RESUMO: O Estado é uma forma política que, como construção humana, sofre variações de acordo com cada contexto sócio-histórico em que verificado. Nota-se, entretanto, uma variante abrangente consubstanciada no Estado de Direito, que, em linhas gerais, busca equacionar o problema da tensão entre legalidade e legitimidade por meio da conexão entre o direito (campo do jurídico) e o exercício do poder público. Quanto ao modo de lidar com tal tensão no desenvolvimento do Estado de Direito, distingue-se, nas tradições anglo-americanas, o Rule of Law inglês do estadunidense; em relação ao Rechtsstaat alemão, é possível identificar, ao menos, três períodos distintos; na experiência francesa, a seu turno, percebe-se um caminhar do État Légal para o État de Droit. Demonstra-se que a compreensão dessas diversas concepções de Estado de Direito implicam numa análise concomitante dos diversos contextos históricos de desenvolvimento de cada uma, bem como as teorias que fundamentam esses modelos estatais. Rule of Law, Rechtsstaat e État de Droit não são, portanto, meras designações distintas para um mesmo fenômeno, mas algumas variantes peculiares da ideia abrangente de Estado de Direito.
Palavras-chave: Estado de Direito. Tradições. Distinções.
ABSTRACT: The state is a political form that, as a human construction, varies according to each socio-historical context. However, it’s possible to notice a comprehensive variation that is the Rule of Law, which, in general terms, tries to solve the problem of the tension between legality and legitimacy, by somehow connecting the law to the exercise of political public power. As related to the way to treat that tension in the development of the Rule of Law, it’s possible to distinguish, in anglo-american traditions, the English Rule of Law from the North-American one; as related to the German Rechtsstaat, it’s identifiable at least three distinct periods; in French experience, in its turn, the État Légal is transforming into the État de Droit. Thus, the article demonstrates that those different conceptions of the Rule of Law implies concomitant analyses of the diverse historical contexts of development of each one, and also of the theories that are the basis of them. Therefore, Rule of Law, Rechtsstaat and État de Droit aren’t mere different names for the same phenomenon, but some singular variations of the comprehensive idea of the Rule of Law.
Keywords: Rule of Law. Traditions. Distinctions.
Sumário: 1. Introdução. 2. O Estado de Direito nas tradições anglo-americana (Rule of Law), alemã (Rechtsstaat) e francesa (État Légal e État de Droit). 3. Conclusão. 4. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Estado é uma concepção humana e, assim, não é universal e desconectado da história (BERCOVICI, 2006, p. 81). Trata-se de uma forma política, que surgiu na Europa, ao final da Idade Média, e, posteriormente, alcançou outras regiões do mundo (BERCOVICI, 2006, p. 81).
Ocorre que, inegavelmente, pensar o Estado implica discorrer a respeito do uso do poder político; atrai, inclusive, questionamentos em relação à legitimidade de referido exercício. Como forma de se tentar resolver essa questão, pôs-se, historicamente, um modelo amplo de Estado que, de certa forma, busca a conexão entre tal poder e o sistema jurídico (direito), denominado Estado de Direito.
Entretanto, em virtude do próprio caráter histórico do Estado, as concepções desse Estado de Direito não são imutáveis, pois se alteraram ao longo dos diferentes contextos – sejam locais, sejam históricos propriamente ditos. Assim, no caso da tradição do Rule of Law anglo-americano, há diferenças entre a forma de compreensão do fenômeno nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, conforme será visto; no caso do Rechtsstaat alemão, a seu turno, Rosenfeld (2001) identifica ao menos três fases, posteriormente explicitadas; no tocante ao modelo francês, referido autor, bem como Grote (2002), notam uma passagem do État Légal para o État de Droit.
Em qualquer de suas versões, contudo, pode-se afirmar que a ideia do Estado de Direito, de modo geral, está conectada à relação entre o direito e o exercício do poder público (KRYGIER, 2013, p. 2). Como um ideal atrelado a essa noção ampla, diz-se que o direito deveria contribuir, de algum modo, para a articulação desse exercício (KRYGIER, 2013, p. 2). Ressalte-se uma vez mais que os modelos institucionais específicos para cumprir tal desiderato, bem como as pretensões ligadas a tal ideia, dependem das especificidades do contexto em que cada modelo surge e é desenvolvido.
