RESUMO: Grande parte da população acredita que, a partir da edição da Lei Áurea, o trabalho escravo fora extirpado da realidade brasileira, não deixando vestígios na sociedade moderna, o que é uma grande falácia. O presente trabalho pretende desnudar essa crença e demonstrar que atualmente ainda existe a prática do trabalho escravo, com a imposição de jornadas exaustivas e labor degradante, dando a devida ênfase ao setor têxtil urbano. Também será abordada a origem do trabalho escravo, bem como sua conceituação, apresentando casos mais recentes que possam exemplificá-lo.
Palavras-chaves: Trabalho escravo contemporâneo. Trabalho análogo à condição de escravo. Setor têxtil urbano.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA ESCRAVIDÃO. 1.1 Origem. 1.2 Escravidão no Brasil. 1.3 A Escravidão Moderna. 2 A ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA. 2.1 Conceito Jurídico de Escravidão. 2.2 As Dificuldades de Conceituação dos Termos Referentes ao Trabalho Escravo. 2.3 A Escravidão no Setor Têxtil. 2.4 Casos de Trabalho Forçado na Indústria Têxtil. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente estudo abordará a temática trabalho escravo com enfoque ao âmbito urbano têxtil, demonstrando sua ocorrência na atualidade e enfatizando a necessidade de fiscalização e autuação para que se possa erradicar, de forma definitiva, essa prática que persiste nos dias atuais.
O labor, forma de sustento próprio e familiar, é fundamental na vida das pessoas, porém, regras devem ser cumpridas para que o trabalho seja realizado de forma gratificante e justa para os trabalhadores.
De início, será abordada a origem do trabalho escravo, relatando o seu surgimento, bem como sua posterior adoção no Brasil. Após esse tratamento, faz-se necessário demonstrar a incidência dessa prática na modernidade, afastando a fantasia de que a exploração da pessoa humana fora erradicada com a assinatura da Lei Áurea, demonstrando, porém, as diferenças e as novas formas de escravidão contemporânea.
O modo de produção capitalista enraizou em muitas empresas a cultura do alcance do lucro e do sucesso a qualquer custo. Assim, empregadores, em busca de mão-de-obra barata e com o intuito de produzir cada vez mais com o menor custo possível, passaram a negligenciar a saúde, a segurança e a dignidade do trabalhador em prol da ascenção econômica.
A abordagem da conceituação do trabalho escravo é de extrema importância devido à dificuldade que doutrinadores e aplicadores do direito enxergam em relação ao tema. Fora abordado, especificamente, o trabalho análogo à condição de escravo exercido no setor têxtil, citando recorrentes casos na área urbana, enfatizando a necessidade de fiscalização e aplicação das penalidades cabíveis como iniciativas fundamentais para sua erradicação.
O princípio caracterizador do trabalho escravo é o da dignidade da pessoa humana, o qual está presente na origem dos direitos materialmente fundamentais, sendo expressamente tutelado pela Carta Magna brasileira.
Na Constituição Federal, a dignidade constitui um princípio norteador da atuação de toda a sociedade e serve de base e fundamento a para aplicação das leis em qualquer que seja o ramo do direito. Estabelecida no art. 1º, inciso III da Carta Magna, a dignidade da pessoa humana integra o rol dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Quanto à aplicação da lei penal, o art. 149 tipifica a redução à condição análoga a de escravo, que criminaliza atos que submetem a pessoa humana a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas sob condições degradantes ou tolhendo a liberdade do trabalhador.
No ramo trabalhista, a Consolidação das Leis do Trabalho estabelece em seu Capítulo II aspectos sobre a jornada de trabalho que auxiliam na fundamentação dos conceitos utilizados no citado crime.
Outrossim, ressalta-se que, para melhor explanação do tema em análise, o método utilizado nesta pesquisa foi a técnica documental proveniente de fonte primária, como legislação; e fontes secundárias, como livros, revistas e acesso a bancos de dados, como a internet.
