RESUMO: O artigo tem como objetivo demonstrar que o processo de internalização dos tratados internacionais em matéria tributária que versam sobre garantias do contribuinte, a saber a de não ser duplamente tributado, representam conquistas dos direitos humanos e, sendo assim, atendidos os requisitos constitucionais previstos no art. 5º, §3º, da Constituição Federal, podem passar à estatura de emendas constitucionais quando alocados no ordenamento jurídico brasileiro, o que os revestiria de hierarquia máxima no sistema de validade das normas internas. Além disso, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, caso esses tratados não sejam incorporados ao ordenamento interno com o status de emenda constitucional, serão eles dotados de supralegalidade.
PALAVRAS-CHAVE: tratados internacionais, dupla tributação, bitributação, garantias do contribuinte, direitos humanos, internalização de tratados, emendas constitucionais, supralegalidade.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Os tratados internacionais em matéria tributária. 3. O direito de não sofrer a bitributação visualizado como um direito humano do contribuinte. 4. A internalização dos tratados internacionais em matéria tributária que objetivem afastar a bitributação dos contribuintes. 5. Conclusões. 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Inicialmente, antes de adentrar a temática que será abordada neste trabalho, cumpre ressaltar alguns aspectos introdutórios que são relevantes para o escorreito desenvolvimento do assunto.
O Direito Tributário Internacional costuma ser visualizado pelo seu objeto, isto é, em função das diversas situações que englobam a vida tributária internacional. O referido objeto tem por característica a homogeneidade, mas também possui caracteres de heterogeneidade.[1]
Nesse ponto, frise-se que a heterogeneidade é verificada no tocante à fonte normativa, à matéria e à natureza das normas de Direito Tributário Internacional.[2]
Sem dúvida, no que se refere à fonte do Direito Tributário Internacional, os tratados internacionais constituem os instrumentos de maior relevância, sendo neles previstas, em especial, as normas que tratam da dupla tributação e da evasão fiscal internacional, bem como a temática da colaboração administrativa em matéria de tributos.[3]
Mais especificamente no que concerne às fontes deste ramo do Direito, ou seja, quanto aos tratados internacionais em matéria tributária, é importante estudar, discutir e explanar a respeito da forma de internalização de tais diplomas normativos, inclusive porque isso pode ensejar grande repercussão no sistema de validade das normas jurídicas no plano interno, sobretudo quando tais tratados refletirem garantias do contribuinte relacionadas à dupla tributação por ele sofrida.
É nessa linha que será apresentado o artigo ora em exame: tratando em um primeiro momento dos tratados internacionais (com enfoque nos tratados em matéria tributária); após, demonstrando-se que alguns desses tratados internacionais revestem-se de verdadeiros tratados de direitos humanos (em especial quando tratam de garantias para evitar a bitributação do contribuinte); e, por fim, apresentar-se-á que tais tratados são internalizados no ordenamento jurídico brasileiro com estatura de emenda constitucional ou com status supralegal.
2. OS TRATADOS INTERNACIONAIS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA
Os tratados internacionais, enquanto fontes, são considerados diplomas recentes no âmbito do Direito Internacional, tendo em vista que a sua positivação se tornou mais comum a partir do século XIX. Até então, o costume internacional representava a fonte preponderante no âmbito desse ramo do Direito.[4] Entretanto, a formalização dos tratados tem se mostrado cada vez maior, em especial pela necessidade de regulação e fortalecimento de um mercado internacional que é altamente competitivo.
De acordo com o artigo 1º, a, da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, o termo “tratado” significa “um acordo internacional celebrado entre Estados em forma escrita e redigido pelo direito internacional, que conste, ou de um instrumento único ou de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica”.
