RESUMO: O presente artigo objetiva analisar os fundamentos jurídicos do uso de algemas, bem como todas as suas problemáticas atuais, contextualizando com os direitos fundamentais previstos constitucionalmente, quais sejam, o direito à vida, à imagem, à intimidade, presunção de inocência, em especial, o da dignidade da pessoa humana. O tema suscita inúmeras discussões, tendo em vista a súmula vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal. Os que defendem a legitimidade da súmula argumentam que ela veio resguardar os direitos do preso, dando-lhes concretude e protegendo sua imagem e dignidade humana. Os que discordam da súmula aduzem que houve uma retirada da discricionariedade dos agentes policiais no ato da prisão, uma vez que só poderão utilizar algemas se justificarem por escrito e em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte de presos ou de terceiros. Vale destacar que a metodologia adotada será o estudo jurisprudencial e doutrinário.
PALAVRAS-CHAVE: Algemas. Súmula Vinculante nº 11. Exceção. Dignidade da Pessoa Humana. Princípio da Preponderância.
SUMÁRIO: 1.Introdução - 2.Surgimento das algemas: 2.1 Algemas na história 2.2 Evolução e histórico legislativo – 3.A problemática em torno do uso de algemas: 3.1 A necessidade das algemas na atividade policial 3.2 O uso das algemas em face dos direitos fundamentais 3.3 Abuso do uso de algemas – 4.Aspectos jurídicos do uso das algemas 4.1 Legitimidade do uso das algemas 4.2 Limitação ao uso das algemas 4.3 Análise jurídica da Súmula Vinculante sobre algemas – 5. Conclusão – 6. Referências.
1.INTRODUÇÃO
Nos dias atuais, costumeiramente, a mídia transmite imagens e notícias de pessoas presas e algemadas, principalmente, quando se trata de alguém com status social mais elevado ou que seja famoso. Diante desses fatos, em contrapartida ao exibicionismo midiático surge a necessidade de um controle mais efetivo de assegurar ao preso o seu direito à imagem, bem como o respeito aos seus direitos fundamentais.
O uso indiscriminado e, na maioria das vezes, vexatório das algemas constitui um excesso que foge dos ditames da lei brasileira e serve para espetacularizar a operação policial, um verdadeiro marketing, onde os presos são constrangidos e humilhados perante a sociedade e exibidos com um troféu, contrariando assim a lei e a moral.
A conduta de se privar alguém através da restrição dos movimentos das suas mãos e pés já vem desde a antiguidade. A própria história, há quatro mil anos, nos relevos mesopotâmicos, relata prisioneiros com mãos atadas. Para a realização dessa prática era mais comum o uso de cordas ou couros, tendo em vista que os metais eram caros e escassos, sendo seu uso priorizado para a confecção de ferramentas e armas.
O presente artigo analisará os fundamentos jurídicos do uso de algemas, bem como todas as suas problemáticas atuais, contextualizando com o direito fundamental da dignidade da pessoa humana e do direito à imagem e a sua consolidação trazida com a inovação da súmula vinculante nº. 11 do STF.
Para fins didáticos, a explanação será dividida em três partes. Na primeira, apresenta-se o surgimento das algemas e sua evolução histórica e legislativa. Na segunda parte, trata-se da problemática em torno do uso das algemas, mostrando a necessidade das mesmas na atividade rotineira dos policiais, os direitos fundamentais que norteiam tal questão e o seu uso arbitrário, que, consequentemente, incorrem no crime de abuso de autoridade. Por fim, na terceira parte mostra-se os aspectos jurídicos do uso das algemas e a súmula vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal
2. SURGIMENTO DAS ALGEMAS
A conduta de se privar alguém através da restrição dos movimentos das mãos e dos pés já vem desde a Antiguidade. Embora o termo “algema” tenha sido comumente empregado apenas no século XVI, antes já existiam outros instrumentos com a mesma função, como o tolhimento da liberdade de locomoção e a submissão física do preso.
A etimologia da palavra algema deriva do idioma arábico, “aljamaa”, que significa pulseira. O Dicionário Aurélio a define da seguinte forma: “Algema: cada uma de um par de argolas metálicas, com fechaduras, e ligadas entre si. us. para prender alguém pelo pulso (mais us. no plural)”.
Assim, esse instrumento foi evoluindo em suas diversas formas e utilizado por várias sociedades, até chegar aos moldes atuais modernos e sofisticados, tendo por função precípua auxiliar os policiais no exercício de sua atividade profissional como instrumento coercitivo, objetivando dessa forma restringir a liberdade do preso.
2.1 Algemas na história
Antigamente, as algemas eram utilizadas como forma de martírio naqueles que eram capturados. Esses prisioneiros eram submetidos a castigos físicos, entre eles sessões de tortura, que, nos dias atuais, são equiparados aos crimes hediondos, bem como para preparar as vítimas para sacrifícios de punições.
Relata-se que, há quatro mil anos, nos relevos da Mesopotâmia, essa prática já era bastante comum, porém era mais costumeira a utilização de cordas e couros, tendo em vista que os metais eram caros e escassos, sendo priorizados para a confecção de armas ou ferramentas. Apesar do termo algemas só ter sido consolidado a partir do século XVI, grilhões, também eram frequentemente utilizados como meios de castigos físicos ao preso.
Ainda nesse sentido a Wikipédia nos ensina:
Os grilhões eram utilizados em tempos remotos com o objetivo de impedir os presos de se locomoverem livremente, nas ocasiões em que eram transportados para fora das prisões ou penitenciárias. Também eram utilizados para manter os escravos presos nos bancos das galés enquanto remavam, fato este que simbolizou a opressão, expressamente mencionada no Hino Nacional da França, no Hino da Independência do Brasil e no Manifesto Comunista.
Com a evolução, os instrumentos citados deixaram de ter significados atribuídos anteriormente e, nos dias atuais, o termo mais utilizado é algemas, no plural, pois visa conter as duas mãos dos presos, onde passaram a ser utilizadas por todas as outras sociedades.
Nesse sentido, os instrumentos contendores das mãos foram utilizados desde os primórdios por diversas sociedades e se aperfeiçoaram no decorrer dos tempos, evoluíram para modelos mais modernos sedimentando-se nas atuais algemas utilizadas nas operações policiais.
2.2 Evolução e histórico legislativo
As Ordenações Filipinas tiveram grande importância para o Direito Penal Brasileiro. O Livro V trazia as disposições relacionadas aos crimes e às formas de punição, que tiveram sua vigência durante quase todo o período colonial até o advento, em 1830, do Código Criminal do Império. Vale destacar que as penas variavam entre mutilação das mãos, dos pés, da língua, queimaduras com tenazes, morte natural de forma cruel e morte natural pelo fogo, entre outras.
Conforme se observa, nesse período histórico, as prisões e as penas eram grandes espetáculos de demonstração de poder sobre o corpo dos presos. As punições estavam relacionadas ao corpo físico do criminoso, bem como ao uso de grilhões e correntes.
