RESUMO: A transexualidade é um fenômeno complexo de disforia de gênero em que o indivíduo não consegue identificar-se sexualmente, vez que o seu sexo psíquico é incompatível com o seu sexo físico. A não identificação sexual impossibilita-o de desempenhar o seu papel social, fazendo com que o mesmo não se sinta membro pertencente a sociedade. A transexualidade é considerada pela medicina como uma patologia e, apesar da cirurgia de transgenitalização ser regulamentada pela Resolução CFM n. 1955/10, sendo, ainda, um dos procedimentos cirúrgicos custeados pelo SUS, conforme Portaria n. 1.707/08, os transexuais ainda encontram resistência em relação à modificação do seu registro civil, como forma de completude de sua redesignação sexual. Assim, o presente trabalho visa analisar um novo aspecto do direito ao nome, considerando as condições humanas e a sua finalidade essencial de individualizar e incluir o indivíduo na sociedade, bem como a sua regra da imutabilidade, levando em consideração sua interpretação através do aspecto constitucional e social. Objetiva-se também identificar e analisar as alternativas encontradas pelos tribunais brasileiros ante a omissão do ordenamento jurídico brasileiro para viabilizarem a inclusão social dos transexuais, bem como sua identificação e individualização, propondo uma aplicação analógica da substituição do prenome pelo apelido público notório pelo qual o indivíduo é reconhecido no meio social em que vive. E, ainda, questionar se essa aplicação analógica garante efetividade das garantias constitucionais para fins de proporcionar uma condição de vida digna aos transexuais. Para tanto, adotar-se-á a análise dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que buscarão esclarecer todos os direitos inerentes a pessoa humana, bem como assegurar a possibilidade da retificação do registro civil dos transexuais como fator determinante em sua redesignação sexual. A análise jurisprudencial faz-se de suma importância para observarmos como e se essas garantias estão sendo asseguradas pelos tribunais brasileiros, já que o ordenamento jurídico é omisso em relação a essa problemática. Ainda, faz-se necessário ressaltar a importância do direito comparado, com intenção de analisar como o ordenamento jurídico estrangeiro busca acompanhar a evolução social e os novos anseios da sociedade. No primeiro capítulo traremos breve introdução ao tema. Seguindo, no segundo capítulo, abordaremos o reconhecimento do transexual na sociedade. E, por fim, no último capítulo do presente trabalho, trataremos do amparo constitucional e dos direitos fundamentais relacionados ao tema.
Palavras chave: Transexuais. Transexualidade. Redesignação Sexual. Inclusão Social. Garantias Constitucionais. Dignidade da Pessoa Humana. Direito à Saúde.
Sumário: 1 Introdução. 2 Reconhecimento do transexual na sociedade. 3 Amparo Constitucional. 4. Considerações Finais. 5. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Os transexuais vêm caminhando à margem da sociedade por anos, não só pela ambivalência quanto à identificação com o próprio ser e a sociedade a que pertence, como também pela falta de legislação no ordenamento jurídico brasileiro que assegure sua inclusão social.
O presente trabalho visa analisar a possibilidade de alteração do registro civil como meio de inclusão social do transexual, vislumbrando novos aspectos do nome civil, considerando sua finalidade de individualização do ser humano e sua qualidade intrínseca à personalidade, de modo a garanti-lo aos indivíduos transexuais, não só pela aplicação analógica do artigo 58 da Lei n. 6.015/73, mas por ser um direito subjetivo do ser humano, independentemente de sua orientação sexual. O ser humano tem direito ao nome e a identificar-se com ele.
Assim, trazemos para o nosso trabalho, a identidade de gênero como uma questão sociocultural, fugindo a idéia de que o sexo biológico deve preponderar sobre o sexo psíquico, vez que a identidade gênero constitui a interação harmônica entre essas manifestações sexuais, possibilitando a identificação do indivíduo.
O transexual é aquele indivíduo que não possui identidade de gênero, já que o seu sexo psíquico é incompatível com o seu sexo morfológico, de forma que, apesar de fisicamente pertencer a um determinado sexo, o seu psíquico influi para que ele acredite pertencer ao sexo oposto.
Atualmente, a transexualidade é considerada pela medicina como uma síndrome de disforia de gênero. Um dos meios encontrados como tratamento e redesignação sexual dos transexuais é a cirurgia de transgenitalização, que busca adaptar a realidade do transexual, adequando seu sexo físico ao sexo psíquico. Após diversas normativas que tentaram abordar o tema, a intervenção cirúrgica foi regulamentada pela Resolução CFM n. 1.955/10. E foi incluída pela tabela de procedimentos cirúrgicos custeados pelo SUS, pela Portaria n.1.707/08. No entanto, para a redesignação completa desses indivíduos é necessária a retificação do registro civil para evitar a exposição a situações vexatórias e efetivar o seu papel social.
Salienta-se, como fator garantidor da inclusão social dos transexuais, a possibilidade de alteração no registro civil, tanto do nome quanto do gênero sexual. O artigo 58 da Lei n. 6.015/73 admite a substituição do prenome constante no registro civil pelo apelido público notório, partindo da premissa de que o nome tem como função a individualização do ser e a identificação do ser humano com o seu aspecto subjetivo, ou seja, seu aspecto interior. Os tribunais brasileiros têm entendido que a aplicação analógica desse dispositivo normativo confere amparo legal para a problemática suscitada pela transexualidade, trazendo a possibilidade de adequar o registro civil a identidade social do indivíduo, tendo em vista sua nova condição física e psicológica.
