Resumo: O presente artigo visa analisar o instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica e seus reflexos à luz do Código de Defesa. Inicialmente, serão expostos aspectos quanto à origem da teoria da personalidade jurídica e sua importância no ordenamento jurídico brasileiro, desde o surgimento do termo “disregard doctrine” no direito anglo saxão, no sistema da common law e passando pelo direito americano, no sistema da civil law, até o surgimento no ordenamento jurídico brasileiro. Em seguida, abordamos os aspectos acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no código de defesa do consumidor, em especial no artigo 28, instigando a discussão acerca dos dispositivos do artigo 28, caput e § 5º, onde se verifica que o Código do Consumidor apresentou a desconsideração de forma ampla, de tal modo que pode abranger qualquer situação em que a autonomia da pessoa jurídica venha a frustrar ou dificultar o ressarcimento do consumidor prejudicado. Por fim, analisou-se a má administração, como reflexo do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tratada no caput artigo 28, caput, segunda parte, onde o CDC traz a previsão de aplicação da disregard doctrine em casos de falência, insolvência ou ainda encerramento da atividade de empresas, causados por má administração.
Palavras-chave: Desconsideração de Personalidade Jurídica. Má administração. Código de Defesa do Consumidor
ABSTRACT: This article aims to analyze the Institute of Disregard Doctrine and its reflexes in the light of the Defense Code. Initially, it will be exposed aspects as to the origin of the theory of legal personality and its importance in the Brazilian legal system, from the emergence of the term "disregard doctrine" in Anglo Saxon law, common law system and American law, civil system Law, until the emergence in the Brazilian legal system. Next, we discuss the aspects about the institute of disregard doctrine in the consumer protection code, especially in article 28, instigating the discussion about the provisions of article 28, caput and § 5, where it is verified that the Consumer Code Presented the disregard in a broad way, so that it can cover any situation in which the autonomy of the legal person will frustrate or hinder the compensation of the disadvantaged consumer. Lastly, maladministration was analyzed, as a reflection of the request for disregard doctrine, discussed in section 28, caput, second part, where the CDC provides for the application of disregard doctrine in cases of bankruptcy, insolvency or even Closure of business activity, caused by maladministration.
Keys-words: Disregard Doctrine. Maladministration. Code of Consumer Protection.
O presente artigo visa analisar o instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica e seus reflexos à luz do Código de Defesa do Consumidor.
O trabalho se desenvolve em três seções. Inicialmente, serão expostos aspectos quanto à origem da teoria da personalidade jurídica e sua importância no ordenamento jurídico brasileiro, desde o surgimento do termo “disregard doctrine” no direito anglo saxão, no sistema da common law e passando pelo direito americano, no sistema da civil law, até o surgimento no ordenamento jurídico brasileiro,
Em seguida, serão abordados aspectos acerca do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no código de defesa do consumidor, em especial no artigo 28, no sentido que serão discutidos os fundamentos legais para a desconsideração em favor do consumidor, embora, no que se refere a excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência e encerramento ou inatividade provocados por má administração, são temas de direito societário, não tendo consonância com a retrocitada teoria.
Já nos dispositivos do artigo 28, caput e § 5º, verifica-se que o Código do Consumidor apresentou a desconsideração de forma ampla, de tal modo que pode abranger qualquer situação em que a autonomia da pessoa jurídica venha a frustrar ou dificultar o ressarcimento do consumidor prejudicado, já que há que se considerar a necessidade de aplicação da desconsideração ao caso concreto, uma vez que a impossibilidade de ressarcimento objeto social ou não teve como fim ocultar conduta ilícita ou abusiva.
Na última seção tratou-se da má administração como reflexo do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, tratada no caput artigo 28, caput, segunda parte, onde o CDC traz a previsão de aplicação da disregard doctrine em casos de falência, insolvência ou ainda encerramento da atividade de empresas, causados por má administração.
Essa previsão sim constitui verdadeira inovação, uma vez que, de forma inédita, introduz no direito brasileiro a possibilidade de desconsideração de personalidade da pessoa jurídica, sem que haja, necessariamente, fraude à lei, abuso de direito ou prática de atos ilícitos, porém, em tal hipótese caracterizadora de responsabilização de administrador por má gestão, não pressupõe nenhum superamento da forma da pessoa jurídica, pois o objeto é preservar a empresa e punir o mau administrador.