Por outro lado, a partir de uma percepção doutrinária acerca dos tratados internacionais, convém ressaltar que há alguma tendência em se visualizar as normas oriundas do direito internacional como superiores àquelas emanadas de um poder legiferante interno. Contudo, critica-se tal posição sob o fundamento notoriamente conhecido das contribuições de Sieyès no sentido de que o Poder Constituinte, decorrente da vontade do povo, é soberano no tocante à formação da vontade estatal.[5]
Diante dessa constatação, evidencia-se que o Estado Soberano é livre para anuir aos tratados internacionais ou dele se desvincular quando isso se fizer conveniente e oportuno para o País. Ressalta-se, aliás, que essa postura é unânime nos ordenamentos jurídicos dos Estados, que sempre buscam resguardar a soberania que lhes é inerente.[6]
Não obstante, cabe frisar a existência de nações que atribuem a esses tratados, quando devidamente assinados e incorporados pelo país, uma hierarquia superior às leis infraconstitucionais, o que se nota, por exemplo, na Constituição da França de 1958, que dispôs, em seu artigo 55, o seguinte:
Os tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados têm, desde a sua publicação, uma autoridade superior à das leis, sob reserva, para cada acordo ou tratado, de sua aplicação pela outra parte.
Tal discussão não é meramente doutrinária, pois traz reflexos práticos para a organização e a validade do ordenamento jurídico interno dos Estados, em especial porque, em se considerando, na hipótese, o tratado internacional dotado de supremacia na legislação interna, este servirá de orientação vinculante ao Poder Legislativo, quando a nação possuir Constituição rígida, bem como ensejará a necessidade de revisitação e adequação das demais normas que estão positivadas no plano infraconstitucional.
Em outro vértice, não se pode esquecer que, no âmbito dos tratados internacionais, tem sido reiterada a importância da formalização de tratados internacionais em matéria tributária, por meio dos quais os Estados acabam limitando o exercício de seu poder de tributar visando a atingir um cenário de maior benefício para investidores do mercado transnacional. Em razão dessa limitação, aliás, é que se afirma não ser possível visualizar a questão dos tratados internacionais em matéria tributária sem colocá-la em uma análise confrontada com as discussões relacionadas à soberania dos Estados.[7]
Ademais, também sobre as convenções ou tratados internacionais em matéria tributária, faz-se oportuno salientar o entendimento de Heleno Taveira Tôrres:
As convenções internacionais em matéria tributária são veículos introdutórios de normas que se apresentam com textos normativos voltados a integrar os ordenamentos internos dos signatários naquilo que forem incompletos, diversos ou contraditórios, mediante um conjunto de regras destinadas ao tratamento da renda e do capital transnacional, bem como dos tributos sobre estes incidentes, nas relações que envolvam residentes de um e do outro Estado contratante, por uma funcional limitação ao sistema tributário (interno) de cada um deles, com a finalidade de harmonizar este relacionamento, evitando indesejáveis “concursos de pretensões impositivas”, com critérios para evitar, reduzir ou eliminar a formação destes, prevenir o combate à evasão e elusão tributária internacional, impedir a discriminação e garantir maior segurança jurídica aos contribuintes, pela certeza do direito aplicável.[8]
No mesmo sentido, importa destacar que os tratados internacionais ganham ainda maior relevo quando tratam da temática da bitributação, ou seja, quando há a incidência de mais de uma imposição tributária sobre o mesmo contribuinte, por Estados diversos, levando em conta a mesma circunstância e o mesmo lapso temporal.[9] Isso motivou a formalização, até os dias atuais, de mais de 2.000 tratados bilaterais visando ao fim ou, pelo menos, à atenuação da bitributação.[10]
Assim sendo, nota-se que o estudo dos tratados internacionais em matéria tributária que buscam evitar a dupla ou pluritributação é bastante relevante, em especial porque essa temática reveste-se de garantia do contribuinte contra uma injusta redução patrimonial que lhe é imposta.
3. O DIREITO DE NÃO SOFRER A BITRIBUTAÇÃO VISUALIZADO COMO UM DIREITO HUMANO DO CONTRIBUINTE
A tributação levada a efeito pelo Estado deve se revestir de razoabilidade, isto é, deve se situar em um contexto que fique acoplado entre um mínimo razoável de tributação e o confisco tributário, podendo esse ideal ser extraído da própria Constituição Federal de 1988, em duas passagens:
Art. 145. [...] § 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] IV - utilizar tributo com efeito de confisco; [...]