A partir do exposto, percebe-se que, em qualquer tradição específica de Estado de Direito, essa concepção ampla implica numa forma de se tentar equacionar o problema da legalidade e da legitimidade, ou seja, a forma pela qual a produção jurídica por meio da lei se relaciona com as possibilidades de legitimação do exercício do poder público. Ver-se-á que, no Rechtsstaat de matriz positivista da segunda metade do século XIX até o término da 2ª Guerra Mundial, a legitimidade se reduz à legalidade, expressa na racionalidade formal das leis gerais, abstratas e prospectivas[1] (SCHMITT, 2007); entretanto, nem todas as concepções do Estado de Direito resumiram a legitimidade estatal ao fenômeno da legalidade. Desse modo, o objetivo do presente estudo é compreender as variantes históricas do Estado de Direito, distinguindo a tradição alemã (Rechtsstaat) das tradições anglo-americanas (Rule of Law, nas versões inglesa e estadunidense) e francesa (État Légal e État de Droit), como contributo à discussão da problemática posta, explorando as diversas formas históricas de equacionar a tensão entre legalidade e legitimidade.
Ademais, acredita-se que o presente trabalho, ao distinguir essas diferentes experiências constitucionais quanto à questão, permite clarear o sentido do uso dessas diversas expressões (Rechtsstaat, Rule of Law e État de Droit), contribuindo para a correta compreensão de seu emprego em textos que abordam a temática. Assim, pode-se perceber que a utilização dessas formas distintas não se trata de mero problema de tradução, em idiomas diversos, da referência ao “Estado de Direito”. Embora subsista um ponto central de conexão entre essas expressões, posto que remetem à mesma questão – como equacionar a tensão entre legalidade e legitimidade, ou, segundo Barber (2003, p. 444), o que significaria às pessoas serem governadas pelo direito, ao invés de simplesmente estarem submetidas aos ditames de alguém poderoso –, não se atentar a isso pode gerar incoerências quanto ao objeto do fenômeno específico em análise, a cada variante histórica mencionada.
2 O ESTADO DE DIREITO NAS TRADIÇÕES ANGLO-AMERICANA (RULE OF LAW), ALEMÃ (RECHTSSTAAT) E FRANCESA (ÉTAT LÉGAL E ÉTAT DE DROIT)
A compreensão das diversas concepções de Estado de Direito implica na análise concomitante dos diversos contextos históricos de desenvolvimento de cada uma, bem como as teorias que fundamentam esses modelos estatais. Portanto, desse modo é que se procederá à exposição das tradições anglo-americana, alemã e francesa do Estado de Direito.
Interessante notar que, segundo Krygier (2013, p. 3), em se tratando da perspectiva terminológica, uma diferença já se encontra entre o Rule of Law e o Rechtsstaat, visto que, naquela, não há referência expressa ao “Estado” (State). Ressalte-se que, segundo referido autor, essa distinção transparece, de fato, diferenças significativas nos dois modelos de Estado de Direito (KRYGIER, 2013, p. 3).
Assim, pode-se dizer que, do ponto de vista histórico, a tradição jurídica inglesa teria concebido um pluralismo de fontes do direito. No common law, portanto, os costumes eram compreendidos como as fontes primárias do direito, constituindo tal direito costumeiro os limites ao poder de atuação do Rei (KRYGIER, 2013, p. 34).
Entretanto, a legislação se tornou uma das características (ou, também não seria incorreto afirmar, um legado) do direito na modernidade, inclusive na tradição do common law inglês (KRYGIER, 2013, p. 4). Ocorre que a concepção do pluralismo das fontes jurídicas já estava presente na comunidade inglesa, motivo pelo qual persistiu, mesmo nesse direito moderno, a compreensão de que este (direito) deriva de outras fontes que não apenas a legislação (KRYGIER, 2013, p. 4) – ou seja, há direito que não provém diretamente do Estado legiferante parlamentar, para utilizar a terminologia de Schmitt (2007).