2. A ORIGEM DA TEORIA DA PERSONALIDADE JURÍDICA E SUA IMPORTÂNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Desconsideração da personalidade jurídica significa tornar ineficaz, para o caso concreto, a personificação societária, atribuindo-se ao sócio ou à sociedade condutas que, se não fosse a superação, seriam imputadas à sociedade ou ao sócio, respectivamente, que. se afasta a norma geral “não por inexistir determinação legal, mas porque a subsunção do concreto ao abstrato, previsto em lei, resultaria indesejável ou pernicioso aos olhos da sociedade” (FILHO, 1994, p.17-27).
Nesse ponto, trata-se, da não-aplicação ou afastamento da incidência da regra geral estabelecida no Código Civil de 1916, em seu artigo 20, que rezava que: “As pessoas jurídicas têm existência distinta dos seus membros”.
Portanto, a aplicação de tal técnica resulta da ocorrência de situações concretas em que prestigiar a autonomia e a limitação de responsabilidade implicaria em total desrespeito a interesse legítimo, consagrado pelo ordenamento jurídico (GLOBEKNER, INFORMATIVO JURÍDICO CONSULEX, ANO XIII, N. 29, p. 3-8).[1]
Não aplicar ao caso concreto a regra geral não significa considerar nula a personalidade jurídica, é apenas o afastamento momentâneo da autonomia entre o patrimônio dos sócios e da sociedade, devido à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas.
Nesse sentido, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade, não significa “considerar ou declarar nula a personalidade jurídica, mas de torná-la ineficaz para determinados atos” (REQUIÃO, 1993, p. 283).
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica teve sua origem nos países ligados ao direito anglo-saxão, em que prevalece o sistema da common law[2]. Isso porque nesse sistema jurídico as regras de direito são menos abstratas que as regras de direito da chamada “família romano-germânica” da qual o Brasil é filiado (GUIMARÃES, 1998, p.20-21).
A doutrina dominante considera como marco da aplicação da teoria da desconsideração o famoso caso “Salomon vs. Salomon & Co.”, ocorrido em Londres na Inglaterra nos anos de 1897.
O caso foi levado a julgamento na Justiça inglesa, onde o juiz de primeiro grau proferiu decisão acolhendo o fundamento de que houve fraude contra credores e que Salomon era o proprietário do fundo de comércio e, em consequência, responsabilizando-o pelos prejuízos causados a terceiros (credores/companhia).
No entanto, a referida decisão foi reformada na instância superior, que é conhecida como a Câmara dos Lordes, tendo como argumento o fato de que a sociedade teria sido validamente constituída, sendo, portanto, regular. Essa constituição, para a Corte, não autorizaria a desconstituição da personalidade jurídica.
Mesmo não tendo sido confirmada a decisão de primeiro grau na instância superior, é inegável a importância histórica do caso citado para a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já que a partir desse caso a visão conservadora e formalista dos tribunais ingleses foi dando lugar à ampla aplicação da doutrina (MUSSALEM, 2004, p. 186).
No direito brasileiro, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nasce para desafiar a regra do artigo 20 do Código Civil de 1916: “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”.
Como bem ensina COELHO (1994, p. 34-35), a manipulação da autonomia das pessoas é o instrumento para a realização da fraude contra credores. Mas o mesmo autor adverte, acertadamente, que a desconsideração da personalidade jurídica não deve ser olhada como a destruição do instituto da autonomia entre a sociedade e seus membros, mas, sim, como meio para corrigir o seu mau uso.
Cumpre esclarecer que a aplicação do disregard doctrine, que tem sua origem na common law, sofreu grandes dificuldades de aplicação no Brasil pelo fato do ordenamento jurídico brasileiro ser filiado à civil law, já que uma das características dos sistemas filiados à civil law é buscar uma solução no direito positivado.
O professor REQUIÃO ( 1969 , p. 410) foi o primeiro a apresentar a discussão acerca da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil na sua consagrada obra Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Entende o autor que a disregard doctrine é plenamente aplicável ao direito brasileiro, não podendo o juiz se omitir ante o fato de que a pessoa jurídica é utilizada para fins contrários ao direito. Justifica ainda o autor sua aplicabilidade ao direito pátrio aduzindo que, se a personalidade jurídica é uma criação da lei, uma concessão do Estado, nada mais procedente do que se reconhecer ao Estado, por meio de sua Justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado.
