RESUMO: O sistema jurídico é composto por diversas espécies de regras, cada qual com sua função e importância. Existem as normas que permitem que valores sociais adentrem ao sistema, os princípios. Há aquelas que se destinam à aplicação de outras normas, funcionando como meta normas, os postulados. Existem, outrossim, as que se destinam a resolver problemas concretos já previstos pelo legislador, as regras. Entre essas não há hierarquia, mas sim distinção de funções.
PALAVRAS CHAVE: normas jurídicas, princípios, postulados, regras.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. SEÇÃO1: NORMAS JURÍDICAS CONSTITUCIONAIS. 1.1 Normas Jurídicas Em Geral. 1.2 Dispositivo, Enunciado Normativo e Norma. 1.3 Normas Constitucionais. 1.3.1 Características das Normas Constitucionais. 1.3.2 Conteúdo Material das Normas Constitucionais. 1.4 Normas como Princípios e Regras – Ronald Dworkin e Robert Alexy. 1.5 Normas como Princípios e Regras – Doutrina Brasileira. 1.6 Postulados. SEÇÃO 2: INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS. 2.1 Postulados (ou Princípios) de Interpretação das Normas Constitucionais. 2.1.1 Supremacia da Constituição. 2.1.2 Presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder público. 2.1.3 Interpretação conforme a Constituição. 2.1.4 Unidade da Constituição. 2.1.5 Razoabilidade ou Proporcionalidade. 2.1.6 Efetividade. 2.2 A importância de estabelecer parâmetros de interpretação das normas. SEÇÃO 3: CONFLITOS DE NORMAS JURÍDICAS: CRITÉRIOS DE RESOLUÇÃO. 3.1 Conflitos entre regras. 3.2 Conflitos entre princípios. 3.3 Conflitos entre regras e princípios. 3.4 Ponderação das regras. CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
As normas jurídicas são ferramentas essenciais para todos aqueles que investigam e trabalham com o Direito. O escopo deste trabalho consiste em perquirir como funcionam e como se aplicam as normas jurídicas em geral, com especial atenção às normas constitucionais.
Para cumprir com tal desiderato, buscou-se investigar o que a Doutrina contemporânea entende por norma jurídica.
O primeiro capítulo deste trabalho cinge-se em analisar conceitos doutrinários, partindo de normas jurídicas em geral, o papel da linguagem na construção do Direito, as normas constitucionais, as espécies normativas existentes, tais quais: os princípios, as regras e os postulados.
De há muito a ideia de norma jurídica se amolda no conceito de obrigação imposta por lei, em que se permite, se proíbe ou se determina agir de determinado modo. Contudo, tal estrutura não se encontra em todas as normas jurídicas. Para entender a estrutura subjacente que anima a norma, há de se dissociar o texto da norma. Os textos normativos não são as normas em si. Um artigo da Constituição pode expressar diversos tipos de normas, com diferentes estruturas, abarcando regras e princípios, como por exemplo, o artigo 5º da Constituição. A norma jurídica exsurge da interpretação e construção semântica sobre o texto normativo. Há normas que não seguem o mesmo padrão estrutural e, por conseguinte, o de aplicação. Há as regras que determinam as condutas a ser seguidas; há os princípios que determinam fins e estados ideais a serem buscados pelo intérprete e há os postulados que são normas metódicas, direcionadas à aplicação de outras normas.
Entender esses conceitos é fundamental para entender a aplicação das normas jurídicas, sobretudo as constitucionais, dotando-lhes de efetividade. Como se defende que a norma jurídica é fruto de exegeses, a atividade interpretativa ganha deveras importância, sendo, contudo, balizada por postulados (uma terceira espécie de norma jurídica) que servem para que o intérprete se valha de métodos objetivos, a fim de construir as normas jurídicas buscando os fins já delimitados no sistema, afastando-se assim possíveis manifestações subjetivas quando da aplicação do Direito. Ressaltar a importância dessas diversas espécies normativas contribui para a aplicação do Direito de modo objetivo, técnico, embora, não neutro, dado que se trata de atividade humana.
Por essas razões defende-se uma distinção terminológica criteriosa do que seja princípio, regra e postulado. Cada espécie normativa há de cumprir a sua função específica, para isso o intérprete há de identificar cada espécie para poder retirar dela o máximo de seu potencial normativo.
O segundo capítulo firma-se naquilo que se convencionou a chamar de princípios de interpretação constitucional, mas que neste trabalho chamamos de postulados de interpretação constitucional, por questão de método.
Sem se apegar ao nome das coisas, mister distinguir sua estrutura e suas características consectárias. Os postulados de interpretação das normas da Constituição são normas metódicas que visam dar ao intérprete supedâneo para a construção da norma por intermédio da exegese. Têm a potencializada importância de balizar os meios de construção da norma, a partir da linguagem nela empregada, e sua colocação dentro do sistema normativo.
Esses postulados, embora focados nas normas constitucionais, irradiam-se por todo o sistema normativo, pois interpretar/aplicar as Leis é direta ou indiretamente concretizar a Constituição. Prova disso, são os postulados da Supremacia da Constituição e o da Interpretação Conforme. Por esses, respectivamente, defende-se que a Constituição é o centro irradiador de valores jurídicos no ordenamento jurídico, com posição de destaque e subordinante em relação a todos os degraus do sistema, e que por sua vez, estes níveis inferiores à Constituição, quando de sua aplicação, devem reverência às normas constitucionais. Percebe-se que se fala de interpretação das normas constitucionais e seus postulados, mas a abrangência de seus conceitos acaba por irradiar efeitos por todo o sistema jurídico lhe dotando de coesão e coerência.
A importância desses postulados reside, pois, em amarrar o sistema normativo e contribuir para que o ato de interpretação/aplicação do Direito seja o mais objetivo, técnico e metódico possível. Assim se evita subjetivismos quando da concretização do texto jurídico em norma jurídica, pois o intérprete está previamente vinculado a um plexo de conceitos (linguagem das normas) e normas (postulados), que lhe balizarão o seu atuar (atividade interpretativa).
Construir o Direito a partir de seus textos normativos é atuar no mundo de modo objetivo, embora não seja um atuar neutro, dado que o Direito é ciência humana com a pretensão de influenciar a realidade, reconhecendo a influência recíproca que une o ser e o dever-ser.
A atividade interpretativa, contudo, não é atividade mecânica, pois haverá casos em que o intérprete haverá de resolver antinomias, ponderar valores contrapostos, afastar a aplicação de uma regra sobre um caso concreto, sem, contudo, lhe declarar a invalidade. Eis os temas debatidos no terceiro capítulo.
Os princípios quando expressam valores diferentes (liberdade x igualdade, segurança pública x liberdade), se colidentes num caso concreto hão de ser ponderados, mediante a lei de sopesamento, em que se buscará aplicar cada qual na sua medida máxima, produzindo-se uma regra que será aplicada àquele caso.
Uma regra, quando em conflito com outra, possui critérios de resolução de antinomia já consolidada no sistema, sendo estes o hierárquico, o da especialidade e o do tempo. Eis critérios clássicos, que valem para o conflito de regras diferentes que visem incidir num mesmo caso.
Adiante, investiga-se o conflito entre regras e princípios. É muito comum, sobretudo no direito público, falar que um princípio sempre prevalece sobre uma regra, quando estes conflitam em conteúdo. Entretanto, este trabalho defende o oposto, pois toda a regra já é fruto da ponderação de princípios colidentes. Em se tratando das regras constitucionais, maior o rigor das regras, pois estas são frutos de ponderações de princípios colidentes operadas pelo Pode Constituinte Originário, logo, se este já ponderou não cabe ao intérprete (re)ponderá-la. Como são as regras as normas que preveem os meios para se atingir os fins delineados pelos princípios, devem elas prevalecer sobre outros princípios aparentemente colidentes com estas, pois a resolução a este conflito já foi previamente delineada no sistema. Com isso, evidencia-se a carga axiológica das regras, e que nesse trabalho convencionou-se chamar de ponderação nas regras.
Tudo o que se diz, refere-se às regras não manifestamente inconstitucionais. Defende-se a primazia das regras, sem com isso, defender que estas possam ser rótulo para todo o tipo de conteúdo. O que se visa é dar efetividade às decisões máximas do povo, ínsitas na Constituição, fortalecendo, pois, sua força normativa, contribuindo-se para o concretizar do Estado Democrático de Direito.
Com isso defende-se a especial importância das regras dentro do sistema normativo, pois estas já são o fruto de ponderações de princípios procedidas pelo Poder Competente (Constituinte e os Constituídos). Não se quer dizer que haja hierarquia entre normas. Pelo contrário, todas estão no mesmo patamar hierárquico, contudo, ante a estrutura de cada uma delas (postulados, regras e princípios) todas têm seu modo de aplicação específico, de sorte que, conhecê-los é extrair o máximo da potencialidade de cada norma jurídica.
Ressaltar a importância das regras dentro do sistema jurídico, não significa, rebaixar o juiz, novamente, à condição de mera boca-da-lei, conforme o pensamento do século XIX. As regras, assim como os princípios, perseguem valores (elementos axiológicos constantes em todas as normas), mas estabelecendo meios (elementos deônticos peculiares às regras) já delineados pelo Poder Competente (Constituinte e Constituídos). Logo, se o comando deôntico, em certo caso concreto excepcional, afastar-se do elemento axiológico da regra, esta há de ser afastada, construindo-se uma exceção não prevista no sistema. Tal mister demanda carga argumentativa muito densa, pois há de justificar que a regra, apesar de válida não se aplica a certo caso concreto, sem contudo deixar de ser válida. Eis o que a doutrina convencionou chamar de ponderação das regras.
Logo, estas possuem especial destaque no sistema normativo, mas não são absolutas. Por isso é correto se defender que não há hierarquia entre as espécies normativas e também que a atividade de interpretar as regras não é mecânica, ante a possibilidade de ponderação destas.
Conhecer a estrutura e o modo de aplicação das diferentes espécies normativas contribui para que a atividade de interpretar/aplicar o Direito seja mais objetiva e com isso se concretize um dos pilares máximos do Estado de Direito, a segurança jurídica, sem que com isso, se pretira a eterna busca pela Justiça.
Sabe-se que o Direito se expressa por meio de normas. Estas, na maior ou menor medida determinam comportamentos a ser adotados, atuando no campo do dever-ser.
Falar em normas jurídicas é perquirir os elementos, as peças, do Sistema Jurídico.
Como não cabe às normas definirem-se a si mesmas, mister se investigar o que os juristas dizem ser as normas.
Através de seus textos é que se constrói a realidade normativa do Sistema Jurídico, pois se eles dizem o que são normas e do modo como eles dizem que são algo é aplicado, então: assim o é.
Portanto, investigar os significados que a doutrina dá ao conceito de norma jurídica é peça fundamental para que o estudioso do Direito saiba entender como o Sistema Jurídico funciona.
O direito é uma ciência integrante das humanidades. Quer-se dizer com isso que não pertence às ciências da natureza, tal qual a física, a química, a biologia.
Dentro das ciências humanas o Direito se destaca das demais ciências sociais, tal qual a Antropologia, a Ciência Política e a Sociologia, pois não visa tão somente descrever fatos. Tem o direito a pretensão de prescrever um dever ser, por meio de normas. Estas não descrevem a realidade, imputam sim um modelo que deve ser seguido.[1]
Se nas Ciências Naturais vigora a lógica da causalidade (A + B = C), no Direito impera a lógica da imputabilidade ( A + B deve ser C).
Tal síntese lógica diferencia o Direito de todas as demais ciências, inclusive as humanas, que possuem a pretensão de descrever o mundo. O Direito tem a pretensão de atuar efetivamente no mundo, o que o torna deveras particular.
As normas jurídicas são o objeto dos estudos do Direito, eis legado teórico de Kelsen. Parafraseando Claude Levi Strauss[2], o homem não vive sem classificar as coisas e, por isso, em muito a ciência se aproxima da bricolagem, muitas vezes vamos guardando conceitos em nossa garagem intelectual até que um dia os percebemos que somados podemos criar algo de novo, uma nova teoria. Com as normas não poderia deixar de ser diferente.
O conceito de que normas se confundem com regras de conduta, padrões de comportamento socialmente aceitos, por muito tempo predominou.
Contudo, na última metade do século passado, o conceito de norma jurídica sofreu uma reformulação.
Nas próximas linhas desta seção discorre-se sobre as classificações doutrinárias que se dá às normas jurídicas, sobretudo às normas jurídicas constitucionais, até, por fim, chegar à ideia de que as normas jurídicas se constituem num binômio composto por regras e princípios (eis a teoria dominante).
Após investigar textos de doutrina internacional sobre o tema, investigaremos textos de autores nacionais, a fim de saber o impacto de autores estrangeiros como Ronald Dworkin e Robert Alexy em nosso pensamento jurídico.
Veremos que já existe a superação do conceito de normas, tal qual preconizada por Ronald Dworkin e Robert Alexy, dominante até então, tripartindo a norma jurídica em regras, princípios e postulados.
Pretende-se com isso investigar o significado que a doutrina dá ao que seja norma jurídica, que é fundamental para o estudioso do Direito. Conhecer a ferramenta de trabalho torna-o capaz de melhor perquirir o escopo do Direito e atuar no mundo dos fatos.
Primeiramente, vejamos algumas classificações doutrinárias das normas jurídicas em geral[3]:
a – Quanto à hierarquia: existem as normas constitucionais e as normas infraconstitucionais.
As normas constitucionais são oriundas do poder constituinte originário e decorrentes do poder de reforma; já as normas infraconstitucionais são oriundas do poder político ordinário, o das legislaturas. Aquelas desfrutam de supremacia em face destas.
b – Quanto à imperatividade: há normas de ordem pública e há normas de ordem privada.
As normas de ordem privada, são instituídas em razão do interesse particular de seus titulares, permitem o exercício da autonomia da vontade particular, sendo verdadeiras facultas agendi, também chamadas de supletivas ou dispositivas. As normas de ordem pública são as instituídas como corolário da supremacia do interesse público e indisponibilidade deste, sendo normas de vinculação obrigatória, não cabendo faculdades no seu proceder ou não; são ordens, também nominadas de normas cogentes ou mandatórias.
c – Quanto à natureza do comando: há normas preceptivas, normas proibitivas e normas permissivas.
Normas preceptivas contêm comandos prescrevendo determinada ação positiva, determinam um fazer, v.g., voto obrigatório a partir dos 18 anos (art. 14, §1º, I, CF).
Normas proibitivas possuem comandos negativos, vedando condutas, v.g., veda-se que analfabetos sejam sujeitos passivos de votos, sendo inelegíveis (art. 14, §3º, CF).
Normas permissivas contêm direitos e faculdades atribuídos aos particulares ou poderes e competências de agentes políticos, sem a imposição de um dever de atuar, v.g., voto permitido a partir do 16 anos (art. 14, §1º, e, CF), possibilidade de o presidente extinguir cargos públicos, quando vagos (art. 84, VI).
d – Quanto à estrutura do enunciado normativo: podem ser normas de conduta e normas de organização.
As normas de conduta têm por escopo reger, diretamente, as relações sociais e o comportamento das pessoas. Aqui é mais visível a lógica da imputabilidade (se A então deve ocorrer B).
As normas de organização são as destinadas a instituir órgãos, atribuir competências e definir procedimentos. “Tais normas exercem a importante função de definir quem tem legitimidade para criar as normas de conduta e de que forma isso deve ser feito.”[4]
As normas jurídicas assim podem ser resumidas:
“Normas jurídicas são, em suma, atos jurídicos emanados do Estado ou por ele reconhecidos, dotados de imperatividade e garantia, que prescrevem condutas e estados ideais ou estruturam órgãos e funções. São atos de caráter geral, abstrato e obrigatório, destinados a reger a vida coletiva. Se integrarem o documento formal e hierarquicamente superior que é a Constituição, serão normas jurídicas constitucionais.[5]”
Partindo-se de uma definição que apenas categoriza normas em geral, vamos desvencilhar o conceito de norma do conceito de texto.
É de bom alvitre já firmar que as normas não se confundem com seus textos escritos. Norma e texto são coisas distintas, em que os textos são enunciados normativos. O atuar do intérprete é que transformará um amontoado de palavras em algo vivo, concreto, normativo.