Com a severidade do Código das Ordenações Filipinas e o clamor público de uma forma geral, o Príncipe Regente Dom Pedro editou o Decreto Imperial de 23 de maio de 1821, que aboliu o uso de correntes e grilhões entre outros instrumentos de ferro até então usados para causar grandes sofrimentos aos prisioneiros.
Com a outorga da constituição de 1824 e o advento da Independência do Brasil surgiu a idéia de se criar um Código Penal que atendesse às expectativas e necessidades desse período histórico. O Código Criminal do Império incorporou muito da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, como exemplo as liberdades individuais e os direitos civis, mostrando o legislador uma certa preocupação com a dignidade humana do preso e do abandono do antigo pensamento de castigar e punir fisicamente para um pensamento mais humanista, qual seja a reforma moral do condenado.
O Código de Processo Criminal do Império, em seu artigo 180, previa o seguinte: “ O executor da ordem de prisão a empregar o grau de força necessária para efetuar a prisão, justificando mesmo o uso de armas, para defesa própria, considerando-se justificável o ferimento ou a morte do réu”. Portanto, o Código de Processo Penal Imperial autorizava o uso de força e por via de conseqüência o uso de algemas. O Poder Judiciário não podia permanecer inerte frente às situações do cotidiano relacionadas ao mau uso desses tipos de emprego de força. Assim, com essa necessidade, esse Código perdurou até a discussão para a elaboração de um novo Código de Processo Penal.
A legislação brasileira, durante várias décadas, admitiu o uso de algemas, apesar de não haver até o presente momento uma lei que regulamente de forma expressa o seu uso. Destarte, objetivando disciplinar a matéria em comento, adequando-a aos princípios constitucionais, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante nº 11, que será adiante.
3. A PROBLEMÁTICA EM TORNO DO USO DE ALGEMAS
A problemática em torno do uso de algemas nas operações policiais é bastante complexa e deve ser analisada pelo agente sob duas óticas, quais sejam, a manutenção da sua integridade física na lide diária com os transgressores da lei, a fim de minimizar os riscos que a profissão cotidiana lhes impõe, bem como a garantia da integridade humana ao preso e a terceiros, entre outros direitos constitucionalmente previstos.
3.1 A necessidade das algemas na atividade policial
A atividade policial preventiva e repressiva contra o crime é exercida de modo sistemático pelos órgãos policiais dos estados da federação e da União, visado manter e proteger o Estado Democrático de Direito, em observância ao preceito fundamental previsto na Constituição Federal, no capítulo referente aos órgãos da segurança pública, mais especificamente no artigo 144, §5º, conforme se vê:
Art. 144 A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
[...]
§5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. (grifo nosso)
Nesse sentido, os policiais têm um papel de extrema importância na nossa sociedade, qual seja a preservação e a manutenção do citado Estado Democrático de Direito, tendo em vista que os cidadãos esperam do ente estatal uma convivência em sociedade harmônica e pacífica, protegendo, assim, seus direitos e garantias fundamentais previstos na Carta Magna.
Para atingir essa almejada finalidade, ou seja, para que os agentes policiais cumpram seus deveres legais, poderão usar armamentos e equipamentos, como as algemas, objetivando neutralizar a ação por parte do preso infrator. Assim, cabe ao policial, no cumprimento do seu dever funcional o uso da força, porém agindo conforme os ditames legais.
O fundamento jurídico que norteia o uso de algemas na atividade policial, conferido pelo próprio Estado, é o chamado poder de polícia. Esse poder é fundamentado sempre que o interesse público assim o exigir, sem, contudo, violar os direitos fundamentais dos indivíduos.
Assim, a segurança pública brasileira deve ser exercida por policiais bem preparados e competentes, pois diante do caso concreto saberão tomar as medidas necessárias para resguardar o direito do indivíduo, enquanto os agentes que praticam abusos e desrespeitam a lei devem ser afastados das operações policiais, pois representam um desrespeito ao Estado de Direito.
Vale ressaltar que, nos casos em que se ofereçam riscos à integridade física alheia e do próprio policial, mesmo diante dos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, o cerceamento à liberdade do cidadão é devidamente respaldado legalmente. Assim, para que o poder de polícia atinja sua devida finalidade no caso concreto e as corporações policiais não incorram em abuso de poder, deve-se analisar a situação sob a ótica do princípio da proporcionalidade.
Portanto, o policial, no atributo das suas funções, deverá agir com perspicácia e profissionalismo diante de um caso concreto que envolva fugas ou reações violentas durante a condução de um preso, sendo indispensável, nesses casos, o uso de algemas como forma de resguardar a sua integridade física e a dos demais policiais, bem como a manutenção da segurança pública e a consequente aplicação da lei penal.
3.2 O uso das algemas em face dos direitos fundamentais
A problemática em torno do uso de algemas reflete-se em face dos desrespeitos aos direitos fundamentais da pessoa humana, considerados basilares, no nosso Estado Democrático de Direito, no sentido de que são direitos inerentes à própria personalidade da pessoa, trazendo reflexos no seu íntimo e psicológico, bem como lesões aos seus bens patrimoniais.
A Constituição Federal assim prevê: “Artigo 5º, X- são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Dessa forma, os direitos à intimidade e à imagem norteiam a proteção constitucional ao direito à vida privada, no sentido que a nossa Carta Magna salvaguarda a defesa e a concretude desses direitos em face dos agentes policias, bem como dos meios de comunicação em massa.
Costumeiramente a mídia transmite imagens e notícias de pessoas presas e algemadas, principalmente quando se trata de alguém com status social mais elevado ou famoso. Com o avanço tecnológico, a imagem tornou-se o elemento chave do papel da mídia e, diante desse fato, em contrapartida ao exibicionismo midiático, surge a necessidade de um controle mais efetivo de assegurar ao preso o seu direito à imagem, bem como o respeito aos seus direitos fundamentais.
Por outro lado, a Constituição Federal também normatizou o direito à informação: “Artigo 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”
Assim, não resta dúvida de que a liberdade e o direito à informação são indispensáveis, porém encontram limites nos direitos à personalidade. A sociedade tem direito de ser informada de todos os fatos que acontecem, no entanto uma violação ao direito à imagem, nos dias atuais, pode tomar proporções avassaladoras, tendo em vista a agilidade com que as mensagens são transmitidas para o mundo inteiro, o que pode resultar em danos irreparáveis para a pessoa ofendida.
Tourinho Filho (2009, p.441) critica: “E não se sabe como, mesmo que as prisões se efetivem ao amanhecer, faz-se notar a presença de fotógrafos e de repórteres registrando o ato, exibindo ao “povão” cenas que causam certa satisfação a espíritos malformados.”
Não se pode deixar de citar alguns casos de grande repercussão em relação ao algemamento de pessoas conhecidas na mídia, quais sejam, os senadores Luiz Esteves e Jader Barbalho, os juízes de direito Nicolau e Rocha Matos, a empresária da grife Daslu, o banqueiro Daniel Dantas, o ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta e, dentre os mais recentes, o ex-goleiro de Flamengo, Bruno.