Além disso, o tema já era discutido no Brasil, com o advento da CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas, Lei 5.452, de dezembro de 1943, que assim dispõe:
Art. 2o (...) § 2º- Sempre que uma ou mais empresas, tendo embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.
No mesmo sentido, O Código Tributário Nacional (Lei n. 5.172/66), em seu artigo 135, dispõe que os administradores e os mandatários, entre outros, são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poder ou infração de lei, contrato social ou estatutos.
E ainda, a antiga Lei das Sociedades Anônimas (Decreto-Lei n. 2.627/40) já individualizava a responsabilidade de seus administradores nos casos de dolo, culpa ou violação da lei ou dos estatutos. Na mesma linha da legislação anterior, a atual Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/76) dispõe, em seu artigo 158, que o administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I – dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II – com violação da lei ou do estatuto.
Nessas circunstâncias especiais previstas em lei, em que os sócios agem, manifestamente, com conduta maliciosa e antijurídica, praticando verdadeiro abuso de direito, a doutrina e a jurisprudência têm se manifestado a favor da retirada do véu da pessoa jurídica, desconsiderando a sua personalidade, para alcançar aqueles que, sob o seu manto, praticam atos ilícitos e abusivos (MUSSALEM, 2004, p. 189).
Somente em setembro de 1990, pela primeira vez, o direito positivo brasileiro viu surgir base legal autorizando o Poder Judiciário a pôr em prática a desconsideração da personalidade jurídica na defesa do consumidor que venha a ser lesado em direito seu por procedimento indevido do fornecedor (Lei n. 8.078/ 90, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, artigo 28).
A fraude e o abuso de direito são os pilares da teoria por natureza, devendo os demais serem explicitados em lei, para poderem ser invocados.
O caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor dispõe, in verbis:
“O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.
Além do Código de Defesa do Consumidor, a teoria da desconsideração, posteriormente, foi regulada pela Lei Antitruste (Lei n. 8.884/94, artigo 18); Lei do Meio Ambiente (Lei n. 9.605/98, artigo 4º) e atual Código Civil (Lei n. 10.406/02, artigo 50).
A comissão encarregada de elaborar o Anteprojeto do Código Civil, acatando a sugestão de Rubens Requião de incluir a desconsideração da personalidade jurídica na lei civil, redigiu o artigo 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (atual Código Civil), da seguinte forma:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Conforme se denota, claramente, da redação acima se destina o instrumento, principalmente, à neutralização de ato nocivo ou lesivo à própria sociedade ou a terceiros, mediante práticas abusivas ou com intuito fraudulento que um sócio venha a utilizar, desviando a pessoa jurídica de sua finalidade estatutária ou contratual, para a cobertura daqueles atos condenáveis. Por força judicial, tais atos poderão ser tornados ineficazes, quando identificados a tempo, evitando, desta forma, a fraude o abuso de poder, como medida prevenção e de justiça!
Lembrando que o estudo da teoria da desconsideração da personalidade não tem por finalidade extinguir a pessoa jurídica, trata-se de uma técnica de suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica, de modo a buscar, no patrimônio dos sócios, bens que respondam pela dívida contraída, decorrente da má gestão.
3. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Com o objetivo de proteger o consumidor, considerado a parte mais fraca na relação de consumo, contra os abusos praticados contra ele, o legislador pátrio conferiu-lhe vários direitos, como os previstos no artigo 6º do CDC, que não seriam satisfatoriamente assegurados se não tivesse previsto o instrumento, entre outros, o previsto no artigo 28, o direito do consumidor de requer a desconsideração da pessoa jurídica da empresa no Código de Defesa do Consumidor.
É nesse sentido que o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor invoca os fundamentos legais para a desconsideração em favor do consumidor, no entanto, no que se refere a excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência e encerramento ou inatividade provocados por má administração, são temas de direito societário, não tendo consonância com a retrocitada teoria.
Então, quando o Código de Defesa do Consumidor cogita do superamento da pessoa jurídica, para definir que o ato ilícito de administrador gera a responsabilidade civil, ele faz o uso impróprio da noção básica da disregard doctrine.