1 O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA ESCRAVIDÃO
1.1 ORIGEM
A escravidão foi a primeira forma de trabalho existente. O trabalhador era considerado apenas um objeto, não possuindo direito algum, quiçá trabalhista. O labor não tinha significado de realização pessoal, e nem poderia, devido à maneira como o proletariado era tratado à época.
Logo em seguida surgiram dois novos tipos de trabalho. O primeiro foi a figura da servidão, em que os servos recebiam proteção militar e política em troca da prestação de serviços nas propriedades dos senhores feudais; em seguida, vieram as corporações de ofícios, em que se notava a presença de mestres e aprendizes. Os mestres eram os donos das oficinas e os aprendizes ficavam sob sua responsabilidade que, certamente, não eram privados de castigos.
Com a Revolução Francesa de 1848 e a Constituição da França, o Direito do Trabalho passou a ter certo reconhecimento, mas foi com a Revolução Industrial que houve a transformação do trabalho em emprego, passando os trabalhadores a exercerem suas funções por salários.
Nesse contexto, a Revolução Industrial fez surgir as indústrias, as quais, a partir de uma mecanização do processo de produção, garantiu a modernização e a ascenção de potências econômicas. Mas havia o outro lado da moeda: problemas sociais, exploração, acidentes de trabalho, aumento da criminalidade, ausência de proteção à saúde e à segurança do trabalhador.
O operário prestava serviços em condições insalubres, sujeito a incêndios, explosões e intoxicação por gases. Ocorriam muitos acidentes de trabalho, além de várias doenças decorrentes dos gases, da poeira, do trabalho em local encharcado, principalmente a tuberculose, a asma e a pneumonia[1].
Ainda, era imposta uma vida infame às crianças, tanto nas fábricas quanto nas minas, assim, os governantes se viram obrigados a tomarem uma atitude.
Em sua obra, Sento-Sé descreve a importância da Revolução Industrial para a abolição da escravidão, vejamos:
A Revolução Industrial conviveu com ideias e pensamentos convergentes com seus princípios, que marcaram a Europa durante o início do Século XVIII. De fato, as obras de pensadores como Montesquieu e Rosseau e o ideário de liberdade e igualdade, que marcaram a Revolução Francesa de 1789, são eventos relacionados com as transformações buscadas pela Revolução Industrial. A partir do século XIX, o mundo inteiro começou a vislumbrar essas ideias iniciadas na Europa e que transformavam a teoria do pensamento humano. Os grandes intelectuais da época, dentre eles Hegel, passaram a pugnar pela valorização de determinados elementos diretamente identificados com a melhoria de vida do ser humano, como é o caso da liberdade[2].
Foi, portanto, a partir da Revolução Industrial que o trabalhador passou a ser protegido jurídica e economicamente, uma vez que o Estado se viu obrigado a intervir nas relações de trabalho, a fim de garantir o bem-estar e uma melhoria nas relações de trabalho.
Neste diapasão, o empregador passou a ter de respeitar normas sobre condições de trabalho, as quais, com o tempo, foram cada vez mais ampliadas, constatando-se uma maior preocupação do Poder Público com a melhoria das condições de trabalho.
É justo citar Galart Folch (1936:16) que afirma que “deve-se assegurar a superioridade jurídica ao empregado em razão da sua inferioridade econômica[3].”
Ademais, em 1848, foi publicado o Manifesto Comunista por Marx e Engels, em que eram feitas críticas às condições de trabalho da época, exigindo mudanças em benefício dos hipossuficientes, ou seja, dos trabalhadores. O Manifesto tinha o seguinte lema: "Trabalhadores de todos os países, uni-vos".
Nesse contexto, é inquestionável o fato de que o referido manifesto auxiliou os trabalhadores a, de certa forma, se despertarem e lutarem por maiores direitos e melhorias em suas condições de trabalho.
Ainda, lembremos que Karl Marx propôs uma Revolução onde a classe trabalhadora revolucionária implantaria o Socialismo, derrubando, pela força, todas as condições sociais existentes, uma vez que percebeu que o capitalismo se baseava inteiramente na exploração do trabalho pelos donos dos meios de produção[4].