Discutiremos, ainda, se a aplicação analógica do dispositivo supracitado é um meio efetivo de assegurar os direitos e garantias constitucionais trazidas pela Carta Magna de 1988. O nome, como um direito da personalidade, não deve ser reconhecido através de uma aplicação analógica, é intrínseco ao ser humano e a sua problemática deve solucionada com base nos princípios constitucionais, vez que o transexual não visa a adoção de um apelido público notório, ele visa o reconhecimento do seu direito ao nome.
O transexualismo é uma realidade e a omissão do ordenamento jurídico brasileiro e o conservadorismo dos nossos tribunais não pode servir de escopo para suprimi-lo e excluí-lo da nossa sociedade. O Direito é um meio de alcance da justiça social e deve acompanhar os fatos, a realidade, e se adequar aos novos anseios sociais.
Diante ao exposto, o presente trabalho buscará analisar a situação dos transexuais, observando as condições humanas e garantias amparadas pela Carta Magna, de modo eu sejam efetivamente asseguradas a todo e qualquer cidadão, permitindo, ainda, que seu nome seja, de fato, um atributo inerente à sua pessoa, independentemente de seus aspectos físicos ou morais.
Para isso, adotaremos como método de abordagem dedutivo, já que utilizaremos como ponto de partida a existência da Constituição Federal do Brasil que traz os parâmetros gerais do direito à dignidade da pessoa humana, à saúde e à cidadania, assegurados a todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país. Também será utilizado o método indutivo vez que analisaremos especificamente alguns casos concretos particulares para demonstrar a abrangência dessa problemática e a realidade do indivíduo transexual que exige atenção do legislador e do aplicador do Direito.
2. RECONHECIMENTO DO TRANSEXUAL NA SOCIEDADE
A identificação social do indivíduo consiste na adequação do ser humano com a
sociedade a que pertence. Alguns indivíduos, no entanto, sofrem transtornos psíquicos e por
diversos motivos não conseguem se identificar com o meio social em que vivem.
A não identificação social está relacionada, muitas vezes, com a falta de identificação
do ser com a própria sexualidade, como no caso dos transexuais. Para a sociedade, bem como
para o Direito, existem somente dois sexos, o feminino e o masculino. É assim que o
indivíduo é identificado na sociedade, inclusive, para o exercício de seus direitos.
A sexualidade, por sua vez, não é pautada apenas na definição sexual do ser – seja
qual for sua forma-, é fruto da interação entre os indivíduos e as estruturas sociais. Ou seja,
além das manifestações sexuais do indivíduo, a sexualidade compreende as normas sociais,
jurídicas e religiosas de uma sociedade. É o que chamamos de identidade de gênero.
É a partir dessa perspectiva que devemos considerar a identidade de gênero como uma
construção sociocultural, em que o sexo natural ou biológico não prepondera como fator
determinante vez que esse é definido pela natureza enquanto o gênero é construído pela
influência do meio sociocultural em que vive o indivíduo. É a interação harmônica e coerente
entre esses dois fatores que possibilitará a identificação sexual e social do indivíduo com o
meio em que vive.
No caso do indivíduo transexual, o transtorno consiste na divergência do sexo psíquico
com as demais formas de identificação sexual, pois, apesar de seus sexos cromossômicos,
gonadal, morfológico e legal determinarem sua inclusão em determinado gênero, o seu sexo
psíquico influi para que ele acredite pertencer ao sexo oposto, reagindo em desacordo com o
que é considerado normal para as pessoas do sexo ao qual pertence. Dessa forma, não há
adequação entre o sexo biológico e o sexo psíquico do indivíduo, criando uma dicotomia
físico-psíquica e a não identificação com a sociedade
Os transexuais vêm caminhando à margem da sociedade por anos, não só pela ambivalência quanto à identificação com o próprio ser e a sociedade a que pertence, como também pela falta de legislação no ordenamento jurídico brasileiro que assegure sua inclusão social. Sendo assim, a problemática tem sido resolvida no âmbito jurisprudencial, por mera deliberação dos aplicadores do direito que, diante do caso concreto, ponderam a regra da imutabilidade com os direitos constitucionais.
Entretanto, ressalta-se que a aplicação da regra da imutabilidade do nome civil por alguns tribunais brasileiros não só acarreta a exclusão social, mas a exclusão da identidade pessoal do transexual como ser humano, cidadão brasileiro que tem garantido constitucionalmente o direito à vida e à cidadania. Isso porque em um país cuja Carta Magna tem como princípio reitor a Dignidade da Pessoa Humana, esses cidadãos têm dificuldade em se sentirem pertencentes à sociedade, visto que sua identidade pessoal torna-se diferente de sua identidade social.
E, além da falta de regulamentação no ordenamento jurídico que assegure aos transexuais seus direitos, por anos os tribunais privilegiaram, e ainda privilegiam, a aplicação da regra da imutabilidade do registro civil face à identificação e inserção social a que tem direito os cidadãos, independentemente de sua orientação sexual.
Conforme entendimento jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o transexual que se submeteu a cirurgia de transgenitalização não terá o direito à modificação do seu registro civil, do nome tampouco do sexo, afirmando que a medicina não tem o poder de determinar o sexo do ser humano, quem o faz é somente a natureza. Sendo assim, o cidadão transexual que deseja sua adaptação à sociedade e realiza a operação de mudança de sexo deverá arcar com as consequências de suas escolhas e, portanto, o Poder Judiciário não deve apreciar a questão. Conforme ementa da decisão:
RETIFICAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. MUDANÇA DE NOME E DE SEXO.
IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDO. O homem que almeja transmudar-se em mulher, submetendo-se a cirurgia plástica reparadora, extirpando os órgãos genitais, adquire uma "genitália" com similitude externa ao órgão feminino, não faz jus à retificação de nome e de sexo porque não é a medicina que decide o sexo e sim a natureza. Se o requerente ostenta aparência feminina, incompatível com a sua condição de homem, haverá de assumir as conseqüências, porque a opção foi dele. O Judiciário, ainda que em procedimento de jurisdição voluntarie, não pode acolher tal pretensão, eis que a extração do pênis e a abertura de uma cavidade similar a uma neovagina não têm o condão de fazer do homem, mulher. Quem nasce homem ou mulher, morre como nasceu. Genitália similar não é autêntica. Autêntico é o homem ser do sexo masculino e a mulher do feminino, a toda evidência. [1] (Destaque nosso)
Nesse diapasão, também é o entendimento do Desembargador Grava Brasil que, em julgamento de Apelação Cível n. 452.036-4/00, em 2006, entendeu não ser direito do transexual a retificação do registro civil face à regra da imutabilidade dos dados do assento de nascimento. Ressaltou, ainda, que a modificação pode acarretar prejuízos para terceiros e que, portanto, não pode furtar-lhes o direito de conhecer a verdade.
Veja-se:
RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. MODIFICAÇÃO DE NOME E SEXO. REGRA DA IMUTABILIDADE DOS DADOS DO ASSENTO DE NASCIMENTO, QUE SÓ PODEM SER MODIFICADOS EM RAZÃO DE JUSTIFICATIVA IRREBATÍVEL. SEM RISCO PARA A VERDADE QUE TODO O REGISTRO DEVE ESPELHAR E SEM QUE SE RETIRE DOS TERCEIROS O DIREITO DE CONHECER A VERDADE. SENTENÇA MODIFICADA. RECURSO PROVIDO.[2] (Destaque nosso)
Nos ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves,
[...] a ablação de órgão para a constituição do sexo oposto não se mostra suficiente para a transformação, pois a conceituação de mulher decorre da existência, no interior do corpo, dos órgãos genitais femininos: dois ovários, duas trompas que conectam com o útero, glândulas mamárias e algumas glândulas acessórias etc.[3]
Outros doutrinadores, apesar de defenderem a possibilidade de alteração no registro civil, ressalvam que o mesmo deverá conter a alteração do nome e não do sexo, haja vista ser o sexo genético imutável e a alteração do mesmo no assento de nascimento ensejaria vários direitos pertencentes ao sexo oposto, como licença-maternidade no caso de adoção, redução do prazo para aposentadoria, reconhecimento de união estável, participações em competições esportivas pelo sexo oposto, etc. Há, ainda, aqueles que defendem a alteração no registro civil, com a condição de constar a sua condição de indivíduo “transexual”, estabelecendo a criação de um terceiro gênero.
As decisões supracitadas fundamentam-se em princípios imobilizadores do registro civil, buscando preservar valores conservadores do ordenamento jurídico brasileiro e não condizentes mais com os anseios da sociedade, como segurança jurídica e prevalência do interesse de terceiros.
Ressalta-se, entretanto, que o presente trabalho não tem o condão de rechaçar a regra da imutabilidade do nome civil, reconhecemos a sua importância para fins de evitar a anarquia social e a banalidade do registro civil, pondo, ainda, em risco a sua fé pública.
No entanto, defende-se que, uma vez não aplicados os princípios basilares da nossa Constituição Federal, a anarquia social já está caracterizada. Portanto, a falta de aplicação dos princípios constitucionais já constitui uma anarquia social para ao excluídos da sociedade.
O direito à identidade tem a finalidade de individualizar o individuo dos demais membros da sociedade, sendo a base para o exercício dos demais direitos. É representado, em especial, pelo direito ao nome, elemento integrante da personalidade, sendo o sinal exterior que individualiza o homem.
Choeri revela a identidade humana sob duas dimensões, uma estável e a outra dinâmica. Para ele, na dimensão estável – compreendidos o nome e os elementos de individualização física da pessoa- os elementos são modificáveis sob determinadas condições. A dimensão dinâmica compreende os elementos psicossociais, a experiência individual de cada pessoa, herança cultural, ideologia. Ou seja, os atributos adquiridos por sua interação social.[4]
Sendo assim, tantos os elementos jurídicos e característicos da pessoa como o seu conhecimento empírico e a influência do meio social em que vive são fatores determinantes de sua identificação.
E, nas relações entre os indivíduos, os documentos possuem fundamental importância vez que concretizam esses elementos, como a certidão de nascimentos que identifica a pessoa, designando o seu nome, nacionalidade, sexo. É esse documento que enseja seus direitos e obrigações e te identifica na sociedade enquanto titular dos mesmos.
Desta feita, é essa a busca do indivíduo transexual, poder ser reconhecido socialmente da forma com que ele próprio se reconhece. E tais documentos certificadores de dados socialmente atribuídos à pessoa integra o processo de desenvolvimento da sua identidade. E, portanto, a possibilidade de alteração do registro civil dos transexuais é condição sine qua non de seu reconhecimento social e, consequentemente de sua inclusão social.