Isso decorre da mudança de pensamento ocorrida no Século XX, acerca do papel do intérprete na construção dos significados dos textos, passou-se a perquirir a interpretação como elemento de construção do direito. O comando frio do texto legal não contém a resolução de todos os problemas, mesmo que pretenda ser genérico e abstrato. Cada caso concreto necessitará da interpretação dos comandos às suas vicissitudes, de modo que interpretar é aplicar o direito. A interpretação deixa de ser elemento que liga o sujeito ao objeto que se pretende investigar e passar a ser o elo de construção das coisas que há no mundo.
Ludwig Wittgeinstein[6] é filósofo que em muito contribuiu para o entendimento de que os indivíduos não estão no mundo para descobrir as coisas que nele habita. Estão no mundo para nele interagir e construir significado às coisas e a si mesmo com a linguagem.
Com o Direito o mesmo se dá. Sendo este um elemento do mundo, não está pronto e acabado para o descobrirmos. Está sim, em constante construção, por meio da linguagem, da interpretação de seus textos, pela edificação de sentidos a cada novo interpretar.
Eis um exemplo do que se fala: se em uma praia pública em 1900 tivesse uma placa com o seguinte dizer – proibido usar maiôs – chegar-se-ia à conclusão de que somente se poderia andar vestido. O mesmo dizer colocado hoje, 2014, às margens da mesma praia levaria à conclusão de que se trata de uma praia de nudismo. Logo, às mesmas palavras empregadas, foram construídos sentidos diversos, por meio da exegese. Dessa feita, vê-se que a norma, o comando normativo, não está nas palavras, mas sim nos sentidos que empregamos a elas. Prova de que texto e norma não se confundem.
Lenio Luiz Streck[7] bem nos alerta, embora em tom de crítica aos juristas brasileiros, para essa nova concepção filosófica, de que as coisas não estão prontas para serem descobertas pelos sentidos, mas sim que estão em constante construção pelo meio da linguagem :
“Embora tudo isto – e isto vale para o modo-de-fazer Direito em nosso sistema jurídico brasileiro – a mudança de paradigma (da filosofia da consciência para a filosófica da linguagem) não teve a devida recepção no campo da filosofia jurídica e da hermenêutica no cotidiano das práticas judiciárias e doutrinárias brasileiras. Os juristas não se deram conta do fato de que “o Direito é Linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o Direito o é numa linguagem e como linguagem, propõe-se sê-lo numa linguagem (nas significações linguísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa linguagem, que é.”
Com base na ideia de que norma jurídica é norma interpretada ao caso concreto, Luís Roberto Barroso[8] descreve alguns conceitos:
“Dispositivo é um fragmento de legislação, uma parcela de um documento normativo. Pode ser o caput de um artigo, um inciso, um parágrafo. Por vezes, um dispositivo trará em si uma norma completa. […] Há hipóteses, ainda, em que uma norma pode existir sem que haja qualquer dispositivo expresso que a institua. É o caso de diversos princípios constitucionais, como o da razoabilidade e o da proteção da confiança, que não são explicitados no texto da Constituição. Portanto, dispositivo não é o mesmo que norma.”
[…] Enunciado Normativo corresponde a uma proposição jurídica no papel, a uma expressão lingüística, a um discurso prescritivo que se extrai de um ou mais dispositivos. Enunciado normativo é o texto ainda por interpretar.”
[…] Norma é produto a incidência do enunciado normativo sobre os fatos da causa, fruto da interação entre texto e realidade. Da aplicação do enunciado normativo à situação da vida objeto de apreciação é que surge a norma, regra de direito que dará a solução do caso concreto. … Portanto, enunciado normativo não é o mesmo que norma.”
Vê-se que a interpretação é o elemento construtor das normas. Os sentidos, que são possíveis de extrair dos textos normativos, não estão nestes de per si. Na verdade esses sentidos são a construção decorrente da exegese (linguagem).
Texto e norma são dois elementos distintos de um mesmo fenômeno do mundo (social), o normativo.
É possível extrair várias normas de um mesmo texto. Pode-se mudar os padrões de sentidos empregados às palavras, que podem variar de acordo com o nicho social que o interpreta, por exemplo, o significado da palavra igualdade para o trabalhador possivelmente é mui diferente do atribuído pelo empreendedor. Também pode ocorrer que em contexto diverso (seja no tempo ou no espaço) as mesmas palavras mudem de sentido, conforme o exemplo das vestes nas praias, citado acima.
É possível extrair-se vários padrões normativos de um mesmo texto normativo. Da expressão: é proibida a tortura como meio de obter confissão – é possível extrair uma regra de conduta (não torturar), um princípio de ligado a direitos material (intangibilidade do corpo ou, ainda, dignidade da pessoa humana), um princípio ligado a direito processual (vedação da prova ilícita).
Humberto Ávila[9] é voz a endossar essa corrente de pensamento:
“Texto e norma
Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou se sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.
Em alguns casos há normas mas não há dispositivo. Quais são os dispositivos que preveem os princípios da segurança jurídica e da certeza do Direito? Nenhum. Então há normas, mesmo sem dispositivos específicos que lhes deem suporte físico.
Em outros casos há dispositivo mas não há norma. Qual norma pode ser construída a partir do enunciado constitucional que prevê a proteção de Deus? Nenhuma. Então, há dispositivos a partir dos quais não é construída norma alguma.
Em outras hipóteses há apenas um dispositivo, a partir do qual se constrói mais de uma norma. Bom exemplo é o exame do enunciado prescritivo que exige lei para a instituição ou aumento de tributos, a partir do qual pode-se chegar ao princípio da legalidade, ao princípio da tipicidade, à proibição de regulamentos independentes e à proibição de delegação normativa. Outro exemplo ilustrativo é a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto: o Supremo Tribunal Federal, ao proceder ao exame de constitucionalidade das normas, investiga os vários sentidos que compõem o significado de determinado dispositivo, declarando, sem mexer no texto, a inconstitucionalidade daqueles que são incompatíveis com a Constituição Federal. O dispositivo fica mantido, mas as normas construídas a partir dele, e que são incompatíveis com a Constituição Federal, são declaradas nulas. Então há dispositivos a partir dos quais se pode construir mais de uma norma.
Noutros casos há mais de um dispositivo, mas a partir deles só é construída uma norma. Pelo exame dos dispositivos que garantem a legalidade, a irretroatividade e a anterioridade chega-se ao princípio da segurança jurídica. Dessa forma, pode haver mais de um dispositivo e ser construída uma só norma.
E o que isso quer dizer? Significa que não há correspondência biunívoca entre dispositivo e norma – isto é, onde houver um não terá obrigatoriamente de haver o outro.”
Vê-se que a par das classificações doutrinárias das normas jurídicas, há a redefinição do que seja norma jurídica, sendo o produto da interpretação de textos avocados como proposta de solução de um problema concreto. Portanto, todo texto legal (sentido amplo) é um potencial normativo a ser interpretado. Não está acabado, mas está por se completar, mediante a interpretação, o emprego da linguagem na construção de sentidos.
Contudo, não se pode afirmar que os sentidos dos textos somente exsurgem quando o intérprete se propõem a resolver algum caso concreto. Há mínimos semânticos nos textos legais, que são ponto de partida para a construção das normas, por isso é possível classificar as normas em preceptivas, proibitivas, permissivas, ou normas de organização.
Nós, enquanto partícipes de uma comunidade linguística, partilhamos significados comuns da linguagem, pois sabemos de antemão o que significa o termo “é vedado”, ou “é proibido fumar”, ou “ressalvadas ...”, enfim há um mínimo de significado nos textos a ser interpretados, a fim de se buscar o sentido e alcance concreto para a resolução de problemas (jogos de linguagem, conforme Wittgenstein[10]).
Pode-se dizer então que há um sentido e alcance previamente determinados pelo uso da linguagem, de modo que os textos são significantes já dotados de significados mínimos.
Humberto Ávila[11] bem ressalta essa peculiaridade dos textos normativos:
“Todavia, a constatação de que os sentidos são construídos pelo intérprete no processo de interpretação não deve levar à conclusão de que não há significado algum antes do término desse processo de interpretação. Afirmar que o significado depende do uso não é o mesmo que sustentar que ele só surja como uso específico e individual. Isso porque há traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem. Wittgenstein refere-se a jogos de linguagem: há sentidos que preexistem ao processo particular de interpretação, na medida em que resultam de estereótipos de conteúdos já existentes na comunicação linguística em geral. Heidegger menciona o enquanto hermenêutico: há estruturas de compreensão existentes de antemão ou a priori, que permitem a compreensão mínima de cada sentença sob certo ponto de vista já incorporado ao uso comum da linguagem. Miguel Reale faz uso da condição a priori intersubjetiva: há condições estruturais preexistentes no processo de cognição que fazem com que o sujeito interprete algo anterior que se lhe apresente para ser interpretado.[...]”
Os textos legais em abstrato continuam a ter sua importância, o ponto central do que se argumenta é que não há confusão entre norma e texto[12]. Dessa feita, o Direito deixa de ser algo frio e morto em Constituições e Códigos e passa a ser algo vivo, concreto, aplicado aos problemas concretos da vida, documentados nos autos de processos judiciais e administrativos, que envolvem pessoas reais, dores reais, patologias sociais reais.
Por isso, o Direito tem uma grande diferença das demais Ciências Humanas, pois visa atuar no mundo dos fatos de modo concreto, direto e imediato.
Para isso, em muito contribui a ideia de que texto e norma são dois âmbitos diferentes do fenômeno normativo, mas que se complementam, permitindo a construção do sistema normativo.
Entender essa distinção e a importância do papel da linguagem, partindo-se da noção de que o Direito é um fenômeno em constante construção, é de suma importância para o estudioso do Direito quando começar a perquirir sobre a aplicação dos textos normativos, consubstanciando-os em normas jurídicas.
No Estado de Direito há a submissão de todos às leis e sendo nestas as moradas dos textos normativos, respeitar os conteúdos mínimos e a estrutura de linguagem (se os textos expressam valores a ser buscados ou padrões de condutas a ser adotados) é o primeiro passo para se concretizar a força normativa do sistema jurídico. A importância de investigar o fenômeno normativo liga-se à manutenção do Estado de Direito, em que todos estão submetidos a uma primeva vontade geral a nos guiar constantemente. Eis a ideia central da filosofia contratualista (Thomas Hobbes, John Locke, Jean Jacques Rousseau), todos cedemos nossa liberdade, em troca da paz social, esta consagrada por meio de normas que ao mesmo tempo que tolhe o indivíduo de sua plena liberdade do estado de natureza, os protege com a segurança das leis na vida em sociedade.
Sendo a Constituição o principal diploma jurídico de nossa Sociedade, as normas constitucionais passam a ser o foco das perquirições deste trabalho, pois são nelas que se depositam as esperanças de bem viver em sociedade, pois são nelas que estão os valores mais caros que os indivíduos de uma determinada sociedade partilham – de um modo geral, pois são nelas que estão prescritas as condutas mais essenciais para a busca do bem geral.
Sendo a Constituição o centro do ordenamento jurídico, perquirir as suas normas é buscar a raiz de nossa estrutura jurídica.
Investigar como as normas constitucionais são construídas e quais suas estruturas em muito contribui para entender o funcionamento do Direito enquanto um sistema de normas. Estudar a Constituição é ao mesmo tempo estudar todo o ordenamento jurídico. Com as normas constitucionais entendidas como dotadas de força jurídica normativa, não se pode mais falar que o campo de atuação das leis é um e o da Constituição é outro. Sendo o Direito uno, pois sistema, investigar o seu núcleo é também entender suas periferias, pois estas àquele se subordinam.
Por isso, passa a se investigar o que a doutrina entende por normas constitucionais, sem com isso perder de vista, o que sejam as normas em geral, pois todas as demais normas do sistema existem para complementar as normas da Constituição.
Primeiramente que se diga que entender as normas constitucionais como normas jurídicas é conquista do Século XX.
“Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica.[13]”
Isso se deu por conta de teorias que pretendiam dotar de força normativa os dizeres da Constituição. Konrad Hesse[14] é autor com esse intuito. Uma de suas principais obras – A força normativa da Constituição – é fruto de aula magna ministrada na Universidade alemã de Freiburg - RFA, em que pretendia incutir nas jovens mentes dos alunos, que a nova Lei Fundamental de seu país (Lei Fundamental de Bonn, 1949) era dotada de força reconstrutora, a fim de reerguer a Alemanha assolada pela segunda guerra mundial.
O pensamento ocidental era fortemente marcado pelo fato de as normas constitucionais serem meros recados aos legisladores. Ela de per si não gerava direitos imediatos. Tal conceito, contudo, mudou após a segunda guerra mundial, visando dotar o Direito de maior segurança e inserir nos ordenamentos jurídicos valores que tidos por fundamentais, ajudassem a não permitir novamente a barbárie, que o nazismo perpetrou em nome da legalidade estrita.
Superou-se o paradigma da supremacia do parlamento pelo paradigma da supremacia da Constituição. Esta, um documento jurídico, que transforma a vontade política do Poder Constituinte Originário em normas a serem perquiridas, descobertas e aplicadas pelos Poderes Constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário – na clássica tripartição de Montesquieu).
Em suma histórica, prevaleceu a ideia norte americana de que a Constituição é um documento jurídico e não mera cartilha política, destinada tão somente aos parlamentares[15].
Sendo norma jurídica, gera direitos subjetivos, eis o cerne do atual pensamento em direito constitucional. Estes direitos subjetivos podem ser exigidos se uma ação positiva ou negativa os vier a maculá-los, seja por particulares, seja pelo Estado. Eis o grande passo dado no constitucionalismo após 1945, no mundo ocidental, inclusive no Brasil, ainda que tardiamente (1988).
“Desse reconhecimento de caráter jurídico às normas constitucionais resultam consequências especialmente relevantes:
“a – a Constituição tem aplicabilidade direta e imediata às situações que contempla, inclusive e notadamente as referentes à proteção e promoção dos direitos fundamentais.
b – a Constituição funciona como parâmetro de validade de todas as demais normas jurídicas do sistema, que não deverão ser aplicadas quando forem com ela incompatíveis.
c – os valores e fins previstos na Constituição devem orientar o intérprete e o aplicador do Direito no momento de determinar o sentido e o alcance de todas as normas jurídicas infraconstitucionais, pautando a argumentação jurídica a ser desenvolvida.”[16]
Por isso hoje falamos em eficácia irradiante dos direitos fundamentais e das normas constitucionais como um todo, pois todo o sistema há de ser interpretação à luz das normas constitucionais.
Podemos dizer que a Constituição sendo o centro do sistema fornece energia jurídica a todos os ramos.
Portanto, ter o conhecimento das normas constitucionais, seus modos de aplicação / interpretação é o primeiro passo a concretizar a vontade da Constituição, nos dizeres de Konrad Hesse.
São quatro as principais características das normas constitucionais, segundo Luís Roberto Barroso[17]:
a – Posição de supremacia no sistema;
b – Plasticidade de sua linguagem;
c – Conteúdo específico;
d – Dimensão Política.
A superioridade é um adágio sobre o qual se funda o constitucionalismo contemporâneo. Há duas ideias centrais: preservação da constituição (Constituição dotada de supremacia é Constituição rígida, cuja reforma demanda algo a mais que o mero procedimento legislativo ordinário); conquista e manutenção da democracia (um golpe de Estado, como em 1933 com Hitler, é facilmente imaginável com Constituições flexíveis, que podem ser modificadas mediante reformas legislativas). Deste axioma da supremacia constitucional exsurge a importância dos sistemas de controle de constitucionalidade[18].
A plasticidade da linguagem das normas constitucionais é nota característica delas, pois figuram inúmeras cláusulas gerais, que tanto servem como ‘janelas’ de entrada de preceitos éticos e morais predominantes no ethos social, como permitem o renovar da Constituição mediante a mutação constitucional. As cláusulas gerais,“são categorias normativas pelas quais se transfere para o intérprete, com especial intensidade, parte de criação do Direito, à luz do problema resolvido[19]”. São constituídas de conceitos indeterminados, tais quais: interesse público; justa indenização; paz social; ordem pública; bem como princípios jurídicos, tais quais: dignidade da pessoa humana; igualdade; liberdade; moralidade. Contudo, é bom asseverar que não há somente cláusulas gerais na Constituição, existem regras específicas nela consagradas, que já são frutos de análises de princípios jurídicos feitos pelo poder constituinte originário. Adiante o tema será melhor abordado.
