Rodrigo Freschi Bertolo
(Orientador)
RESUMO: Com a recente intensificação dos deslocamentos populacionais por todo o globo, é notório que as relações entre diferentes culturas têm se tornado cada vez mais frequentes. O que por um lado favorece tanto o processo de globalização, quanto a universalização dos princípios, por outro lado acaba por gerar conflitos entre os mais intolerantes defensores de suas próprias ideologias. Neste contexto de intolerância, conflito e religião, a Liberdade Religiosa apresenta-se como um direito fundamental a todos garantido, que reflete de modo claro a pluralidade, o respeito e a importância da adequação jurídica às evoluções sociais. Através do tema exposto, a grande problemática que surge refere-se à natureza jurídica da liberdade religiosa, e mais: sua aplicabilidade quando conflitante com outras normas; as alternativas legais oferecidas; e se, de fato, as normas e princípios cumprem o objetivo de coibir a intolerância religiosa frente ao Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: liberdade religiosa, intolerância, escusa de consciência.
ABSTRACT: Nowsdays people are recent intensification movements across the world it is can be seen that relations between many cultures have become increasingly frequent. This might favors both the process of globalization and the universalization of principles, on the other side generates conflicts between the most intolerant defenders of their own ideologies. The context of intolerance, conflict and religion, Religious Liberty presents itself as a fundamental right guaranteed to everyone, which clearly reflects the plurality, respect and legal importance adaptation to social developments. Exposed theme, the legal nature problem refers to the religious freedom, and more: when conflicting with other laws the legal alternatives offered to resolve different norms and principles introduce Democratic State of Law curbing religious intolerance.
Key words: Religious Liberty, intolerance, conscience excuses.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E FILOSÓFICOS. 1.1 LIBERDADE. 1.2 ESTADO LAICO. 2. EVOLUÇÃO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO. 2.1 CONSTITUIÇÃO DE 1824. 2.2 CONSTITUIÇÃO DE 1891. 2.3 CONSTITUIÇÕES DE 1934 A 1967. 3. LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988. 3.1 PRINCÍPIOS. 3.2 LIMITAÇÕES. 3.3 LIBERDADE CONEXAS. 4. LIBERDADE RELIGIOSA NO DIREITO INTERNACIONAL. 5. INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE COMBATE A INTOLERÂNCIA. 5.1 DA ESCUSA DE CONSCIÊNCIA. 5.2 DA PROTEÇÃO NA LEGISLAÇÃO PENAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O mundo moderno é caracterizado pela diversidade, já que vivemos um período de avanços tecnológicos, globalização e grandes deslocamentos populacionais, quer sejam imigrantes, quer refugiados. Todas estas mudanças acarretaram uma intensa transformação social, que, em contrapartida, intensificou a intolerância religiosa: terrorismo, discriminação contra minorias, atos de violência e intimidação contra a liberdade, dentre outras. A Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-SP citando a Organização das Nações Unidas, apresenta dados alarmantes: 75% dos conflitos existentes ao redor do mundo são por motivação religiosa, cultural ou étnica.
Nesse âmbito, este artigo objetiva discutir os aspectos teóricos da liberdade religiosa no intuito de “combater” a intolerância, para tanto serão apresentados os aspectos constitucionais do referido direito e os instrumentos jurídicos pertinentes à sua defesa. Assim, a abordagem aqui discutida surge da necessidade de levar a conhecimento da sociedade o tema, visto não haver cidadania sem liberdade religiosa.
O Brasil está sob um Estado Democrático de Direito, trazendo na Constituição Federal de 1988, forte proteção às liberdades individuais e coletiva por meio de princípios de cidadania, igualdade e dignidade. Tutelar tais direitos e necessidades fundamentais aos seres humanos tem sido um dos maiores desafios do século XXI.
Liberdade é o clamor de todo ser humano, pois sem ela não se pode ser, não se pode crer, ou nem mesmo se pode deixar de crer, caso a opção particular for de não ter crença alguma. Sem liberdade não há como escolher seus representantes, não há como ir e nem há como vir.
A liberdade religiosa é um dos direitos mais caros à dignidade da pessoa humana. No Estado Democrático de Direito, o cidadão tem a garantia de poder escolher sua religiosidade sem restrições e assumi-la, da mesma forma que aceita conviver pacificamente com aqueles que preferem professar outra religião ou não ter crença alguma. A Constituição do Brasil, em seu art. 5º, inciso VI, preceitua que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”.