Devido à omissão do ordenamento jurídico brasileiro sobre a temática, grande parte da doutrina e da jurisprudência admite a alteração do registro civil por analogia[5] à relativização da regra da imutabilidade que permite a substituição do prenome pelo apelido público notório pelo qual a pessoa é reconhecida no meio social em que vive, com fundamento no artigo 58, caput, da Lei de Registro Público – Lei n. 6.015/73: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”.
Assim, o artigo 58, caput, da Lei n. 6.015/73, fator garantidor dessa inclusão social, admite a substituição do prenome constante no registro civil pelo apelido público notório, partindo da premissa de que o nome tem como função a individualização do ser e a identificação do ser humano com o seu aspecto subjetivo, ou seja, seu aspecto interior. Portanto, a interpretação analógica desse dispositivo normativo confere amparo legal para a problemática suscitada pela transexualidade, trazendo a possibilidade de adequar o registro civil a identidade social do indivíduo, tendo em vista sua nova condição física e psicológica.
Nesse sentido, entendeu o Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves:
REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PRENOME. ALTERAÇAO. POSSIBILIDADE. APELIDO PÚBLICO E NOTÓRIO. O FATO DE O RECORRENTE SER TRANSEXUAL E EXTERIORIZAR TAL ORIENTAÇÃO NO PLANO SOCIAL, VIVENDO PUBLICAMENTE COMO MULHER, SENDO CONHECIDO POR APELIDO, QUE CONSTITUI PRENOME FEMININO, JUSTIFICA A PRETENSÃO JÁ QUE O NOME REGISTRAL É COMPATÍVEL COM O SEXO MASCULINO. DIANTE DAS CONDIÇÕES PECULIARES, O NOME DE REGISTRO ESTÁ EM DESCOMPASSO COM A IDENTIDADE SOCIAL, SENDO CAPAZ DE LEVAR SEU USUÁRIO A SITUAÇÃO VEXATÓRIA OU DE RIDÍCULO. ADEMAIS, TRATANDO-SE DE UM APELIDO PÚBLICO E NOTÓRIO JUSTIFICADA ESTA A ALTERAÇÃO.
INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 56 E 58 DA LEI N. 6.015/73 E DA LEI N.9.708/98.[6]
Apesar de constituir um fator de inclusão social, a aplicação analógica do artigo 58, caput, da Lei de Registro Público não supre a necessidade do indivíduo transexual em ser reconhecido e não retira o caráter omissivo e prejudicial das normas brasileiras em relação às garantias constitucionais previstas pela Carta Magna.
O transexual não enseja a adoção de um apelido público notório, mas o reconhecimento de seu direito à redesignação sexual, tendo como conseqüência a alteração do prenome e do sexo no assento civil como medida garantidora no processo de desenvolvimento dessa nova identidade sexual e social. Portanto, almeja ser reconhecido como pertencente ao sexo oposto e, como tal, ter garantido o seu direito ao nome, que constitui um direito da personalidade.
Não obstante, tratar de um direito da personalidade de forma analógica é constatar a real falta de aplicação dos preceitos constantes na Constituição Federal de 1988, vez que esses direitos são inerentes à pessoa humana e não deveriam ser observados por aplicação analógica à uma norma infraconstitucional, a solução deverá ser buscada nos próprios princípios da Constituição Federal.
Ana Paula Ariston Barion Peres preleciona que “Por direitos da personalidade compreendem-se aqueles direitos relativos à tutela da pessoa humana, indispensáveis à proteção da dignidade e integridade das pessoas”.[7]
Dessa forma, são componentes intangíveis da pessoa e não podem ser deixados à margem da análise do julgador, sob pena de não mais desempenhar sua função, constituindo um relevante problema social.
No Direito Comparado, alguns países regulamentam a temática da transexualidade através de leis novas e específicas. Outros, através da adaptação de leis já existentes. Os países europeus receberam forte influência da Convenção Européia dos Direitos do Homem, que assegura, entre outras garantias, o direito à liberdade do indivíduo; o que tem sido o fundamento para a legitimação das operações de redesignação sexual e a alteração no registro civil, tanto do nome quanto do estado sexual.
Na França, por anos os tribunais se pronunciaram contrários à redesignação do estado sexual. No entanto, após o Tribunal Europeu de Direitos do Homem proferir decisão condenatória contra a França devido a negação de pedido de redesignação pela Corte de Cassação francesa, os tribunais tem admitido a redesignação sexual e a mudança no assento civil, com fundamento no artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que dispõe sobre o direito ao respeito pela vida privada e familiar do indivíduo, não podendo haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito, salvo previsão legal ou para assegurar a segurança nacional.
Na Alemanha, a alteração do gênero sexual e do nome no assento de nascimento é regulamentada desde 10 de setembro de 1980 pela Lei dos Transexuais.
Na Itália, a temática também já é regulamentada de forma a permitir a retificação no registro civil. Maria Helena Diniz expõe em sua obra sobre o Biodireito a decisão da Corte Italiana:
A Corte Italiana, em 24 de maio de 1975, reformando decisão do Tribunal de Apelação de Nápoles, declarou que a retificação judicial de atribuição do sexo não se restringe ai caso de hermafroditismo, devendo ser aplicada também no transexualismo, pois o encontro da integridade psicofísica assegura o direito à saúde, que abrande a saúde psíquica.[8]
Em Portugal, o ordenamento jurídico não faz referência à situação dos transexuais. A questão tem sido decidida jurisprudencialmente pelos tribunais, com fundamento no direito à identidade, constante no artigo 26 da Constituição Portuguesa.