Como se percebe, o primeiro dispositivo citado expõe que a tributação não poderá ter o efeito de confisco, ao passo que o segundo artigo estabelece que a tributação deve levar em conta a capacidade contributiva do indivíduo. Tais vetores devem servir de orientação para o estudioso do Direito Tributário, pois é a partir desse contexto que se nota a importância de se limitar a tributação praticada em detrimento dos contribuintes.
É que, em atenção aos princípios da capacidade contributiva e da não confiscatoriedade, não se mostra possível sujeitar um mesmo fato econômico à incidência de uma tributação que, por ser tão gravosa, coloque o contribuinte em uma situação destruidora do mínimo vital que lhe deveria guarnecer.[11]
Com base nessa mesma linha de raciocínio, deve ser enfrentada a problemática da dupla ou pluritributação internacional, que nada mais é do que um fato econômico ser tributado mais de uma vez por Estados diversos. Tal prática, consoante adrede ressaltado, imputa ao contribuinte verdadeira sanha confiscatória, pois representa uma incidência tributária extremamente gravosa e desarrazoada no que tange à sua propriedade.
No ensejo, apenas a título de diferenciação, lembre-se que a bitributação não se confunde com o bis in idem tributário. Aquela, conforme salientado, é a possibilidade de um mesmo fato jurídico ser tributado por mais de um ente político, o que se pode verificar no plano transnacional. O bis in idem, por sua vez, traduz a hipótese de um mesmo fato jurídico ser tributado mais de uma vez pela mesma pessoa política.[12] Ambos os casos não são admitidos, pois representam indevido confisco da propriedade do contribuinte.
Quanto à bitributação e os seus nefastos reflexos globais, importante realçar que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, em 1956, à época constituída como Organização para Cooperação Econômica Europeia – OCEE, estruturou comissão tributária com o objetivo de rascunhar um modelo de tratado que pudesse evitar a bitributação, o que culminou na elaboração de relatório final pela Convenção-Modelo da OCDE de 1963.[13] Nesse contexto, depreende-se a importância dos tratados internacionais que visem evitar a dupla tributação internacional.
É fácil observar que a bitributação internacional, caso incida sobre um determinado fato, ocasionará verdadeira violação a direitos fundamentais do contribuinte, em especial à propriedade, pois elevará a tributação a um patamar extremamente gravoso e desarrazoado. Por isso é que convém visualizar os tratados internacionais em matéria tributária que buscam evitar a dupla tributação como sendo verdadeiros tratados internacionais de direitos humanos.
Essa visualização, inclusive, converge com a ideia de universalização e internacionalização dos direitos humanos como sendo um movimento recente na história do direito consistente na criação de obrigações e responsabilidades para os Estados no sentido de se respeitar e proteger os direitos humanos dos indivíduos, não sendo isso um assunto particular do Estado, mas sim de interesse internacional.[14]
Sobre a definição dos direitos humanos, importa ressaltar que estes constituem um termo não categoricamente definido, mas concebidos de forma a incluir um conjunto de reivindicações que todo ser humano possui ou deve possuir diante da sociedade e do Estado.[15]
Por oportuno, somente a título de complementação, esclareça-se haver grande discussão se os direitos humanos seriam sinônimos dos intitulados direitos fundamentais. Uma primeira corrente doutrinária sugere que as classes supracitadas se diferenciam no plano de positivação. Enquanto os direitos fundamentais são exigíveis no plano interno do Estado, os direitos humanos são positivados nos instrumentos internacionais.[16] Por outro lado, há corrente sustentando que os direitos humanos são sinônimos de direitos fundamentais, ou direitos individuais, ou direitos civis, ou liberdades públicas.[17]
Sob o viés trabalhado neste artigo, entende-se que a segunda corrente se mostra mais correta, pois, a partir dela, será possível extrair que os tratados internacionais em matéria tributária que buscam evitar a bitributação podem ser considerados tratados internacionais de direitos humanos.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 939-7, consignou que as limitações constitucionais ao poder de tributar representam direitos fundamentais do contribuinte. Assim, os tratados internacionais em matéria tributária acima referidos, por preverem limitações à atividade tributária do Estado, também estatuem direitos fundamentais ou, na concepção já frisada, direitos humanos.