Ora, uma sociedade que tem a dignidade da pessoa humana como coluna de sustentação, e que busca meios de garantir a liberdade dos indivíduos que ela compõe, faz-se necessária uma análise jurídica da tutela dada à Liberdade Religiosa enquanto Direito Fundamental consolidado em sua Carta Magna, sendo este um meio eficaz de promover a tolerância entre as mais diversas crenças.
1. FUNDAMENTOS JURÍDICOS E FILOSÓFICOS
Antes de iniciar o estudo da Liberdade Religiosa em seu aspecto constitucional, é importante apresentar determinados conceitos jurídicos e filosóficos básicos para que possa haver uma maior compreensão do estudo realizado e das propostas apresentadas em combate a intolerância religiosa que assola a população.
1.1 LIBERDADE
O primeiro conceito a ser tratado será o da liberdade que, do aspecto jurídico-filosófico, está diretamente ligada à dignidade da pessoa humana. Assim como define Pinho (2002, p. 82): “Liberdade é a faculdade que uma pessoa possui de fazer ou não fazer alguma coisa. Envolve sempre um direito de escolher entre duas ou mais alternativas, de acordo com sua própria vontade.”.
Assim sendo, pode-se compreender a liberdade como uma possibilidade de se pensar, agir ou decidir de acordo com sua determinação pessoal, mas sempre levando em conta os limites impostos pelo convívio social. Entender a liberdade é de certa forma, entender o ser humano, pois este tem em seu íntimo a vontade de ser livre. No contexto constitucional brasileiro Lellis e Hees (2016, p. 47) afirmam que a liberdade não é uma opção, mas sim uma diretriz estabelecida como meio de afirmação da dignidade humana. Sua previsão, vista como uma grande conquista social tem como base legal o artigo 5º, caput da Constituição de 1988 ao afirmar que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”.
Embora, aparentemente o dispositivo acima traga a liberdade como um princípio geral, várias outras espécies, dentre elas a religiosa, compõem o rol de garantias, buscando o efetivo exercício e defesa desta liberdade. Deste modo, os aplicadores do direito tem um norte claro sobre qual direção tomar.
1.2 ESTADO LAICO
Ainda tratando dos conceitos preliminares que envolvem o direito a liberdade religiosa, não poderia deixar de ser mencionada a laicidade do Estado, termo amplamente divulgado e defendido, entretanto com entendimentos juridicamente incorretos.
O Estado Laico, como conceitua Soriano (2012, p. 62), é aquele em que o Estado se mantém separado da Igreja, das religiões e confissões religiosas, sendo importante observar que o Estado Laico não é ateu, mas sim neutro, respeitando igualmente todas as religiões, caso contrário seria indiferente às dimensões espirituais, existindo uma postura de negação. A respeito do relacionamento existente entre Igreja e Estado, pode-se dizer que os modelos já observados são confusão, união e separação, conforme preceitua Pinho (2002, p. 89):
Existem três sistemas de relacionamento entre Igreja e Estado: a) confusão – Igreja e Estado se misturam. Exemplos: Vaticano e alguns Estados islâmicos; b) união – estabelecem-se vínculos entre o Estado e uma determinada religião, que passa a ser considerada como a crença oficial do Estado. Exemplo: Brasil-Império; c) separação – um regime de absoluta distinção entre o Estado e todas as Igrejas, Exemplos: todos os Estados laicos, entre eles o Brasil.
Diante do exposto é correto afirmar que o modelo mais favorável à liberdade religiosa é o de separação, pois garante uma maior neutralidade do Estado em relação às questões religiosas.
2. EVOLUÇÃO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO
Como tantos outros direitos, a liberdade religiosa nem sempre se apresentou no contexto jurídico nacional da maneira como hoje é conhecida. Seus conceitos, características e garantias evoluíram juntamente com a sociedade brasileira. Tal desenvolvimento vem sendo expresso e positivado ao longo dos textos constitucionais como a seguir analisado.