A respeito do controle do poder político mediante o direito, pode-se dizer que, na tradição inglesa, anteriormente à concepção da legislação como fonte jurídica central, o Rei estava submetido a um direito superior – não elaborado por ele, mas derivado do common law (KRYGIER, 2013, p. 5). Com a alteração ocorrida ao longo do século XVIII, adotou-se um modelo estatal de soberania do Parlamento[2], no qual o Rule of Law se centra na figura das regras criadas por um legislador soberano (KRYGIER, 2013, p. 5). Aqui, pode-se notar uma aparente queda no status do direito: antes, era compreendido como superior ao soberano; dada a supremacia ao Parlamento para a criação do direito, tem-se que o direito deixa de estar acima do soberano, para ser obra deste (KRYGIER, 2013, p. 6).
Interessante notar que, segundo Krygier (2013, p. 6), tal fator repercutiu no modelo do Rule of Law desenvolvido nos Estados Unidos da América – que, em linhas gerais, conforme Rosenfeld (2004, p. 20) derivou historicamente do Rule of Law inglês. Nesse sentido, preocupada com a atuação deste Parlamento soberano, a prática norte-americana teria criado uma Corte Suprema (U. S. Supreme Court) para exercer controle sobre este, fator que fora conjugado com a elaboração de uma Constituição escrita (KRYGIER, 2013, p. 6). Tal documento jurídico, nessa perspectiva, estaria acima (e subordinaria) da atuação do Estado legiferante, vinculando o legislador ordinário (KRYGIER, 2013, p. 6).
Assim, pode-se dizer que a tradição anglo-americana do Rule of Law abarca um paradoxo no direito, dentre outros, relativo ao fato de esse ser, ao mesmo tempo, dependente e independente do Estado, havendo uma relação antagônica entre ambos (Estado e direito) (ROSENFELD, 2001, p. 20). Para Rosenfeld (2001, p. 46), entretanto, essa aparente contradição pode ser compreendida em virtude da supracitada experiência de um pluralismo de fontes jurídicas, advindo do modelo da common law.
No tocante ao modelo alemão de Estado de Direito, entretanto, a questão é compreendida de forma distinta. Desse modo, o Rechtsstaat não pressupõe direito algum superior ao Estado, como se derivasse de uma fonte distinta deste (KRYGIER, 2013, p. 6). Aqui, o direito seria tanto a característica desse Estado (ser um Estado jurídico, Estado de Direito), mas também produto desse (KRYGIER, 2013, p. 6) – notadamente do Estado legiferante, na forma da lei. Na caracterização de Rosenfeld (2001, p. 20), há, no Rechtsstaat, uma simbiose entre Estado e direito. O Estado de Direito – enquanto Rechtsstaat –, significa o fenômeno de um Estado moderno que concentra, em si, o monopólio do uso da força[3] (KRYGIER, 2013, p. 4). Assim, o Estado é compreendido não apenas como sujeito desse direito, mas também como sua fonte (KRYGIER, 2013, p. 4).
Auxiliando na compreensão das distinções entre o Rechtsstaat e o Rule of Law, Barber (2003, p. 444) aduz que, enquanto aquele se relacionaria a alguma conexão existente entre o sistema jurídico e o Estado, este se resumiria a qualificar o sistema jurídico, ou seja, o Rule of Law consistiria numa qualidade ou teoria sobre o ordenamento jurídico. A distinção, nos termos propostos, é que o Rechtsstaat culminaria por pressupor uma concepção não jurídica de Estado (BARBER, 2003, p. 444). Assim, seria possível discorrer a respeito da existência do Estado e, lado outro, de algumas experiências de Estado que se consubstanciariam em um Estado de Direito (Rechtsstaat); o Rechtsstaat seria, pois, uma manifestação específica de Estado, no qual o sistema jurídico possuiria um papel de destaque, não obstante as demandas substantivas requeridas por tal modelo também serem objeto de debate acadêmico no âmbito da experiência alemã, como se verá adiante na exposição de três variantes e suas respectivas bases teóricas de fundamentação.