Por esse motivo, tem-se evidenciada a configuração de verdadeiros tratados internacionais de direitos humanos que, se incorporados ao ordenamento jurídico interno sob o rito estabelecido no artigo 5º, §3º, da Constituição Federal de 1988, serão equivalentes às emendas constitucionais ou, caso não submetidos a esse rito, serão considerados normas supralegais.
4. A INTERNALIZAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA QUE OBJETIVEM AFASTAR A BITRIBUTAÇÃO DOS CONTRIBUINTES
Para que se possa compreender a incorporação dos tratados ao ordenamento jurídico interno, é necessário tratar, inicialmente, das fases do procedimento comum de celebração e incorporação das convenções internacionais, as quais compõem um iter próprio.
Inicia-se o procedimento com a negociação e assinatura do tratado por parte do Poder Executivo, mediante atuação do Presidente da República ou de seu representante, conforme preconiza o artigo 84, VIII, da Constituição Federal.
Após, o Poder Legislativo procede ao referendo (ou aprovação) do tratado, por meio de decreto legislativo, não havendo dependência de sanção do Poder Executivo, consoante dispõem os artigos 49, I e 84, VIII, ambos da Constituição Federal. Tal referendo tem como finalidade autorizar o Presidente da República a dar continuidade às tratativas para a celebração do tratado internacional.
Com a aprovação do Poder Legislativo, o Presidente da República ratifica os termos do tratado, o que ocorre pela troca ou pelo depósito dos instrumentos que o constituem. Desse momento em diante o Estado se compromete com o tratado no plano internacional.
Encerrada essa primeira fase voltada ao plano externo, o Presidente da República promulga o tratado, por intermédio de decreto presidencial, declarando que o procedimento está completo e que o tratado já está hábil a produzir efeitos internos, o que ocorre efetivamente com a publicação.
Ultrapassada a questão de celebração e incorporação dos tratados, cabe ressaltar o teor do artigo 98 do Código Tributário Nacional, o qual dispõe que “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”.
A interpretação do dispositivo supracitado enseja grande discussão na doutrina e jurisprudência brasileiras, em especial no que tange à possível prevalência de tratados internacionais em relação à legislação tributária interna. A doutrina passou a entender que, em verdade, o tratado deveria ser considerado lei especial em relação à norma interna, isto é, o termo “revogam” previsto no artigo 98 deveria ser lido como “suspendem”.
Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se que “O mandamento contido no art. 98 do CTN não atribui ascendência às normas de direito internacional em detrimento do direito positivo interno, mas, ao revés, posiciona-as em nível idêntico, conferindo-lhes efeitos semelhantes”.[18]
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal já havia decidido:
[...] Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico ("lex posterior derogat priori") ou, quando cabível, do critério da especialidade. [...][19]
Esse é o tratamento comum atribuído aos tratados internacionais em matéria tributária. No entanto, com o surgimento da Emenda Constitucional nº 45, que acrescentou o §3º ao art. 5º da Constituição Federal, bem como da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a questão da internalização dos tratados sobre direitos humanos, merece ser revisitada a temática dos tratados internacionais em matéria tributária, em especial daqueles que buscam evitar a bitributação.
Dispõe o §3º do art. 5º da Constituição Federal que “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
Nessa linha, verifica-se que os tratados internacionais que tratam de direitos humanos, caso sejam submetidos ao rito de emendas constitucionais no procedimento de internalização, serão alocados no ordenamento jurídico interno como normas equivalentes às próprias emendas constitucionais, passando a ser utilizados inclusive como paradigma para o controle de constitucionalidade.