2.1 CONSTITUIÇÃO DE 1824
Proclamada a Independência do Brasil, surge, consequentemente, a necessidade de se elaborar a primeira Constituição do país. Ainda que neste período o seu conteúdo tenha sido fortemente influenciado pela Igreja Católica Apostólica Romana, Cunha (2001, p. 17) destaca: “O diploma constitucional em apreço foi o primeiro que positivou os direitos fundamentais embora, equivocadamente, tal mérito vem sido atribuído a Constituição belga de 1934.”.
No tocante à religião, o Brasil, enquanto nação independente continua sendo um Estado Confessional passando a exercer certa tolerância religiosa, embora restrita: “Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.” (CUNHA, 2001, p. 20).
2.2 CONSTITUIÇÃO DE 1891
Com o rompimento do período Imperial, é promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil em 1891, e conforme Cunha (2001, p. 50) pelo fato de a filosofia positivista ter prevalecido nesta constituição, a Igreja e o Estado tornaram-se instituições separadas, deixando de existir uma religião oficial brasileira.
O Brasil deixa de ser um Estado Confessional e passa agora a ser um Estado Laico, retirando funções que antes eram exclusivas da Igreja Católica como o casamento, que passa a ser civil, e os cemitérios que passam a ser administrados pelos municípios permitindo que fiéis de todas as religiões professem seus ritos em sepultamentos. Assim, conforme dispõe o §3º do artigo 72: “Todos os individuos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum.” (CUNHA, 2001, p. 71). Entretanto, era expresso que o cidadão ao alegar motivos de crença religiosa para se eximir de qualquer ônus da lei, perderia seus direitos políticos.
2.3 CONSTITUIÇÕES DE 1934 A 1967
A Constituição de 1934 trouxe em seu bojo garantias como igualdade, liberdade de crença, liberdade para associações religiosas, assistência religiosa e liberdade de culto em cemitérios. Todas expressas em seu artigo 113, conforme transcrito (CUNHA, 2001, p. 127):
Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.
5) É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública e aos bons costume. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil.
6) Sempre que solicitada, será permitida a assistência religiosa nas expedições militares, nos hospitais, nas penitenciárias e em outros estabelecimentos oficiais, sem ônus para os cofres públicos, nem constrangimento ou coação dos assistidos. Nas expedições militares a assistência religiosa só poderá ser exercida por sacerdotes brasileiros natos.
7) Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, sendo livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes. As associações religiosas poderão manter cemitérios particulares, sujeitos, porém, à fiscalização das autoridades competentes. É lhes proibida a recusa de sepultura onde não houver cemitério secular.
Como na anterior, a Constituição de 1937 continua assegurando liberdade de culto por meio do artigo 122, §4º: “todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes;” (CUNHA, 2001, p. 187). Interessante destacar que o constituinte já estabelecia a ordem pública e os bons costumes como fatores limitadores da prática ao direito à liberdade religiosa.
A Constituição de 1946 assegura as garantias já estabelecidas pelas de 1934 e 1937, todavia, inova ao trazer a escusa de consciência como um mecanismo de proteção e defesa dos cidadãos para com sua liberdade de crença. O artigo 141, §8º estabelece que (CUNHA, 2001, p. 243):
Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de consciência.
Sendo assim, nenhum brasileiro ou estrangeiro residente no país seria privado de seus direitos por causa de suas crenças ou convicções religiosas, podendo realizar prestação alternativa fixada em lei.
Por fim, a Constituição de 1967 é tida como um retrocesso visto que não mais prevê prestações alternativas àqueles que, por motivo de crença religiosa, buscam eximir-se dos ônus que a lei estabelece contrários às suas convicções.
3. A LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
À primeira vista, o termo Liberdade Religiosa pode parecer uma discussão puramente teológica, entretanto trata-se na realidade de um debate constitucional. Muito mais do que somente poder escolher uma religião, Júnior (2002, p. 176) entende que se trata da liberdade que todos têm de crer ou não na existência de Deus, sem que isso dê lugar a qualquer tipo de discriminação, perseguição ou castigo.
Em termos, diz-se que o Estado tem uma função dupla no tocante ao contexto da liberdade religiosa: não interferindo ou impedindo que alguém escolha sua fé, enquanto proporciona mecanismos para que esta possa ser exercida - tudo sem interferir na laicidade.