É certo que todas essas pessoas citadas estavam sendo investigadas por crimes que cometeram, cada um na seara do seu crime, e que por tal motivo, a sociedade tem o direito de ser informada, porém não se justifica o sensacionalismo com a vida íntima dessas pessoas, bem como a exposição vexatória de suas imagens.
Não é o caso de deixar de algemar quem se encontra na condição de preso, mas de respeitar os direitos previstos constitucionalmente inerentes àquela pessoa. É sabido que as algemas têm o condão de exteriorizar fisicamente o indivíduo, degradando, dessa forma, a sua imagem e expondo a perda do seu status de liberdade. Assim, o direito à informação é permitido, porém desde que não viole os direitos da personalidade.
A Lei de Execução Penal obriga todas as autoridades a respeitarem a integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios e fixa, dentre outros direitos do preso, a proteção contra qualquer meio de sensacionalismo. Portanto, as medidas para tentar coibir essa exposição degradante da imagem do preso já começaram a ser adotadas.
Com isso, entende-se que o indivíduo não deve respeitar apenas os direitos inerentes a sua própria dignidade, mas, também deve respeitar a de outrem. Acreditamos que a mudança e o devido respeito ao direito à imagem dos presos dependem de uma postura dos órgãos do Poder Público e de uma maior conscientização por parte da imprensa em não violar os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
Ainda vale ressaltar que, nos últimos acontecimentos envolvendo a corrupção no Brasil, a imprensa noticiou os fatos e exibiu acusados sendo presos em suas casas, no trabalho, enfim, onde se encontrassem no momento do cumprimento dos mandados. Tais procedimentos suscitam muitas discussões sobre a presunção de inocência, o constrangimento ilegal dos acusados e os métodos utilizados nessas operações policiais.
Nesse contexto, quando os direitos dos indivíduos são desrespeitados pela mídia, o princípio da presunção de inocência, também, resta violado, implicando efeitos negativos tanto para o acusado quanto para sua família. O indivíduo tem direito de ser tratado com dignidade durante toda a instrução do processo, pois antes e durante essa fase, qualquer desrespeito consiste na violação da própria presunção de inocência e de outros direitos constitucionais.
A idéia de presunção de inocência serve para impedir que o réu seja tratado como se já tivesse sido condenado, dessa maneira sofrendo restrições de direito que não sejam necessárias à apuração dos fatos e ao cumprimento da lei penal. Gomes (2008, p.30) nos ensina: “não se pode considerar nenhum acusado como uma não pessoa (como um não humano). Nesse equívoco incorre o Direito penal do inimigo que, partindo da ideologia do inimigo, ofende princípios básicos como o da presunção de inocência, dignidade humana, etc.”
Vale ressaltar, ainda, que os direitos e garantias fundamentais petrificados na nossa Carta Magna não são absolutos, uma vez que encontram limites nos demais direitos constitucionalmente previstos. Assim, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deverá utilizar-se do princípio da harmonização ou preponderância ou da concordância prática.
3.3 Abuso do uso de algemas
Toda operação policial deve se restringir aos ditames da lei de forma a evitar lesões aos direitos e garantias dos cidadãos presos. O uso indiscriminado e, na maioria das vezes, vexatório, de algemas constitui um excesso punível infundado que foge dos limites da lei brasileira e serve apenas para espetacularizar a diligência policial.
Nesse sentido, o fundamento jurídico que norteia o uso de algemas é o direito conferido pelo próprio Estado, qual seja, o poder de polícia já, anteriormente, mencionado. Tal poder coloca em confronto, de um lado, o cidadão, pleno de direitos, e, de outro, a Administração tendo por dever condicionar o exercício dos direitos relativos ao bem-estar coletivo. Meirelles (2000, p. 124) nos ensina sobre o objeto do poder de polícia administrativa:
Todo bem, direito ou atividade individual que possa afetar a coletividade ou pôr em risco a segurança nacional, exigindo, por isso mesmo, regulamentação, controle e contenção pelo Poder Público. Com esse propósito, a administração pode condicionar o exercício de direitos individuais, pode delimitar a execução de atividades, como pode condicionar o uso de bens que afetem a coletividade em geral ou contrariem a ordem jurídica estabelecida ou oponham aos objetivos permanentes da Nação.
Assim, não há dúvidas de que o agente quando procede ao ato de algemar está exercendo o poder de polícia a ele conferido. Vale salientar que tal prerrogativa encontra limites legais quanto aos fins, a competência e procedimento e ao objeto. A finalidade é apenas atender ao interesse público e quanto à competência deve-se observar a norma legal pertinente e, por fim, quanto ao objeto, segundo o princípio da proporcionalidade dos meios aos fins, o poder de polícia não deve ir além do necessário para satisfazer o interesse público que tem a função de proteger.
Ante o exposto há diversas controvérsias acerca do uso de algemas. Permanece a divergência sobre o seu uso sem justa necessidade pela autoridade, no exercício do poder de polícia, podendo cominar no crime de abuso de autoridade. A Lei nº 4619/1965 define autoridade: “Considera-se autoridade todo aquele que exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.”
Daí surgem as inúmeras críticas relacionadas com o uso de algemas, pois é difícil estabelecer os limites e parâmetros aos agentes no ato de algemar. Dessa forma, havendo qualquer lesão ocasionada pelo uso indevido de algemas o agente policial poderá responder pelo crime de abuso de autoridade em concurso material com o delito que tenha provocado à integridade física de um terceiro.
Muitas vezes, o uso indevido e nocivo das algemas ocasiona enormes danos a saúde do preso, provocando estrangulamento dos pulsos e debilitando-o fisicamente. Outras vezes, o objetivo do uso das algemas é constranger o detido e colocá-lo em situação vexatória, humilhando-o perante a mídia e a sociedade.
Cumpre esclarecer que o ato de algemar não causa constrangimento ilegal quando respeita as regras de aplicação. O que não pode acontecer é a humilhação das pessoas no momento do uso das algemas, o que já advertia o anteprojeto do Código de Processo Penal.
Os agentes policiais devem tratar o cidadão com respeito, observando os direitos que lhe são outorgados. Ao se afastarem de suas atribuições os policiais poderão praticar o abuso, que não contribui para o combate a violência e a diminuição da criminalidade. A sociedade necessita de uma força policial que seja atuante e respeite os direitos e as garantias assegurados ao cidadão.
Como exposto, o uso das algemas pelo agente policial está autorizado sempre que o interesse público sobrevier à necessidade do uso, de tal modo que se preserve o limite no respeito à dignidade da pessoa humana, com relação a quem deva receber algemas. O próprio Estado que assegura o princípio da dignidade humana não pode violar a proteção dos indivíduos com o uso indiscriminado das algemas.
Portanto, como a nossa Carta Magna preceitua o respeito à integridade física e moral dos presos, bem como proíbe a submissão ao tratamento desumano e degradante, o uso de algemas só poderá se justificar quando estiver presente o seguinte trinômio: necessidade, eficácia e proporcionalidade. Desse modo, qualquer hipótese que se afaste dos ditames da lei sujeitará o infrator às penas do crime de abuso de autoridade.