Ocorre que, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 349.703-1/RS, o Supremo Tribunal Federal inovou quanto à temática de internalização dos tratados internacionais de direitos humanos, não em relação aos que passam pelo novel procedimento do §3º do art. 5º da CF, mas sim no que tange àqueles que, apesar de tratarem de direitos humanos, foram submetidos ao rito comum. De acordo com o STF:
[...] Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. [...][20]
O caso julgado pelo STF tratava da (im)possibilidade da prisão civil por dívida do depositário infiel à luz do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). A Constituição Federal permite a prisão civil neste caso e o Código Civil, por sua vez, promove a regulamentação em seu artigo 652.
Não obstante a permissão delineada pela legislação brasileira, o STF entendeu que o fato de os tratados internacionais sobre direitos humanos proibirem a prisão civil nesse caso afastou a possibilidade de o Código Civil tratar acerca da matéria, pois, apesar de o Pacto de San José da Costa Rica não ter se submetido ao rito das emendas constitucionais, ele ocupa uma posição superior à legislação infraconstitucional, no caso o Código Civil, e inferior à Constituição Federal.
Assim, inovou o Supremo Tribunal Federal com a tese de que, caso os tratados internacionais sobre direitos humanos não se incorporem ao ordenamento jurídico mediante o procedimento do §3º do art. 5º da CF, eles ainda sim terão superioridade à legislação infraconstitucional, pois são dotados do caráter de supralegalidade, isto é, estão abaixo da Constituição Federal, mas acima das demais normas infraconstitucionais.
Importante frisar que a ideia de supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos faz deles um novo paradigma para as normas que lhes são inferiores, as quais devem ser com eles compatíveis, sob pena de serem afastadas em eventual controle de convencionalidade.
Diante dessa ideia, há duas percepções a serem verificadas em relação aos tratados internacionais em matéria tributária que visam a afastar a dupla tributação internacional do contribuinte. Partindo da premissa de que tais normas tratam especificamente de direitos humanos, a sua incorporação no ordenamento jurídico interno poderá ocorrer de duas formas: como normas equivalentes às emendas constitucionais; ou na posição de normas supralegais.
Essas constatações possuem relevância não somente teórica, sobretudo porque interferem diretamente no exercício das funções típicas do Poder Legislativo e do Poder Judiciário.
Quanto à função legiferante do Estado, percebe-se que deverá ser o tratado internacional utilizado como paradigma de validade para as normas que serão editadas.
Já em relação à jurisdição, nota-se que o tratado internacional em matéria tributária será visualizado como norma superior às demais normas infraconstitucionais e, caso estas não respeitem a devida compatibilidade, será possível a realização do controle de constitucionalidade da norma (caso o tratado tenha força de emenda constitucional) ou do controle de convencionalidade (caso o tratado tenha status supralegal).
Sobre o tema, Valerio de Oliveira Mazzuoli escreveu:
[...] Ora, se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que garante a qualquer norma constitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional [...] Quanto aos tratados de direitos humanos não internalizados pelo quorum qualificado, passam eles a ser paradigma apenas do controle difuso de convencionalidade.[21]
Não há, portanto, como se desprezar o tratamento que vem sendo atribuído aos tratados internacionais de direitos humanos e diferenciá-los, no tocante à internalização, dos tratados internacionais em matéria tributária que buscam acabar ou atenuar a dupla tributação internacional em face do contribuinte, pois esta norma, certamente, trata de direitos humanos.
5. CONCLUSÕES
Os tratados internacionais em matéria tributária constituem a mais importante fonte normativa do Direito Tributário Internacional, sendo os temas previstos em tais diplomas dotados de grande relevância, dentre os quais se destaca a questão da bitributação.
Por intermédio desses tratados, os Estados acabam por limitar o exercício de seus poderes tributários, em especial quando visam a atingir um cenário benéfico para investidores do mercado transnacional. Nesse contexto, surge a limitação relativa à bitributação, ou seja, a estruturação dos Estados, mediante convenções internacionais, com o objetivo de se evitar a dupla tributação do contribuinte.
Assim, por guarnecerem limitações à atividade estatal predatória praticada em face da propriedade dos contribuintes no âmbito internacional, tais convenções devem ser visualizadas como sendo verdadeiros tratados internacionais de direitos humanos.
Ao serem internalizados no ordenamento jurídico brasileiro, os referidos tratados poderão ser dotados de duas estaturas normativas, ambas superiores à legislação infraconstitucional.