Nos Estados Unidos da América, alguns estados adaptaram normais já existentes, outros trataram da problemática através de leis específicas. Louisiana, por exemplo, regulamentou a redesignação sexual em 1968m mediante lei específica e detalhada sobre os transexuais, possibilitando expressamente a alteração do nome do transexual junto ao registro civil. Já Nova York não possui norma específica sobre o assunto, que é tratado por regulamento administrativo, na competência do Ministério da Saúde Pública.
No Brasil, não há no direito positivo norma que regulamente a situação dos transexuais.
Luiz Alberto David Araújo discorre sobre a questão da falta de adequação do próprio direito com a realidade social, relacionando-o à possibilidade de alteração no registro civil como fator garantidor da inclusão social:
O descompasso entre a realidade e a realidade jurídica choca a todos. Não há necessidade de outros exemplos, tamanha a evidência e incoerência da situação. Se o direito deve tratar da realidade, como impor uma realidade distorcida como a descrita? Portanto, o direito de alteração do registro civil é evidente, com a redesignação do prenome, depois de todas as cautelas necessárias, como a verificação de certidões, etc.[9]
Desde 1995 tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 70-B, de autoria do Deputado José Coimbra, que dispõe sobre a redesignação sexual, abrangendo a intervenção cirúrgica para alteração do estado sexual e a mudança no registro civil.
O Projeto inclui novo parágrafo ao artigo 129 do Código Penal Brasileiro, excluindo a conduta médica do crime de lesão corporal quando da realização da cirurgia de transgenitalização. A nova redação do artigo supracitado passaria a constar:
Art 129 .
Exclusão do crime
§ 9° Não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação e órgãos e partes do corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica.
Não obstante, propõe alteração do artigo 58 da Lei n. 6.015/73. O primeiro parágrafo consta o texto original do artigo. O segundo parágrafo prevê a possibilidade da alteração do prenome do indivíduo transexual submetido à cirurgia destinada a alterar o sexo originário, mediante autorização judicial. E o terceiro parágrafo determina a designação de “transexual” na averbação do registro de nascimento e no documento de identidade da pessoa transexual.
O artigo 58 da Lei n. 6.015/73 passaria a ter a seguinte redação:
Art. 58. O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.
§ 1 ° Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite- se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.
2° Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.
§ 3° No caso do parágrafo anterior deverá ser averbado ao registro de nascimento e no respectivo documento de identidade ser pessoa transexual.
Entretanto, o parágrafo terceiro foi vetado pela Comissão de Constituição e Justiça, sob pena de expor os indivíduos transexuais ao ridículo e às situações vexatórias, devido à criação de um terceiro sexo que objetiva rotular os indivíduos, ferindo os seus direitos constitucionais.
A comissão “insurgiu-se contra a determinação de averbação de ser a pessoa transexual, com fundamento no art. 5º, X, da CF, que protege, entre outras coisas, a privacidade da pessoa. Além de agredir a privacidade da pessoa, a menção ao fato de ser transexual a expõe ao ridículo”.[10]
O parágrafo terceiro passaria a constar a seguinte redação: “No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”.
A Comissão apresentou emenda aditiva a fim de incluir, ainda, o parágrafo quarto ao artigo 58 da Lei n. 6.015/73, vedando a expedição de certidão, salvo pedido do interessado ou determinação judicial, in verbis: “É vedada a expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação judicial”.
O referido projeto encontra-se na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.[11]
Ressalta-se que apesar de constituir relevante avanço no ordenamento jurídico brasileiro em relação ao reconhecimento dos direitos fundamentos aos transexuais, o projeto é omisso em relação à várias problemáticas sobre o tema, como alteração do registro sem a realização da intervenção cirúrgica, a operação de incapazes devidamente assistidos, alteração do nome do transexual redesignado casado e/ou que possui filhos e sobre o registro dos mesmos.
Acerca dessa omissão, dispõe Ana Paula Ariston Barion Peres:
O referido projeto foi omisso quanto à necessidade ou não de autorização judicial para a realização da cirurgia. Não explicitou os destinatários da norma; não determinou o estado civil do transexual para que possa submeter-se à operação e deixou de estabelecer as garantias para que ele exerça os direitos decorretes do seu novo estado sexual. Consequentemente, não delimitou o alcance jurídico desse reconhecimento e, por fim, também deixou de fixar os respectivos deveres.[12]
Desta feita, a aprovação do referido projeto não exclui a apreciação do Judiciário dessas problemáticas. O Direito deve se adequar a realidade e acompanhar as mudanças sociais.
Em julgamento do Recurso Especial nº 1.008.398 - SP (2007/0273360-5), a Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Nancy Andrighi, deu provimento ao recurso no sentido da retificação do registro civil do transexual, em contraposição ao recurso interposto pelo Ministério Público que exaltou a regra da imutabilidade do registro civil face aos direitos fundamentais do ser humano, entendendo que atualmente o sexo não é designado tão somente pela genitália, pois existem vários elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição de gênero não pode ser limitada somente ao sexo aparente, devem também ser considerados os fatores psicológicos e culturais.
Sendo assim, faz-se necessária a alteração do registro civil em relação ao sexo jurídico, proporcionando a identidade sexual, pois caso contrário estaria retirando do indivíduo transexual o direito de viver dignamente.
Reconheceu, ainda, o direito a alteração do nome, sob duas óbvias justificativas, quais sejam a manutenção do nome de nascimento do transexual no assento de nascimento implicará claramente em exposição do titular ao ridículo e a situação vexatória haja vista não condizer mais com a realidade aparente do mesmo, ferindo o disposto no artigo 55, parágrafo único, Lei de Registro Público – Lei n. 6.015/73.