4. ASPECTOS JURÍDICOS DO USO DAS ALGEMAS
O uso das algemas já foi discutido e polemizado há algum tempo, mas retorna em evidência no cenário nacional, principalmente após as ações da Polícia Federal e as consequentes prisões de pessoas das classes mais ricas do país, noticiadas pela mídia de maneira absolutamente sensacionalista, voltando a ensejar acaloradas discussões e decisões judiciais.
O policial que não adota procedimentos de segurança relativos ao uso das algemas põe em risco não apenas a sua integridade física, mas, também, a de transeuntes, consumidores e outros terceiros não envolvidos, o que pode acarretar, inclusive, obrigação de o Estado indenizar por falta de cautela policial com suspeito de envolvimento em ato criminoso que destrói o patrimônio alheio para fugir da abordagem policial.
Por outro lado o abusivo e desnecessário uso desse instrumento configura-se a violação ao princípio da dignidade. A humilhação sofrida por quem é algemado dessa maneira é um rebaixamento moral inexplicável. O indivíduo se sente inferiorizado e menosprezado perante a opinião pública, já que o ato vexatório de ser algemado indevidamente provoca o sentimento de impotência. Sendo assim, sempre que estiver presente o excesso, isto é, a desnecessária colocação de algemas, defende-se que há abuso de autoridade.
4.1 Legitimidade do uso de algemas
A utilização de algemas representa um importante instrumento na atuação da prática policial, uma vez que possui tríplice função, quais sejam: proteger a autoridade contra a reação do preso, garantir a ordem pública ao obstacularizar a fuga do preso e tutelar a integridade física do próprio preso e de terceiros.
Por outro lado, muito embora garantam a segurança pública e individual, as algemas devem se utilizadas com reservas e limites, uma vez que, desviada a sua finalidade, pode constituir uma medida ilegal, com caráter punitivo e nefasto meio de execração pública, ensejando grave atentado ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, essa questão deve ser analisada por duas óticas, o comando constitucional que determina ser a segurança pública dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio através dos órgãos policiais (CF, art. 144), e sob outra ótica, a do Texto Constitucional, cujos princípios são de enorme magnitude para a estrutura democrática, tais como o da dignidade humana e da presunção de inocência, os quais não podem ser sobrepujados quando o Estado exerce a atividade policial.
Por outro lado o problema surge em quando saber se o uso de algemas é legítimo. Como já mencionado anteriormente, o Código de Processo Penal, em seu artigo 284, permite o uso da força, porém em casos excepcionais, quais sejam, no caso de resistência ou tentativa de fuga do preso. Por sua vez, o §3º do artigo 474, alterado pela Lei nº 11698/2008, proíbe o uso de algemas no acusado durante o período que permanecer no Tribunal do Juri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes, entre outras previsões legais.
Dessa forma, aufere-se desses dispositivos legais que há um elemento comum: a utilização desse instrumento como medida extrema, excepcional, somente podendo se dar o uso como forma de impedir ou prevenir a fuga, desde que haja fundada suspeita ou receio e evitar agressão do preso contra os próprios policiais, terceiros ou contra si mesmo.
A questão é se é legítimo o uso de algemas em casos em que o preso não oferecer resistência e a probabilidade de fuga for remota. Não restam dúvidas de que o uso de algemas, quando ausentes as justificativas que lhe fundamentem, risco de fuga, resistência à prisão e perigo para a integridade física dos envolvidos, são ilegítimas e desrespeitam a dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso III, assegura que ninguém será submetido a tratamento degradante e também consagra como princípio fundamental o respeito à dignidade humana (CF, art. 1º, III).
Costumeiramente, vemos as algemas sendo usadas de forma arbitrária e abusiva, com a forçosa intenção de constranger publicamente o preso, ferindo seus direitos constitucionalmente protegidos, quais sejam, o direito à imagem, à intimidade, vida privada, presunção de inocência e, principalmente, a dignidade da pessoa humana, dentre outros.
Por conta desses arbitrarismos e exageros, aquilo que sempre representou um legítimo instrumento para a preservação da ordem e segurança pública, tornou-se objeto de profundo questionamento pela sociedade.
Por outro turno ao se defender a ilegitimidade do uso de algemas em todos os casos, esqueceu-se dos policiais, dos magistrados, dos representantes do Ministério Público, dos advogados que, na sua vida prática, se deparam com os presos, os quais, sem esses instrumentos, representam grave perigo para a vida e a integridade física de tais indivíduos e para a população em geral.
Assim, caberá à própria autoridade avaliar as condições em cada caso concreto que justifiquem ou não o uso das algemas. Nessa análise, o princípio da preponderância ou da razoabilidade devem guiar os agentes policiais e demais autoridades para que se evite a utilização arbitrária e abusiva desse instrumento tão útil e necessário.
4.2 Limitação ao uso das algemas
É sabido que os direitos fundamentais não são absolutos e que a coexistência concomitante de um direito com outros direitos levam à admissibilidade de limitações. Nesse sentido, o princípio da preponderância é o instrumento colocado à disposição do intérprete para, no caso concreto, dirimir os antagonismos existentes entre os princípios constitucionais.
A medida baseada na proporcionalidade e razoabilidade ou proibição de excessos é aquela adequada ao fim que se propõe, portanto necessidade, imprescindibilidade e justificação teleológica são os três requisitos que devem estar presentes, ao caso concreto, quando se fizer presente o uso de algemas. Nesse sentido Gilmar Mendes (2008, p.120-121) acrescenta:
Utilizado de ordinário, para aferir a legitimidade das restrições de direitos – muito embora possa aplicar-se, também, para dizer do equilíbrio na concessão de poderes, privilégios ou benefícios – o princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, eqüidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o princípio da razoabilidade está ligado à própria idéia de Estado de Direito em razão da sua intrínseca relação com os direitos fundamentais, que lhe dão suporte e, ao mesmo tempo, dele dependem para se realizar. Essa interdependência se manifesta especialmente na ocasião de conflito onde se busca uma solução justa e equilibrada.
Assim, a preocupação precípua da limitação do uso de algemas é que o seu uso abusivo constitui crime e viola os direitos fundamentais do preso, em especial o da dignidade da pessoa humana que é princípio cardeal do nosso Estado Constitucional e Democrático de Direito.
O núcleo essencial desses direitos fundamentais deve ser preservado de modo que um direito não possa superar o outro. Com isso para saber se o emprego de algemas é legítimo ou abusivo é necessário perquirir, diante do caso concreto, se a medida coercitiva é apta a atingir o objetivo pretendido, se há algum meio menos gravoso para atingir o fim visado (proibição de excesso), e se há compatibilidade entre a medida e os valores do sistema constitucional (ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido).