Caso os tratados internacionais em matéria tributária que tratem de direitos humanos sejam incorporados sob o rito previsto no §3º do art. 5º da Constituição Federal, serão eles equivalentes às emendas constitucionais, o que os colocará numa posição de parâmetro referencial para o exercício do controle de constitucionalidade.
Por outro lado, não sendo os tratados incorporados pelo rito das emendas constitucionais, a eles será atribuído status supralegal, na esteira do entendimento do Supremo Tribunal Federal no tocante aos tratados internacionais de direitos humanos, conforme julgamento do Recurso Extraordinário nº 349.703-1/RS.
Nessa linha, portanto, é que se verifica a necessidade de reavaliação da temática da internalização dos tratados internacionais em matéria tributária que busquem evitar a bitributação do contribuinte, isto é, que positivem os direitos humanos do sujeito tributado.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 62.
[2] Ibidem, p. 62-63.
[3] XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 67.
[4] SCHOUERI, Luís Eduardo. Notas sobre os Tratados Internacionais sobre Tributação. In: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (Coord.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 189.
[5] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Os tratados internacionais em face da Constituição de 1988. In: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (Coord.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 241.
[6] Ibidem, p. 242.
[7] SCHOUERI, Luís Eduardo. Notas sobre os Tratados Internacionais sobre Tributação. In: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (Coord.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 190.
[8] TÔRRES, Heleno Taveira. Aplicação dos Tratados e Convenções Internacionais em Matéria Tributária no Direito Brasileiro. In: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (Coord.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 143.
[9] SCHOUERI, Luís Eduardo. Notas sobre os Tratados Internacionais sobre Tributação. In: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (Coord.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 200.
[10] Ibidem, p. 205.
[11] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 102.
[12] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário - Constituição e Código Tributário Nacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 67.
[13] YAMASHITA, Douglas. Evolução da Convenção-Modelo da OCDE e a Influência de suas alterações na Interpretação de Tratados para Evitar a Bitributação. In: Antonio Carlos Rodrigues do Amaral (Coord.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Editora, 2005, p. 105.
[14] HENKIN, Louis. International Law: cases and materials, 3. ed. Minnesota: West Publishing, 1993, p. 375.
[15] HENKIN, Louis. The rights of man today. New York: Columbia University Press, 1988, p. 1.
[16] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 30-31.
[17] TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação: imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 8.
[18] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 196.560. Recorrente: Fazenda Nacional. Recorrido: Organizações Gazire e Sadala Ltda.. Relator: Ministro Demócrito Reinaldo. Brasília, DF, 18 de março de 1999. STJ, Brasília, 1999. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199800879676&dt_publicacao=10-05-1999&cod_tipo_documento=1&formato=PDF>. Acesso em: 28 de junho de 2015.
[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.480. Requerentes: Confederação Nacional do Transporte e Confederação Nacional da Indústria. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, DF, 04 de setembro de 1997. STF, Brasília, 1997. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000018406&base=b aseAcordaos>. Acesso em: 28 de junho de 2015.
[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 349.703-1/RS. Recorrente: Banco Itaú S.A. Requeridos: Alonso Machado Lopes e Outra. Relator: Ministro Carlos Britto. Brasília, DF, 03 de dezembro de 2008. STF, Brasília, 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000087443&base=baseAcordao>. Acesso em: 28 de junho de 2015.
[21] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da intransigência ao diálogo das fontes. Tese de Doutorado em Direito. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008, p. 235.
Ensino Superior Completo - Universidade de Brasília (UnB). Cargo de Técnico Judiciário Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIAU, Priscila Helena Soares. Os tratados internacionais em matéria tributária como tratados de direitos humanos: incorporação na ordem jurídica brasileira com status de norma constitucional ou supralegal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50224/os-tratados-internacionais-em-materia-tributaria-como-tratados-de-direitos-humanos-incorporacao-na-ordem-juridica-brasileira-com-status-de-norma-constitucional-ou-supralegal. Acesso em: 22 nov 2024.
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