1.2 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Pode-se dizer que a escravidão no Brasil teve início com os portugueses, que traziam escravos nos navios conhecidos como negreiros, para serem vendidos como se mercadorias fossem, na antiga colônia.
Foi a partir do investimento na produção de açúcar que se disseminou verdadeiramente a prática da escravidão no Brasil. Via-se, à época, a mão-de-obra escrava como necessária, sendo os trabalhadores trazidos da África para exercerem suas atividades no Brasil, mais especificamente no Nordeste.
A maneira como os africanos eram tratados é de surpreender. Formas desumanas de trabalho, de tratamento; e isso não se aplicava somente aos homens, uma vez que as mulheres também estavam incluídas no trabalho pesado que, na maioria das vezes, era relacionado à área doméstica.
A partir da metade do século XIX a escravidão no Brasil passou a ser contestada pela Inglaterra. Interessada em ampliar seu mercado consumidor no Brasil e no mundo, o Parlamento Inglês aprovou a Lei Bill Aberdeen (1845), que proibia o tráfico de escravos, dando o poder aos ingleses de abordarem e aprisionarem navios de países adeptos desta prática[5].
No mesmo ano entrou em vigor a Lei de Terras, que tornava obrigatório o registro de todas as terras ocupadas e impedia a aquisição das chamadas terras devolutas, impedindo, com isso, o acesso dos trabalhadores livres e imigrantes à propriedade privada rural, favorecendo a manutenção dos latifúndios.
Em 1850, o Brasil, cedendo às pressões inglesas, aprovou a Lei Eusébio de Queiróz, acabando com o tráfico negreiro.
Ademais, a Guerra do Paraguai (1864-1870) foi vista, na época, como uma grande oportunidade para o fim da escravidão, porém, não foi o que aconteceu. A promessa dada aos escravos que se alistassem era de que, ao final da batalha, ganhariam a tão esperada alforria, porém, não foi o que aconteceu. Isso porque a maioria dos escravos que participou da guerra não chegou nem a voltar, não tendo, desse modo, a oportunidade de sentir o prazer da liberdade[6].
Nesse contexto, passaram a ser criadas leis com o fito de regulamentar algumas espécies de escravidão. A Lei do Ventre Livre, de 1871, determinava que os filhos dos escravos nascessem livres, desde que o Estado pagasse uma indenização ao seu dono, bem como assumisse a criança, colocando-a em uma instituição de caridade.
Já em 1885, foi aprovada a Lei dos Sexagenários que garantia a liberdade dos escravos com idade superior a 60 anos. Porém, eles teriam que trabalhar por mais 3 anos, com o fim de indenizar o seu dono, ou, os maiores de 60 anos que pagassem um valor em pecúnia a título indenizatório e os que atingissem 65 anos, não teria necessidade do pagamento.
E, finalmente, em 1888 a Princesa Izabel assinou a Lei de nº 3353, a Lei Áurea, que aboliu a escravatura e tornando proibida a exploração do trabalhador em razão de sua cor, raça ou etnia. O Brasil tornou-se o último país a abolir oficialmente a escravidão. Joaquim Nabuco em seu livro consegue demonstrar de forma ilustre toda essa luta.
Vejamos:
O Abolicionismo é um protesto contra essa triste perspectiva, contra o expediente de entregar à morte a solução de um problema, que não é só de justiça e consciência moral, mas também de previdência política. Além disso, o nosso sistema está por demais estragado para poder sofrer impunemente a ação prolongada da escravidão. Cada ano desse regime que degrada a nação toda, por causa de alguns indivíduos, há de ser-lhe fatal, e se hoje basta, talvez, o influxo de uma nova geração educada em outros princípios, para determinar a reação e fazer o corpo entrar de novo no processo, retardado e depois suspenso, do crescimento natural[7].