Suas características, conforme o doutrinador Soriano (2012, p. 41) são:
Como direito fundamental, a liberdade religiosa assume as mesmas características dos direitos humanos como: Universalidade; Indivisibilidade e Interdependência. Além dessas características extraídas da Declaração de Viena de 1993, a liberdade religiosa apresenta outras notas marcantes. São elas: a Irrenunciabilidade; a Imprescritividade; a Multiplicidade e a Irreversibilidade.
3.1 PRINCÍPIOS
Os princípios são de extrema importância para o direito, em qualquer que seja a área, são como pilares que fundamentam toda uma estrutura jurídica. Neste sentido leciona Poletti (2009, p. 319):
“Não basta conhecer leis, nem a doutrina, os julgados e as interpretações dos tribunais. E? preciso ter a chave da lógica jurídica que se resume nos princípios gerais do direito. Deles tudo decorre. Quem os conhece, melhor penetrara? no universo jurídico e estará? apto a resolver os problemas teóricos e práticos.”
Soriano (2012, p. 43) defende que a liberdade religiosa tem os seguintes princípios norteadores: “1) princípio da separação entre a Igreja e o Estado; 2) princípio da Laicidade; 3) princípio da Neutralidade do Estado; 4) princípio da Não-Identificação Estatal; 5) princípio da Neutralidade Estatal; 6) princípio do Estado Democrático de Direito.”.
3.2 LIMITAÇÕES
Como já exposto, o direito a liberdade religiosa enquadra-se como um direito fundamental, portanto não é absoluto. Assim como afirma Soriano (2012, p. 48), tal “limitação visa salvaguardar os demais direitos ou liberdades individuais, com o fim de preservar a ordem pública.”. Seria um tanto quanto incoerente permitir que alguém usasse o direito a liberdade religiosa para violar direitos de terceiros.
O principal objetivo de tal limitação é respeitar valores e princípios constitucionais, que, de certa forma, servem como base para as restrições aqui impostas. Entretanto não se pode restringir o direito à liberdade religiosa como se bem entender. Não é função estatal delimitar o que é certo ou errado em relação aos aspectos religiosos, pois a laicidade é o que predomina no ordenamento jurídico brasileiro. Cabe ao Estado combater abusos de liberdade e a intolerância religiosa como um todo.
Os limites à liberdade religiosa devem sempre estar embasados na ordem pública, na moral e nos bons costumes, como dispõe o artigo 1º, §3º da Declaração sobre Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções (1981):
§3. A liberdade de manifestar a própria religião ou as próprias convicções estará sujeita unicamente às limitações prescritas na lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais.
Assim, em caso de conflito entre direitos fundamentalmente garantidos deve-se usar do bom senso e da ponderação para que nenhum dos direitos conflitantes seja totalmente deixado de lado em detrimento do outro.
3.3 LIBERDADES CONEXAS
Para garantir o que se propõe, tal direito desdobra-se em três diferentes vertentes, quais sejam: as liberdades de crença, de culto e de organização religiosa. O intuito de se estabelecerem liberdades conexas à principal, qual seja, liberdade religiosa, é o de determinar e especificar todo o complexo obrigacional que o envolve.
Primeiramente, sobre a liberdade de crença, Pinho (2002, p. 89) leciona que esta abrange o foro íntimo do ser humano e protege o direito que todos têm de crer ou não crer na existência de uma, diversas ou, até mesmo, em nenhuma divindade, compreendendo ainda a possibilidade do individuo, a seu livre arbítrio, mudar de religião ou corpo doutrinário. Já no que concerne a liberdade de culto, Pinho (2002, p. 89) assegura proteger-se a exteriorização da crença escolhida seja por meio de cerimônias e rituais. Assim, diferente do que se acredita, não somente os serviços religiosos realizados nos templos são protegidos, mas também os mais diversos atos praticados em espaços públicos, desde que limitado aos valores e princípios constitucionais.
Em se tratando da liberdade de organização religiosa, há uma decorrência lógica da laicidade do Estado, neste sentido Lellis e Hees (2016, p. 86) defendem:
Por sua vez, a liberdade de organização religiosa se refere à possibilidade de instituição, configuração e estruturação jurídico-econômica das igrejas ou confissões religiosas. Sob o prisma do Direito, implica a obtenção, pela confissão religiosa, de personalidade jurídica, para o que basta a comprovação de vontade humana de associar-se para fins religiosos, com objetivos lícitos e atendimento às formalidades legais, no que forem harmônicas e submissas à Constituição Federal.