O referido código prescreve, ainda, a responsabilidade subsidiária das sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas pelas obrigações decorrentes do Código (§ 2º), a responsabilidade solidária das sociedades consorciadas (§ 3º) e a responsabilidade por culpa das sociedades coligadas (§ 4º).
Esses dispositivos (§§ 2º, 3º e 4º), apesar de estarem inseridos na Seção V do Código, não tratam de desconsiderar a pessoa jurídica para atingir os sócios e administradores que praticam atos ilícitos por meio da pessoa jurídica. Há nesses parágrafos apenas a preocupação com a responsabilidade das sociedades controladas, consorciadas e integrantes de grupo, dando-lhes responsabilidade solidária ou subsidiária e reforçando os limites das coligadas (MUSSALEM, 2004, p. 186).
Da análise dos dispositivos acima citados, não há efetiva desconsideração, mas, sim, consideração de cada uma, aumentando o seu âmbito de responsabilidade. O legislador procurou ampliar a responsabilidade das sociedades integrantes de grupos societários, sociedades controladas, consórcios e sociedades coligadas em suas relações com os consumidores. A responsabilização é direta pela prática de atos que causem prejuízos aos consumidores de serviços e produtos fornecidos por essas sociedades, grupos e consórcios.
Nesse contexto, para se chegar a responsabilização, temos que analisá-la sob três aspectos: subjetivo, objetivo e o inverso da desconsideração da personalidade jurídica da empresa.
Quanto ao aspecto subjetivo, exige-se a prova do dano sofrido por terceiro, a demonstração do abuso de direito caracterizado pelo desvio de finalidade no uso da pessoa jurídica, por meio de um ato intencional voltado à prática de dano a terceiro e violação à lei.
Já quanto ao aspecto objetivo, exige-se prova da intencionalidade, afastando-se, portanto, o subjetivismo. Importante a intenção do agente em fazer mau uso da pessoa jurídica, configurando-se a confusão patrimonial, que será sempre elemento objetivo.
Quanto ao aspecto de desconsideração inversa, se desconsidera a pessoa jurídica da pessoa natural para atingir o patrimônio da pessoa jurídica de quem aquela é sócio. Nessa modalidade, em vez de o sócio esvaziar o patrimônio da pessoa jurídica para fraudar terceiros, ele esvazia o seu próprio patrimônio enquanto pessoa natural e joga todo o seu patrimônio dentro da pessoa jurídica.
Neste mesmo sentido ANDRIGHI (2004, p. 3) entende que “pode ocorrer a desconsideração “inversa” quando o sócio se utiliza da sociedade como escudo de proteção, escondendo nela seus bens pessoais. Exemplo muito frequente que permite a desconsideração “inversa” é o do cônjuge que pretende se separar e se empenha em esvaziar o patrimônio do casal, transferindo os bens para uma sociedade. Quando do desfecho do matrimônio, a meação do cônjuge burlado restará dissipada”.
Portanto, a partir da análise desses três aspectos ou teorias, como queiram denominar alguns doutrinadores, é possível se chegar à responsabilização da considerada desconsideração da personalidade jurídica.
Já nos dispositivos do artigo 28, caput e § 5º, verifica-se que o Código do Consumidor apresentou a desconsideração de forma ampla, de tal modo que pode abranger qualquer situação em que a autonomia da pessoa jurídica venha a frustrar ou dificultar o ressarcimento do consumidor prejudicado.
Na interpretação dos dispositivos elencados no artigo 28, caput, há que se considerar a necessidade de aplicação da desconsideração ao caso concreto, já que a impossibilidade de ressarcimento o objeto social ou não teve como fim ocultar conduta ilícita ou abusiva.
A interpretação que parece a mais apropriada é a de que o disposto no § 5º deve ser invocado conjuntamente com o caput do art. 28, sem prejuízo dos pressupostos teóricos da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, de forma que a pessoa jurídica poderá ser invadida para alcançar a pessoa dos sócios, sempre que houver fraude ou abuso por meio do uso de sua personalidade em detrimento do consumidor e quando houver obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
Examinando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que já decidiu e se verificou a existência de alguns precedentes importantes que cuidaram do tema.