Lado outro, o Rule of Law não negaria, necessariamente, a possibilidade de formulação de um conceito não jurídico de Estado. Entretanto, como se trata de uma característica do sistema jurídico, não precisa pressupor, como o faz o Rechtsstaat, a existência de um Estado que não seja jurídico (BARBER, 2003, p. 444), para se contrapor a esse[4].
Feitas tais observações, cumpre destacar as variantes do Rechtsstaat. Assim, em relação às manifestações concretas desse modelo, afirma Rosenfeld (2001, p. 21) que sua primeira configuração se deu tendo em vista as concepções teóricas de Kant. Na primeira metade do século XIX, período de ascensão da burguesia, o modelo germânico rejeitou a legitimidade do Estado baseada em valores transcendentais éticos ou religiosos (ROSENFELD, 2001, p. 21-22). Um regime só poderia ser legítimo, para a doutrina kantiana adotada, caso se fundamentasse no direito, não em distintos interesses ou concepções de bem (ROSENFELD, 2001, p. 22-23). As leis apenas seriam legítimas, nessa interpretação, se fosse razoável pressupor que todos os cidadãos as aceitariam como sendo justas e corretas (ROSENFELD, 2001, p. 23). À época, tal construção contribuiu para denunciar como ilegítimas as leis que se baseavam em diferenças de status entre os indivíduos, prática comum no Ancien Régime (ROSENFELD, 2001, p. 24).
Assim, o Rechtsstaat cunhado com referência à doutrina kantiana trazia à discussão elementos de legitimação tanto formais quanto substanciais (substantivos). Em relação aos primeiros (formais), tem-se a necessidade de tratar todos como se fossem fins em si mesmos, relativa à promoção da autonomia individual; quanto à perspectiva substantiva de legitimação, o Estado de Direito deveria assegurar iguais direitos negativos de liberdade e propriedade, que constituíam valores burgueses (ROSENFELD, 2001, p. 29).
Ocorre que, segundo Rosenfeld (2001, p. 30), a revolução burguesa não vingou em solo germânico, tendo a monarquia prussiana obtido sucesso nesse intento. Assim, a burguesia, embora constituísse uma classe econômica em ascendência, restava politicamente estagnada (NEUMANN, 2014, p. 48). Em tal cenário, desprovida de poder, precisava impor limites ao Reich, o que fora efetivado mediante uma concepção de Rechtsstaat positivista, com nítida separação entre a produção e a aplicação da lei (ROSENFELD, 2001, p. 30). Aqui, portanto, a forma de proteção da burguesia se deu por meio da concepção de que o Estado apenas poderia atuar mediante a promulgação e a implementação das leis, ao invés de consistir em mera voluntas do monarca (ROSENFELD, 2001, p. 31), rompendo-se com um modelo de Estado administrativo.
Desse modo, estabelece-se o Rechtsstaat positivista em solo alemão na segunda metade do século XIX, que perdurou até o fim da 2ª Guerra Mundial (ROSENFELD, 2001, p. 29). Nessa concepção, há a perda da ênfase em direitos fundamentais, tendo a ideia de Estado de Direito uma interpretação nitidamente formal, que o reduz ao princípio da legalidade (ROSENFELD, 2001, p. 29). Aqui, há a separação entre as funções de criação e aplicação do direito, adotando-se um modelo de Estado legiferante parlamentar (SCHMITT, 2007).
Portanto, nessa concepção, o controle do exercício do poder público perpassaria o caráter formal do direito, dotado de generalidade e, por isso, pretensamente capaz de gerar certeza e previsibilidade aos indivíduos[5] (KRYGIER, 2013, p. 6). No âmbito dessa interpretação, a liberdade seria uma consequência e não necessariamente uma premissa do direito (PALOMBELLA, 2010, p. 11-12 apud KRYGIER, 2013, p. 6).