O conteúdo das normas constitucionais pode ser agrupado em três grandes nichos: 1 – Normas de Organização (disciplinam a existência e a competência de entidades e órgãos públicos); 2 – Normas declaratórias de direitos (definem os direitos fundamentais em todas as suas dimensões); 3 – Normas de conteúdo programático (determinam fins a serem perseguidos pelo Estado, como o escopo de sua atuação). Os dois primeiros itens são legados da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, art. 16; já o último é contribuição mui pertinente do constitucionalista português, J.J.G. Canotilho, e sua noção de Constituição Dirigente[20].
Quanto à dimensão política, podemos dizer que a Constituição possui a difícil missão de intermediar duas esferas: a política e a jurídica.
“ … uma Constituição, rememore-se, faz a travessia entre o fato político e a ordem jurídica, entre o poder constituinte e o poder constituído, estando na interface entre dois mundos diverso, porém intercomunicantes.”[21]
Portanto, as normas constitucionais se prestam ao mister de preservar o status quo, entendendo-se esse, no atual estágio de nossa história, como o regime democrático de direito, intermediando os conflitos políticos, prescrevendo normas de conduta, normas de organização e normas direcionadoras da atuação política dos representantes do povo.
Basicamente há três grandes classes de normas constitucionais. A estas se nominam:
a – normas constitucionais de organização;
b – normas constitucionais definidoras de direitos;
c – normas constitucionais programáticas.
As normas constitucionais de organização visam estruturar e disciplinar o exercício do poder político.
“i – veiculam decisões políticas fundamentais, como a forma de governo, a forma de Estado e o regime político, a divisão orgânica do poder ou o sistema de governo;
ii – definem as competências dor órgãos constitucionais e das entidades estatais;
iii – criam órgãos públicos, autorizam sua criação, traçam regras à sua composição e ao seu funcionamento; e
iv – estabelecem normas processuais ou procedimentais: de revisão da própria Constituição, de defesa da Constituição, de elaboração legislativa, de fiscalização.”[23]
As normas constitucionais definidoras de direitos são as que geram os chamados direitos subjetivos, investindo o jurisdicionado do poder de exigir do Estado ou de outros particulares prestações positivas ou negativas. Os direitos definidos são conhecidos como fundamentais, os quais a doutrina costuma dividir em: 1º dimensão (ou geração) = direitos individuais e políticos; 2º dimensão (ou geração) = direitos sociais; 3º dimensão (ou geração) = direitos difusos e coletivos; 4º dimensão (ou geração) = direito à democracia, à informação e ao pluralismo[24].
As normas constitucionais programáticas traçam fins sociais a serem alcançados pela atuação Estatal. Tudo o que a Constituição promete (ideal de vida boa –Lênio Luiz Streck) há de ser cumprido, podendo ser exigido por cada um dos indivíduos que residem (e mutatis mutandis, estejam de passagem) na República Federativa do Brasil. Há argumentos tais qual limite do possível ou reserva do possível, que na verdade se prende a questões orçamentárias. Cediço que nem tudo o que na Carta está é possível ser implementado da noite para o dia, contudo, sem cobrança e participação ativa na esfera pública, tais promessas sempre serão somente promessas. Promover acesso à cultura, à educação, à saúde, ao desporto, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tudo custa caro, sendo o orçamento realmente um problema a ser pensado e resolvido em longo prazo, contudo, não se pensa que tais promessas não possam ser exigidas do Estado, uma vez que no fôlego constitucional originário, nos prometemos – ainda que por nossos representantes – um mínimo existencial razoável, que bem pode ser visto no art. 7º, IV, da CF.
Com uma postura mais moderada, assim escreve Luís Roberto Barroso:
“Por sua natureza, não geram para os jurisdicionados a possibilidade de exigir comportamentos comissivos, mas investem-nos na faculdade de demandar dor órgãos estatais que se abstenham de quaisquer atos que contravenham as diretrizes traçadas. Vale dizer: não geram direitos subjetivos na sua versão positiva, mas geram-nos em sua feição negativa.” [25]
Contudo, reconhece o autor:
“Modernamente, já se sustenta a operatividade positiva de tais normas, no caso de repercutirem sobre direitos materialmente fundamentais, como por exemplo os que se referem ao mínimo existencial.”[26]
Essas são as normas que comumente a doutrina nomina de materialmente constitucionais.
Ainda no que se relaciona com o tema das normas constitucionais, é mister documentar que há as que não possuem tal conteúdo, conquanto não percam sua característica de normas constitucionais. São as normas formalmente constitucionais. Isso, pois, não tratam de matérias propriamente a ser tratadas em uma Constituição, mas que por opção do poder originário, receberam tratamento diferenciado no sistema, v.g., a proteção à família, a regulamentação da titularidade dos serviços de oficial de registro, a disciplina do Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, etc. Pela inclusão de alguns desses temas, há na doutrina críticas sobre a excessiva composição analítica de nossa Constituição Federal. Contudo, isso é outro assunto.
As normas constitucionais possuem diversas classificações, que variará de acordo com o método selecionado, por isso muitos autores classificam-nas de diversos modos.
Este trabalho não tem a pretensão de investigar as normas constitucionais sob o aspecto da sua eficácia (eficácia plena, eficácia contida e eficácia limitada, conforme José Afonso da Silva[27]).
Visa sim investigar a estrutura dessas normas e o modo de sua aplicação. Portanto, preocupa-se mais com a efetividade da Constituição do que com a eficácia jurídica.
Para isso, há de se ter em mente que as normas da Constituição, com suas características e conteúdos se nos amostram mediante duas[28] estruturas básicas, os princípios e as regras, que se diferenciam não só pela sua estrutura, mas pelo modo de aplicação.
Até o presente momento podemos assim resumir o que fora explorado: partindo-se do conceito de que existem diferentes tipos de normas (constitucionais, infraconstitucionais) chega-se ao conceito de que os dizeres da Constituição são normas jurídicas, portanto dotadas de força normativa e aptas a ensejar mudança no mundo dos fatos.
A par de algumas classificações doutrinárias, trabalhamos até agora com o conceito geral de normas (sobretudo as constitucionais).
Após a segunda metade do século XX, filósofos do Direito, como Ronald Dworkin e Robert Alexy, perceberam que as normas jurídicas[29] se apresentam com padrões diferenciados.
Logo, quando se fala em normas, se está a falar de padrões normativos diferentes.
Durante o domínio do pensamento positivista, costumava-se subsumir no conceito de norma um modelo normativo que prescrevia condutas.
Por isso é comum falar que a norma possui a estrutura funcional “se, então”.
Se alguém matar outrem, então será preso.
Notemos que há nesse padrão um prescritivo de conduta: não matar.
Contudo, as normas jurídicas se nos revelam por diferentes padrões, que nem sempre prescrevem um comportamento indesejado e, por conseguinte, a respectiva sanção caso ocorra o comportamento indesejado.
O que dizer dessas construções:
É princípio fundamental da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana; A sociedade tem como fundamento o primado do trabalho; A base econômica da sociedade funda-se na livre concorrência.
Percebe-se que não há padrões de comportamento, há conceitos abertos, plásticos, que demandam esforço argumentativo maior quando de sua concretização enquanto norma.
A essas estruturas nominou-se de princípios jurídicos.
Não que princípios jurídicos dantes não fossem conhecidos, pelo contrário sempre o foram. Contudo, com função diferente no sistema.
Vejamos o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:
Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Levando-se em consideração que esta Lei de Introdução é de 1.942, há nela documentada a função a que se resumiam os princípios: mero colmatadores de lacunas.
A influência de Ronald Dworkin e Robert Alexy foi a de superar esse paradigma do positivismo, alçando os princípios jurídicos ao patamar de normas jurídicas. Portanto, aplicáveis a casos concretos, contudo de maneira diferente do que se convencionou chamar de regras jurídicas.
O mais importante é perceber que os princípios jurídicos geram direitos subjetivos, pois são normas jurídicas.
Hoje na doutrina nomeia-se de pós-positivismo a corrente de ideias ainda a se formar, que visa superar os paradigmas positivistas, retomando conceitos axiológicos do jusnaturalismo, sem contudo rejeitar as conquistas dos pensadores positivistas[30]. Podemos até arriscar a dizer que o pensamento pós-positivista é um pensamento ainda calcado no positivismo – basta olhar o nome que se deu a essa corrente de ideias, pois não estamos a falar de neojusnaturalismo – contudo, com a pretensão de superar as limitações de suas bases filosóficas.
Embutir valores filosóficos e morais no sistema jurídico, dotando-os de força normativa é grande conquista da democracia, sobretudo se se levar em conta que os regimes totalitaristas (o Nazismo, o Socialismo Soviético e Chinês) impetram barbáries sob o comando frio da lei.
Assim, supera-se a ideia de que o Direito é um sistema fechado, e passa-se a ideia de que o Direito é um sistema aberto, a ser construído e dotado de sentido pelo intérprete.
Ronald Dworkin é autor que se destaca e que influenciou fortemente os doutrinadores nacionais, após a década de 1.990.
Em breve síntese, podemos inferir que buscou superar alguns paradigmas do positivismo, tendo como contraponto a teoria de Hart. “Quero lançar um ataque geral contra o positivismo e usarei a versão de H.L.A.Hart como alvo, quando um alvo específico se fizer necessário.[31]”
Uma das ambições teóricas deste autor fora suplantar a identificação do Direito às regras (imperativos de conduta), utilizando o que ele convencionou nominar de casos difíceis para demonstrar como a visão de que o Direito é um sistema de regras é incompleta.
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.
Esse tudo ou nada fica mais evidente se examinamos o modo de funcionamento das regras, não do direito, mas em algum empreendimento que elas regem – um jogo, por exemplo. No beisebol, uma regra estipula que, se o batedor errar três bolas, está fora do jogo. Um juiz não pode, de modo coerente, reconhecer que este é um enunciado preciso de uma regra do beisebol e decidir que um batedor que errou três bolas não está eliminado. [...]
[...] Denomino “princípio” um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.[...]
[...] Um princípio como “Nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos” não pretende (nem mesmo) estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas (ainda assim) necessita uma decisão particular. Se um homem recebeu ou está na iminência de receber alguma coisa como resultado direto de um ato ilícito que tenha praticado para obtê-la, então essa é uma razão que o direito levará em consideração ao decidir se ele deve mantê-la[...]
[...] Essa primeira diferença entre regras e princípios traz consigo outra. Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um.[...]
[...] Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.
As regras não têm essa dimensão. Podemos dizer que as regras são funcionalmente importantes ou desimportantes [...]. Nesse sentido, uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior.
Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa do gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes [...]. [32]
Vê-se que o sistema jurídico, segundo Ronald Dworkin, possui dois padrões normativos: as regras e os princípios. As regras ou são aplicadas ou não são aplicadas[33] (tudo ou nada) a determinado caso concreto, já os princípios possuem dimensões de peso, que demandam concretização diferente em cada caso concreto.
Para o autor os princípios ganham relevância quando os casos a ser decididos não possuem regras previamente definidas. Contudo, refutando a teoria do poder discricionário do juiz (Hart), aduz que mesmo nesses casos o juiz há de perquirir os direitos das partes previamente presentes no sistema. Tais direitos exurgem do exame dos precedentes e na busca dos princípios jurídicos que os animam.
“Em minha argumentação, afirmarei que, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim ter o direito de ganhar a causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente.”[34]
Na demonstração de sua tese Ronald Dworkin inventa o juiz Hércules que deve resolver algumas situações consideradas difíceis, dentre as quais os casos em que não há regra precedente a regulamentar a situação. Para isso, propõe o autor que Hércules examine os precedentes a fim de encontrar os princípios que os animam.
“Hércules deve agora desenvolver seu conceito dos princípios que fundamentem o direito costumeiro, atribuindo a cada um dos precedentes relevantes algum esquema de princípios que justifique a decisão contida nesse precedente.”[35]
Com esses argumentos Ronald Dworkin defende a ideia de que os princípios já estão dispostos no sistema jurídico e que cabe ao intérprete, no caso o juiz, descobri-los e aplicá-los. Dessa feita, não estão fora do sistema jurídico, sendo normas e devendo ser aplicados de acordo com sua dimensão de peso, em relação ao caso concreto.
Convém ressaltar aqui que a argumentação sobre os princípios ganharem importância na ausência de regras, não faz confundir com o acima citado art. 4º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro.
Ronald Dworkin é autor vinculado ao sistema do common law em que há leis, mas os precedentes judiciais são deveras importantes, possuindo força vinculante a casos futuros, cumprindo verdadeira função normativa.
O contraponto de Ronald Dworkin é H.L.A. Hart, que defende que quando não há regra específica, os juízes decidem com base em seu poder discricionário. Dworkin refuta tal ideia, dizendo que nos casos difíceis, como os que não possuem regulação prévia, os juízes buscam argumentos jurídicos nos precedentes, a fim de encontrar os princípios que os embasaram. Logo, não agem a criar novo direito – doutrina do poder discricionário – mas sim encontram normas já existentes e que funcionaram como razão de decidir em outros casos análogos, tais normas são os princípios jurídicos ou como nomina o autor: argumentos de princípios.
Com isso, o autor introduz no sistema jurídico do common law os princípios jurídicos, a fim de afastar a teoria do poder discricionário do juiz.
Assim, não se há falar em confusão da função de princípios jurídicos para Ronal Dworkin e o que se dispõe no art. 4º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro.
Até, pois, já nos capítulos inaugurais de sua obra ele identifica dois padrões normativos, as regras e os princípios.
Portanto, a função dos princípios não são a de meros colmatadores de lacunas, mas sim de normas jurídicas presentes nos precedentes judiciais.
Tais ressalvas foram feitas apenas para dar ênfase que o autor escreve em sistema jurídico diferente do nosso, o brasileiro, este fincado nas bases da civil law. Embora hoje seja possível defender que esse sistema tem trocado influências com o da common law, é imprescindível já estabelecer algumas diferenças a fim de evitar confusões.
Com as devidas adaptações, a ideia central que se defende é que os princípios jurídicos são um padrão de normas jurídicas, que geram direitos, não sendo meros colmatadores de lacuna de lei, esta entendida como que composta somente por regras jurídicas.
Outro autor de grande expressão em nossa doutrina é Robert Alexy, alemão, e, portanto, vinculado ao sistema da civil law. Vejamos os principais pontos de sua obra, no que atina ao binômio – princípios e regras.
Sustenta o autor que a diferença entre princípios e regras é qualitativa. Por diferença qualitativa, assim ele define:
“A distinção entre regras e princípios não é nova. [...] Aqui, regras e princípios serão reunidos sob o conceito de norma. Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões dêonticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos de dever-ser, ainda que espécie muito diferente. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre duas espécies de normas. [...]
[...] O ponto decisivo na distinção entre regas e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.
Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma ou é regra ou é princípio.”[36]
Quando se diz que a diferença entre as regras e os princípios é de qualidade, quer-se referir à estrutura da norma, contrapondo-se à generalidade de seus termos, a que nomina o autor de distinção de grau, para diferenciar as espécies normativas.
O autor aduz que as regras são prescritivos de conduta assim como os princípios, mas aquelas, as regras, ou se aplicam ou não – parecido com a ideia de Dworkin do “tudo ou nada” – já os princípios são ponderados no caso concreto, por meio de sopesamentos, devendo ser aplicado na maior medida jurídica e fática possíveis que o caso demandar.
Voltaremos a esse assunto adiante, quando tratarmos de conflitos entre regras e princípios.
O pensamento desses autores é muito influente no Brasil. Foi amplamente aceita essa distinção entre princípios e regras, tanto na jurisprudência, quanto na doutrina nacional.
Vejamos o que nossos autores têm a dizer sobre o assunto.
Nas linhas acima, visou-se sistematizar conceitos de normas jurídicas constitucionais, a partir do conceito de normas jurídicas.
Após, buscamos na doutrina estrangeira (norte-americana e alemã) o conceito de norma jurídica (constitucional) que as subdivide em regras e princípios.
Como a Constituição tem força normativa, sendo constituída por diversos tipos de normas, a teoria que diferencia princípios e regras é perfeitamente aplicável às normas constitucionais.
Ronald Dworkin e Robert Alexy são dois expoentes dessa diferenciação que foi amplamente aceita em nossa doutrina.