Por exemplo, no famoso caso do naufrágio da embarcação Bateau Mouche, com a relatoria do Ministro Barros Monteiro, o STJ[3] aplicou a desconsideração da personalidade jurídica, entendendo a Quarta Turma que o “Juiz pode julgar ineficaz a personificação societária, sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros”.
No caso em análise, o Juiz estabeleceu a responsabilidade solidária dos sócios por aplicação da disregard doctrine, reportando-se “à cansativa repetição de ‘sociedades pobres com sócios ricos’, deixando remarcado o fato de que, tratando-se de empresas de modesto porte econômico, assumiram elas, com aquela viagem do Bateau Mouche IV, obrigações infinitamente maiores do que as suas forças permitiam”. Houve aplicação pelo acórdão recorrido do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.
4. A MÁ ADMINISTRAÇÃO COMO REFLEXO DO PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
O artigo 28, caput, segunda parte, do CDC, traz a previsão de aplicação da disregard doctrine em casos de falência, insolvência ou ainda encerramento da atividade de empresas, causados por má administração, que dispõe da seguinte forma: “(...) A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Depreende-se que, provando-se que a insolvência se deu pela má gestão dos sócios administradores e havendo prejuízo para os consumidores de serviços e produtos defeituosos prestados e fornecidos pela sociedade insolvente, aqueles poderão ser alcançados e responsabilizados por tais prejuízos.
Importante destacar que a falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, por si só, não têm o condão de permitir a desconsideração da personalidade jurídica, sendo imprescindível que esses eventos se dêem em decorrência da má-administração da pessoa jurídica (MIRAGEM, 2008, p. 335).
Agora, se questiona: o que pode ser considerada má-administração da pessoa jurídica? Essa resposta é bastante controvertida, pois um ato arrojado, que atinge ótimos resultados, é tido como um primor de administração. Entretanto, se este mesmo ato arrojado, em decorrência de situações inusitadas do mercado, demonstrar-se inexitoso, será considerado como administração temerária. Ou seja, um mesmo ato, uma mesma forma de gestão, pode conduzir a bons ou a maus resultados, implicando na dificuldade de precisão do termo “má-administração” e, consequentemente, tornando incerta a aplicação do instituto ora estudado (TOMAZETTE, 2001, p. 76-94).
Da leitura do caput do artigo 28 permite a conclusão de que o legislador agregou diversos tipos de circunstâncias relacionados com o inadimplemento ao credor da pessoa jurídica. Pode-se tentar reuni-los em esferas distintas: de um lado, situações decorrentes do desvirtuamento da pessoa jurídica, representados pelo abuso de direito, excesso de poder e a má administração que acarrete sua falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade; de outro, o descumprimento de deveres objetivos da pessoa jurídica, como é o caso da infração à lei[4] ou violação do contrato social.
Não há nesse dispositivo aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, mas responsabilização direta dos administradores por má gestão, levando a empresa a um estado de insolvência ao ponto de levar até o encerramento de suas atividades, causando enormes prejuízos aos consumidores. O que, apesar de não ter relação com a disregard doctrine, constitui dispositivo inovador na defesa do consumidor lesado.
Neste sentido, corrobora BARATA (2009, p.123): “A última hipótese, do caput, no entanto, qual seja, a desconsideração de personalidade jurídica em virtude da falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoas jurídica provocados por má administração, parece-nos o ponto central quanto à definição da abrangência da autonomia patrimonial da pessoa jurídica nas relações de consumo. Essa previsão sim constitui verdadeira inovação, uma vez que, de forma inédita, introduz no direito brasileiro a possibilidade de desconsideração de personalidade da pessoa jurídica, sem que haja, necessariamente, fraude à lei, abuso de direito ou prática de atos ilícitos.”
Na mesma trilha, DENARI (2007, p.247) leciona: “Sem embargo, adiciona outros pressupostos que primam pelo imediatismo, tais como a falência, insolvência ou encerramento das atividades das pessoas jurídicas, provocados por má administração. O texto introduz uma novidade, pois é a primeira vez que o Direito legislado escolhe a teoria da desconsideração sem levar em conta a configuração da fraude ou do abuso de direito.”