Ocorre que essa compreensão da lei (e da legitimação do Estado) reduzida à sua dimensão formal (características da generalidade, abstração, caráter prospectivo, etc.) não podem ser entendidas como algo incontestado na tradição alemã ainda que no período histórico em comento. Nesse sentido, Krygier (2013, p. 9) destaca a objeção formulada por Hermann Heller à concepção meramente formal do Rechtsstaat que teria sido defendida por Carl Schmitt[6] e Hans Kelsen, ao defender que esse deveria se atentar também a uma dimensão substantiva, na qual se requer, de um Estado de Direito, a observância de certos elementos materiais relativos a uma visão de bens públicos (livre mercado, respeito aos direitos humanos, etc.) (KRYGIER, 2013, p. 8).
Embora importante em seu contexto específico, posto que implicou aos indivíduos uma previsibilidade e adotou uma estabilização de expectativas na sociedade, ante pretenso Estado administrativo insurgente (ROSENFELD, 2001, p. 31), tal concepção se mostrou perigosa durante o regime nazista na Alemanha (KRYGIER, 2013, p. 9). Assim, atualmente, na prática constitucional alemã, o Rechtsstaat seria compreendido não apenas por essa perspectiva “neutra”. A Constituição é interpretada, no contexto hodierno, como se determinasse a implementação de valores e regras de tal estatura superior (constitucional), de modo que aquela albergaria uma “ordem de valores” (ROSENFELD, 2004, p. 22), não obstante questionável também seja essa posição em relação à legitimidade estatal. Nesse sentido, quando o Estado se pauta por tal postura, principalmente em se tratando do Estado-juiz, corre-se o risco da permissão à verificação da “destruição da política majoritária” (ROSENFELD, 2004, p. 23).
Desse modo, segundo Rosenfeld (2001, p. 34), o Rechtsstaat alemão pós-2ª Guerra Mundial subordina a legalidade positiva a valores e princípios substantivos. Na prática constitucional da Alemanha, percebe-se um papel de destaque à argumentação pautada na ideia de dignidade humana (ROSENLFED, 2001, p. 34). Nesse contexto, há uma judicialização de questões antes relegadas à política, que transparece uma dimensão social do Estado (ROSENFELD, 2001, p. 35).
Na experiência francesa, a seu turno, o Estado de Direito também assumira concepções particulares. Inicialmente, segundo Rosenfeld (2001, p. 37), teria adotado a forma de um État Légal – que, embora parecido com o Rechtsstaat positivista, estava intrinsecamente ligado à soberania parlamentar e à democracia parlamentar. Enquanto o Rechtsstaat, em seus primórdios, teve na doutrina de Kant sua fundamentação, o État Légal se amparou nas teorias de Rousseau (ROSENFELD, 2001, p. 41), o que explica uma soberania parlamentar acentuada.
Nesse sentido, a concepção do État Légal parte de uma noção de autolimitação, em que o povo, construindo a vontade geral no parlamento, livremente assumiria responsabilidades (ROSENFELD, 2001, p. 39-40). A legitimidade das leis derivaria, assim, do fato de essas serem a expressão da vontade geral, que surgiria por meio de um processo dinâmico em que os interesses de todos os indivíduos seriam considerados para tal formação (ROSENFELD, 2001, p. 41). Ademais, ressalta Rosenfeld (2001, p. 41) que, em Rousseau, há a defesa de certo valor intrínseco na ideia de autogoverno, exercido no âmbito desse procedimento descrito.
Pela matriz teórica adotada, era inconcebível que a lei pudesse, de algum modo, infringir liberdades dos cidadãos, em virtude de ser a expressão dessa vontade geral (GROTE, 2002, p. 143-144). Entretanto, segundo, Grote (2002), outro fator, de ordem histórica, influiu na construção de um modelo institucional de soberania Parlamentar. Nesse sentido, à época, existia certa desconfiança em relação à atuação do Poder Judiciário, dado seu comportamento na França pré-revolucionária de se imiscuir no trabalho de administração da Coroa, bem como de impedir as já limitadas reformas legislativas ocorridas (GROTE, 2002, p. 144).
Ocorre que, hodiernamente, por não haver razões para se crer que a democracia parlamentar necessariamente expressará o bem público, o État Légal necessitou de um temperamento (ROSENFELD, 2001, p. 42). Na ordem constitucional francesa da atualidade, referido État Légal teria se transformado no État de Droit, que seria um Estado Constitucional que assume a forma de um garantidor jurídico dos direitos fundamentais em relação a violações provenientes da atuação do Parlamento (ROSENFELD, 2001, p. 37).