Dessa forma, sempre em que não restar caracterizada a imprescindibilidade e a necessidade da medida coercitiva ou quando for evidente sua imoderação há flagrante desrespeito ao princípio da preponderância, sob pena de se configurar o crime de abuso de autoridade. Portanto, a análise de cada caso concreto distinguirá o uso correto ou o abuso, atentando para a busca da razoabilidade da medida.
4.3 Análise jurídica da Súmula Vinculante sobre algemas
O Supremo Tribunal Federal, no intuito de refrear todos os abusos relacionados ao uso das algemas, aprovou em 13.08.08, em sua composição plenária, por unanimidade, a súmula vinculante nº 11, que tem a seguinte redação:
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
A decisão de editar referida súmula ocorreu no julgamento do Habeas Corpus nº 91952-SP, em que o pedreiro acusado Antonio Sérgio da Silva, teve sua condenação pelo Tribunal do Júri anulada, em virtude de ter sido mantido algemado durante todo o seu julgamento, sem que a juíza-presidente daquele Tribunal apresentasse uma justificativa plausível para o caso.
Na ocasião, a Corte decidiu esclarecer melhor seu posicionamento sobre o uso generalizado das algemas e considerou abusivo o que tem ocorrido nos últimos tempos, pessoas detidas vêm sendo expostas algemadas aos flashes da mídia.
A excelsa Corte, por decisão plenária, fundamentou a edição da súmula vinculante decisão em vários preceitos constitucionais, entre eles o que coloca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e os que, protegendo os direitos fundamentais, proíbem o tratamento desumano e degradante do indivíduo, a violação da imagem das pessoas, bem como o que assegura ao preso o respeito à sua integridade física e moral, em conformidade com o artigo 1º, inciso III e artigo 5º, incisos III, X e XLIX da Constituição Federal.
Em nível infraconstitucional, invocou o artigo 284 do Código de Processo Penal: “Não será permitido o emprego da força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”; o artigo 350 do Código Penal, que trata do crime de exercício arbitrário do poder: “Ordenar ou executar medida privativa de liberdade, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”; e na Lei 4898/65, que regula o direito de representação e o Processo de Responsabilidade Administrativa, Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade, em seu artigo 4º: “Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.
Indubitavelmente o STF no intuito de erradicar todas as dúvidas quanto à regulamentação do uso de algemas criou ainda mais polêmicas sobre o assunto. Tendo em vista as circunstâncias em que se deu sua edição, bem como a abrangência e o teor da referida súmula, alguns problemas práticos podem surgir de sua aplicação, trazendo insegurança jurídica e diminuição da segurança dos envolvidos na execução de prisões e na realização de atos envolvendo réus presos.
Não restam dúvidas de que a preocupação precípua do Supremo foi dar concretude aos direitos do preso, em especial o resguardo de sua dignidade humana, intimidade e presunção de inocência, porém não se pode olvidar que a mesma é alvo de inúmeras críticas. Fudoli (2008, on line) acrescenta:
Analisando-se os precedentes do STF sobre o tema, bem como o que foi discutido na sessão em que se aprovou o texto da súmula vinculante nº 11, verifica-se que as preocupações maiores se relacionam com a divulgação da imagem do réu algemado, principalmente na execução de prisões em flagrante e ordens de prisão preventiva ou temporária. Vem logo à mente o caso de réus de “colarinho branco”, que não costumam reagir fisicamente à prisão. Fica claro que o que se evita é o sensacionalismo estimulado pelos órgãos de imprensa na cobertura jornalística da prisão de certas pessoas, que não são clientes habituais do sistema de justiça criminal. É importante ressaltar que o STF acertou ao coibir com veemência o sensacionalismo – e essa observação vale tanto para a criminalidade de “colarinho branco” quanto para a criminalidade “dos pobres” – eis que o direito de informar, titularizado pelos órgãos de comunicação social, não pode suplantar o direito à intimidade e à imagem do preso.
A citada súmula vinculante restringiu o uso de algemas a três hipóteses taxativas: resistência à ordem de prisão legal, fundado receio de fuga do preso e agressão por parte deste ou de terceiros. Távora (2008, p.442) nos explica:
A resistência é definida como a possibilidade de o infrator “opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio”. O segundo motivo traduz-se no receio de fuga, “justificado quando o infrator, percebendo a atuação policial, empreende esforço para se evadir, ou quando é capturado após perseguição”. E por último, está o perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, já que o uso de algemas “pode se materializar em expediente para conferir ao procedimento segurança, evitando-se o mal maior que é o emprego de força física para conter o preso ou seus comparsas, amigos, familiares, inclusive com a utilização de armas, letais ou não”.
Assim, o uso de algemas deixou de ser regra e passou a ser exceção, limitando as hipóteses nas quais o agente, por meio de fundamentação escrita, considerar que tenha havido umas das hipóteses supracitadas.
Até o advento dessa súmula vinculante, a utilização das algemas, no ato da prisão, constituía ato discricionário para o policial encarregado de fazê-la, agora o ato restringe-se aos parâmetros por ela autorizados, desde que se justifiquem, por escrito, os motivos para tal.
Logo, a vedação da prática do ato de prevenção e contenção passou a ser regra, enquanto que a discricionariedade do agente foi suprimida, restando caracterizado o ato vinculado apenas aos casos excepcionais, em que se poderá algemar desde que se motive por escrito.
Vale ressaltar que a discricionariedade é a margem de liberdade deixada pela lei, para que, diante do caso concreto, o agente escolha a melhor providência a ser utilizada, visando atender o interesse público. Por sua vez não se confunde com a arbitrariedade, pois nesta o agente foge dos ditames legais.
É sabido que o uso de algemas é a técnica de imobilização que tem garantido, em grande parte, o sucesso das operações policiais, onde o agente que não adota procedimentos de segurança põe em risco não só sua integridade física, mas, também, de todos os cidadãos não envolvidos que possam ser expostos a esse tipo de agressão.
Ademais, poderá incorrer em obrigação de indenizar por parte de Estado, uma vez que por falta de cautela policial o suspeito poderá destruir patrimônio alheio para fugir de uma abordagem policial ou até mesmo agredir fisicamente outrem, como exemplo fazer um terceiro refém. Dessa forma, se o preso não for algemado e provocar danos a terceiros, o agente responderá civil e criminalmente por negligência e o Estado por danos materiais.
Partindo desse pressuposto a questão é bastante complexa, pois se o policial não algemar e ocorrer incolumidade a terceiros, o agente e o Estado responderão pelos danos e se aquele decidir algemar poderá incorrer, também, em responsabilidade.
Observa-se, pela dicção da referida súmula, que é preocupante o efeito prático da mesma sobre a autoridade policial, uma vez que pode vir a ser um elemento desestabilizador do trabalho da polícia. Muitas vezes o agente policial tem que prender um criminoso sozinho, correndo riscos.
Ademais, o policial militar que fizer uso das algemas deverá justificar por escrito o feito, devendo, ainda, atentar para a exposição indevida do preso à mídia, principalmente se algemado. O problema está na imprevisibilidade do comportamento humano, pois não se pode deixar de algemar um acusado esperando que ele não reaja.