Logo, podendo ocorrer a direta responsabilização dos sócios ou administradores, não representa a personalidade jurídica um obstáculo e, portanto, não se faz necessária a sua desconsideração.
A esse respeito, destaca COELHO (2000, p.52): “Com efeito, a teoria da desconsideração tem pertinência quando a responsabilidade não pode ser, em princípio, diretamente imputada ao sócio, controlador ou representante legal da pessoa jurídica. Quando a imputação pode ser direta, quando a existência da pessoa jurídica não é obstáculo à responsabilização de quem quer que seja, não há por que se cogitar do superamento de sua autonomia. E quando alguém, na qualidade de sócio, controlador ou representante legal de pessoa jurídica, provoca danos a terceiros em razão de comportamento ilícito, ele é responsável pela indenização correspondente. Nesse caso, no entanto, estará respondendo por obrigação pessoal dele, decorrente do ilícito que praticou.”
Afirma NUNES (2000, p. 28) que o legislador vai muito além ao admitir a desconsideração da personalidade jurídica por mero problema técnico de má administração, que leva a pessoa jurídica à falência ou ao estado de insolvência, à inatividade, ao encerramento das atividades da pessoa jurídica, que possa impedir que o consumidor receba o que é seu de direito.
Dessa forma, ao prever essa segunda parte do caput, do artigo 28 do CDC, percebe-se que o intuito da lei foi permitir a desconsideração da personalidade mesmo nos casos em que o consumidor esteja sendo violado por simples responsabilidade objetiva decorrente dos atos praticados pelo fornecedor, o que não guarda correspondência com a disregard doctrine. Tal hipótese, portanto, caracterizadora de responsabilização de administrador por má gestão, não pressupõe nenhum superamento da forma da pessoa jurídica, pois o objeto é preservar a empresa e punir o mau administrador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Desconsideração da Personalidade Jurídica, a teoria teve sua origem, conforme analisado, no direito inglês, e seu desenvolvimento, no direito norte-americano (sistemas filiados à common law), que, percebendo as inovações trazidas pelo capitalismo e notando o uso, cada vez mais frequente, da personalidade jurídica de forma indevida, passou a desconsiderá-la para atingir o patrimônio dos sócios.
Embora já venha sendo bastante discutida pelos doutrinadores e aplicada pelos tribunais, ainda está longe de possuir uma interpretação pacífica e sistematizada. Tal realidade deve servir de estímulo ao aprofundamento dos estudos sobre o tema, contribuindo, assim, para evitar o uso indevido da pessoa jurídica, materializado pela fraude ou pelo abuso de direito, para lesar credores.
Mesmo com a aplicação da Desconsideração da Pessoa Jurídica, não há o desaparecimento da sociedade. A desconsideração deve ser aplicada no caso de ineficácia temporária do princípio da limitação da responsabilidade dos sócios em relação ao total do capital subscrito, a fim de se responsabilizar com o seu patrimônio pessoal pelos danos provocados a terceiro ou por fraude à lei.
Ela constitui, na verdade, uma forma de reação que o ordenamento jurídico tem em relação ao mau uso da pessoa jurídica e jamais visa extingui-la e sim punir o mau gestor.
O Código de Defesa do Consumidor inovou ao contemplar pela primeira vez na legislação brasileira a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Antes, não havia, no sistema normativo, nenhum dispositivo que desafiasse a regra do artigo 20 do Código Civil de 1916, que prevê que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros. Ness ponto, apresentou o CDC a desconsideração de forma ampla, porém, na interpretação dos dispositivos elencadoss no artigo 28, há que se considerar a necessidade de aplicação da desconsideração ao caso concreto, já que a impossibilidade de ressarcimento, por si só, não pode ser motivo para a desconsideração se o ato da sociedade não extrapolou o objeto social ou não teve como fim ocultar conduta ilícita ou abusiva.
Entre as hipóteses previstas no artigo 28, somente a que prevê a desconsideração em caso de abuso de direito é que realmente guarda afinidade com a disregard doctrine. Apesar das divergências no tocante ao § 5º do artigo 28, entende-se que ele é conciliável com a teoria da desconsideração, se for invocado conjuntamente com o caput, nos casos em que houver fraude ou abuso por meio do uso da personalidade em detrimento do consumidor.
