RESUMO: Este artigo analisa a possibilidade de utilização, pela União, de materialidades típicas dos impostos federais para instituição de contribuições especiais. Procura-se avaliar se a tributação nesses termos afronta direitos fundamentais dos contribuintes, consubstanciados nos princípios constitucionais gerais e, especialmente, os princípios constitucionais tributários.
Palavras-Chaves: Limites da competência tributária. Instituição de contribuições especiais pela União. Respeito aos princípios constitucionais tributários.
Sumário: 1. Introdução.
1. INTRODUÇÃO
Dado o caráter multifacetário da expressão “competência”, deve-se esclarecer, a princípio, que nos referimos aqui à aptidão jurídica para criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas (elementos estruturais dos tributos)[1]. Alude-se, portanto, à competência legislativa tributária, uma das parcelas da prerrogativa legiferante das pessoas políticas[2], consubstanciada na possibilidade de instituição de tributos.
A Lei nº 5.172 (Código Tributário Nacional – CTN), em seu art. 5º, refere-se a três espécies de tributos: impostos, taxas e contribuições de melhoria. A Constituição Federal, embora se refira no art. 145 somente a essas mesmas três espécies tributárias, outorga à União, em outros dispositivos, a possibilidade de instituição de empréstimos compulsórios e de contribuições que a doutrina adjetivou de especiais. Diante da celeuma sobre a classificação das espécies tributárias que a Constituição teria adotado, o Supremo Tribunal Federal se posicionou pela teoria pentapartida[3].
A Constituição Federal repartiu a competência para instituição de tributos entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. No que concerne à União, somada à competência tributária expressa e para criação dos impostos extraordinários de guerra, a Carta previu a possibilidade de instituição de impostos residuais e contribuições residuais (outras contribuições sociais). Nos termos do art. 154, I, CF, a União poderá instituir, mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição. O art. 195, §4º, CF, por sua vez, autoriza a instituição de outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.
Diferentemente do que fez para as contribuições para a seguridade social, o legislador constituinte não definiu as materialidades das demais contribuições. Assim, sugere-se a reflexão: a União pode utilizar a materialidade de impostos federais para instituição de contribuições?
2. DA CRIAÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES SOBRE MATERIALIDADES ATRIBUÍDAS A IMPOSTOS
a. Da materialidade tributária
Toda norma é formada por um antecedente e um consequente. O consequente da norma de competência estabelece os condicionantes materiais a serem observados pelo legislador infraconstitucional na edição da norma instituidora do tributo. Conforme assevera Tácio Lacerda Gama[4], toda referência à materialidade é sempre uma referência a verbos e seus respectivos complementos. Como materialidade do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS, por exemplo, temos a prestação de serviços. A materialidade, em síntese, é o evento sobre o qual pode incidir a tributação.
b. Da materialidade das contribuições
Como alerta Paulo de Barros Carvalho[5], apenas as hipóteses de incidência das contribuições para seguridade social foram estabelecidas exaustivamente na Constituição. A criação de novas materialidades deve observar os requisitos para o exercício da competência residual, que são a veiculação em lei complementar, a não cumulatividade e fato gerador e base de cálculo diversos dos discriminados na Constituição.
Fabiana Del Padre Tomé sintetiza bem os limites para eleição de novas materialidades para as contribuições: (i) a competência atribuída aos Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como os (ii) direitos fundamentais dos contribuintes, erigidos nos princípios constitucionais em geral e, mais especificamente, nos princípios constitucionais tributários[6].
Pensemos na hipótese de criação, pela União, de determinada contribuição sobre materialidades atribuídas a impostos federais. Não há que se falar em violação à competência atribuída aos outros entes federativos, vez que incidente sobre matérias que não lhe foram afetadas. E quanto aos direitos fundamentais dos contribuintes, há afronta a princípios constitucionais gerais ou tributários?
Antes de caminharmos a uma conclusão, um ponto merece ser destacado. Sobretudo nesta era do panprincipiologismo, expressão atribuída a Lenio Luiz Streck, é comum e quase inevitável que a imposição de deveres acabe por limitar determinados direitos fundamentais. Aliás, direitos e deveres são, por natureza, reciprocamente limitativos. A questão é saber se, adotado o veículo legislativo adequado, a criação do dever pelo legislador infraconstitucional (instituição do tributo) tem densidade suficiente para desrespeitar os princípios garantidores. O juízo de ponderação, pois, é indispensável.