4. LIBERDADE RELIGIOSA NO DIREITO INTERNACIONAL
O direito internacional tem grande relevância e aplicabilidade para o presente estudo, principalmente no que tange aos tratados internacionais que o Brasil é signatário, ou seja, aqueles que possuem aplicabilidade no plano jurídico interno.
Em matéria de liberdade religiosa, são dois os tratados internacionais que tem maior destaque normativo: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.
Em se tratando do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1992), dispõe seu artigo 18 que “toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, e este pode ser exercido de maneira pública ou privada, só podendo ser limitado por leis que tenham a finalidade de proteger “a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.”. O presente tratado também inova ao positivar especial proteção às minorias, dentre elas, as religiosas:
Art. 27 – Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. (1992)
A Convenção Americana de Direitos Humanos, por sua vez, traz expresso em seu artigo 12 uma repetição do conteúdo preexistente no tratado anteriormente citado. Entretanto, conforme Lellis e Hees (2016, p. 75):
Por sua vez, apesar de repetir integralmente o conteúdo do art. 18 do “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” em seu art. 12, a Convenção Americana de Direitos Humanos reveste-se de especial importância porque cria meios de proteção dos direitos que normatiza, ao prever a existência e regrar a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos nos artigos 33,b e 52 a 73.
Além dos tratados supramencionados, há também outro documento que merece especial atenção em se tratando da liberdade religiosa no âmbito internacional: a Declaração sobre Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções. Editado em 1981 pela ONU (Organização das Nações Unidas) não possui força vinculante sobre o ordenamento jurídico nacional, mas seu conteúdo apresenta relevante direcionamento para a edição de normas que visam a eliminação da discriminação e intolerância religiosa, como por exemplo, o seu artigo 4º ao estabelecer:
Artigo 4º
§1. Todos os Estados adotarão medidas eficazes para prevenir e eliminar toda discriminação por motivos de religião ou convicções, no reconhecimento, do exercício e do gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em todas as esferas da vida civil, econômica, política, social e cultural.
§2. Todos os Estados farão todos os esforços necessários para promulgar ou derrogar leis, segundo seja o caso, a fim de proibir toda discriminação deste tipo e por tomar as medidas adequadas para combater a intolerância por motivos ou convicções na matéria.
5. INSTRUMENTOS JURÍDICOS DE COMBATE A INTOLERÂNCIA
Tolerância tem uma íntima ligação com a liberdade religiosa, visto que uma de suas vertentes, implica no reconhecimento da liberdade religiosa alheia. A Declaração de Princípios sobre a Tolerância da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), no artigo 1º, 1.1, assim a define:
Art.1º,1.1 - A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. (1995)
A tolerância impõe o dever de respeitar as convicções e as crenças alheias, e em seu sentido jurídico vincula todos os indivíduos nesta concepção. Mas para que isso ocorra, são necessários instrumentos legalmente instituídos que ajudem a combater atos de intolerância.
5.1 DA ESCUSA DE CONSCIÊNCIA
Um meio, de total relevância, instituído pela Constituição de 1988 como proteção à liberdade religiosa é a Escusa de Consciência que Cunha (2001, p. 75) define como: “A objeção ou escusa de consciência consiste no direito de não prestar o serviço militar obrigatório ou qualquer outra obrigação legal a todos imposta por motivo de crença religiosa, filosófica ou política.”.
Sua previsão está expressa no artigo 5º, inciso VIII da Constituição Federal quando estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”.
É evidente que a escusa de consciência trata-se de um direito líquido e certo, assim a possibilidade de prestação alternativa em razão de crença religiosa, não se torna um privilégio - como muitos o julgam - mas sim um direito nos termos da lei.
Não há, em todo o entorno da escusa de consciência, violação ao princípio da isonomia, visto que este consiste em tratar desigualmente os desiguais, devendo o postulante estar disposto a cumprir a prestação alternativa a ele imposta. Desta maneira não fica este obrigado a se comportar de modo contrário aos seus princípios religiosos.
5.2 DA PROTEÇÃO NA LEGISLAÇÃO PENAL
Apesar de a Constituição ter previsto, ao longo de sua evolução histórica, o direito à liberdade religiosa, foi necessário que a legislação infraconstitucional tipificasse condutas como meio de coibir atos de intolerância religiosa.