Convém ressaltar que há muito, no Brasil, se atribuíu aos princípios jurídicos a mera função colmatadora de lacunas, mas se lhes relegou a alcunha de norma jurídica. O art. 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[37], merece uma releitura, para que esses dispositivos normativos sejam lidos, como apenas uma das possíveis funções dos princípios jurídicos, sobretudo os princípios constitucionais. Ademais, o art. 126, do Código de Processo Civil de 1973[38], ora revogado, traz a ideia de que os princípios eram meras fontes colmatadoras e não normas jurídicas propriamente ditas.
Isso, pois:
“Os princípios – notadamente os princípios constitucionais – são a porta pela qual os valores passam do plano ético de ser fonte secundária e subsidiária do Direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico.[...]
Foi somente a partir dos escritos seminais de Ronald Dworkin, difundidos no Brasil a partir do final da década de 80 e ao longo da década de 90, que o tema teve um desenvolvimento dogmático mais apurado. Na sequência histórica, Robert Alexy, ordenou a teoria dos princípios em categorias mais próximas da perspectiva romano-germânica do Direito.”[39]
A redação em dispositivo equivalente no Código de Processo Civil de 2015 foi aprimorada, conforme se verifica no artigo 140[40].
Hoje se pode dizer que princípios são valores positivados em nossa ordem jurídica, sobretudo na Constituição Federal, tais quais: a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a igualdade, o valor social do trabalho, a proteção ao consumidor, a proteção ao meio ambiente, a livre concorrência. Esses valores determinam estados ideais que deve buscar o intérprete da Constituição (a sociedade como um todo, bem como os Poderes Estatais). Logo, são fontes das demais normas do sistema, bem como são os fins que pautam as condutas materiais que tendem a concretizar os seus valores.
Os princípios, portanto, têm sua dimensão axiológica (expressa aquilo que é bom e desejável no conviver social), e têm sua dimensão deontológica (pois determinam indiretamente parâmetros de condutas a ser tomadas – proibitivas, preceptivas e permissivas). Dessa feita, os princípios são normas plurieficazes, pois instituem direitos subjetivos[41], pois atuam na produção de outras normas (princípios mais concretos e regras), atuam na interpretação de outras normas, atuam quando há omissão de regras específicas para um caso concreto – permitindo-se a concretização da regra para o caso –, atuam a fim de dar coesão ao ordenamento jurídico.
As regras são condutas descritas como boas, obrigatórias e concretizadoras de certos princípios, pelo Constituinte Originário ou Reformador, bem como pelo Legislador ordinário.
Se os princípios descrevem fins e estados ideais que buscamos, no viver em sociedade, as regras descrevem as condutas necessárias à consecução de tais fins.
Há critérios doutrinários para se estabelecer a distinção entre princípios e regras. Todos podem ser agrupados em três grandes grupos. Leva-se em conta: a) o conteúdo; b) a estrutura normativa; e c) o modo de aplicação.
“Pelo conteúdo, o vocábulo ‘princípio’ identifica as normas que expressam decisões políticas fundamentais – República, Estado democrático de direito, Federação -, valores a serem observados em razão de sua dimensão ética – dignidade da pessoa humana, segurança jurídica, razoabilidade – ou fins públicos a serem realizados -, desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza, busca do pleno emprego. […] As regras jurídicas, ao revés, são comandos objetivos, prescrições que expressam diretamente um preceito, uma proibição ou uma permissão. elas não remetem a valores ou fins públicos porque são a concretização destes, de acordo com a vontade do constituinte ou do legislador, que não transferiram ao intérprete – como no caso dos princípios – a avaliação das condutas aptas a realizá-los.
Com relação à estrutura normativa, os princípios normalmente apontam para estados ideais a serem buscados, sem que o relato da norma descreva de maneira objetiva a conduta a ser seguida. […] é nota de singularidade dos princípios a indeterminação de sentido a partir de certo ponto, assim como a existência de diferentes meios para a sua realização. Já com as regras se passa de modo diferente: são elas normas descritivas de comportamentos, havendo menor grau de ingerência do intérprete na atribuição de sentidos aos seus termos e na identificação de suas hipóteses de aplicação. Em suma: princípios são normas predominantemente finalísticas, e regras são normas predominantemente descritivas.[42]”
Continua Luis Roberto Barroso[43]:
“É, todavia, no modo de aplicação que reside a principal distinção entre regra e princípio. Regras se aplicam na modalidade tudo ou nada: ocorrendo o fato descrito em seu relato ela devera incidir produzindo o efeito previsto. (…) Não há maior margem na elaboração teórica ou valoração por parte do intérprete, ao qual caberá aplicar a regra mediante subsunção: enquadra-se o fato na norma e deduz-se uma conclusão objetiva. Por isso se diz que as regras são mandamentos ou comandos definitivos: uma regra somente deixará de ser aplicada se outra regra a excepcionar ou se for inválida. (… ) Já os princípios indicam uma direção, um valor, um fim. Ocorre que, em uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas, gerando tensões e eventuais colisões entre eles. (…)Como todos esses princípios têm o mesmo valor jurídico, o mesmo status hierárquico, a prevalência de um sobre o outro não pode ser determinada em abstrato; somente à luz dos elementos do caso concreto será possível atribuir maior importância a um do que a outro. Ao contrário das regras, portanto, princípios não são aplicados na modalidade tudo ou nada, mas de acordo com a dimensão de peso que assumem na situação específica. Caberá ao intérprete proceder à ponderação dos princípios e fatos relevante, e não a uma subsunção do fato a uma regra determinada. Por isso se diz que princípios são mandamentos de otimização: devem ser realizados na maior intensidade possível, à vista dos demais elementos jurídicos e fáticos presentes na hipótese. Daí decorre que os direitos neles fundados são direitos prima facie – isto é, poderão ser exercidos em princípio e na medida do possível.
(…) O principal valor subjacente às regras é a segurança jurídica. Elas expressam decisões políticas tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, que procederam às valorações e ponderações que consideraram cabíveis, fazendo com que os juízos por eles formulados se materializassem em uma determinação objetiva de conduta. (…) Regras, portanto, tornam o Direito mais objetivo, mais previsível e, consequentemente, realizam melhor o valor segurança jurídica.
(…) De fato, são os princípios que dão identidade ideológica e ética ao sistema jurídico, apontando objetivos e caminhos, (…) seu conteúdo, aberto permite a atuação integrativa e construtiva do intérprete, capacitando-o a produzir a melhor solução para o caso concreto, assim realizando o ideal de justiça.
(...) Como o direito gravita em torno desses dois grandes valores – justiça e segurança -, uma ordem jurídica democrática e eficiente deve trazer em si o equilíbrio necessário entre regras e princípios. Um modelo exclusivo de regras supervalorizaria a segurança, impedindo, pela falta de abertura a flexibilidade, a comunicação do ordenamento com a realidade, frustrando, em muitas situações, a realização da justiça. Um modelo exclusivo de princípios aniquilaria a segurança jurídica, pela falta de objetividade e previsibilidade das condutas e, consequentemente, de uniformidade nas soluções interpretativas. Como intuitivo, os dois extremos seriam ruins. A advertência é importante porque, no Brasil a trajetória que levou à superação do positivismo jurídico – para o qual apenas as regras possuiriam status normativo – foi impulsionada por alguns exageros principalistas, na doutrina e na jurisprudência.
(…) as regras são descritivas de condutas, ao passo que princípios são valorativos (...).
Essa função diferenciada de princípios e regras tem importante repercussão prática, notadamente porque ajuda a demarcar os espaços de competência entre o intérprete constitucional – sobretudo o intérprete judicial – e o legislador. A abertura dos princípios constitucionais permite ao intérprete estendê-los a situações que não foram originariamente previstas, mas que se inserem logicamente no raio de alcance dos mandamentos constitucionais. Porém, onde o constituinte tenha reservado a atuação para o legislador ordinário não será legítimo pretender, por via de interpretação constitucional, subtrair do órgão de representação popular as decisões que irão realizar os fins constitucionais, aniquilando o espaço de deliberação democrática. É preciso distinguir, portanto, o que seja abertura constitucional do que seja silêncio eloquente.”
Humberto Ávila[44], embora crítico de alguns pontos da doutrina esposada neste tomo, assim trabalha com os dois conceitos:
“A essa altura, pode-se concluir, apresentando um conceito de regras e um conceito de princípios.
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre tratada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessárias à sua promoção. [...] O fim não precisa, necessariamente, representar um ponto final qualquer (Enduzustand), mas apenas um conteúdo desejado. Daí se dizer que o fim estabelece um estado ideal de coisas a ser atingido, como forma geral para enquadrar os vários conteúdos de um fim. A instituição do fim é ponto de partida para a procura de meios. Os meios podem ser definidos como condições (objetos, situações) que causam a promoção gradual do conteúdo do fim. Por isso a ideia de que os meios e os fins são conceitos correlatos.”
Vejamos que os autores Luís Roberto Barroso e Humberto Ávila não prescrevem hierarquia entre princípios e regras, apenas relatam que são espécies de normas jurídicas.
Os princípios indicam valores e fins buscados pelo Estado e dotados de força normativa. As regras são imperativos de conduta embasadas por princípios jurídicos, que lhas animam.
Miguel Reale[45], ao reconhecer a força integradora dos princípios, assim já escreveu:
“Na realidade, a função integradora dos princípios gerais é bem mais ampla, tendo razão Simonius quando afirma que o Direito vigente está impregnado de princípios até as suas últimas ramificações.
A nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática.
Alguns deles se revestem de tamanha importância que o legislador lhes confere força de lei, com a estrutura de modelos jurídicos, inclusive no plano constitucional, consoante dispõe a nossa Constituição sobre os princípios da isonomia (igualdade de todos perante a lei), de irretroatividade da lei para a proteção dos direitos adquiridos etc.
A maioria dos princípios gerais de direito, porém, não constam de textos legais, mas representam contextos doutrinários ou [...] são modelos doutrinários ou dogmáticos fundamentais.”
Portanto, mesmo os doutrinadores mais tradicionais, como Reale, constatam que os princípios jurídicos são normas de direito com múltiplas funções, o que implicitamente os diferencias das regras jurídicas.
Com uma visão diferenciada, pois não conforma os princípios a normas jurídicas, Celso Antônio Bandeira de Mello[46] assim define princípio:
“Cumpre, pois, inicialmente, indicar, em que sentido estamos a tomar o termo princípio, tal como vimos fazendo desde 1971, quando pela primeira vez enunciamos a acepção que lhe estávamos a atribuir. À época dissemos: “Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque defina a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico.” Eis porque: “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, por que representa a insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.”
Percebe-se que para este autor, os princípios são mais que normas, que estas são as regras.
Não se concorda neste trabalho com essa definição. Mais adiante será melhor detalhado os fundamentos dessa discordância. Por hora, convém dizer que se é verdade que princípios animam a produção de outras normas jurídicas (princípios mais específicos ou regras jurídicas), nem por isso os princípios deixam de ser normas jurídicas.
Os princípios jurídicos são normas com diversas funções, como influenciar a produção de outras normas, garantir direitos subjetivos, auxiliar na interpretação de outras normas mais concretas (princípios mais específicos e regras jurídicas decorrentes de um princípio). Podem os princípios ser expressos no sistema ou mesmo implícitos.
Ao se dispor ou se deixar implícito que um princípio P pertence a um sistema positivo de normas, apenas se documenta a sua existência. Não foi somente com a sua inscrição em texto normativo que passou a ser norma. Eis o legado do pós-positivismo, conforme Ronald Dworkin. Existem, pois, normas que não estão escritas, o que comprova a dissociação entre texto e norma.
Por isso não se precisaria escrever o princípio da igualdade no caput do art. 5ª da Constituição Federal de 1988. Ele mesmo assim existiria, como norma de per si e animando a produção de outras normas, seja em formato de regras ou de outros princípios.
Por exemplo: como regra o princípio da igualdade pode se expressar da seguinte maneira – todos aqueles que ganham grandes fortunas, conforme definido em Lei Complementar, hão de pagar imposto referente às suas grandes fortunas – , como princípio mais específico a um ramo do Direito, a igualdade também pode se apresentar no seguinte enunciado – a tributação obedecerá o princípio da capacidade contributiva.
O fato de ser o fundamento donde se irradiam a produção legislativa, ou mesmo a produção das normas de Direito Constitucional emanadas do Poder Constituinte Originário, não retira dos princípios o seu caráter normativo. Com isso se concorda com a posição de Miguel Reale, os princípios têm múltiplas funções.
Ainda que fossemos um governo de leis não escritas, nos pautaríamos em princípios para conduzir nossas decisões, tendo, pois estes o caráter normativo. Mesmo que não houvesse lei proibindo o homicídio, ainda assim não poderíamos matar outrem, seja pelo princípio de respeitar ao próximo, seja pelo princípio de não prejudicar a ninguém (neminem laedere).
Lógico, contudo, que governar sem nenhuma norma escrita não é o ideal num Estado Democrático de Direito, que pressupõe a segurança jurídica. Por isso, as regras são tão importantes, a par dos princípios.
Ao final do trabalho explora-se melhor esse tema da importância de princípios e de regras num sistema jurídico, quando se abordar o conflito entre essas duas espécies normativas.
Em suma, infere-se que por forte influência de doutrinadores estrangeiros como Ronald Dworkin e Robert Alexy, a que dedicamos sub itens próprios de estudo, hoje, no Direito Brasileiro, a doutrina majoritária defende que tanto os princípios como as regras são binômio do conceito de norma jurídica. Tratando-se de binômio, não há hierarquia entre eles, pois cada um deles compõe-se de estrutura própria e finalidades específicas, igualmente importantes.
Ressalva-se a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello, pois denota que os princípios irradiam seus conteúdos (valores) na produção das regras. Os princípios, de fato, tanto influenciam na produção de outras regras, como na aplicação destas, embora não seja somente essa a sua função e, por isso, os princípios não se tornam normas mais elevadas que as regras.
Portanto, os princípios constitucionais assim como as regras constitucionais, possuem carga normativa, sendo exigíveis seja do Estado, seja de particulares, dado que aplicados diretamente nas esferas subjetivas dos sujeitos de direito. Eis uma grande conquista do constitucionalismo contemporâneo.
O meio como se aplicam é que diferem as regras dos princípios, pois, por possuírem estruturas diferentes, possuem aplicação diferente.
Nesse trabalho, adota-se a teoria de que as regras se aplicam no modo tudo ou nada (com algumas ressalvas doravante explicadas), conforme Ronald Dworkin, e os princípios são mandamentos de otimização, pois devem ser modulados de acordo com as condições fáticas e jurídicas do caso concreto, pois possuem dimensão de peso, conforme Robert Alexy e Ronald Dworkin. Ademais, os princípios também influenciam a produção normativa de outros princípios mais específicos e regras jurídicas, conforme aduz Miguel Reale e Celso Antônio Bandeira de Mello.
Vimos que o conceito de normas abarca tanto regras como princípios. As regras definem condutas a ser seguidas e os princípios definem fins a ser atingidos.
Contudo, há normas que, apesar de denominarmos de princípios, como, por exemplo, o princípio da proporcionalidade, é importante darmos tratamento diferenciado, pois nem se enquadram no conceito de princípios, nem no conceito de regras, conforme delineado pela doutrina, embasada pelos escritos de Ronald Dworkin e Robert Alexy.
Humberto Ávila nomeou essas outras normas – metanormas ou normas de segundo grau – de postulados.
Subdivide-os em postulados hermenêuticos e postulados normativos aplicativos.
Os postulados hermenêuticos visam dar coesão ao sistema jurídico. Figuram dentre eles os postulados da unidade, da coerência interna do sistema e da hierarquia. Tudo isso, visando à necessária compreensão interna e abstrata do ordenamento.
Esses postulados orientam o intérprete na busca de influências recíprocas entre as normas (princípios e regras) a fim de na resolução de problemas dotar a fundamentação de consistência, de modo que as normas mais específicas estejam alinhadas com as normas mais gerais.
Exemplo: ao fundamentar a cobrança de certo tributo por determinado ente público, há de se investigar a Constituição, que prevê que somente lei obriga ou deixa de obrigar (princípio geral da legalidade), ademais prevê que somente lei em sentido estrito, em regra, pode criar tributos (princípios da legalidade estrita no Direito Tributário), outrossim, prevê que para se criar tributos há de se observar duas anterioridades, em regra, a geral (exercício financeiro) e a nonagesimal (restrição de eficácia da lei tributária por 90 dias a contar da publicação). Todos esses desdobramentos da legalidade têm como pano de fundo a segurança jurídica, também princípio constitucional.