Diante de toda a proteção que o trabalhador conseguiu, por direito, ao longo dos anos, criou-se a ilusão de que o trabalho escravo só pode ser visto em livros ou em passagens relacionadas aos tempos mais remotos, porém, conforme se pode constatar facilmente através dos mais diversos veículos de informação, a exploração do homem na forma de escravidão ainda existe nos dias atuais.
1.3 A ESCRAVIDÃO MODERNA
Atualmente, ao falar de escravidão, pode-se notar os mais diversos tipos de nomenclatura. Contemporânea, atual, nova, moderna e branca são alguns dos exemplos.
Independente da expressão dada, o termo é usado para caracterizar o desrespeito aos direitos do trabalhador e da dignidade humana e, apesar da abolição da escravatura, isso não quer dizer que hoje não possamos identificar a utilização de mão-de-obra escrava.
É bem verdade que algumas diferenças podem ser estabelecidas, a citar a ausência de escravidão em razão da cor ou raça do indivíduo, predominando atualmente situações de degradação social e de endividamento ocorrido durante a relação laboral, por exemplo.
Os trabalhadores, urbanos e rurais, encontram seus direitos tutelados nas mais diversas fontes heterônomas e autônomas do ramo juslaboral. A não aplicação da legislação, independentemente do grau, já é elemento para apontarmos como irregular a relação, sendo passível de autuação dos órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego, entretanto, não é suficiente para a caracterização da utilização de mão-de-obra escrava.
Santos faz uma interessante comparação entre a escravidão antiga, com a atual: “a descrição do trabalho escravo contemporâneo se assemelha em muito ao trabalho escravo da época colonial. Ao trocar-se a figura do senhor de engenho pela do fazendeiro e a do feitor pela do gato ou capataz, as similaridades são gritantes”[8].
Assim, fica claro que, mesmo com o grande lapso histórico, ambas as formas se assemelham, ou seja, o trabalho escravo continua a ser utilizado com a finalidade de aumentar a lucratividade da empresa e diminuir seus custos de mão de obra para que possa concorrer e ter maior rentabilidade.
Hoje, a escravidão é mais vantajosa para os empresários que do que na época do Brasil Colônia e do Império, pelo menos do ponto de vista financeiro e operacional.
Porém, é certo que existem certas diferenciações entre a antiga e a nova escravidão e essas diferenças estão relacionadas a fatores como: a propriedade legal, custo de aquisição da mão de obra, os lucros, mão de obra em si e as diferenças étnicas, que é uma das causas praticamente extintas de escravidão. Isso quer dizer que, atualmente, não se escolhe um escravo pela sua aptidão física de trabalho e não mais pela sua cor.
Na atualidade é difícil se ater a apenas uma forma de escravidão. Pode-se citar a escravidão da posse que é quando normalmente se captura a pessoa que é nascida ou vendida em servidão permanente. Esse tipo se aproxima da antiga escravatura e é o mais escasso no mundo atual, tendo maior incidência nos países da África.
A escravidão por dívida é a mais comum, sendo caracterizada pela concessão do próprio labor em troca de um empréstimo em dinheiro, porém, a duração desse trabalho geralmente não é especificada e normalmente gera um vínculo por períodos muito extensos e, ainda assim, não chega a reduzir a dívida.
Por último, citemos a escravidão por contrato, que vem como uma forma de disfarce para a escravatura, porquanto que, em tais situações, apesar de existir prévio contrato de trabalho, os empregados são tratados de forma degradante e desumana. Assim, nota-se que a escravidão atual é caracterizada por diversas fraudes com o fim de vincular a permanência do trabalhador ao emprego.
Portanto, ao fazer referência ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil, o que prevalece atualmente é a condição de exploração da pessoa que está sendo coagida a prestar serviços de qualquer natureza em condições degradantes, envolvendo o cerceamento da liberdade.
2 A ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA
2.1 CONCEITO JURÍDICO DE ESCRAVIDÃO
Como já debatido, a escravidão persiste nos dias atuais. A Organização Internacional do Trabalho em sua Convenção n. 29 (1930) classificou o trabalho forçado ou obrigatório como sendo todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente[9].