Na legislação penal, em seu artigo 208, está descrito o crime de Ultraje a Culto e Impedimento ou Perturbação de ato a ele relativo com pena de detenção que pode variar de 1(um) mês a 1(um) ano, podendo ser aumentada em um terço se houver violência. Em se tratando deste tema, Cabette (2012, p. 188) entende que o referido tipo penal:
Tutela-se a liberdade de crença e o livre exercício de culto religioso (art. 5o, VI, CF). As condutas são o escarnecimento (zombaria) por motivo de crença ou função religiosa; o impedimento ou perturbação de cerimônia ou culto religioso e o vilipêndio (menoscabo) público de ato ou objeto de culto religioso.
Outro elemento importante que merece destaque é a preocupação do legislador em tutelar a liberdade religiosa, tipificando sua violação por funcionários públicos como crime de abuso de autoridade do artigo 3º da lei n. 4.898/65:
Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
d) à liberdade de consciência e de crença;
e) ao livre exercício do culto religioso;
Grande destaque deve ser dado à lei n. 9.459/97 que alterou grande parte da legislação pátria no que concerne a práticas discriminatórias. Uma das maiores alterações por ela estabelecida, foi a inclusão da religião no rol de elementos que podem ser passíveis de penalização da lei n. 7.716/89 – Lei de Racismo. Desde então todo aquele que pratica, induz ou incita qualquer ato discriminatório com fundo religioso incorrerá nas penas previstas. São enquadradas práticas como obstar o acesso a algum estabelecimento comercial, recusar o atendimento em locais abertos ao público, negar ingresso em estabelecimento de ensino, dentre outros. Outra importante alteração da referida lei, foi a inclusão do parágrafo 3º ao crime de Injúria, criando a figura da injúria preconceituosa ou discriminatória que objetiva ofender a honra subjetiva de alguém se utilizando de elementos referentes à religião.
No entanto a intolerância pode chegar a níveis extremos, como por exemplo, o Genocídio que é definido por Ponte (2013, p. 24) como “[...] um crime internacional contra a humanidade, em que não se busca proteger apenas a vida ou a integridade física ou mental das pessoas atingidas, mas a própria existência de determinado grupo étnico, cultural, religioso ou segmento social.”. Assim, todo aquele que tenha o dolo de destruir determinado grupo religioso, no todo ou em parte, será enquadrado no artigo 1º da lei n. 2.889/56 – Lei do Genocídio.
CONCLUSÃO
O direito à Liberdade Religiosa representa uma grande conquista para a população brasileira, visto que evoluiu com a própria sociedade sofrendo grandes imposições pelos diferentes governos, e pelas mais variadas ideologias dos poderes constituintes.
A Liberdade Religiosa em seu conceito mais simples traz a essência da toda a luta contra a intolerância religiosa, qual seja, o respeito reivindicado para os próprios direitos deve ser o mesmo atribuído ao direito alheio, isso porque as religiões podem ser diferentes, mas o respeito deve ser igual. Portanto a harmonia precisa ser buscada e o preconceito reprimido, para que o radicalismo egoísta não se sobreponha aos direitos constitucionalmente garantidos.
Sem Liberdade Religiosa, não se pode falar em dignidade humana ou em exercício pleno de cidadania. Toda pessoa possui o direito de não ser obrigada a agir contra a própria consciência ou seus princípios religiosos, deste modo, nota-se profunda preocupação com a garantia de tal direito na Constituição ao criar instrumentos, como a escusa de consciência, para efetivar a norma positivada. Além disto, mesmo não sendo absoluto, é notória a necessidade de ponderação e bom senso quando surgir um conflito entre este e outro direito, para que nenhum deles seja suprimido, aparentando intolerância.
A liberdade religiosa e a escusa de consciência são a prática da cidadania e da tolerância. Somente assim pode-se dizer que o país está caminhando em busca de uma harmonia social para a concretização do Estado Democrático de Direito.
O presente artigo não tem a pretensão de findar as discussões referentes ao tema discutido.
REFERÊNCIAS
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Bacharelando do Curso de Direito - Universidade Brasil - Campus Fernandópolis/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Tiago Toledo Gomes Mariano. Liberdade religiosa e o combate à intolerância Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2017, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50226/liberdade-religiosa-e-o-combate-a-intolerancia. Acesso em: 22 nov 2024.
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