Vê-se que os princípios mais gerais se unem aos mais específicos, de modo que para se dizer se uma lei que institui uma exação é constitucional ou não, há de se perquirir os princípios mais genéricos aos mais específicos, até às regras que determinam prazos para a eficácia da lei e, por fim, chegar-se à lei que instituiu o tributo, a fim de verificar se é ou não constitucional. Com isso se comunicaram dois princípios, o da legalidade e o da segurança jurídica, conjuminando-os com regras e princípios mais específicos dentro da matéria tributária, visando-se dar coerência, respeitada a hierarquia do sistema.
Como base está o postulado da coerência e o da hierarquia como postulados hermenêuticos, que guiaram o intérprete na construção desses argumentos.
Com isso demonstra-se que existem critérios para interpretação de normas jurídicas.
Vimos os postulados hermenêuticos que servem para se entender o sistema jurídico em abstrato.
Há também os postulados normativos aplicativos, delineados por Humberto Ávila, que auxiliam, sobretudo, na resolução de problemas concretos quando da aplicação de diferentes normas jurídicas (princípios e regras).
Esses, portanto, são metacritérios que direcionam o intérprete na aplicação concreta de outras normas.
Mais que dar consistência às argumentações jurídicas, eles, os postulados normativos aplicativos, configuram-se métodos de aplicação das outras normas.
Conforme o referido autor[47]:
“Os postulados normativos aplicativos são normas imediatamente metódicas que instituem critérios de aplicação de outras normas situadas no plano objeto da aplicação. Assim, qualificam-se como normas sobre a aplicação de outras normas, isto é, como metanormas. Daí se dizer que se qualificam como normas de segundo grau. [...] Por trás dos postulados, há sempre outras normas que estão sendo aplicadas. Não se identificam, porém com as outras normas que também influenciam outras, como é o caso dos sobreprincípios do Estado de Direito ou da segurança jurídica. Os sobreprincípios situam-se no nível das normas de aplicação. Atuam sobre outras, mas no âmbito semântico ou axiológico e não no âmbito metódico, como ocorre com os postulados. Isso explica a diferença entre sobrenormas (normas semântica e axiologicamente sobrejacentes, situadas no nível do objeto de aplicação) e metanormas (normas metodicamente sobrejacentes, situadas no metanível aplicativo).
Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto da aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas, porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito. A três, porque não se relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de modo preliminarmente complementar (princípios), quer do modo preliminarmente decisivo (regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras normas.
[...] os postulados não são regras: eles não descrevem um comportamento (nem reservam poder, instituem procedimento ou estabelecem definições), não são cumpridos de modo integral e, muito menos, podem ser excluídos do ordenamento jurídico. Em vez disso, estabelecem diretrizes metódicas, em tudo e por tudo exigindo uma aplicação mais complexa que uma operação inicial ou final de subsunção. [...] os postulados não são princípios: eles não estabelecem um dever-ser ideal, não são cumpridos de maneira gradual e, muito menos, possuem peso móvel e circunstancial. Em vez disso, estabelecem diretrizes metódicas, com aplicação estruturante e constante relativamente a outras variáveis.
Seja qual for a denominação referida, os postulados funcionam de forma diferente relativamente a outras normas do ordenamento jurídico. [...]”
Continua o referido autor[48]:
“[...] O qualificativo de normas de segundo grau, porém, não deve levar à conclusão de que os postulados normativos funcionam como qualquer norma que fundamenta a aplicação de outras normas, a exemplo do que ocorre no caso de sobreprincípios como o princípio do Estado de Direito ou do devido processo legal. Isso porque esses sobreprincípios situam-se no próprio nível das normas que estruturam a aplicação de outras. Além disso, os sobreprincípios funcionam como fundamento, formal e material, para a instituição e atribuição de sentido às normas hierarquicamente inferiores, ao passo que os postulados normativos funcionam como estrutura para a aplicação de outras normas.[...]
Essas considerações levam ao entendimento de que esses deveres merecem uma caracterização à parte e, por consequência, também uma denominação distinta. Neste trabalho eles são denominados de postulados normativos aplicativos. A denominação é secundária. O decisivo é constatar e fundamentar sua diferente operacionalidade.
[...]
As normas de segundo grau, redefinidas como postulados normativos aplicativos, diferenciam-se das regras e dos princípios quanto ao nível e quanto à função. Enquanto os princípios e as regras são objeto da aplicação, os postulados estabelecem os critérios de aplicação dos princípios e das regras. E enquanto os princípios e as regras servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, ou condutas cuja adoção seja necessária para atingir fins, os postulados servem como parâmetros para a realização das normas.
[...]
Caso seja admitida a distinção forte[49] entre princípios e regras, a proporcionalidade, por exemplo, também não pode ser considerada uma espécie de princípio, porque não é realizada em vários graus, mas num só (a medida ou é ou não é adequada, necessária ou proporcional), e porque não é o objeto de ponderação, mas o próprio critério dela, sendo inconcebível sua superação em razão de princípios horizontalmente colidentes. Do mesmo modo, não pode ser considerada uma regra, pois não tem uma hipótese e uma consequência a ser implementada no caso de subsunção. Muito menos poderá ser objeto de colisão e de decretação de invalidade. [...]
Por fim, é um problema de justificação, pois, definindo a proporcionalidade como princípio/regra, confunde-se o objeto de aplicação com o critério de aplicação. Para usar uma metáfora: quem define a proporcionalidade como princípio confunde a balança com os objetos que ela pesa! E, ao fazê-lo, perde de vista a diferença entre o que deve ser realizado (princípios/regra) e o que serve de parâmetro para a realização (postulados).”
Como escreve o autor, não se trata de mera denominação, mas sim de descobrir as funções diferentes daquilo que chamamos de princípios, mas que se comportam de modo diverso, tendo, portanto, natureza diversa.
Ao olharmos o céu, vemos diversos corpos celestes. A grande maioria é de estrelas. Contudo, além da lua, há planetas que refletem a luz do sol e que confundimos com outras estrelas (Vênus ou Estrela D’alva), mas na verdade estamos a falar de outro planeta do sistema solar.
Assim, do conjunto de símbolos que constituem o sistema jurídico e que chamamos de normas, nem todas são princípios ou regras, somente, pois há aqueles que desempenham papéis diferentes. Eis os postulados.
Humberto Ávila elenca como sendo postulados normativos aplicativos: a ponderação, a concordância prática e a vedação do excesso (postulados normativos aplicativos inespecíficos); assim como a igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade[50] (postulados normativos aplicativos específicos).
Para o autor a qualificação entre postulados normativos aplicativos específicos ou inespecíficos opera-se a fim de diferenciar meras ideias gerais, despidas de critérios orientadores da aplicação (os postulados normativos inespecíficos), de situações em que há elementos específicos que guiam a orientação normativa entre eles (os postulados normativos específicos). Em suma, os primeiros são categorias de pensamento, já os segundo são a aplicação concreta de métodos derivados daquelas categorias de pensamento.
Com isso, verifica-se que existem diferentes figuras normativas no sistema jurídico, além dos princípios e regras há os postulados.
Nem tudo o que nominamos de princípios são de fato princípios, se partirmos das definições consagradas por Ronald Dworkin e Robert Alexy, amplamente aceitas na nossa doutrina.
Por exemplo, a proporcionalidade não indica fins ou valores, ela está mais para a balança utilizada na ponderação do que para os elementos a ser ponderados. Ademais, não se pode dizer que a proporcionalidade tem sua dimensão de peso, nem que se pode aplicá-la na maior medida. O que seria aplicar a proporcionalidade em si mesma na maior medida? Há, deveras, uma inconsistência lógica nessa indagação, muito bem aventada pelo pensador Humberto Ávila. A proporcionalidade em si é um critério para se balancear normas colidentes, como a liberdade x igualdade, informação x privacidade, desenvolvimento nacional x proteção do consumidor e do meio ambiente, etc.
O mesmo se diga em relação ao que chamamos de princípio da vedação do excesso, ou melhor, postulado normativo aplicativo da vedação do excesso. Não se trata de um princípio, pois não há sentido em dizer simplesmente que o Direito tão somente opta pela vedação do excesso. O que isso quer dizer? Nada. Será melhor definirmos a vedação do excesso como postulado normativo aplicativo a resolver conflitos entre escolhas do legislador, por exemplo. Na linha de raciocínio de Humberto Ávila, a vedação do retrocesso impõe que uma norma, se em conflito com outra, não pode esvaziar o núcleo mínimo de proteção dessa outra norma, sobretudo em se tratando de direitos fundamentais.
Exemplo: se se editar uma lei que regule a profissão de fotógrafos caçadores de celebridades, não se pode dotá-los de tamanha liberdade e poder a ponto de aniquilar a privacidade das celebridades. Mesmo sendo figuras públicas e tendo uma esfera menos robusta de proteção de sua intimidade (escreve-se em termos gerais, sem se aprofundar na complexidade e riqueza desse assunto), não se pode esvaziar uma tutela mínima de seu direito fundamental à privacidade, de modo que, não se pode tolerar que haja a invasão do domicílio[51] dessas celebridades a fim de capturar imagens íntimas dentro de suas residências.
Vê-se que a vedação do excesso sem os elementos a fim de lhe dotar de sentido não diz muita coisa. A partir do exemplo acima, pode-se discutir o que seja excessivo ou não, o que seja razoável e proporcional e não. Contudo, não se pode discutir o que seja excesso em si mesmo, assim como não se pode discutir o que seja proporcionalidade em si mesma.
Para Humberto Ávila[52] a igualdade é multifacetada, ora podendo se nos amostrar como regra, ora como princípio e ora como postulado normativo aplicativo.
“A igualdade pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatório; como princípio, instituindo um estado igualitário como fim a ser promovido; e com postulado, estruturando a aplicação do Direito em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da relação entre eles (congruência do critério em razão do fim).”
Contudo, não é escopo deste trabalho esmiuçar as diversas feições de alguns conceitos (igualdade, proporcionalidade, excesso, concordância prática ...). Isso requer monografia própria.
Foca-se no conceito de postulado, pois ele é de grande valia para a seção que se segue.
Nela investigar-se-á quais são os postulados de aplicação/interpretação das normas constitucionais.
SEÇÃO 2: INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Entende-se que as normas não se confundem com os textos, sendo as normas fruto da interpretação do texto normativo, diante de um caso concreto.
Não se ignora que há significados mínimos que são expressos pela linguagem (jogos de linguagem conforme Wittgenstein[53]), pois são a partir deles que se constrói a norma jurídica, de acordo com o caso concreto.
Entretanto, tal procedimento de construção das normas não é feito de modo arbitrário. Interpretar não significa manifestar opiniões pessoais.
Firme-se, novamente, que não se quer aqui discutir a neutralidade do Direito, acredita-se que por se tratar de ciência humana, não há de ser neutro, contudo, isso não significa que não seja objetivo.
Existem metanormas que dotam o ato de interpretar de objetividade, aqui entendida como racional, plausível e não subjetiva.
O Direito, enquanto sistema objetivo de valores requer uma construção de suas normas por critérios objetivos.
“A nova interpretação constitucional assenta-se em um modelo de princípios, aplicáveis mediante ponderação, cabendo ao intérprete proceder à interação entre fato e norma e realizar escolhas fundamentais, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo sistema jurídico, visando à solução justa para o caso concreto.[...]”
[...]
A interpreção constitucional serve-se das categorias da interpretação jurídica em geral, inclusive os elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Todavia, as especificidades das normas constitucionais levaram ao desenvolvimento de um conjunto de princípios específicos de interpretação da Constituição, de natureza instrumental, que funcionam como premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas da aplicação das normas que vão incidir sobre a relação jurídica de direito material. [...]”. [54]
Como o escopo deste trabalho é investigar as normas constitucionais e sua aplicação, eis que exsurge com grande importância os princípios (ou postulados) de interpretação constitucional. Ou adotando a terminologia da seção anterior, os postulados normativos aplicativos de interpretação da Constituição, pois são metacritérios que visam à aplicação de outras normas jurídicas, conforme Humberto Ávila.
Sempre tendo em mente que o importante é o conteúdo das coisas e não seus nomes, de antemão assevera-se que por vezes os textos de referência falarão em princípios de interpretação constitucional, o que neste trabalho se convencionou chamar de postulado normativo aplicativo, conforme seção precedente. Pouco importa, se a linguagem é o veículo das ideias, o relevante é captarmos a estas sem apego excessivo àquela.
Numa brincadeira pueril poderíamos dizer o seguinte: “o fato de colocarmos guaraná na embalagem de soda, não transforma aquele neste”. Com essa convicção seguiremos.
Tanto é verdade o que se quer dizer com essa metáfora que o próprio Humberto Ávila assim escreve: “Justamente nesse ponto é preciso separar proporcionalidade dos outros postulados ou princípios hermenêuticos. [...]”[55]
Luís Roberto Barroso tem importante obra[56] sobre a interpretação e aplicação das normas constitucionais.
Este autor elenca alguns princípios instrumentais de interpretação da Constituição (ou postulados normativos aplicativos de interpretação da Constituição), são eles: princípios da supremacia da Constituição, princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos do poder público, princípio da interpretação conforme a Constituição, princípio da unidade da Constituição, princípio da razoabilidade ou proporcionalidade e princípios da efetividade.
“O emprego do termo princípio, nesse contexto, prende-se à proeminência e à precedência desses mandamentos dirigidos ao intérprete, e não propriamente ao seu conteúdo, à sua estrutura ou à sua aplicação mediante ponderação. Os princípios instrumentais de interpretação constitucional[57] constituem premissas conceituais, metogológicas ou finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta.”[58]
Pela Supremacia da Constituição entende-se que as normas constitucionais estão acima de todas as demais no sistema jurídico, seja por questão formal, seja por questão material.
Por questão formal entende-se que a Supremacia da Constituição decorre do fato de suas normas se originarem do Poder Constituinte Originário (a princípio) e do Poder Reformador (por expressa autorização do Poder Originário).
Por questão material entende-se que a Supremacia da Constituição decorre do fato de que à Constituição que o povo credita os valores considerados por fundamentais da ordem sócio-jurídico-política. É na Constituição que estão valores dos mais elevados em nossa sociedade (delineados em forma de princípios e regras), tais quais a dignidade da pessoa humana, a vedação do tratamento degradante, a vedação da tortura, a instituição e separação dos poderes estatais, sob a concepção de que o poder se concentrado gera a tirania, etc.
“Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental [...].”[59]
[...]
Sistematizando, então, as ideias pertinentes, vai-se ver que a supremacia da Constituição é tributária da ideia de superioridade do poder constituinte sobre as instituições jurídicas vigentes. [...][60]
[...]
O princípio não tem um conteúdo próprio: ele apenas impõe a prevalência da norma constitucional, qualquer que seja ela. É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma inconstitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar – controle incidental de constitucionalidade – ou o Supremo Tribunal Federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta).[61]
Infere-se que por esse princípio (ou postulado) toda interpretação de quaisquer normas decorrentes do poder constituinte originário há de ser harmônica pelas normas emanadas deste.
Isso vale tanto para interpretação de enunciados normativos infraconstitucionais, quanto para a interpretação de enunciados normativos decorrentes do Poder de Reforma previsto na Constituição Federal, art.60.
Portanto, todo o sistema normativo recebe energia jurídica das normas constitucionais, em especial, as normas do Poder Constituinte Originário[62].
A Constituição é o centro normativo do sistema jurídico.
Este postulado abarca mais um modo como se interpreta o direito infraconstitucional do que propriamente as normas que exsurgem da Constituição Federal, decorrentes do Poder Originário.
Por esse postulado, os atos do Poder Público gozam de presunção de Constitucionalidade, sejam leis infraconstitucionais, sejam emendas à Constituição.
Como o Poder Judiciário que em nosso sistema controla a constitucionalidade das leis[63] de modo mais proeminente, o postulado da presunção de constitucionalidade é um freio ao seu poder.