Ao analisar o termo escravidão, ele logo é associado à ideia de coerção, concomitantemente com a ausência da liberdade. Diferentemente do que se pode constatar atualmente, a discussão acerca da liberdade não era pauta recorrente na antiguidade. À época, os senhores acreditavam não existir a possibilidade de felicidade através da liberdade, enquanto que hodiernamente os conceitos de liberdade e igualdade são vistos como bastante interligados. Até porque, onde mais poderia se encontrar felicidade se não através da liberdade?
Segundo Hannah Arendt:
Antes que se tornasse um atributo do pensamento ou uma qualidade da vontade, a liberdade era entendida como o estado do homem livre, que o capacitava a se mover, a se afastar de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras pessoas em palavras e ações[10].
A liberdade tem ligação direta com a segurança nos gozos privados de alguns bens fundamentais para a segurança da vida e do desenvolvimento da personalidade humana, como as liberdades pessoais, a liberdade de opinião, de iniciativa econômica, de reunião e similares[11].
Nesse contexto, o trabalho escravo não respeita o direito de qualquer cidadão e, a partir daí, é que a escravidão passa ser vista de forma clara e institucionalizada em que os trabalhadores são vistos como animais.
Porém, deve-se ressaltar que a escravidão moderna é mais sutil, dissimulada, o que prejudica a sua identificação e, consequentemente, o seu combate, concluindo-se pela grande dificuldade para sua erradicação[12].
2.2 AS DIFICULDADES DE CONCEITUAÇÃO DOS TERMOS REFERENTES AO TRABALHO ESCRAVO
A grande dificuldade de conceituação está, primeiramente, na diferenciação dos conceitos relacionados a trabalho escravo e trabalho degradante.
O conceito de trabalho escravo utilizado pela OIT é que toda a forma de trabalho escravo é trabalho degradante e a busca é incessante para que haja uma transformação em trabalho decente. O que vem a diferenciar o trabalho degradante do trabalho decente é a liberdade.[13]
Em seu artigo 2º, a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho dispõe sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório: “Artigo 2º - 1. Para fins desta Convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente”[14].
A noção básica de escravidão tem a ver com o trabalho exigido pela força, em troca de algum alimento, sem respeito nenhum à dignidade humana, à liberdade de ir e vir. É o trabalho fruto da coerção, sob o pretexto de sanar dívida, esse tipo é predominante da zona rural.
Assim, a escravidão tem vez sempre que a dignidade humana é esquecida, notadamente quando o trabalhador é iludido com promessas de bons salários e transportado, sem obediência aos requisitos legais, ou impedido de sair do local de trabalho pela vigilância armada ou preso por dívidas impagáveis contraídas perante o empregador, ou, ainda, quando explorado sem atenção aos direitos trabalhistas, tais como o salário mínimo, jornada de trabalho normal, pagamento de adicionais, repouso remunerado e boas condições de higiene, saúde e segurança no trabalho.
Outra forma de definição do trabalho escravo é aquela em que define a escravidão como uma forma de trabalho forçado que implica o controle absoluto de uma pessoa por outra. Assim, para José de Souza Martins, escravo é quem não é senhor de si mesmo, é um dependente do outro e também de sua propriedade.
Vê-se que há uma grande dificuldade em definir o que seria a escravidão contemporânea. Muitos fazem a distinção, sem muita certeza, entre trabalho escravo e trabalho forçado, a partir da existência ou não de violência física. O primeiro teria violência enquanto que o segundo não.
Outra diferenciação utilizada é a que determina que o trabalho escravo é aquele no qual a vítima é obrigada a trabalhar sem nenhum direito, isto é, sem carteira profissional assinada, sem contrato escrito e sem receber salário, ao passo que o trabalho forçado seria aquele em que há coerção para o trabalho, mas com respeito a certas normas legais.
Conforme o entendimento Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé:
[...] identificar os significados dos diferentes usos dos termos é, portanto, mais do que lidar com nomes: é desvendar as lutas que se escondem por detrás dos nomes – lutas essas em torno da dominação, do uso repressivo da força de trabalho e da exploração[15].