Feita essa ressalva, são princípios potencialmente violáveis na utilização de materialidades de impostos federais para criação de contribuições: legalidade, capacidade contributiva, não-confisco, segurança jurídica e isonomia.
c. Princípio da Legalidade
A possível violação ao princípio da legalidade se dá em face da interpretação do art. 195, §4º da CF, que impõe à União, no exercício da competência residual para a instituição das contribuições, a observância dos requisitos do art. 154, I, CF. Este dispositivo determina que a União poderá instituir mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição.
Há quem se valha desse dispositivo para afastar a possibilidade de utilização de fato gerador ou base de cálculo de impostos discriminados na Constituição para instituição de contribuições. Caso contrário, haveria violação à norma do art. 154, I, CF e, portanto, ao princípio da legalidade. Essa, contudo, não me parece a melhor interpretação.
A referência do §4º do art. 195 ao art. 154, I, ambos da CF, deve ser interpretada no contexto em que inserida. A criação de outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social deve ser feita sob fato gerador e base de cálculo diversos dos discriminadas na Constituição para as contribuições. Instituída a contribuição nestes termos, por lei complementar e com observância da não cumulatividade, não se vislumbra afronta ao princípio da legalidade.
d. Princípios da Capacidade Contributiva, do Não-Confisco e da Isonomia
A capacidade contributiva e o não confisco, contudo, parecem mais sujeitos a transgressões. Conforme ensina José Eduardo Soares de Melo, o princípio do não-confisco está atrelado ao princípio da capacidade contributiva e é constatado, principalmente, pelo exame da alíquota, da base de cálculo, e mesmo da singularidade dos negócios e atividades realizadas[7]. Os tributos, portanto, devem incidir de forma razoável e proporcional, sob pena de assumir efeito confiscatório. Mediatamente, ambos se relacionam com o princípio geral da isonomia, devendo-se cobrar de forma intensa aqueles que têm maiores condições de contribuir.
Kiyoshi Harada dá as diretrizes para aferir a confiscatoriedade ou não de um tributo:
[...] para saber se um tributo é confiscatório ou não, deve-se, em primeiro lugar, avaliar a capacidade econômica do contribuinte. Se estiver além, apesar de sua excessiva onerosidade, deve-se, em um segundo momento, verificar se essa onerosidade se harmoniza com o conjunto de princípio constitucionais, garantidores do direito de propriedade, de liberdade de iniciativa, da função social da propriedade, etc.[8]
A análise, portanto, é casuística. É preciso aferir se a instituição da contribuição, com a alíquota e base de cálculo que lhe são atribuídas, somada aos demais tributos incidentes sobre a mesma materialidade, ultrapassa a capacidade contributiva do sujeito passivo. Aferir se determinada exação é ou não confiscatória é tarefa das mais árduas, mas o certo é que, fora da zona de incertezas, há faixas em que a confiscatoriedade pode ser constatada ou afastada com maior clareza.
O debate sobre a possível afronta à isonomia se deu com maior relevância na criação da Contribuição Sobre a Iluminação Pública – COSIP. Argumentava-se que, ao adotar o consumo de energia elétrica domiciliar como fato gerador do tributo, haveria afronta à isonomia, posto que não haveria referibilidade entre o serviço universal prestado e a base de tributação adotada. Instado a se manifestar, o STF entendeu que a tipologia estabelecida busca realizar a justiça fiscal, sendo lícito supor que quem tem um consumo maior tem condições de pagar mais[9].
Voltando à suposta confiscatoriedade, não se pode afirmar, sem a análise da carga tributária já incidente, que a utilização de materialidade de imposto federal na criação de contribuição possui efeito de confisco, violando a capacidade contributiva e, mediatamente, a isonomia. É preciso analisar se as bases sobre as quais a contribuição foi instituída ultrapassam o limite do razoável para, em caso positivo, podermos falar em exação inconstitucional.
e. Princípio da Segurança Jurídica
O princípio da segurança jurídica possui duas feições. Na primeira é mais específica, garantindo a estabilidade das decisões judiciais. Na segunda é mais abrangente, aproximando-se à ideia de previsibilidade. Restringindo o debate à seara do direito tributário, reforça a necessidade de se garantir ao sujeito passivo, ao menos minimamente, condições para prever as iniciativas arrecadatórias do Estado. Sobretudo numa política econômica oscilante como a brasileira, é essencial para o planejamento orçamentário dos contribuintes.
O fato é que as contribuições especiais são a “menina de ouro” da União. É justamente pela falta de uma definição precisa de sua materialidade que a instituição dessa espécie de tributo tem sido a solução à necessidade de arrecadação federal. O papel do legislador infraconstitucional aqui é fundamental. Em observância do princípio da tipicidade, é imprescindível que a lei complementar trace minunciosamente a tipologia da contribuição, afastando a margem de discricionariedade do Fisco.