“O princípio da presunção de constitucionalidade, portanto, funciona como fator de autolimitação da atuação judicial: um ato normativo somente deverá ser declarado inconstitucional quando a invalidade for patente e não for possível decidir a lide com base em outro fundamento.” [64]
Infere-se, por este postulado, que a declaração de inconstitucionalidade de lei ou emenda constitucional é ato excepcional, pois se no programa normativo do enunciado da norma, for possível uma interpretação compatível com a Constituição, não se poderá declarar a inconstitucionalidade da lei ou emenda à constituição.
A interpretação conforme a constituição além de postulado de interpretação é também uma técnica de controle de constitucionalidade.
“Na interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sempre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diversas possibilidades de interpretação, sendo qualquer delas incompatível com a Constituição. Note-se que o texto legal permanece íntegro, mas sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo tribunal.”[65]
“Com base na interpretação conforme a Constituição, o aplicador da norma infraconstitucional, dentre mais de uma interpretação possível, deverá buscar aquele que compatibilize com a Constituição, ainda que não seja a que obviamente decorra de seu texto. Como técnica de controle de constitucionalidade, a interpretação coforme a Constituição consiste na expressa exclusão de uma determinada interpretação da norma, uma ação “corretiva” que importa em declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Em qualquer de suas aplicações, o princípio tem por limite as possibilidades semânticas do texto, para que o intérprete não se converta indevidamente em um legislador positivo.”[66]
Importante salientar que a interpretação conforme é aplicável também para normas decorrentes do Poder de Reforma da Constituição. As emendas constitucionais, por encontrarem seu fundamento de validade da Constituição, também são concretizadas mediante a observância deste postulado.
Isso requer uma posição deferente do judiciário, para com os atos dos demais poderes.
O Direito visto como sistema pressupõe a unidade. Ser uno é ser harmônico. A harmonia decorre da ausência de contradições insuperáveis no seu interior.
Tanto o sistema jurídico como um todo, que tem a Constituição no seu centro irradiador de valores, como dentro do próprio núcleo do sistema, que é a Constituição, impera a unidade.
Se uma norma destoa deveras de outra, ou há de ser eliminada do sistema mediante critérios de resolução de antinomias, em se tratando de regras jurídicas, ou há de ser harmonizada a fim de se construir uma interpretação razoável, a fim de dotar o ordenamento de unidade, coerência e harmonia.
Se uma norma infraconstitucional for antinômica à Constituição deve ter sua eficácia paralisada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante a declaração de inconstitucionalidade.
Se uma norma decorrente do Poder de Reforma da Constituição também assim o for, o mesmo deve ocorrer, devendo o Pretório Excelso agir.
Contudo, se normas decorrentes do Poder Constituinte Originário forem aparentemente antinômicas, deve o intérprete equalizar a aparente antinomia, harmonizando o sistema, mediante construção exegética embasada neste postulado da unidade.
“[...]É que a Carta Fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, é produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga “o pluralismo e antagonismo de ideias subjacentes ao pacto fundador”[67]..” [68]
[...]
O fundamento subjacente a toda ideia de unidade hierárquico-normativa da Constituição é o de que as antinomias eventualmente detectadas serão sempre aparentes e, ipso facto, solucionáveis pela busca de um equilíbrio entre as normas, ou pela legítima exclusão da incidência de alguma delas sobre dada hipótese, por haver o constituinte disposto nesse sentido.[...]”[69]
Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham. Conceitos como os de ponderação e concordância prática são instrumentos de preservação do princípio da unidade, também conhecido como princípios da unidade hierárquico-normativa da Constituição.”[70]
Trata-se de postulado de grande valia para a interpretação de qualquer norma, sejam as constitucionais (originárias ou decorrentes de reforma), sejam as infraconstitucionais, pois de acordo com este é possível amarrar o sistema normativo, dotando-o de uma só tessitura.
Ao analisarmos o que seriam os postulados normativos aplicativos acabamos explorando um pouco o que a doutrina entender por proporcionalidade e razoabilidade.
Há autores, como Humberto Ávila que diferenciam os dois conceitos. Nesta presente monografia, não se trabalha com essa distinção, empregando-os como sinônimos.
Assevera-se que ambos têm origem em diferentes sistemas jurídicos. O princípio (postulado) da razoabilidade é de origem do sistema norte-americano e decorre da ideia do substantive due process of law, que preconiza que os cidadãos, no caso os norte-americanos, têm o direito de serem julgados por um processo équo e por leis justas. O princípio (postulado) da proporcionalidade é originário do sistema alemão e oriundo do Direito Administrativo, tendo por escopo explicar quando o judiciário tem legitimidade para afastar a aplicação de atos do poder público.
Luis Roberto Barroso assim define esses postulados:
“O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, termos aqui empregados de modo fungível, não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento na ideia de devido processo legal substantivo e na de justiça. Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto.”
Trata-se de ferramenta das mais utilizadas, sobretudo no controle dos atos do poder público.
O postulado da efetividade determina que os preceitos abstratos dos textos vivifiquem na realidade concreta.
Quando se estuda o fenômeno das normas jurídicas é comum falar-se em existência, validade e eficácia.
A efetividade é um plus, pois visa dar concretude e não somente a aptidão para produzir efeitos (eficácia). Trata-se da transposição do mundo do dever-ser para o mundo do ser.
“[...] Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza a efetividade, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social.. [...]”[71]
Pelo postulado da efetividade das normas constitucionais visa-se ultrapassar a tensão entre as promessas da Constituição e as mazelas da vida real. Não se trata somente de um postulado normativo (ou princípio de interpretação), mas de um compromisso de todos os que vivem sob a tutela da Constituição, sobretudo aqueles que possuem o poder de interpretar os enunciados normativos da Constituição.
Dizer que interpretar textos jurídicos é construir normas implica ressaltar a importância do papel do intérprete na construção do Direito.
Se a atividade de interpretar (exegese) não fosse balizada por postulados normativos, portanto, vinculantes, poder-se-ia transformar a interpretação das leis em operação deveras subjetiva. Seria mais um ato de vontade e (abuso de) Poder, do que um ato de Direito, de busca da Justiça.
Como os textos normativos possuem significados mínimos compartilhados por todos aqueles que participam da mesma comunidade linguística, a construção das normas já é tolhida em subjetividades no nascedouro. Afinal, a seguinte regra: É proibido fumar, comumente vista em locais públicos fechados, como bares, elevadores, restaurantes, jamais poderia ser interpretada como: É permitido fumar. O mínimo semântico da palavra proibido de antemão já delimita o sentido da norma.
Contudo, nem tudo o que parece simples na prática assim se aplica.
A referida norma da proibição de fumar em locais públicos, que decorre de Lei, que por sua vez, complementa a Constituição na busca de privilegiar a saúde pública, sobretudo daqueles que não fumam, precisou sem complementada para: É proibido fumar e portar o cigarro acesso. Isso, pois, por puro subjetivismo, alguns a interpretavam no sentido de que portar aceso, porém, não tragar o cigarro, ainda que em elevadores, não era descumprir a regra, afinal, fumar é igual a tragar. Fato um tanto quanto intrigante, dado o escopo da norma originária (É proibido fumar).
Para evitar que subjetivismos como o ocorrido com a norma “É proibido fumar” ocorram dentro do sistema jurídico, existem parâmetros de interpretação[72]. Estes são os postulados (ou princípios) constitucionais de interpretação (construção) das normas.
Os postulados referidos na sub seção anterior aplicam-se a normas da Constituição, bem como a normas infraconstitucionais, pois interpretar e aplicar a Constituição é concretizá-la em todos os degraus normativos do Direito. Portanto, a concretização de normas infraconstitucionais, também respeita parâmetros de interpretação de normas constitucionais. Prova disso são os postulados da supremacia da Constituição e o da interpretação conforme, que tem por objeto de aplicação as normas infraconstitucionais.
A observância desses postulados afasta a construção subjetiva de normas jurídicas, decorrentes de interpretações que tendam a desviar a aplicação da norma do seu real sentido e escopo. Não se fala que há sempre de prevalecer a vontade do legislador, mas sim de respeitar os parâmetros mínimos de concretização da norma, a vontade da norma.
Se todos os partícipes de uma comunidade linguística partilham sentidos mínimos em reação à linguagem; se o Direito se expressa por linguagem e por esta é construída; se para tal mister há de se observar postulados normativos que balizam a construção de sentido dos textos normativos; interpretá-los, os textos normativos, é atividade objetiva, que, apesar de não ser neutra, não permite que o intérprete construa o sentido de uma norma, sem que dantes se vincule a esses elementos objetivos que servem de referência e partida para a construção de sentidos (mínimo semântico e postulados de interpretação).
Logo, interpretar o Direito é caminhar por parâmetros já delineados dentro do sistema normativo. Assim, o intérprete antes mesmo de se defrontar com o texto normativo, saberá que há de observar o postulado da Supremacia da Constituição, que esta é una, que as leis são vassalas à Constituição, que suas normas teem que perfilhar os caminhos da efetividade. Esses postulados normativos permitem que o ato interpretativo seja objetivo, e por isso exsurge a importância destes, pois dão as balizas de construção das normas jurídicas.
Ademais, interpretar o Direito é caminhar pelos mínimos semânticos já contidos na linguagem.
Isso, evita que aberrações como a norma da proibição de fumar em locais fechados tenham que expressamente ser emendadas, a fim de evitar que pessoas mal intencionadas deturpem o seu sentido e queiram portar cigarros acessos em locais fechados e públicos, embora não os traguem.
Interpretar é construir sentido aos textos normativos, respeitados os sentidos mínimos da linguagem e os postulados normativos. Eis a grande importância dos postulados no sistema normativo, pois balizam a conduta do intérprete, tornando o seu atuar pautado por critérios prévios e objetivos.
Vimos que para interpretar as normas constitucionais, há certos postulados norteadores, que acabam por guiar também todo o ordenamento jurídico, direta ou reflexamente.
Pode-se até argumentar que, hoje, falar em interpretação das normas é falar em interpretação da Constituição, pois em maior ou menor medida a Constituição sempre se faz presente no processo interpretativo, ainda que se trate de regras infraconstitucionais extremamente detalhistas, como por exemplo, o art. 121 do Código Penal. Condenar um assassino por seu crime é concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e o da igualdade (pois ninguém tem o direito de tirar a vida alheia).
A valorização da Constituição no momento jusfilosófico que vivemos, opera-se mais pela irradiação de suas normas para todo o sistema, do que pela inclusão na Constituição de normas de ramos do direito infraconstitucional, como o direito civil e o direito notarial.
Por isso defende-se que toda a interpretação jurídica, pautada por critérios objetivos, em maior ou menor medida, é sempre uma interpretação à luz dos valores constitucionais. Com isso se dota a Constituição de efetiva força normativa (Konrad Hesse).
Contudo, ao interpretar os textos normativos é possível que haja conflitos entre seus conteúdos de modo que não haja construção exegética que harmonize as disposições.
Como a visão do ordenamento jurídico como um sistema não tolera antinomias há a previsão de critérios de resolução destas.
E na resolução dessas antinomias que mais proeminente se perfaz a distinção criteriosa dos diferentes espécimes normativos (princípios, regras e postulados), cada qual com suas características e função no sistema jurídico.
Nesta sub seção trabalha-se o conflito regras x regras, em nosso sistema normativo. Sejam as regras constitucionais, sejam as infraconstitucionais.
Como vimos, pelo princípio da unidade da Constituição, não se ponde falar em conflito de regras previstas na Constituição Federal, pelo postulado da unidade.
Contudo, tal assertiva merece um esclarecimento.
Pelo artigo 60[73] da Constituição Federal, existem núcleos imutáveis do nosso ordenamento jurídico. Logo, o Poder Reformador possui limitações materiais (cláusulas pétreas), formais (procedimentos, iniciativa) e circunstanciais (estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal) quanto ao seu exercício. Fala-se, inclusive, em limitações implícitas, como ser o próprio artigo 60 uma limitação ao Poder Reformador, além de os direitos fundamentais serem também uma cláusula pétrea e não somente os direitos individuais[74].
A par dessas discussões doutrinárias, podemos dizer que o artigo 60 apresenta um núcleo rígido da Constituição, que não pode ser extinto pelo Poder Reformador. Se isso fosse viável[75], estar-se-ia a falar de um golpe de Estado e não de reforma da Constituição.
Recentemente a Constituição de 1988 teve Emenda Constitucional declarada parcialmente inconstitucional, nas ADI’s 4357 e 4425. Trata-se da Emenda 62/2009 que instituiu o regime especial de pagamento de precatórios. Argumentos embasados em direitos fundamentais, como a razoável duração do processo, segurança jurídica, igualdade, etc, levaram à conclusão de que a instituição de regime diferenciado de pagamento de precatórios é inconstitucional, com isso o art. 97 do Ato das Disposições Transitórias, bem como alguns dispositivos do art. 100 da Constituição Federal foram declarados inconstitucionais.
Vê-se que se a reforma constitucional for violadora de núcleo rígido da Constituição Federal, não deve permanecer no sistema, sendo declarada a sua inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.
Portanto, não se pode falar que haja conflito entre regras constitucionais, a não ser que haja regra oriunda do Poder de Reforma que afronte as chamadas cláusulas pétreas, sem que seja possível harmonizá-la com o sistema pelo princípio da interpretação conforme. Se não houver esse conflito insuperável entre regras constitucionais não há antinomia. As aparentes contradições hão de ser solucionadas por interpretação.
No plano infraconstitucional é possível que haja a seguinte configuração de antinomias: regras constitucionais x regras infraconstitucionais; ou regras superiores x regras inferiores; regras especiais x regras gerais; e conflito de regras no tempo – anterior x posterior[76].
A primeira hipótese de antinomia entre regras é resolvida pelo critério da hierarquia. Por este, a norma superior prevalece sobre a norma inferior.
Sendo o Direito um sistema, existe uma ordem entre suas normas, devendo umas ter precedência sobre as outras. Como a Constituição é o centro normativo de nosso sistema[77], ele deve prevalecer em havendo antinomia com normas inferiores e assim sucessivamente, se houver conflitos entre normas legais e infralegais aquelas prevalecem sobre estas.
“Um dos critérios comumente utilizados para evitar as antinômicas, solucionando o conflito entre normas, é o critério hierárquico: a norma superior prevalece sobre a inferior. Assim, pois, se a Constituição e uma lei ordinária divergirem, é a Constituição que prevalece. Se um decreto regulamentar desvirtuar o sentido da lei, será inválido nesta parte. Se a resolução deixar de observar o teor do regulamento, não poderá prevalecer. E assim por diante.”[78]
Vê-se que em se tratando de conflito entre regras de diferentes hierarquias prevalece o critério hierárquico.
Para o conflito entre regras infraconstitucionais, mas de igual hierarquia há outros critérios de resolução, inclusive positivados na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Pelo critério temporal, se uma regra infraconstitucional conflitar com outra regra de igual hierarquia, prevalece a posterior[79].
Eis o art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:
“Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
[...]”
A Lei Complementar 95/1998 determina que as revogações de lei sejam sempre expressas:
“Art. 9º A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas.
[...]”
Logo, verifica-se que está positivado o conceito de que lei posterior revoga a lei anterior, naquilo que for incompatível, ou seja, quando houver antinomia, determinando-se, outrossim, que esta revogação seja expressa.
Existe ainda outro critério de resolução de antinomias, trata-se do critério da especialidade. Por este, se uma regra é especial à determinada relação jurídica, deve prevalecer sobre regra mais geral.
Eis o art. 2º, §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:
“Art. 2º [...] § 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”
A doutrina conjumina com esse dispositivo:
“Um segundo critério de que se vale o sistema normativo para selecionar a regra aplicável, em meio a preceitos incompatíveis, é o da especialização. Havendo, em relação a dada matéria, uma regra geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: Lex epecialis derogat generalis.”[80]
Vê-se que o sistema jurídico contém soluções para antinomias entre regras jurídicas.
Pelos três critérios acima estudados é possível basicamente resolver todas as antinomias entre as regras jurídicas infraconstitucionais, ou destas com as normas constitucionais.
Pela utilização desses critérios, apenas uma das regras que entram em conflito é que será aplicada, ou a hierarquicamente superior, ou a mais específica[81] dentre elas, ou a mais nova.
Esse é um dos motivos porque se diz que as regras aplicam-se no modo tudo-ou-nada, pois quando em antinomia com outras regras, somente uma há de prevalecer.