Ademais, alega-se que a enorme dificuldade de conceituação dos termos referentes ao trabalho escravo ocorre em razão da falta de precisão com que os mesmos vêm sendo utilizados, gerando dificuldade no momento de interpretar, por exemplo, o que seria um “trabalho degradante”. Tamanha imprecisão nessas conceituações pode acarretar certa facilidade na burla da legislação.
Outrossim, o art. 149 do Código Penal prevê a pena de 2 a 8 anos de prisão para aqueles que ainda insistem em utilizar o trabalho escravo, além da penalidade correspondente à violência empregada.
No dispositivo citado, o crime é previsto em quatro situações distintas: cerceamento de liberdade de se desligar do serviço; servidão por dívida; condições degradantes de trabalho; jornada exaustiva. Portanto, o que é tutelado na lei não é apenas a liberdade, mas, sim, a dignidade da pessoa humana.
Apesar da presença de dificuldades para a conceituação do trabalho escravo, é notável a facilidade que existe em indicar seus elementos, os quais, por sua vez, podem vir a servir como fundamento para sua tipificação, ou seja, as situações fáticas que, uma vez constatadas, deixarão clara a configuração da escravidão.
Como exemplo, citemos o trabalho forçado, como principal elemento caracterizador do trabalho escravo, é a forma mais violenta de agressão da dignidade da pessoa humana, confundindo-se com a própria escravidão, uma fez que essa prática é realizada sob a forma de coação.
A coação, per si, é um elemento da escravidão, ensejando o cerceamento da liberdade como forma de evitar o rompimento do vínculo laboral. Portanto, verifica-se que cada um dos elementos trazidos caracteriza a escravidão, ainda que isoladamente, porquanto que são formas de suprimir a liberdade do trabalhador, forçando-o a prestar serviços contra a sua vontade.
Nestes termos, constata-se que a dificuldade em conceituar os mais importantes termos referentes ao trabalho escravo, acaba mascarando uma realidade triste e que persiste nos dias atuais. O percurso é longo, porém, o trabalho de clarificar o significado dos termos referentes a esta prática, poderia facilitar bastante a sua identificação e seu consequente combate.
2.3 A ESCRAVIDÃO NO SETOR TÊXTIL
É bem verdade que o setor têxtil vem se destacando com casos de escravidão no Brasil. Nos estudos da OIT, esse setor é conhecido como TVC, fazendo referência à confecção de vestuários e calçados, em que as empresas sempre estão se reinventando, não para uma melhoria, e sim para manter situações primitivas de exploração.
O trabalho análogo à condição de escravo acarreta uma diminuição da expectativa de vida dos trabalhadores, fruto da imposição de jornadas excessivas e exaustivas de labor, bem como mínimas condições de higiene e segurança.
Sistema comumente utilizado no setor têxtil, o chamado sweating system é o método em que os locais de trabalho muito se assemelham a residências, onde os obreiros trabalham com o pagamento de salários irrisórios e sob condições precárias e em jornadas cada vez mais exaustivas.[16]
Foi com Revolução Industrial que se iniciou a produção em larga escala, possibilitando a divisão do trabalho e priorizando a produção em um único local, pondo um fim à produção artesanal. Nesse contexto, com o novo sistema, surgiu a possibilidade de produção de tecidos e roupas com um valor bem menor e em uma escala muito maior, ensejando uma alteração significativa na relação entre empregado e empregador.
Neste diapasão, com o aumento da demanda no setor, as empresas, sedentas a obter cada vez mais lucros, passaram a procurar tão e somente a mão-de-obra barata. Com a busca incessante pelos preços baixos, as condições de trabalho mudaram, verificando-se, com mais frequência, o tráfico de pessoas para a confecção nesse tipo de indústria.