Assim, no atual modelo – institucionalizado após a 2ª Guerra Mundial –, os direitos fundamentais são concebidos como se possuíssem uma força jurídica (ROSENFELD, 2001, p. 38). Segundo Rosenfeld (2001, p. 38), tratar-se ia do État Légal, porém modificado segundo os direitos fundamentais liberais, que imporiam restrições àquele. Desse modo, o État Légal seria um meio para se assegurar a supremacia legislativa; o État de Droit, por sua vez, a forma de se proteger os direitos e liberdades dos cidadãos, que abarcaria duas concepções diferentes de direito: o ideal democrático de direito e a teoria liberal dos direitos fundamentais como limites inclusive à atuação legislativa (GROTE, 2002, p. 158).
Entretanto, cumpre salientar que a ideia de desconfiança em relação aos juízes é um fato histórico que continua influenciando o desenho institucional do Estado de Direito na França, na forma do État de Droit. Em virtude disso, tem-se, em solo francês, um sistema peculiar de controle de constitucionalidade, bastante distinto do modelo alemão, bem como do estadunidense, calcado na atuação do Conselho Constitucional (Conseil Constitutionnel)[7].
Assim, embora institucionalizado em período similar ao do atual Rechtsstaat – pós-2ª Guerra Mundial –, percebe-se, pelo exposto, que as duas concepções de Estado de Direito permanecem bastante distintas. Para Grote (2012, p. 156-157), alguns motivos dessa divergência poderiam ser explicitados: o positivismo jurídico, na França, não havia assumido uma posição tão dominante quanto o teria efetivado na Alemanha anterior às guerras; a existência da já mencionada desconfiança histórica francesa em relação à atuação dos juízes, o que não há em solo alemão; diferenças textuais entre os documentos constitucionais da Alemanha e da França, posto que, neste, ao contrário daquele, não há definição positiva analítica dos diferentes elementos do Estado de Direito.
3 CONCLUSÃO
“Estado de Direito” é uma expressão que designa diferentes formas assumidas em diversas localidades para se enfrentar a problemática do controle do exercício do poder político mediante o direito – ou seja, por meio do sistema jurídico. Nesse sentido, as peculiaridades contextuais de cada local e época, somadas às diferentes fundamentações teóricas para a criação de um desenho institucional de Estado capaz de enfrentar tal problema, implicaram no desenvolvimento de tradições distintas de Estado de Direito. Desse modo, é possível verificar modalidades diversas no trato da questão da tensão entre legalidade e legitimidade – ou seja, se (e como) a produção normativa do direito, por meio da edição de leis, bem como da atuação estatal pautada nessas, poderia assegurar a legitimidade do exercício do poder público.
Na tradição anglo-americana, o modelo do Rule of Law, em linhas gerais, em virtude de ter se desenvolvido em meio ao sistema da common law, não identifica o direito com o Estado, como o faz o Rechtsstaat. Há, aqui, a compreensão de um pluralismo de fontes jurídicas, que não se restringem à produção legislativa no âmbito do parlamento. Entretanto, apesar de uma tradição comum, o modelo ainda se diferencia no tocante à Inglaterra – em razão da concepção existente de soberania do Parlamento, hoje mitigada após as modificações introduzidas com a aprovação do Human Rights Act – e aos Estados Unidos da América, que reconhecem um papel maior aos magistrados na implantação e desenvolvimento do Rule of Law.
Na Alemanha, a seu turno, o Rechtsstaat tende a identificar o direito com o Estado, como se ambos estivessem numa relação simbiótica. Assim, adotou-se, ao máximo, a ideia do Estado moderno de monopólio do uso do poder coercitivo. Três grandes fases, entretanto, podem ser mencionadas para o Rechtsstaat.