Em relação às regras constitucionais, há de se investigar se a antinomia decorre do Poder de Reforma, que se existir e sendo insuperável, há de se declarar a inconstitucionalidade da emenda constitucional.
Destarte, pelo princípio da unidade da Constituição, não se é possível falar em regras oriundas do Poder Constituinte Originário que sejam antinômicas. Eventuais contradições são meramente aparentes, devendo ser resolvidos pela interpretação.
Os critérios de resolução de antinomias mencionados na sub seção anterior são eficazes em se tratando de regras. Para os conflitos entre princípios a lógica é outra.
Quando se escreveu sobre diferenças entre princípios e regras falou- se que os conflitos entre os princípios são resolvidos pela ponderação.
É possível que em casos concretos, pessoas litiguem visando tutelar direitos embasados por diferentes princípios. Por exemplo: uma celebridade X, alegando invasão de privacidade de uma empresa Y, que escreveu e publicou biografa não autorizada daquela, alegando liberdade de expressão. A resolução desse problema passará pela ponderação dos princípios colidentes. Trata-se de técnica de interpretação, em que, de acordo com os elementos do caso concreto, dá-se prevalência a um dos princípios colidentes, sem que se anule por completo o princípio preterido (princípios como mandamentos de otimização – Robert Alexy).
O controle democrático dessa decisão reside na fundamentação jurídica desenvolvida, a fim de evitar decisionismos judiciais (preferências subjetivas do julgador). Tanto mais tendente à universalização[82] for a argumentação desenvolvida, sempre pautada nos valores objetivos consagrados no texto da Constituição, mais racional será a fundamentação.
Quando o Poder Público visa a concretizar políticas públicas, também se depara com o conflito entre princípios que consagram diferentes estados ideais a ser buscados.
A Constituição Federal de 1988 foi promulgada após um período de mais de duas décadas de ditadura militar (1964/1988). Pela sua natureza democrática, buscou abarcar todos os anseios da sociedade, tutelando diferentes valores, consubstanciados em diferentes princípios.
Por exemplo, o art. 170 da Constituição Federal elege a princípio da ordem econômica a livre concorrência e a proteção do meio ambiente.
Esses são valores antagônicos, em abstrato, pois se somente a livre concorrência fosse o valor a direcionar a economia nacional, o meio ambiente estaria desprotegido. Contudo, ao se concretizar políticas públicas de proteção do meio ambiente (v.b. por meio de leis e atos administrativos) não se está a anular a livre concorrência, mas apenas a harmonizar esses dois princípios opostos, dando-se prevalência ao princípio da proteção do meio ambiente.
Percebe-se, portanto, que é plenamente possível a convivência de dois princípios opostos no ordenamento jurídico, de modo que aplicar um não afasta a vigência de outro. Por vezes, nem mesmo se afastará a incidência do outro princípio preterido, tudo dependerá dos fatores envolvidos na resolução de um dado problema concreto. É possível aplicar os dois princípios colidentes, porém um em maior medida. Eis a importância da teoria da ponderação, desenvolvida por Robert Alexy.
Por isso Ronald Dworkin fala que os princípios têm pesos e Robert Alexy aduz que os princípios são mandamentos de otimização. Este autor assim conduz o pensamento:
“A diferença entre regras e princípios mostra-se com maior clareza nos casos de colisões entre princípios e conflito entre regras. [...] E elas[83] se distinguem pela forma de solução do conflito.
[...]
Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida.
[...]
A constatação de que pelo menos uma das regras deve ser declarada inválida quando uma cláusula de exceção não é possível em um conflito entre regras nada diz sobre qual das regras deverá ser tratada dessa forma. Esse problema pode ser solucionado por meio de regras como lex posterior derogat legi priori e lex specialis derogat legi generali, mas é também um possível proceder de acordo com a importância de cada regra em conflito. O fundamental é: a decisão é uma decisão sobre validade. [...]”
[...]
As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem [...] um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto colisão de princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorre, para além dessa dimensão, na dimensão de peso. [...]”[84]
É correto, pois, afirmar-se que um princípio há de prevalecer sobre outro, dadas certas condições, logo, mudadas as condições, a solução para um problema pode ser que se opere de modo diferente.
Portanto, não há certezas na seara dos princípios, pois eles se modularão conforme os elementos do caso concreto. Por isso que cada vez mais importante se torna a argumentação jurídica desenvolvida a fim de justificar a aplicação preponderante de determinado princípio jurídico em conflito com outro(s) em certo caso concreto.
“[...] (a) visão do nível dos princípios mostra que nele estão reunidas coisas extremamente diversas. Mas mais importante que a referência a essa diversidade é a constatação acerca da sua indeterminação. No espaçoso mundo dos princípios há lugar para muita coisa. Esse mundo pode ser chamado de um mundo do dever-ser ideal.”[85]
Os princípios jurídicos[86] (que se valem de termos abertos, plurissignificativos) permitem que os diversos valores que animam e povoam a sociedade adentrem ao ordenamento e inclusive lhe conforme.
Esta é justamente a função dessa qualidade de normas jurídicas: tornar o ordenamento jurídico mais adaptável a mudanças da realidade social. Enrijecer o sistema, a ponto de não se permitir a entrada de certos valores (sociais, filosóficos, políticos, econômicos) consubstanciados em princípios jurídicos, torna-o afastado do mundo dos fatos, o que lhe retira a força normativa.
Mas isso não ocorre sem que haja a colisão entre princípios jurídicos diferentes, pois numa sociedade plural e democrática há valores antagônicos que a animam.
O cerne da questão é perceber que os conflitos entre princípios são inerentes à realidade democrática, plural e aberta a debates.
O sistema jurídico há de prever a resolução para esses tipos de conflitos.
Os métodos tradicionais de resolução de antinomias entre regras (hierarquia, especialidade e posterioridade) não funcionam na resolução de problemas de colisão de princípios jurídicos. Por isso cresce a importância da técnica da ponderação de princípios, de acordo com a colisão ocorrida em dado caso (seja uma lide, seja uma política pública). Até, pois, não há prevalência em abstrato de um princípio em face de outro. Não existem princípios absolutos.
Robert Alexy defende que a ponderação entre princípios colidentes faz-se mediante a lei do sopesamento. De acordo com essa:
“[...]
(A) Quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro.
Essa regra expressa uma lei que vale para todos os tipos de sopesamento de princípios e pode ser chamada de lei do sopesamento. Segundo a lei do sopesamento, a medida permitida de não-satisfação ou de afetação de um prinípio depende do grau de importância do outro. [...] Ela faz com que fique claro que o peso dos princípios não é determinado em si mesmo ou de forma absoluta e que só é possível falar em pesos relativos.”[87]
Logo, um conflito entre princípios resolve-se pela ponderação destes, de acordo com o caso concreto (lei de sopesamento). Busca-se não anular a nenhum deles, mas apenas aplicá-los na maior medida possível.
O controle democrático dessas ponderações opera-se pela análise da argumentação jurídica. Maior será a racionalidade da decisão judicial, quanto maior for a possibilidade de aplicá-la a outros casos concretos semelhantes (universalidade).
Com o reconhecimento jurídico de que os princípios são normas e possuem força normativa (aplicáveis em casos concretos), passou-se a perquirir um método que solucionasse a colisão entre esse espécime de normas. Atualmente a ideia da lei do sopesamento mostra-se eficaz, para solucionar a ponderação de princípios jurídicos colidentes.
Um assunto que está a ganhar mais atenção da doutrina é o conflito entre regras e princípios.
Se se entende que princípios e regras são espécimes normativos de igual hierarquia[88], não se pode de antemão falar que os princípios sempre hão de prevalecer sobre as regras, conforme aduz Celso Antonio Bandeira de Mello[89].
Na verdade a lógica é outra.
Ao longo deste trabalho, viu-se que os princípios animam a produção de outras normas (princípios mais específicos e regras de conduta), bem como eles mesmos possuem carga normativa, conforme assevera Miguel Reale[90].
Isso não lhes dota de supremacia absoluta perante o ordenamento jurídico. Denota, sim, a sua grande importância num sistema jurídico, cujo centro é a Constituição, esta composta por uma gama de valores consubstanciados em diversos princípios jurídicos.
Podemos facilmente indicar alguns princípios jurídicos presentes na Constituição Brasileira, como o da dignidade da pessoa humana, o da separação dos poderes, o da igualdade formal e material, a liberdade, a função social da propriedade, o valor social do trabalho. Todos esses princípios influenciam na produção de outras normas[91], cumprindo assim uma das funções normativas dos princípios constitucionais.
Vejamos os seguintes enunciados normativos da Constituição Federal de 1988:
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.”
Podemos dizer que o art. 2º enuncia dois princípios (Separação e Harmonia entre os Poderes) e que o art. 53 enuncia uma regra (inviolabilidade material dos parlamentares decorrente do princípio constante do art. 2º).
O princípio da separação dos Poderes é um fim a que os intérpretes da Constituição devem perseguir, não se estipulam meios concretizadores, mas sim um valor: de que é bom que os poderes não se concentrem nas mãos de uma só esfera de poder, a fim de se evitar a tirania.
A inviolabilidade material de parlamentares pela manifestação de suas ideias é uma regra, pois construída no modo “se, então” (se os parlamentares cometerem ilícitos decorrentes de seus dizeres no exercício do mandato, então não responderão por eles). É uma garantia maior que a consagrada aos outros brasileiros e, inclusive, estrangeiros aqui residentes, em virtude do múnus público desempenhado, pelos congressistas.
A regra da inviolabilidade material dos parlamentares é uma ponderação dos princípios da separação e da harmonia dos poderes feita em abstrato pelo Poder Constituinte Originário. Visa-se dotar o parlamentar de maior liberdade e segurança no exercício do mandato legislativo, do que um civil comum no desempenhar de seus negócios jurídicos em sociedade. Se o parlamentar a toda hora se sentisse tolhido e com medo de responder a um processo (criminal ou cível), por opiniões que profere (em razão do cargo), haveria uma intervenção indevida do Judiciário no Legislativo, pois aquele a toda hora poderia ser convocado a controlar o que um parlamentar pode ou não dizer na tribuna de sua Casa Legislativa. Pode-se argumentar até uma intervenção indevida do Executivo no Legislativo, se aquele constantemente manejasse ações em face de parlamentares da oposição, por estes manifestarem opiniões contundentes contra programas de governo e eventualmente contra outros políticos da base aliada. No final das contas o Judiciário sempre resolveria o que seria a boa ou a má palavra a ser proferida durante o mandato legislativo, o que iria de encontro ao quanto disposto no art. 2º da Constituição Federal.
O Poder Constituinte atento a esse inconveniente institucional, já houve por bem, inicialmente ponderar a relação entre os Poderes (Separação e Harmonia), estabelecendo a garantia de o parlamentar ter a liberdade de expressão potencializada, para bem desempenhar o seu mister institucional. Eventuais abusos dessa prerrogativa devem ser pelos próprios parlamentares corrigidos, por meio do disposto no art. 55, II, da Constituição (perda do cargo por falta de decoro parlamentar).
Portanto, pode-se afirmar que os princípios se desdobram em diferentes regras, sendo de antemão já ponderadas pelo legislador, ou mais, no exemplo dado, pelo Constituinte Originário (em se tratando de regras ínsitas à Constituição).
Vejamos mais um exemplo:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito [...] à liberdade, [...] nos termos seguintes:
[...]
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
[...]
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
[...]”
A liberdade é princípio que guiou a produção das regras exaradas nos incisos XLIII, XLVII e LVII. Estas já são frutos de ponderações pelo Constituinte, do princípio da liberdade quando em confronto com outros princípios, como os da segurança pública ou da presunção de inocência. Pode-se concluir que: essas regras já são frutos de ponderações feitas em abstrato pelo Constituinte, antecipando-se aos fatos que hodiernamente ocorrem numa sociedade complexa como Brasileira.
Vê-se que as regras, em geral, são ponderações de princípios, procedidas em abstrato, pelo Poder Competente (do Constituinte Originário, do Poder Reformador ou o Legislador Ordinário), em face de situações já de antemão previsíveis de ocorrer.
Então, se houver um conflito aparente entre uma regra jurídica e um princípio jurídico de igual hierarquia e que lhe é oposto em certos fatos abstratamente considerados, há de se prevalecer a regra, pois está já é fruto da ponderação operada por Poder Competente.
Em se tratando de regras oriundas do Poder Constituinte, sobretudo o Originário, tal conclusão de que as regras prevalecem há de ser observada por todos os Poderes.
Em se tratando de regras produzidas pelo Poder Legislativo e Poder Executivo, no mister de suas competências constitucionais, se não houver manifesta inconstitucionalidade, a conclusão de que as regras prevalecem vale, sobretudo, para o Poder Judiciário[92].
Em relação aos atos administrativos produzidos pelo Poder Executivo também há de se respeitar a estrita legalidade (art. 37 da Constituição Federal). Se já houver uma regra a ponderar uma preferência do Constituinte ou do Legislador, há de prevalecer a regra e não eventual ponderação procedida no âmbito do Poder Executivo. Salvo se a regra legal for inconstitucional, não se havendo em falar nessa ressalva para as regras oriundas do Poder Constituinte Originário.
Quanto mais específico for o comando normativo exarado pelo Poder Competente, mais vinculado aos seus comandos estarão os demais Poderes que se situem mais próximos da concretização da norma (concretização do texto em realidade).
Portanto, em se tratando de regras decorrentes do Poder Constituinte Originário, todos os Poderes hão de aplicá-las, sob pena de desrespeitar a Constituição, enfraquecendo a força normativa desta e o postulado da sua supremacia.
No plano infraconstitucional, quando houver uma regra específica a regulamentar um fato, ela há de ser aplicada, se não for flagrantemente inconstitucional, observando-se o postulado da interpretação conforme e os princípios da separação e harmonia dos Poderes.
Em se tratando de regras oriundas de Reforma à Constituição, a lógica é a mesma: as regras prevalecem sobre os princípios, se não houver manifesta inconstitucionalidade da reforma.
Não se trata de aplicação mecânica de regras jurídicas, transformando-se o juiz novamente na boca da lei. Pelo contrário, todas as normas são decorrentes de interpretação, contudo, não há que se ponderar princípios colidentes, quando o Legislador ou o Poder Constituinte (Originário ou Reformador) já os previram e já os ponderou, por meio de regras gerais e abstratas.
A interpretação das regras cinge-se em visualizar e justificar a hipótese de incidência ao caso concreto, possuindo ônus argumentativo menor que a ponderação de princípios, sobretudo, quando não há regras específicas.
Por isso, se defende que as regras jurídicas, sobretudo as constitucionais, são deveras importantes dentro do sistema normativo, pois já decorrem de ponderações (lei do sopesamento – Robert Alexy) de outros princípios, procedidas pelo Poder Constituinte Originário, pelo Poder Reformador ou pelo Poder Competente.
Tal prevalência das regras jurídicas não se trata de hierarquia entre espécies de normas, mas decorre da estrutura lógica de aplicação de cada espécie normativa.
Por isso, que o fato de os postulados serem normas que se destinam ao intérprete, quando da concretização de outras normas, não lhes confere status de superioridade em face das demais normas jurídicas (princípios e regras).
O fato de os princípios serem normas com alta carga axiológica (ideia de bom, de devido, estado ideal de coisas a ser buscado), sem deixar de serem deônticas (preceptivas, permissivas e proibitivas), não lhes dota de superioridade no sistema.
O mesmo ocorre com as regras. O fato de já serem ponderadas pelo Poder Competente, não lhes dota de superioridade em face de outras normas jurídicas (postulados e princípios).
Todos esses atributos das normas jurídicas são decorrentes de sua própria lógica e estrutura interna, ou seja, da natureza destas.
Não há hierarquia entre normas jurídicas, mas cada uma é aplicada de acordo com a sua função no sistema, havendo prevalência estrutural das normas mais concretas e especificas em face das mais gerais[93].
Com isso dota-se o sistema jurídico de maior previsibilidade, fortalecendo o Principio da Segurança Jurídica, que ao lado da ideia filosófica da Justiça, é um dos pilares que sustentam o Estado Democrático de Direito.
Logo, é correto se afirmar que quanto mais específica for uma norma jurídica, mais razões para ser aplicada aos casos que regula, não podendo ser afastada, se houver confronto com outros princípios aparentemente antagônicos. Assim, um princípio mais específico há de prevalecer sobre um mais geral e uma regra há de prevalecer sobre um princípio. Tudo isso se não houver manifesta inconstitucionalidade das normas mais específicas, de acordo com o caso concreto.