Agindo assim, não me parece haver afronta à segurança jurídica, sob pena de reduzirmos o papel do legislador complementar quase à insignificância. É bem verdade que a regra-matriz de incidência do tributo é extraída da Constituição Federal. Todavia, não se pode cerrar os olhos à integração infraconstitucional.
Valemo-nos do exemplo proposto por Tácio Lacerda Gama: o ISS. A Lei Maior, em seu art. 156, III, outorgou aos Municípios a competência para instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza. O texto constitucional optou por não indicar o verbo, cabendo esta tarefa à Lei Complementar nº 116/2003, que optou pela prestação do serviço. Poderia ter optado pelo consumo do serviço, mas não. Elegeu a prestação dos serviços da lista anexa como a materialidade do ISS.
Assim, respeitada a tipicidade fechada, com previsão de todos os elementos que compõem a obrigação tributária, não se verifica afronta à segurança jurídica.
3. CONCLUSÃO
A inconstitucionalidade ou não da utilização de materialidades de impostos federais para criação de contribuições pela União passa pela observância dos direitos fundamentais dos contribuintes, traduzidos nos princípios constitucionais em geral e, mais precisamente, nos princípios constitucionais tributários. Costuma-se apontar a tensão com os princípios da legalidade, do não-confisco, da capacidade contributiva, da isonomia e da segurança jurídica.
Eleita a materialidade por via de lei complementar, observada a não cumulatividade e a originalidade quanto à base de cálculo e ao fato gerador em relação a outras contribuições previstas na Constituição, não se revela afronta à legalidade. Definida alíquota e base de cálculo que, somada à carga tributária já incidente sobre a materialidade eleita, não transpasse o limite do razoável, não há que se falar em confiscatoriedade e, consequentemente, em violação à capacidade contributiva e à isonomia tributária. Previstos exaustivamente os elementos da obrigação tributária, pelo legislador complementar, não há imprevisibilidade que atente contra a segurança jurídica. Sonegado qualquer um desses requisitos, poderemos, aí sim, falar na inconstitucionalidade da exação.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARRAZA, Roque Antônio - Impossibilidade de conflitos de competência no sistema tributário brasileiro - http://www.ibet.com.br/download/Roque%20Antonio%20Carrazza.pdf – acesso em: 19/07/2017.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário: 24. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.
GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária e a sua estrutura normativa - http://www.ibet.com.br/download/Competencia%20Tributaria%20por%20TLG.pdf - acesso em: 19/07/2017.
HARADA, Kiyoshi. Sistema Tributário na Constituição de 1988. Curitiba. Ed. Juruá, 2006.
Recurso Extraordinário nº 138.284/CE. Relator Min. Carlos Velloso. DJ 28/08/1992.
Recurso Extraordinário nº 573.675/SC. Relator Min. Ricardo Lewandowski. DJE 21/05/2009.
SOARES DE MELO, José Eduardo. Curso de Direito Tributário, 6ª edição, São Paulo, Dialética, 2005.
NOTAS:
[1] CARRAZA, Roque Antônio - Impossibilidade de conflitos de competência no sistema tributário brasileiro - http://www.ibet.com.br/download/Roque%20Antonio%20Carrazza.pdf – acesso em: 19/07/2017.
[2] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário: 24. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 270.
[3] Recurso Extraordinário nº 138.284/CE. Relator Min. Carlos Velloso. DJ 28/08/1992.
[4] GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária e a sua estrutura normativa - http://www.ibet.com.br/download/Competencia%20Tributaria%20por%20TLG.pdf - acesso em: 19/07/2017.
[5] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário: 24. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012, p. 77.
[6] TOMÉ, Fabiana Del Padre, 2002, p. 101, apud CARVALHO, Paulo de Barros. Ibidem, p. 78.
[7] SOARES DE MELO, José Eduardo. Curso de Direito Tributário, 6ª edição, São Paulo, Dialética, 2005, p.34.
[8] HARADA, Kiyoshi. Sistema Tributário na Constituição de 1988. Curitiba. Ed. Juruá, 2006, p. 186.
[9] Recurso Extraordinário nº 573.675/SC. Relator Min. Ricardo Lewandowski. DJE 21/05/2009.
Pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET. Graduado pela Faculdade de Direito do Recife - UFPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Henrique Portela. A competência tributária para eleição das materialidades das contribuições especiais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jul 2017, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50523/a-competencia-tributaria-para-eleicao-das-materialidades-das-contribuicoes-especiais. Acesso em: 22 nov 2024.
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