Não obstante, se o indivíduo pode alterar o seu nome pelo apelido público notório pela qual se identifica e é reconhecido no meio social em que vive, conforme artigo 58, caput, do mesmo dispositivo legal, o transexual também há de ter seu direito à identidade reconhecido, podendo alterar seu nome pelo qual é reconhecido.
Conforme ementa de tal decisão:
Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo. Princípio da dignidade da pessoa humana.
- Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais, no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica, socioambiental e ético-espiritual.
- A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à possibilidade de expressar todos os atributos e características do gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade.
- A falta de fôlego do Direito em acompanhar o fato social exige, pois, a invocação dos princípios que funcionam como fontes de oxigenação do ordenamento jurídico, marcadamente a dignidade da pessoa humana – cláusula geral que permite a tutela integral e unitária da pessoa, na solução das questões de interesse existencial humano.
- Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto.
- Somos todos filhos agraciados da liberdade do ser, tendo em perspectiva a transformação estrutural por que passa a família, que hoje apresenta molde eudemonista, cujo alvo é a promoção de cada um de seus componentes, em especial da prole, com o insigne propósito instrumental de torná-los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como pessoa humana.
- A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo.
- Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente.
- Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo, portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido.
- Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei n.º 6.015/73.
- Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar.
- Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna.
- De posicionamentos herméticos, no sentido de não se tolerar “imperfeições” como a esterilidade ou uma genitália que não se conforma exatamente com os referenciais científicos, e, consequentemente, negar a pretensão do transexual de ter alterado o designativo de sexo e nome, subjaz o perigo de estímulo a uma nova prática de eugenia social, objeto de combate da Bioética, que deve ser igualmente combatida pelo Direito, não se olvidando os horrores provocados pelo holocausto no século passado. Recurso especial provido.[13]
No mesmo sentido entendeu o Ministro João Otávio de Noronha no julgamento do Recurso Especial nº 737.993 – MG (2005/0048606-4), ao afirmar que não reconhecer juridicamente o pedido formulado é subtrair do indivíduo o seu direito à identidade, deixando de assegurar os direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988, em especial, para os preceitos relativos à personalidade e à dignidade da pessoa humana.
Propõe, ainda, que para solucionar eventuais questões que sobrevierem no âmbito do direito de família, previdenciário e esportivo, é necessário registrar no livro cartorário, à margem do registro civil, as retificações do prenome e do sexo do indivíduo transexual, sendo vedada a constatação nas certidões de registro público, como RG e Carteira de Motorista, sob pena de exposição à situação vexatória e discriminatória.
No tocante ao poder familiar, Maria Helena Diniz entende que “a cirurgia de conversão de sexo, para evitar constrangimento ao cônjuge, só deverá, ser feito em transexual solteiro, divorciado ou viúvo”[14]
Sob a análise do Direito Comparado, tem-se:
Para evitar traumas ao ex-cônjuge e aos filhos, as leis alemãs e suecas vedam a redesignação sexual a pessoa casada, permitindo- a somente à solteira. Isso porque haverá problemas no relacionamento com a prole, que terá dificuldades no convívio social, ficando sem saber como deverá tratar o genitor que mudou de sexo.[15]
Em contraposição a esse entendimento, Luiz Alberto David defende que o transexual não pode ter o seu direito furtado em decorrência do casamento e dos filhos, a situação deve ser analisada no caso concreto e, caso não haja prejuízo para os filhos a cirurgia deve ser autorizada. In verbis:
[...] o fato de ter sido casado e de ter filhos não pode constituir obstáculo, por si, ao direito de felicidade do transexual. Trata-se de fatores que dificultarão sua nova realidade (especialmente diante da existência de filhos menores). No entanto, a regra não pode ser proibitiva, devendo ser analisada dentro do contexto da realidade, com apoio psicológico para os filhos. Caso não houvesse prejuízos para estas, se menores, a cirurgia poderia ser autorizada.[16]
Veja-se ementa do Recurso Especial supracitado:
REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE MATÉRIA
CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE EXAME NA VIA DO RECURSO
ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SUMULA N. 211/STJ.
REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO. DECISÃO
JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO CARTORÁRIO.
1. Refoge da competência outorgada ao Superior Tribunal de Justiça apreciar, em sede de recurso especial, a interpretação de normas e princípios de natureza constitucional.
2. Aplica-se o óbice previsto na Súmula n. 211/STJ quando a questão suscitada no recurso especial, não obstante a oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pela Corte a quo.
3. O acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a despeito da oposição de embargos de declaração, não regulariza a omissão apontada, depende da veiculação, nas razões do recurso especial, de ofensa ao art. 535 do CPC.
4. A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive.
5. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade.
6. No livro cartorário, deve ficar averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão judicial.
7. Recurso especial conhecido em parte e provido. [17]
Nesse ínterim, o Direito não deve obstaculizar o desenvolvimento social, sua interpretação deve atender aos anseios da sociedade e acompanhar sua evolução. Por isso, o Poder Judiciário não pode ignorar a problemática dos transexuais, haja vista já ser ignorada pelo Poder Legislativo, ferindo, em muito, os direitos fundamentais desses seres humanos, não obstante a todo o sofrimento já causado pela não identificação com o próprio ser e com o meio social em que vive.