O sistema de trabalho industrial organizado alterou a relação do patrono com seus empregados, passando a empresa a garantir uma maior produção de vestuário com preços cada vez mais baixos. Este método gerou uma grande oferta de mão-de-obra, fazendo com que muitos trabalhadores deixassem a zona rural e migrassem para as zonas industriais, o que ensejou, por sua vez, uma desvalorização da classe operária e um menosprezo ao trabalho e suas condições, em virtude da busca pela diminuição do preço dos produtos.
Esse novo modelo de produção ficou conhecido como factory system, em que os operários eram reunidos de forma coletiva com a intenção de gerar uma melhoria em relação às produções que eram feitas de forma individual em suas casas.
É importante ressaltar que a implantação desse sistema não gerou melhoria nas condições de vida e de trabalho do proletariado, pelo contrário, constatou-se uma maior exploração dos trabalhadores, situação em que o Estado se viu obrigado a interferir, diante da inexistência de regulamentação.
Portanto, pode-se afirmar que o direito do trabalho tem uma relação direta com o setor industrial, uma vez que foi através dele que se passou a buscar a dignidade do trabalho e uma proteção ao obreiro na sua prestação de serviços.
Ainda assim, é notória a presença de aliciadores de estrangeiros, havendo, por exemplo, uma grande incidência de bolivianos encontrados em São Paulo, trabalhando sob condições degradantes, sendo esse apenas um exemplo dentre vários.
Portanto, conclui-se que o ramo da indústria têxtil tem grande incidência de trabalho análogo à condição de escravo, seja por não exigir experiência prévia, seja pela escassa regulamentação trabalhista, dificultando, e muito, a fiscalização nesse setor.
2.4 CASOS DE TRABALHO FORÇADO NA INDÚSTRIA TÊXTIL
A ONG Repórter Brasil comprova, ao apresentar dados à população, que a prática do trabalho escravo insiste em ocorrer no nosso país. O primeiro caso de escravidão contemporânea judicializado no Brasil se deu em 2011, quando as lojas Pernambucanas foram flagradas na prática do trabalho análogo à condição de escravo:
A rede Pernambucanas é alvo de um processo judicial por suposta exploração de mão de obra na cadeia produtiva, informou ontem o Ministério Público do Trabalho de São Paulo. A empresa foi investigada pela prática entre 2010 e 2011 e não concordou em assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo órgão para encerrar o caso. Essa é a primeira vez que uma investigação de trabalho análogo à escravidão no setor têxtil brasileiro segue para a Justiça[17].
Foi constatada a presença de imigrantes bolivianos, peças fabricadas em valores irrisórios e a recusa a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta, que levou o caso pioneiramente ao Judiciário.
Ademais, segue alguns outros tristes exemplos de trabalho forçado praticado em São Paulo no setor têxtil:
Um grupo de oito pessoas vindas da Bolívia, incluindo um adolescente de 17 anos, foi resgatado de condições análogas à escravidão pela fiscalização dedicada ao combate desse tipo de crime em áreas urbanas. A libertação ocorreu no último dia 19 de junho. Além dos indícios de tráfico de pessoas, as vítimas eram submetidas a jornadas exaustivas, à servidão por dívida, ao cerceamento de liberdade de ir e vir e a condições de trabalho degradantes. O grupo costurava para a marca coreana Talita Kume [...][18].
Com estruturas precárias, os costureiros trabalhavam em jornadas exaustivas de trabalho e recebiam o valor de R$1,00 por peça costurada. Nesse caso específico, as vítimas que vieram a ser libertadas trabalhavam há cerca de 8 meses e eram impedidas de sair do local de trabalho.
Os trabalhadores que vieram da Bolívia tiveram as passagens descontadas dos salários, bem como as despesas relacionadas à alimentação e à limpeza. Com o valor praticamente irrisório que recebiam, resta comprovada a servidão por dívida. O objetivo da empresa que contrata os serviços é evidentemente o lucro, mas algumas dispensam, de forma fria, a integridade e a dignidade do trabalhador.