É muito difícil para os policiais manterem o equilíbrio exato entre a necessidade das algemas e a sua dispensa, pois do mesmo modo que existem circunstâncias evidentes a caracterizar algum risco, outras são extremamente tênues. Assim, o termo “receio” empregado na súmula é extremamente subjetivo, tendo em vista a futura reação ou não do preso.
Não se pode ignorar os risco que os policiais correm nas suas operações, onde a progressão matemática de possibilidade de vantagem do acusado sem algemas obter êxito num confronto é geometricamente maior, enquanto que na desvantagem e risco de morte do policial a progressão é aritmética. Para a juíza de direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal Rejane Jungbluth, seria impossível cumprir a imposição da súmula vinculante nº 11, conforme se vê:
Não houve, por parte dos ministros do Supremo, uma preocupação quanto ao elemento desestabilizador causado no trabalho da polícia, bem como do judiciário de primeiro grau, principais destinatários da norma e agora reféns de uma regra embaraçosa e desprovida de um maior comprometimento com a realidade do país.
Assim, é visível a dificuldade do cumprimento da súmula na prática forense. Bertasso (2009, on-line) sugere:
Ainda no que se refere à previsão na súmula vinculante nº 11 da sanção de nulidade da prisão ou ato processual praticado com colocação de algemas, em função da ausência de justificação ou da falta de excepcionalidade da medida constritiva, isso só se sustenta se houver a demonstração de um efetivo prejuízo. Caso contrário, dada a subjetividade da questão, qualquer uso de algemas tornará discutível a validade da prisão ou do próprio processo, por meio de reclamação no STF. Caso não seja essa a interpretação, “a súmula estará algemando de vez o STF, que não fará outra coisa senão decidir quem deve ser algemado.
Outra questão levada a efeito para a Polícia Militar é no que tange à escolta de presos, pois seria muito difícil a substituição das algemas pelo reforço policial, pois para cada preso algemado conduzido deve ser empregado, no mínimo, um policial militar.
Conhecendo a realidade precária dos serviços penitenciários e policiais no Brasil, reconhecemos a dificuldade da substituição das algemas pelo reforço policial na escolta. Para cada pessoa presa e, que esteja algemada, deve haver pelo menos dois policiais em sua vigília. Em razão disso se o detido tiver que ser transportado sem algemas, no mínimo, este número terá que duplicar.
Nos dias de hoje, os agentes policiais já encontram muitas dificuldades para atender tais regras de segurança e, com a edição da súmula, nos casos em que o preso não atenda os requisitos para ser algemado, essa situação irá se agravar, pois implicará um reaparelhamento dos órgãos de segurança pública, consequentemente requererá um melhor aparato estatal.
Outro problema do ponto de vista prático é a insegurança a que as pessoas que irão frequentar os fóruns das cidades, seja para requerer certidões, participar de audiências, dirigir-se ao seu local de trabalho, entre outros, estão sujeitas, pois embora um preso esteja escoltado em audiência, o mesmo não estará algemado, podendo oferecer riscos aos terceiros alheios a essa situação. Assim, o uso de algemas é um instrumento de defesa social e dos próprios agentes estatais no seu cotidiano. Alvim (2009, on-line) nos ensina:
Inegavelmente, essa decisão fora precipitada, mesmo porque antes que houvesse o devido debate entre a sociedade, as instituições policiais e o Ministério Público; nada mais democrático. Não será absurdo que, com a publicação da súmula vinculante nº11, todas as polícias recuem de forma patente quanto ao cumprimento de seu papel constitucional, uma vez que inviabiliza o trabalho policial, retirando dos agentes do Estado a plena utilização de importante instrumento de trabalho, muitas vezes responsável por impedir tragédias e fugas de perigosos marginais. A equivocada interpretação de que as algemas são utilizadas como forma punitiva não encontra respaldo no cotidiano policial. Evidente que equívocos fazem parte, infelizmente da natureza humana, não se podendo atribuir aos policiais a exclusividade dos erros praticados durante tão árduo ofício.
Vale ressaltar que em alguns casos em que o não uso de algemas no preso colidiu com o direito fundamental à vida e à incolumidade física de terceiros. Como exemplo, podemos citar o caso do assassinato do juiz Rowland Barnes e de sua estenógrafa, Julie Brandau, na corte do Condado de Fulton, em Atlanta, Estados Unidos, em março de 2005. Ocorreu enquanto atuavam no julgamento de Brian Nichols, acusado de estupro, que sem usar algemas, conseguiu retirar a arma de fogo do policial e alvejá-los.
Não precisamos ir muito longe para mostrar outro exemplo. Ocorreu em Mato Grosso do Sul, em 2005, perto de Naviraí, onde um pecuarista de Itaquirí, acusado de matar duas pessoas por causa de uma dívida de R$ 50,00, quando era transportado de Itaquiraí para Naviraí, na parte traseira da viatura policial, sem antecedentes criminais e sem algemas, agarrou o volante e jogou a viatura contra uma carreta. O acidente matou o policial e feriu mais quatro pessoas.
Cite-se ainda o conhecido caso do juiz de Maracanaú, que em sala de audiência criminal, ao permitir a retirada das algemas de um réu envolvido com um grupo de extermínio, foi sacudido sorrateiramente através de um cusoco (arma branca imprópria confeccionada artesanalmente no interior dos presídios). O acusado atentou contra a vida do juiz, Doutor Geraldo Bezerra, que saiu gravemente ferido à altura da face e o réu foi responsabilizado pela prática de homicídio tentado.
Evidentemente a literatura policial pátria, constantemente, noticia incidentes graves e deles até fatais em face do mal uso de algemas. Assim, tais exemplos mostram a insegurança jurídica e social ocasionada pelo não uso das mesmas nos detidos. Chagas (2010, on-line) assegura:
Infelizmente o STF ao editar a súmula nº esqueceu-se dos princípios constitucionais estruturantes de uma nação civilizada e democrática, quais sejam, o direito à preservação da vida, incolumidade física do policial e de terceiros, e o da igualdade, ou da isonomia, onde em situações iguais todos devem ter legalmente o mesmo tratamento. Administrativamente deixou passar despercebidos os princípios da eficiência e da responsabilidade do agente, onde no ato da prisão deve a autoridade praticá-la de modo a evitar danos previsíveis e irremediáveis a si, ao preso ou a terceiros.
Dessa forma, o emprego das algemas, no ato da prisão, se torna extremamente necessário por várias razões: para proteção e segurança da integridade física do policial encarregado da diligência contra possíveis e inesperados atos de agressão do preso; para resguardar a incolumidade física de terceiros, em face de atos de rebeldia do prisioneiro; para evitar fuga do preso; para evitar a destruição de provas e para proteção do preso que pode atentar contra a própria vida.
Quem defende a legalidade da súmula afirma que a mesma veio não só para regulamentar o uso de algemas, como também para pôr fim ao sensacionalismo feito pela mídia quando uma prisão ou outro ato processual é realizado, principalmente quando se trata de uma pessoa famosa ou de alto escalão da sociedade.