Não obstante, garantir-lhes lugar na sociedade é efetivar os direitos fundamentais trazidos pela Constituição Federal de 1988, qual seja direito à dignidade da pessoa humana, à cidadania, à integridade e à saúde, permitindo que seu nome seja, de fato, um atributo inerente à sua pessoa, independentemente dos seus aspectos físicos ou morais.
3. AMPARO CONSTITUCIONAL
Diante dos novos paradigmas constitucionais, é preciso analisar o direito à redesignação sexual, incluindo o direito ao nome, sob um novo aspecto, que passa a ter como essência os princípios constitucionais que, por serem reitores do ordenamento jurídico brasileiro, devem assegurar a condição de vida digna aos transexuais.
Nesse sentido, aduz Luís Roberto Barroso que “Os princípios constitucionais consubstanciam as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, irradiando-se por todo um sistema. Eles indicam o ponto de partida e os caminhos a serem percorrido”[18]
Desta maneira, salienta-se a importância de se aplicar os princípios constitucionais à realidade social, conforme ensina Cármen Lúcia Antunes Rocha:
(...) a interpretação dos princípios constitucionais haverá que ser progressiva, ou evolutiva, entendendo por esta a que se faz buscando adaptar-se o sentido havido no texto e no contexto à realidade da sociedade estatal no momento de sua aplicação.[19]
A Constituição Federal de 1988 elencou como fundamento da República Federativa do Brasil, em seu artigo 1º, incisos II e III, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, exaltando valores humanos como princípios reitores da atuação do Estado e da Sociedade. Em seu artigo 3º, inciso IV, traz como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer ouras formas de discriminação. O artigo 4º, inciso II assegura o princípio da prevalência dos direitos humanos.
Promove, ainda, a igualdade de todos, princípio amparado pelo artigo 5º da Carta Magna que preceitua que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Não obstante, assegura como garantia e direito social a saúde, em seu artigo 6º, que constitui direito de todos os cidadãos e um dever do Estado, nos termos do artigo 196 também da Constituição Federal.
Roger Raupp Rios preceitua que a abordagem social da transexualidade deve ser analisada sob duas perspectivas: direito à saúde e o direito à autodeterminação da identidade sexual, que é amparada pelos direitos fundamentais da liberdade, igualdade, dignidade da pessoa humana. Isso porque interpretar o direito à saúde a partir da perspectiva desses princípios basilares da Constituição confere maior eficácia jurídica aos direitos fundamentais.[20]
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A identidade de gênero, compreendida de modo amplo, reúne não só características do sexo morfológico do indivíduo, mas também de seu sexo psíquico, levando em consideração sua interação com fatores sociais, culturais e religiosos do meio em que vive. Assim, a identidade de gênero é uma construção sociocultural.
Quando o produto dessas interações se mostra distinto do sexo físico do indivíduo, causando-lhe transtorno em sua identidade sexual, tem-se o fenômeno a que denominamos transexualidade, patologia considerada como disforia de gênero, caracterizada pela não identificação do sexo morfológico com o sexo psíquico, o que leva o indivíduo convicção de pertencer ao sexo oposto, gerando distúrbios psicológicos e comportamentais, vez que há dúvidas quanto ao papel social desempenhado pelo indivíduo.
Diante de sua nova designação sexual, o transexual tem em seu fim o reconhecimento social de sua nova condição.
A cirurgia de transgenitalização já é permitida no Brasil e regulamentada pela Resolução CFM n. 1955/10, sendo, inclusive, um procedimento cirúrgico custeado pelo SUS, conforme Portaria n. 1.707/08. Entretanto, é somente com a retificação do registro civil, com a redesignação de novo nome e sexo, que se pode obter a plena identificação do indivíduo com o próprio ser e com a sociedade e, consequentemente, sua integração social.
O Brasil não possui nenhuma legislação específica que trata do assunto, o Projeto de Lei 70-B de autoria do Deputado José Coimbra está em tramitação no Congresso Nacional. Assim, a problemática suscitada tem sido objeto de debates nos tribunais brasileiros, dividindo importantes opiniões a respeito do tema. A maioria dos aplicadores do direito defende o entendimento favorável a alteração do registro civil dos transexuais transgenitalizados, fundamentando seu entendimento em uma aplicação analógica do artigo 58 da Lei n. 6.015/73, que permite a substituição do prenome pelo apelido público notório pelo qual o indivíduo é reconhecido na sociedade.
A solução deve ser buscada na própria Constituição Federal. O artigo 3º, inciso I da Constituição Federal designa a liberdade como um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, amparando a existência de uma sociedade livre, justa e solidária. O direito à liberdade, em um Estado Democrático de Direito, nos remete a idéia de livre e consciente manifestação da vontade, conferindo ao indivíduo o direito de tomar decisões que melhores atendam seus interesses particulares, é o que chamamos de autodeterminação.
O direito ao nome em muito se relaciona com o direito à liberdade, vez que se constitui o sinal identificador do ser humano é este quem deve se manifestar a respeito de como se identifica e se o referido sinal o representa no meio social em que vive, deixando à sua discricionariedade a possibilidade de mantê-lo ou alterá-lo.
Outro objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, elencado pelo artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal, que podemos suscitar no amparo constitucional do direito dos transexuais é a igualdade.
O princípio da igualdade, baseado na não discriminação, é a manifestação e concretização da dignidade da pessoa humana, vez que assegurar uma sociedade igualitária e digna, insere, primeiramente, em promover o tratamento equilibrado a todos os cidadãos, assegurando o direito de todos.