Ressalvadas as divergências em torno dos dispositivos que tratam da teoria da desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor, também não há o que olvidar ainda de que nesse dispositivo a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica poderá gerar a responsabilização direta dos administradores por má gestão, levando a empresa a um estado de insolvência ao ponto de levar até o encerramento de suas atividades, causando enormes prejuízos aos consumidores. O que, apesar de não ter relação com a disregard doctrine, constitui dispositivo inovador na defesa do consumidor lesado.
Por fim, o novo Código Civil de 2002, adequou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica às exigências da economia moderna, pois a teoria incorpora o princípio da preservação da empresa, de extrema importância diante das atuais conjunturas econômicas e sociais, buscando, no caso da Lei Consumerista, punir o mau gestor pela má administração.
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[1] Seria injusta, em tais casos, a solução decorrente da aplicação do preceito legal expresso. Há situações em que a pessoa jurídica deixou de ser sujeito e passou a ser mero objeto, manobrado à consecução de fins fraudulentos ou ilegítimos. Dessa forma quando o interesse ameaçado é valorado pelo ordenamento jurídico como mais desejável ou menos sacrificável do que o interesse colimado através da personificação societária, abre-se a oportunidade para a desconsideração, sob pena de alteração da escala de valores.
[2] A justificativa está no fato de que as regras de direito da common law propiciarem aos Tribunais, na sua tarefa de “restabelecer a ordem perturbada”, afastarem preceitos legais, com o objetivo de conseguirem resultados mais adequados ao direito. O mesmo não ocorre com as regras de direito da família romano-germânica, que se assenta sobre a formulação de normas de caráter generalizante, cujo objetivo é orientar condutas futuras.
[3] responsabilidade civil. naufrágio da embarcação "bateau mouche iv".ilegitimidade de parte passiva "ad causam". sócios. teoria da desconsideração da personalidade jurídica'. danos materiais. pensionamento decorrente do falecimento de menor que não trabalhava. resp 158051 / rj recurso especial 1997/0087886-4 Ministro BARROS MONTEIRO - QUARTA TURMA – Julgamento: 22/09/1998.
[4] Oportuna aplicação do art. 28, caput, nessa hipótese, fez o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, na AG 2007.04.00.009201-6, Relatora para o acórdão a Desembargadora Marga inge Barth Tessler, j. 03/10/2007: “(...) 1. Na exploração comercial do jogo, há evidente relação de consumo, na qual os cidadãos são atraídos às casas de bingo sem que o poder público possa lhes garantir um mínimo de regularidade nos sorteios, nas premiações e na destinação legal dos valores arrecadados. Assim, aplicável ao caso, o Código de Defesa do Consumidor que, em seu artigo 28 (Lei 8.078/1990), dá amparo ao pedido recursal da União. 2. O enfrentamento ao exercício ilegal da atividade de jogos de bingo tem sido uma verdadeira cruzada por parte da União, do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e de outras tantas entidades. As ações são inúmeras e os resultados, em face da insistência de determinados empresários do setor em persistir com a atividade, nem sempre são tão eficazes. 3. Não é raro que os empresários do ramo utilizem como artifício para a manutenção da atividade ilícita a apresentação de contrato social diverso, com o intuito de burlar decisões judiciais, como reiteradamente noticiado pela imprensa. Estes fatos dão suporte ao pedido da agravante e, no meu entender, somente com medidas direcionadas aos sócios destas respectivas pessoas jurídicas é que se poderá tornar efetiva a prestação jurisdicional perseguida pelas mais diversas entidades públicas preocupadas em combater dita atividade ilícita. (...)”.A decisão seguiu o precedente aberto no AG nº 2005.04.01.024436-9/RS, TRF-4ª Região, Relator o Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, julgado em 12/09/2005. 62 Ver, por exemplo, Alberton , Genacéia da Silva. A Desconsideração da Pessoa Jurídica no Código do Consumidor – Aspectos processuais in Revista Ajuris, vol. 54, 1992, p. 147, 168
Mestre e doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Jesus Cláudio Pereira de. A desconsideração da personalidade jurídica à luz do Código de Defesa do Consumidor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 abr 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/49923/a-desconsideracao-da-personalidade-juridica-a-luz-do-codigo-de-defesa-do-consumidor. Acesso em: 22 nov 2024.
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