O uso quase sempre indiscriminado das algemas constitui uma arbitrariedade que foge dos ditames da lei brasileira e serve, muitas vezes, para espetacularizar a operação policial, conquistando visibilidade no meio social e submetendo o detido a uma situação degradante e vexatória.
É sabido que o cidadão ao ser preso já perde seu status quo, qual seja, o de liberdade, o direito de ir e vir sem limitações. Diante dessa situação, vislumbrando-o pelo princípio constitucional da presunção de inocência, o simples ato de se manter algemado já produz nas pessoas uma suposta condenação. Tal motivo, como já explicitado anteriormente, foi reanalisado na reforma do procedimento do Jurí, Lei 11689/2008, autorizando o uso de algemas apenas em casos excepcionais, como forma de não influenciar os jurados no momento do seu voto.
Costumeiramente, a mídia, em relação a matéria penal e processual, mostra versões ainda não conclusivas, sem quaisquer respaldos legais quanto às provas, tirando conclusões apenas pelos indícios existentes nos autos e afirmando à sociedade como se verdadeiras fossem. Trata-se de uma precondenação, ou seja, a pessoa está condenada antes mesmo de ser julgada. Andrade (2007, p. 300) explica:
Se a dúvida expressa a real situação do acusado durante o processo penal e, consequentemente, deve o mesmo ser tratado como um cidadão inocente até o trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória, então com muito mais razão impõe-se este tratamento durante a fase inicial na qual ainda tramitam as investigações a respeito do caso ainda latente. No entanto, em termos jornalísticos, está é a fase na qual cabe a mais ampla cobertura, já que permite maior exposição sensacionalista das circunstâncias do crime, da perseguição do suspeito, sua prisão e subseqüentes depoimentos a partir daí gerados.Os efeitos de tais divulgações – maciças no início e cada vez menos freqüentes com o passar dos meses/anos- culminam com a influência exercida nos principais sujeitos processuais (ou atores do processo) e, principalmente, na convicção do órgão jurisdicional com competência constitucional e legal para processar e julgar o réu, seja ele togado ou leigo, singular ou colegiado.
Críticas à parte, não se pode negar que o Supremo Tribunal Federal, ao editar referida súmula, deu concretude aos direitos fundamentais dos presos, quais sejam, direito à imagem, intimidade, vida privada, presunção de inocência e, em especial, à dignidade da pessoa humana, fundamento de importância máxima na Constituição Federal de 1988. A Relatora Ministra Carmen Lúcia, sobre o uso de algemas no HC 89429, em 22 de agosto de 2006, assim se posicionou:
O uso de algemas não pode ser arbitrário e principalmente que a prisão não é espetáculo, pois a atuação da Polícia Federal, principalmente, quando presos temporários são expostos à ação devastadora das câmeras de televisão, deve ser revista com urgência. Possivelmente, se não houvesse registro midiático das prisões, sequer haveria provocação do STF sobre o assunto, embora seja de todo recomendável essa manifestação pretoriana.
Da fundamentação da ministra, conclui-se que não é a restrição da liberdade com o uso de algemas, quando das prisões em flagrante ou decretadas judicialmente, que fere a dignidade da pessoa humana, a honra ou a integridade física e moral das pessoas por si só, não é a prisão legal, procedida com o uso de algemas, que configura tratamento degradante. O que configura clara e efetiva violação à imagem das pessoas, além de criar constrangimento moral e ferir profundamente a honra e a dignidade da pessoa humana é a execração pública que pune sem julgamento.
Assim, pode-se dizer que a súmula vinculante ora em análise foi editada não só para regulamentar o uso de algemas, mas também para acabar com o sensacionalismo feito pela mídia quando uma prisão ou outro ato processual é realizado. A relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais pode ser apontada em cinco aspectos, bem descritos por Boldrini (2003, p.2):
Num primeiro aspecto, dignidade da pessoa humana pode ser vista como unidade de valor de uma ordem constitucional e, principalmente, como unidade de valor para os direitos fundamentais. Num segundo aspecto, como elemento de habilitação de um sistema positivo dos direitos fundamentais, a proteção e a promoção da dignidade do homem sustenta e afere legitimidade a um Estado e a uma sociedade que tenham a pessoa humana como fim e como fundamento máximos. Numa terceira acepção, a relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana seria uma relação de "praxis" no interior teórico da ordem constitucional. Num quarto, tem-se a perspectiva da dignidade da pessoa humana como parâmetro na dedução de direitos fundamentais implícitos, seguindo a concepção de que a própria dignidade consistiria um direito fundamental na medida em que se manifestasse stricto sensu. Por fim, tem-se a perspectiva da dignidade da pessoa humana como limite e função do Estado e da sociedade, na dupla vertente de que tanto um quanto outro devem respeitar e promover a dignidade.
Ainda sobre o referido princípio, Piovesan (2003, p.33) complementa:
Conclui-se que a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a concepção contemporânea de direitos humanos, acolhe a dignidade humana como valor a iluminar o universo de direitos. A condição humana é requisito único e exclusivo, reitere-se, para a titularidade de direitos. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de nenhum outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de projeção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do positivismo jurídico, incorporam o valor da dignidade humana.
Desse modo, o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como princípio estruturante, ou seja, representa o arcabouço político fundamental constitutivo de uma Nação e sobre o qual se assenta todo o ordenamento jurídico, razão pela qual, uma vez desrespeitando-o, estará se atentando contra o Estado Democrático de Direito.
Com isso, entendemos que todos devem ter preservada a sua imagem, como extensão da proteção à dignidade da pessoa humana. O uso devido, legítimo e necessário das algemas não fere essa dignidade, mas o seu excesso, bem como a exposição exagerada do preso à mídia portando algema, desrespeita esse princípio. Em recentíssima decisão o Superior Tribunal de Justiça se posicionou pela legalidade do uso de algemas, inclusive, no presente caso, trata de um menor infrator, conforme se vê:
HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO A HOMICÍDIO QUALIFICADO PRATICADO PARA IMPLEMENTAÇÃO DO TRÁFICO DE DROGAS NO LOCAL DO FATO. INVIABILIDADE DA PRETENSÃO DE DECLARAÇÃO DA NULIDADE DA AUDIÊNCIA DE APRESENTAÇÃO EM RAZÃO DO USO DE ALGEMAS PELO MENOR. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À SÚMULA VINCULANTE 11 DO STF. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. ALTA PERICULOSIDADE DO REPRESENTADO. PARECER MINISTERIAL PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM. ORDEM DENEGADA.
1. A excepcionalidade do uso de algemas, consignada principalmente na Súmula Vinculante 11 do STF - que dispõe que só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito - não obsta o seu emprego se demonstrada, por decisão fundamentada, a necessidade de serem precavidos os riscos antevistos no próprio enunciado sumular.