Como exposto, a nossa Carta Magna adotou como preceito fundamental o princípio da dignidade da pessoa humana, priorizando a valoração do ser humano e a promoção de direitos e garantias que possibilitem as condições de vida digna a todos os cidadãos.
Para os indivíduos transexuais não há que se falar em vida digna se não há o seu reconhecimento consigo mesmo, tampouco na sociedade a qual pertence. É importante entendermos que essa identificação é condição “sine qua non” de uma vida digna, somente com a plena redesignação sexual, a transgenitalização e a alteração do seu registro civil, o indivíduo transexual pode começar a desempenhar o seu papel social e a identifcar-se como ser humano pertencente a sociedade, caso contrário subsistirá sempre à margem da sociedade, tentando se adaptar a uma realidade que não condiz com a sua realidade psíquica, sofrendo preconceitos e diversas formas de discriminação.
Não obstante, não podemos deixar de lado o direito à saúde, que constitui um direito de todos e um dever do Estado, nos termos dos artigos 6º e 196 da Constituição Federal.
Salienta-se que a saúde engloba os aspectos físicos e mentais do ser humano. Sendo considerada uma patologia pela Classificação Internacional de Doenças – CID, é direito do ser humano e dever do Estado tratá-la. Os meios de tratamentos dos transexuais consistem na realização da cirurgia de transgenitalização, tratamento hormonal, alteração de registro civil e acompanhamento psicológico, entre outros.
O aspecto físico já é devidamente reconhecido com a intervenção cirúrgica e tratamentos hormonais para a redesignação sexual e, não menos importante, é necessário garantir o aspecto psicológico do indivíduo transexual. Um dos fatores fundamentais do aspecto psíquico é a alteração do registro civil, que influi diretamente no reconhecimento do ser na sociedade e o pleno exercício dos seus direitos civis e na sua saúde mental, evitando transtornos de identificação e discriminação no meio em que vive.
Sendo assim, o Estado deve promover o pleno desenvolvimento da identidade da pessoa transexual, garantindo-lhe respeito à dignidade da pessoa humana e a outros princípios constitucionais de suma importância, como liberdade, igualdade, saúde e a própria vida.
A ciência do Direito deve observar os fatos e suas descobertas devem servir como auxiliadores na melhora das condições de vida digna do ser humano, devendo acompanhar as mudanças da sociedade e atender aos seus novos anseios. A mudança do nome e do sexo no assentamento civil é uma forma de atender aos anseios dos transexuais de redesignação sexual e promover a sua integração social, já que somente com tal adaptação é possível que o indivíduo transexual exerça seus direitos civis e faça parte plena da sociedade, desempenhando seu papel social e gozando de todos os direitos constitucionais que lhe são conferidos pela Constituição Federal de 1988, sem sofrerem qualquer discriminação, haja vista que conforme artigo 5ª da Carta Magna “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. Vol. 1. São Paulo: Atlas, 2001.
[1] Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação Cível nº 1993.001.06617, Oitava Câmara Cível, julgado em 18/03/1997.
[2] Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 452.036-4/00, Nona Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargador Grava Brasil. São Paulo, 07 nov. 2006.
[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: parte geral. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 137
[4] CHOERI, Raul. O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2008. p. 122-123.
[5] Analogia é um meio de integração da ordem jurídica quando da existência de uma lacuna constitucional, que consiste na aplicação de uma regra jurídica concebida para uma situação fática a uma situação semelhante não prevista no ordenamento jurídico pelo legislador.
[6] Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 00394904NRO-PROC70000585836, DATA: 31/05/2000, Sétima Câmara Cível, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.
[7] PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.139.
[8] DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 298.
[9] ARAUJO, Luiz Alberto David. A Proteção Constitucional do Transexual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 134.
[10] PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 182.
[11] Apensados ao Projeto de Lei n. 70-B/1995, estão os Projetos n. 3727/1997, 5872/2005 e 6655/2006. O Projeto de Lei n. 3727/1997, de autoria do Deputador Wigberto Tartuce propõe que em caso de alteração de sexo, mediante intervenção cirúrgica, será permitida a troca do nome por sentença. O Projeto de Lei n. 5872/2005, de autoria do Deputado Elimar Máximo Damasceno, propõe a proibição da mudança dos prenomes em casos de transexualismo. E, por fim, o Projeto de Lei n. 6655/2006, de autoria do Deputado Luciana Zica, propõe a possibilidade de alteração do prenome do transexual, mesmo sem a intervenção cirúrgica, com a designação imperativa de a pessoa ser transexual quando da averbação do registro de nascimento.
[12] PERES, Ana Paula Ariston Barion, Transexualismo o direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.267.
[13] RESP nº 1.008.398 - SP (2007/0273360-5), Superior Tribunal de Justiça – Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 15/10/2009.
[14] DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 304.
[15] DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 298.
[16]ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 145.
[17] RESP nº 737.993 - MG (2005/0048606-4), Superior Tribunal de Justiça – Quarta turma, Relator Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 05/11/2009.
[18] BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 287.
[19] ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 47.
[20] Tribunal Regional Federal da Quarta Região – Apelação Cível nº 2001.71.00.026279-9/RS.
Advogada, formada pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: STéPHANIE ALMEIDA ARAúJO, . Transexuais: direito à redesignação do estado sexual e a identificação social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50439/transexuais-direito-a-redesignacao-do-estado-sexual-e-a-identificacao-social. Acesso em: 22 nov 2024.
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