Inicialmente, na primeira metade do século XIX, o Rechtsstaat, fundamentado nas doutrinas filosóficas de Kant, combinava aspectos formais e materiais (substanciais) para a problemática da legitimidade estatal. Aqui, além de garantir a autonomia individual, tratando todos os indivíduos como fins em si mesmo, a lei deveria observar certos parâmetros substantivos, na forma de direitos negativos que albergavam ideais burgueses.
Entretanto, como a burguesia alemã, embora em ascendência econômica, estagnou-se politicamente, o modelo de premissas kantianas não vingou. Restou à burguesia, como única forma possível de evitar a arbitrariedade do Reich, se apegar às concepções formalistas, desenvolvendo-se um modelo positivista do Rechtsstaat em que as funções de criação e aplicação do direito não se concentravam nas mãos do mesmo órgão. Aqui, a questão da legitimidade restringiu-se à racionalidade formal, adotando-se uma neutralidade na concepção das leis.
Ressalte-se que essa racionalidade formal teve sua importância histórica, propiciando segurança aos indivíduos, dando previsibilidade ao direito, assegurando sua aplicação futura (prospectiva) e geral, e combatendo as atuações baseadas em status do Ancien Régime. Contudo, ao término da 2ª Guerra Mundial, essa redução da legitimidade à mera legalidade formal mostrou-se problemática, tendo em vista a ação do regime nazista.
Assim, hodiernamente, vige na Alemanha um Rechtsstaat baseado no retorno à ideia de valores substantivos como condição para a legitimidade do Estado, corriqueiramente protegidos em termos constitucionais, segundo uma Constituição analítica reforçada judicialmente. Não obstante o teor louvável da busca pela ruptura em relação ao passado recente do nazismo, a atual judicialização exacerbada das questões em solo alemão, imiscuindo-se em problemas cuja solução anteriormente era relegada ao âmbito da política, corre o risco de esvaziamento desta, bem como da imposição tirânica de valores particulares dos magistrados sob a pretensa aplicação de uma “ordem objetiva de valores” incorporada constitucionalmente. Assim, a radicalização da perspectiva substantiva pode ocasionar, em realidade, problemas de legitimidade, ao invés de solucioná-los.
Em relação à tradição francesa, a histórica desconfiança na atuação dos juízes implicou na construção do État Légal atrelado à ideia de soberania parlamentar, fundado nas concepções teóricas de Rousseau, valorizando-se a ideia de autogoverno. Após a 2ª Guerra Mundial, entretanto, ocorrera a institucionalização do État de Droit, em que os direitos fundamentais passam a ser compreendidos enquanto limites à atividade do Parlamento. Contudo, dada a peculiaridade da já mencionada ressalva com relação aos poderes conferidos aos magistrados, o controle de constitucionalidade francês assume diversas peculiaridades quando comparado a outros sistemas constitucionais.
4 REFERÊNCIAS
BARBER, N. W. The Rechtsstaat and the Rule of Law. University of Toronto Law Journal, Toronto, v. 53, n. 4, p. 443-454, outono 2003. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2016.
BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de uma teoria do estado. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 49, p. 81-100, jul./dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.
GARDBAUM, Stephen. Reassessing the new Commonwealth model of constitutionalism. International Journal of Constitutional Law, New York, v. 8, n. 2, p. 167-206, abr. 2010. Disponível em: . Acesso em: 04 dez. 2015.
GROTE, Rainer. Rule of Law, Rechtsstaat, y État de Droit. Pensamiento Constitucional, Lima, v. 8, n. 8, p. 127-176, 2002. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.
KRYGIER, Martin. Rule of Law (and Rechtsstaat). UNSW Law Research Paper, Research Paper n. 2013-52, ago. 2013. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.
NEUMMAN, Franz. A mudança da lei no direito da sociedade burguesa. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 109, p. 13-87, jul./dez. 2014. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.
PALOMBELLA, Gianluigi. The rule of law beyond de state: Failures, promises and theory. International Journal of Constitutional Law, New York, v. 7, n. 3, p. 442-467, maio 2009 apud KRYGIER, Martin. Rule of Law (and Rechtsstaat). UNSW Law Research Paper, Research Paper n. 2013-52, ago. 2013. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.
ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional e o Estado Democrático de Direito. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 7, n. 12, p. 11-63, jan./jun. 2004. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.
ROSENFELD, Michel. The Rule of Law and the Legitimacy of Constitutional Democracy. Cardozo Law School, [s. l.], Law Research Paper n. 36, p. 1-70, mar. 2001. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2015.
SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
[1] Expõe-se aqui, como expressão dessa ideia, os dizeres de Schmitt (2007, p. 3): “o último e verdadeiro sentido do ‘princípio’ fundamental de ‘legalidade’ de toda e qualquer vida estatal consiste, enfim, em que não mais se imponham, de maneira alguma, poderes e ordens, afinal de contas, somente se pode fazer valer normas impessoalmente vigentes. Na legalidade geral de toda aplicação do poder estatal, reside a justificação de um Estado como o aqui preconizado. [...] Nesse caso, a forma especial de manifestação do Direito é a lei e a justificação específica da coerção estatal é a legalidade”.
[2] Após a aprovação do Human Rights Act, em 1998, pode-se dizer que ocorrera alterações no tradicional modelo da supremacia parlamentar adotado na Inglaterra se alterou. Para um inventário e avaliação dessas modificações, cf. Gardbaum, 2010.
[3] É interessante perceber como Schmitt (2007, p. 20) reconhece, nesse contexto, que o Estado deve obter o monopólio da produção jurídica, negando a possibilidade de um pluralismo de fontes do direito no âmbito de um Estado legiferante: “no Estado legiferante parlamentar, legislador é sempre o legislador ordinário. Toda e qualquer concorrência de outros legisladores de natureza diferente e de conceitos jurídicos mutuamente relativistas destrói, como já foi frisado, o próprio Estado legiferante. No Estado legiferante do sistema fechado de legalidade, não pode haver, tal como na Teoria do Estado Romano, diversas ‘fontes jurídicas’, leges, plebiscitos, senatus consultum; constitutiones principum, éditos dos magistrados, consulta prudentium etc. O legislador do Estado legiferante tem de manter em suas mãos o ‘monopólio’ da legalidade”.
[4] Destaque-se que, para Barber (2003, p. 450), ao não pressupor necessariamente a existência de um conceito não jurídico de Estado, as doutrinas do Rule of Law conseguiriam se desvencilhar de uma das questões problemáticas centrais ao Rechtsstaat, qual seja, como seria possível obter a harmonia entre o Estado e Direito.
[5] Conforme se verá posteriormente, na própria tradição alemã há uma discussão a respeito da forma de legitimidade a ser buscada no Rechtsstaat, se por referência unicamente a tal aspecto formal da lei ou se, também, ao seu conteúdo (substância). No período histórico do Rechtsttaat compreendido entre a segunda metade do século XIX e o término da 2ª Guerra Mundial, entretanto, predominaram as concepções formais da legalidade defendidas, por exemplo, por Schmitt (2007), entendidas posteriormente como um erro após as atrocidades cometidas pelo regime nazista (KRYGIER, 2013, p. 9).
[6] Na opinião de Schmitt (2007, p. 2), o Estado de Direito se resumiria a um Estado legiferante parlamentar. Entretanto, cumpre salientar que isso não implica, necessariamente, a adoção de um sistema parlamentar democrático conforme uma compreensão pluralista. Isso porque, na opinião de Schmitt (2007), a decisão majoritária possuiria autoridade legítima em meio à homogeneidade; a democracia partidária heterogênea no Parlamento torna-se um problema na concepção do autor.
[7] Para maiores detalhes a respeito da construção do modelo francês de controle de constitucionalidade, cf. Grote, 2002. A respeito das recentes reformas introduzidas nesse sistema, cf., também, Streck, 2013, p. 398-408.
Bacharel e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Procurador Municipal em Palmas/TO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEIRA, Renan Sales de. O Estado de direito nas tradições anglo-americana, alemã e francesa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 nov 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/50984/o-estado-de-direito-nas-tradicoes-anglo-americana-alema-e-francesa. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
Por: Hannah Sayuri Kamogari Baldan
Por: Arlan Marcos Lima Sousa
Precisa estar logado para fazer comentários.