2. Na hipótese, a premência no uso do referido instrumento de jugo foi irrepreensivelmente declinada pelo Juiz condutor da audiência de apresentação ao esclarecer que o menor em questão possui alto grau de periculosidade, entrevisto pelo seu profundo envolvimento com o tráfico de drogas e pela forma de execução do ato sob investigação, caracterizado por desmedida violência, uma vez que teria promovido a morte de morador que se opôs à instalação da sede do tráfico em sua residência, alvejando-a com vários tiros e jogando seu corpo em uma lixeira e acertando sua cabeça com uma pedra.
3. Parecer ministerial pela denegação da ordem.
4. Ordem denegada.
(HC 140.982/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 19/11/2009, DJe 22/02/2010)
Dessa forma, apesar de no caso mencionado, o infrator ser um menor, amparado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, observamos que esse Egrégio Tribunal posicionou-se dentro da ótica da análise da concretude, primando pelo princípio da preponderância, ou seja, analisou quais os fatores e direitos que deveriam ser sopesados e levados em maior consideração. Por seu turno, em outra decisão, o mesmo Tribunal assim se posicionou:
ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANO MORAL. USO DE ALGEMAS. SÚMULA VINCULANTE Nº 11 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MEDIDA EXCEPCIONAL. HIPÓTESES DE CABIMENTO.
1. O STF, ao editar a Súmula Vinculante nº 11, firmou a compreensão de que o uso de algemas, por se tratar de medida coercitiva excepcional, é restrita aos casos de a) resistência à prisão, b) fundado receio de fuga ou c) perigo à integridade física do preso e/ou de terceiros, sob pena de responsabilização civil, disciplinar e penal do agente público coator, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
2. Hipótese em que o Tribunal a quo consignou que a utilização de algemas, restrita ao interior das viaturas policiais, decorreu da quantidade elevada de indivíduos transportados em automóveis desprovidos de mecanismo de segurança, o que ameaçaria a integridade física de seus ocupantes.
3. Recurso Especial não provido.
(REsp 1125799/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2009, DJe 11/12/2009)
No presente caso, o princípio da razoabilidade, também, foi utilizado, uma vez que, no acórdão se justifica o uso de algemas, diante do caso concreto, em virtude da quantidade elevada de indivíduos transportados em automóveis desprovidos de mecanismo de segurança, que, caso não fossem algemados, poderiam ameaçar a integridade física dos outros ocupantes.
Diante de todo o exposto, observamos um aparente conflito de direitos fundamentais. De um lado o direito à vida, à incolumidade física do agente e de terceiros e do outro, os direitos individuais do preso, quais sejam, sua imagem, intimidade, vida privada, presunção de inocência e dignidade da pessoa humana.
Assim, as algemas somente deverão ser empregadas depois de observada a real necessidade comprovada para cada caso concreto, haja vista que a força só poderá ser utilizada pelos policiais em caso estritamente necessário, respeitando a proteção da dignidade humana do preso, devendo o princípio da preponderância e da razoabilidade ser o vetor precípuo para a análise da legalidade do ato de prisão efetuado pelas autoridades.
5. CONCLUSÃO
Acredita-se que há quatro mil anos, nos relevos mesopotâmios, as algemas já eram usadas nos prisioneiros. O uso das algemas, para muitos, é uma questão polêmica por falta de disciplina jurídica sobre o assunto, porém defende-se que o seu uso deveria ser regulado, no contexto atual, pelo artigo 19 da Lei de Execução Penal, visto que ele sinaliza a existência de um decreto federal para disciplinar o emprego de algemas, entretanto até os dias atuais, não se tem esse decreto que cuide da matéria, tratando-se, portanto de norma de eficácia limitada. Certo é que, até então, a solução ficava a mercê da jurisprudência pátria.
Ante essa insegurança jurídica e a falta de normatização quanto ao correto uso de algemas, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula vinculante nº 11, como forma de coibir os abusos causados pelos policiais, bem como de respeitar os direitos fundamentais, quais sejam, imagem, intimidade, vida privada, presunção de inocência e dignidade da pessoa humana.
Essa súmula vinculante prevê que só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros. Contudo se admite a excepcionalidade por escrito, sob pena do agente ou da autoridade responder disciplinar, civil e penalmente e de nulidade da prisão ou do ato processual, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Com o intuito de findar as diversas celeumas existentes quanto ao uso das algemas, o Supremo Tribunal Federal criou novas polêmicas com a edição da citada súmula vinculante nº. 11, tendo em vista a insegurança jurídica criada e o conflito de direitos fundamentais entre os sujeitos envolvidos no ato da prisão e de terceiros alheios a essa situação, entre outras.
Entende-se que o uso indevido, ilegítimo e desnecessário de algemas, bem como o seu excesso e a sua injusta colocação fere a integridade física e a dignidade do ofendido. Como extensão desse princípio entende-se que todos devem ter preservada a sua imagem, cuja exposição exagerada à mídia, com o uso de algemas, atenta contra o princípio cardeal do nosso Estado Constitucional e Democrático de Direito.
Por outro lado, a súmula vinculante trouxe um tolhimento da discricionariedade da autoridade no momento da prisão. O que antes era regra, agora passou a ser exceção. Hoje, o que é preocupante é o efeito prático da mesma sobre a autoridade policial, uma vez que pode vir a ser um elemento desestabilizador do trabalho da polícia. Muitas vezes o agente policial tem que prender um criminoso sozinho, correndo risco de morte.
Assim, o policial que fizer uso de algemas, segundo a súmula, deverá justificar por escrito o feito, devendo, ainda, atentar para a exposição indevida do preso à mídia. O problema está na imprevisibilidade do comportamento humano, pois não se deve deixar de algemar um acusado esperando que ele não reaja. Dessa forma é latente o perigo que os policiais correrão com a restrição do uso das algemas nas diligências e, por ventura, terceiros alheios às diligências.
Diante do exposto, direitos fundamentais em apreço entram em aparente conflito no ato de se algemar um indivíduo. O direito à vida e à incolumidade física é previsto constitucionalmente e os direitos à imagem, à presunção de inocência e à dignidade humana também os são.
Conclui-se, portanto, que direitos fundamentais não são absolutos e que as normas constitucionais estão articuladas em um sistema organizado e havendo conflito entre eles deverão ser sopesados no caso concreto. Assim sendo, o princípio invocado nesse conflito será o da preponderância. Tal princípio organiza os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de um direito em detrimento de outros, realizando dessa forma uma redução razoável do âmbito de alcance de cada um e buscando o verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua.
Sendo assim as algemas somente deverão ser empregadas depois de observada a real necessidade comprovada para cada caso concreto, visto que a força só poderá ser utilizada pelos policiais em caso estritamente necessário, respeitando-se a proteção da dignidade humana do preso, princípio cardeal do nosso Estado Democrático de Direito, caso contrário deixa de ser um instrumento de segurança pública para ser um meio de arbítrio.
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Advogada. Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pós Graduada em Direito Constitucional pela Faculdade entre Rios do Piauí (FAERPI).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALBUQUERQUE, Priscilla Batista de. O uso de algemas e a dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2017, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50187/o-uso-de-algemas-e-a-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 22 nov 2024.
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