação rescisória (art. 966 do CPC).
Gonçalves ressalva que:
“Dada a vedação do bis in idem, caso o juiz desacolha o pedido, não será possível formulá-lo em outra fase do processo com os mesmos fundamentos e argumentos do pedido anterior, rejeitados pelo juiz. Mas não haverá óbice que novo pedido seja formulado, desde fundado em fatos novos, não apresentados e decididos no incidente anterior” (p. 263, 2016).
3.8. Efeitos do acolhimento do incidente
A decisão que acolhe o pedido de desconsideração da personalidade jurídica produz dois efeitos processuais.
O principal efeito é a extensão da responsabilidade patrimonial. Isto é, a atividade executiva alcançará o patrimônio do(s) sócio(s) ou administrador(es), ou ainda, em se tratando de desconsideração inversa, os bens da pessoa jurídica. Esse efeito está previsto no art. 790, incisos II e VII e art. 795, ambos do novo Código de Processo Civil:
“Art. 790. São sujeitos à execução os bens:
II - do sócio, nos termos da lei;
(...)
VII - do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei”.
O segundo efeito é a ineficácia da alienação ou oneração de bens, havidos em fraude à execução, in verbis: “Art. 137, do CPC. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente”.
Em razão da ineficácia, os bens desviados poderão ser penhorados, ainda que o terceiro adquirente esteja de boa-fé. Entretanto, ele poderá ingressar com ação de regresso para ser ressarcido.
No tocante à redação do art. 137, preleciona Humberto Theodoro Júnior: “Por acolhimento, a lei não quer dizer decisão de procedência do incidente, mas simplesmente o deferimento do processamento do pedido de desconsideração. Ou seja, antes mesmo que se verifique a penhora, os credores serão acautelados com a presunção legal de fraude, caso ocorram alienações ou desvios de bens pelas pessoas corresponsabilizadas. Como a penhora só será viável depois da decisão do incidente, a medida do art. 137 resguarda, desde logo, a garantia extraordinária que se pretende alcançar por meio de desconsideração Da mesma forma que se passa om a fraude cometida dentro da execução ordinária, a presunção legal de fraude do art. 137 pressupõe que o sujeito passivo da desconsideração da personalidade jurídica já tenha sido citado para o incidente quando praticar o ato de disposição (art. 792, § 3°). Justifica-se a fixação desse termo a quo pela circunstância de que o sujeito passivo do processo só se integra a ele por meio de citação. Portanto, só pode fraudar a execução quem dela já faça parte” (p. 405 e 406, 2016).
CONCLUSÃO
O princípio da autonomia patrimonial reduziu os riscos da atividade empresarial e diminuiu a insegurança jurídica no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, passou a ser utilizado por empresários inescrupulosos para o cometimento de fraudes e ilícitos.
Dentro desse contexto, e visando coibir tais condutas, foi criada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e, posteriormente, a da desconsideração inversa.
Os referidos institutos se tornaram uma importante ferramenta de combate à fraude e inobservância da lei. Sua aplicação, na vigência do Código de Processo Civil de 1973, ocorria com base na lei material e, quanto aos aspectos processuais, conforme os entendimentos jurisprudenciais.
Suprindo a lacuna legal, o novo Código de Processo Civil, além de encerrar a polêmica quanto à decretação da desconsideração por meio de incidente, ainda disciplinou todo a parte procedimental do instituto. Garantiu, dessa forma, a segurança jurídica e a efetivação dos princípios do contrário e da ampla defesa.
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Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes de Sergipe - UNIT. Pós-Graduada em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTA, Daisy Cristina Oliveira. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo Código de Processo Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 fev 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49290/o-incidente-de-desconsideracao-da-personalidade-juridica-no-novo-codigo-de-processo-civil. Acesso em: 22 nov 2024.
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