Outro caso de destaque foi o das lojas Gregory:
No mesmo dia em que a grife de roupas femininas Gregory lançava a sua coleção Outono-Inverno 2012 com pompa e circunstância, uma equipe de fiscalização trabalhista flagrava situação de cerceamento de liberdade, servidão por dívida, jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho e indícios de tráfico de pessoas em uma oficina que produzia peças para a marca, na Zona Norte da cidade da capital paulista[19].
No caso específico dessa empresa, fora os casos de evidente desrespeito aos direitos fundamentais, ainda ficou constatado caso de discriminação aos indígenas que ali trabalhavam, uma vez que o tratamento dado a estes era diferenciado, ou seja, ainda mais desrespeitador.
Após a fiscalização, a Gregory poderá ser incluída ao cadastro de “lista suja” do trabalho escravo, uma vez que recusou a assinar o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC – e, ainda, poderá responder no âmbito criminal pelo crime de trabalho análogo à condição de escravo com previsão no art. 149 do Código Penal.
Citemos, ainda, o caso da empresa Zara, rede de vestuário internacionalmente conhecida. Caso que ocorreu em 2011, recebeu destaque em vários países por ser uma marca de grande influência no setor têxtil:
Nem uma, nem duas. Por três vezes, equipes de fiscalização trabalhista flagraram trabalhadores estrangeiros submetidos a condições análogas à escravidão produzindo peças de roupa da badalada marca internacional Zara, do grupo espanhol Inditex. Na mais recente operação que vasculhou subcontratadas de uma das principais "fornecedoras" da rede, 15 pessoas, incluindo uma adolescente de apenas 14 anos, foram libertadas de escravidão contemporânea de duas oficinas[20].
A despeito da modernização e da sutileza na prática do trabalho escravo contemporâneo, o presente estudo buscou demonstrar que o trabalho degradante e desumano ainda é uma latente na realidade brasileira.
É bem verdade que o ordenamento jurídico brasileiro traz normas com o fito de prevenir e reprimir a prática do trabalho escravo, prevendo punições não só na seara cívil como também na seara criminal, a citar o art. 149, do CPB.
Ademais, é importante ressaltar uma recente vitória no combate ao trabalho escravo, qual seja a promulgação da Emenda Constitucional no 81, de 2014, que incrementou mais uma forma de expropriação da propriedade, sem direito de indenização, quando diante da prática de trabalho escravo.
Apesar de a referida Emenda ser uma resposta positiva à luta pela dignidade, é de se ressaltar que muito ainda precisa ser feito, seja a partir da elaboração de políticas públicas de combate ao trabalho escravo, seja a partir da incrementação de instrumentos e órgãos de fiscalização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1988, a escravidão foi dada como extinta em caráter definitivo, mas, hodiernamente, ainda são vistos casos que, apesar de apresentados com uma roupagem diferente, podem ser considerados como análogos à situação de escravidão.
O interesse em aprofundar o tema veio para o despertar de uma sociedade consumista, onde o consumidor final não sabe o que está por trás da confecção das peças de roupa que usa, ou de qualquer outro utensílio.
Não é incomum que indivíduos comprem roupas em lojas de renome em que desconhecem o tratamento despendido aos seus funcionários. Comprar uma peça cuja confecção custou um valor irrisório ao empregador, só vai estimular o a empresa a continuar exercendo essa prática.
Verifica-se, portanto, a necessidade de haver uma maior fiscalização por parte do Poder Público, para que, a partir daí, se possa cobrar da sociedade e das empresas o conhecimento acerca da existência desse tipo de exploração, a fim de que se posicionem em favor da dignidade da pessoa humana.
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[15] SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. Trabalho escravo no Brasil na atualidade. São Paulo: LTR, 2001, p.16.
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[20] REPÓRTER BRASIL. Roupas da Zara são fabricadas com mão de obra escrava. 16/08/2011. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2016.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RUSSO, Andrea Cerqueira. A escravidão contemporânea analisada à luz da indústria têxtil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 nov 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51076/a-escravidao-contemporanea-analisada-a-luz-da-industria-textil. Acesso em: 22 nov 2024.
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