Assim, a regra que determina a vedação da pena de morte ou de caráter perpétuo no Brasil, há de prevalecer em face do princípio da segurança, pois este quando em conflito com o princípio da liberdade, já foi ponderado pelo Constituinte Originário, a fim de que vedar a pena de morte e de caráter perpétuo, mesmo daqueles criminosos que são considerados os mais espúrios da sociedade.
A mesma lógica vale quando se desce os pisos hierárquicos do ordenamento jurídico. Se o legislador houve por bem que vedar a antecipação de tutela em face da Fazenda Pública (Lei 9.494/97) não afronta o princípio da inafastabilidade ao Poder Judiciário, é porque já ponderou este princípio constitucional com outros de igual hierarquia que são os princípios da legalidade orçamentária e o da responsabilidade fiscal. Adiante voltaremos a esse tema, quando falarmos das ponderações das regras.
Por essas razões defende-se uma distinção terminológica criteriosa do que seja princípio, regra e postulado. Cada espécie normativa há de cumprir a sua função específica; para isso o intérprete há de identificar cada espécie para poder retirar dela o máximo de seu potencial normativo.
Humberto Ávila[94] também escreve nesse sentido, ressaltando a importância das regras jurídicas, quando aventa que diferenciar as espécies normativas (princípios, regras e postulados), não se trata de mera questão de nomenclatura:
“Conexa a essa questão está a concepção doutrinária largamente difundida no sentido de que descumprir um princípio é mais grave que descumprir uma regra. Em geral, o correto é o contrário: descumprir uma regra é mais grave que descumprir um princípio. E isso porque as regras têm uma pretensão de decidibilidade que os princípios não têm: enquanto as regras têm a pretensão de oferecer uma solução provisórias para um conflito de interesses já conhecido ou antecipável pelo Poder Legislativo, os princípios apenas oferecem razões complementares para solucionar um conflito futuramente verificável.
Também relacionado a essa questão está o problema de saber qual norma deve prevalecer se houver conflito entre um princípio e uma regra de mesmo nível hierárquico (regra constitucional versus princípio constitucional). Normalmente, a doutrina, com base naquela já referida concepção tradicional, afirma que deve prevalecer o princípio. Assim, porém, não deve suceder.[...]”
[...]
A esse respeito, convém registrar a importância de rever a concepção largamente difundida na doutrina juspublicista no sentido de que a violação de um princípio seriam muito mais grave do que a transgressão de uma regra, pois implicaria violar a vários comandos e subverter valores fundamentais do sistema jurídico. Essa concepção parte de dois pressupostos: primeiro, de que um princípio vale mais do que uma regra, quando, na verdade, eles possuem diferentes funções e finalidades; segundo, de que a regra não incorpora valores, quando, em verdade, ela os cristaliza. Além disso, a ideia subjacente de reprovabilidade deve ser repensada. Como as regras possuem um caráter descritivo imediato, o conteúdo de seu comando é muito mais inteligível do que o comando dos princípios, cujo caráter imediato é apenas a realização de determinado estado de coisas. Sendo assim, mais reprovável é descumprir aquilo que “se sabia” dever cumprir. Quanto maior for o grau de conhecimento prévio do dever, tanto maior a reprovabilidade da transgressão. De outro turno, é mais reprovável violar a concretização definitória do valor na regra do que o valor pendente de definição e de complementação de outros, como ocorre no caso dos princípios. [...] Descumprir o que se sabe dever cumprir é mais grave do que descumprir uma norma cujo conteúdo ainda careceria de maior complementação. Ou dito diretamente: descumprir uma regra é mais grave do que descumprir um princípio. No caso das regras, o grau de pretensão de decidibilidade é muito maior do que aquele presente no caso dos princípios, tendo em vista ser a regra uma espécie de proposta de solução para um conflito de interesses conhecido ou antecipável pelo Poder Legislativo.[...]”[95]
Vê-se a importância que possuem as regras no sistema jurídico, se assim o são com as regras produzidas pelo Legislador, maiores os motivos no que atina às regras oriundas do Poder Constituinte Originário.
Humberto Ávila aduz que se houver conflito entre uma norma constitucional e uma infraconstitucional, deve prevalecer aquela, seja qual o espécime normativo de que se trata. Não há novidade nessa assertiva, pois a doutrina assim já escreve desde há muito, conforme se explanou quando se analisou o conflito entre regras e seus critérios de resolução.
Contudo, a inovação por parte desse autor e que se endossa neste trabalho ocorre quando defende que os conflitos entre princípios e regras ínsitos à Constituição Federal, são resolvidos a favor destas.
“Enfim, não é admissível afastar, nem ampliar além do limite semântico intransponível, uma regra constitucional com base num princípio, por ser a regra a própria solução constitucional para determinado conflito de interesses. Ainda mais considerando que a Constituição Federal não tem apenas um princípio que possa afastar ou ampliar uma determinada regra, mas vários princípios, nem todos apontando numa só direção. A interpretação que se centra exclusivamente num princípio desconsidera o ordenamento constitucional como um todo. O mesmo ocorre com interpretações que, a pretexto de preservar valores supostamente prevalentes, terminam por afastar regras constitucionais que concretizam esses mesmos valores.”[96]
Assim conclui o referido autor: “[...] não é permitido a outro Poder rever a “ponderação” realizada pelo próprio Poder Constituinte Originário.”[97]
E continua:
“Essas considerações demonstram, em suma, que as regras não devem ser obedecidas somente por serem regras e serem editadas por uma autoridade. Elas devem ser obedecidas, de um lado, porque sua obediência é moralmente boa e, de outro, porque produz efeitos relativos a valores prestigiados pelo próprio ordenamento jurídico, como segurança, paz e igualdade. Ao contrário do que a atual exaltação dos princípios poderia fazer pensar, as regras não são normas de segunda categoria. Bem ao contrário, elas desempenham uma função importantíssima de solução previsível, eficiente e geralmente equânime de solução de conflitos sociais.”[98]
Podemos fechar o raciocínio com uma questão prática de atual importância e que levantou debates na sociedade brasileira.
Se um parlamentar for condenado, pelo Supremo Tribunal Federal, durante o exercício de seu mandato legislativo, quem deve declarar (ou não) a perda do cargo político? O Supremo Tribunal Federal diretamente, por meio de seu acórdão, ou o Poder Legislativo, por meio de votação interna?
A essa questão se põe dois esclarecimentos, primeiro – para o exercício de cargos políticos o cidadão há de estar em pleno gozo dos direitos políticos, trata-se de condição de elegibilidade (art. 14, §3º, da Constituição Federal); segundo – uma das hipóteses de suspensão dos direitos políticos é a condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os efeitos desta (art. 15, III, da Constituição Federal).
Logo, aquele que foi condenado criminalmente com decisão transitada em julgado, tem por suspenso seus direitos políticos, perdendo, pois condição de elegibilidade.
Causa estranheza falar que aquele que teve seus direitos políticos suspensos exerce cargo político. Logo, há de perder o cargo, por questão de pura lógica jurídica (se não pode ingressar, não pode permanecer). Mas até para as questões mais óbvias há o intérprete de ser rigoroso ao concretizar as regras já definidas pelo Constituinte.
Há regra originária na Constituição que resolve quem deve deliberar sobre a perda do mandato parlamentar, trata-se do enunciado do art. 55[99].
Seja qual for o fulcro da suspensão dos direitos políticos, a perda do cargo é resolvida (declarada ou decidida) no âmbito do Poder Legislativo, conforme ponderação dos princípios da separação e harmonia, já procedida pelo Constituinte Originário.
Dos dispositivos constitucionais mencionados, extraem-se algumas ilações.
Primeira, quem não possui capacidade para ser eleito, não deve continuar a exercer cargo político.
Segunda, quem declara ou delibera a perda do cargo parlamentar é tão somente o Poder Legislativo.
Terceira, a suspensão dos direitos políticos decorrentes de condenação criminal é deliberada pelo Legislativo, e nos demais casos de perda ou suspensão dos direitos políticos é declarada a perda do cargo por este poder.
Essas são apenas algumas das possíveis conclusões exaradas na estrutura de regras jurídicas.
Todos esses dispositivos mencionados concretizam os princípios da separação e da harmonia entre os poderes, por meio das regras acima enunciadas.
Partindo-se da premissa defendida de que as regras prevalecem quando em conflito com outros princípios de igual hierarquia (normas constitucionais), não pode o Poder Judiciário declarar a perda do cargo do parlamentar por ele condenado, em face do disposto no art. 55 da Constituição Federal[100].
Ainda que se ache uma afronta à moralidade haver parlamentares condenados a exercer os mandatos, ainda que se queira fazer Justiça e combater a corrupção no país, mesmo assim, a regra da perda do cargo do parlamentar há de ser respeitada. Sobretudo em situações de crise institucional, como ocorre quando um parlamentar é condenado pelo Judiciário.
Nesses momentos de crise que se deve buscar a força normativa da Constituição (Konrad Hesse) e fazer valer as suas regras[101].
“[...] Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se e situações de emergência, nos tempos de necessidade. [...]”[102]
Seja pela estrutura lógica das espécies normativas, seja pelos postulados da força normativa e supremacia da Constituição, as regras jurídicas previstas nesta, gozam de especial destaque dentro do sistema normativo, pois concretizam valores consubstanciados por meio de normas principiológicas, sendo fruto de ponderação já procedida pelo Constituinte Originário.
Parafraseando o mito de Ulisses e as Sereias, passagem de a Odisséia, se não observarmos as primeiras ordens emanadas pelo Constituinte, correremos o risco de, ao enfraquecer a força normativa da Constituição, subjugar toda nossa nau (a sociedade) às profundezas do mar (regimes de exceção).
De acordo com esse mito, Ulisses, querendo ouvir o canto das sereias, sem com isso legar toda a sua frota à morte, mandou aos seus homens que lhe amarrassem no mastro do navio e tampassem, cada um, os próprios ouvidos com cera, exceto os de Ulisses, que permaneceu destampado, para que assim este pudesse ouvir os cantos dessas misteriosas criaturas místicas. Ressaltou à frota que jamais descumprissem a primeira ordem.
Thomas Bulfinch narra essa passagem[103]:
“Circe ajudou nos preparativos para a partida e ensinou aos marinheiros o que deveriam fazer para passar sãos e salvos pela costa da Ilha das Sereias. As sereias eram ninfas marinhas que tinham o poder de enfeitiçar com o seu canto todos quantos a ouvissem, de modo que os infortunados marinheiros sentiam-se irresistivelmente impelidos a se atirar ao mar onde encontravam a morte. Circe aconselhou Ulisses a tampar com cera os ouvidos de seus marinheiros, de modo eu eles não pudessem ouvir o canto, e a amarrar-se a si mesmo no mastro dando instruções a seus homens para não o libertar, fosse o que fosse que ele dissesse ou fizesse, até terem passado pela Ilha das Sereias. Ulisses seguiu as instruções. Tampou com cera os ouvidos de seus homens e fez com que estes o amarrassem solidamente ao mastro. Ao se aproximarem da Ilha das Sereias, o mar estava calmo e sobre as águas vinham as notas de música tão bela e sedutora que Ulisses lutou para se libertar e implorou aos seus homens, por gritos e sinais, que o desamarrassem. Eles, porém, obedecendo às ordens anteriores, trataram de apertar os laços ainda mais.”
Ulisses ao estipular como ordem (regra) que seus soldados não destampassem os próprios ouvidos e não o soltasse do mastro, garantiu com isso a sobrevivência da tripulação. Muitas das ordens (regras) oriundas do Poder Constituinte Originário possuem o mesmo efeito.
A força normativa da Constituição advém do respeito às primeiras regras nela estabelecidas, buscando concretizá-las e não suplantá-las casuisticamente, a pretexto de buscar a Justiça.
Por tudo o que dito na subseção anterior poderia o leitor, eventualmente, concluir que este trabalho defende um retorno ao positivismo jurídico.
Não.
Visa-se fortalecer as conclusões por enquanto firmadas do pós-positivismo, que consagra a importância de o sistema jurídico possuir regras de conduta e princípios dotados de força normativa, perfazendo-se os dois pilares do Estado de Direito, a segurança jurídica e a Justiça.
Pelo pós-positivismo visa-se superar a visão positivista de que o Direito se confunde com a regra escrita. Isso, pois, identificar o Direito com a norma produzida pelo Poder Competente, seja qual for o conteúdo, é permitir que por meio da Lei promova-se a barbárie, tal qual ocorrera no Nazismo (1933-1945). A Lei não pode ser rótulo para qualquer conteúdo. O sistema jurídico há de prever valores que guiem a sociedade para um estado objetivo de situações consideradas boas (aspecto axiológico dos princípios). Em regra, as pessoas que vivem em uma sociedade querem, sem discriminações (que não consagrem a isonomia), ser livres e iguais, manifestar ideias, ter e manter suas propriedades, ter acesso a um mínimo existencial (salário digno, trabalho, educação, saúde e acesso à justiça). Eis a importância dos princípios, pois estes são janelas que permitem que valores (aquilo que é considerado bom – elemento axiológico dos princípios) adentrem ao sistema normativo com força normativa (característica deôntica – expressam proibições, permissões e obrigações). Com isso, o sistema normativo acaba por consagrar dois valores: a segurança jurídica, exarada nas regras, e a busca pela Justiça, exarada nos princípios.
“A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética.”[104]
Um sistema jurídico que tenha a pretensão de ser eficiente há de ser equilibrado, contendo regras e princípios em medidas que se mostrem necessárias. Contudo, não há formulas matemáticas. O importante é perceber que cada espécie de norma cumpre a sua função dentro do ordenamento jurídico.
Se neste só houvesse regras, seria engessado e logo se tornaria obsoleto. Isso, pois o Constituinte Originário e o Legislador não podem prever todas as situações humanas possíveis e regulá-las previamente, dando soluções a todos os conflitos, que são inerentes no convívio humano.
Se, por outro lado, somente houvesse princípios jurídicos, a falta de consenso tornaria o viver em sociedade permeada de surpresas e consequentemente inseguranças. Afinal, o que para muitos é concretizar a liberdade, para outros pode ser uma afronta à igualdade. Quando se envolve valores fundamentais de nossa sociedade, cujos conceitos são fluidos, há grandes probabilidades de dissenso.
Logo, é saudável que haja espécimes normativos diferentes, cada qual com a sua função e importância, de modo que aplicar a um acaba-se por denotar a importância dos outros.
Uma norma com estrutura de regra jurídica se aplicada a um caso concreto já reflete a solução de uma ponderação de princípios antecipada pelo Poder Competente (Poder Constituinte ou Poderes Constituídos), sendo que para a sua interpretação e concretização, afiguram-se importantes os postulados, tais quais o da supremacia da Constituição e o da interpretação conforme a Constituição. Eis um simples exemplo que denota como aplicar um dos elementos do sistema jurídico envolve a aplicação de todos, cada qual em sua medida, ressaltando-se a importância de todos.
Contudo, como não há espécie de normas absolutas, até mesmo as regras são passíveis de não ser aplicadas, ainda quando ocorra o fato descrito em sua hipótese de incidência.
Se se escrevesse o oposto, estar-se-ia a justificar a obediência cega às regras, o que significaria para a Ciência do Direito um olhar para trás, um retrocesso.
Interpretar as regras, aplicando-as aos casos concretos, requer a justificação de que os fatos descritos hipoteticamente no enunciado normativo ocorreram no mundo e, por isso, deve incidir a solução já previamente estabelecida no sistema.
Por isso se disse neste trabalho que a interpretação das regras cinge-se visualizar e justificar a hipótese de incidência ao caso concreto, possuindo ônus argumentativo menor que a ponderação de princípios – que deve ocorrer quando não há regras específicas. Eis a técnica da subsunção de há muito conhecida pelo estudioso do Direito.
Se as regras já são os princípios ponderados, equiparando-se à fórmula para a solução de um problema, significa que o Poder Competente (Constituinte ou Legislador) optou por dar prevalecia a um determinado princípio em face de outro. Por isso é correto falar que nas regras já há ponderação (lei do sopesamento – Robert Alexy).
Dessa premissa se extraem outras três:
1 – Para se aplicar uma regra, sua concretização há de fortalecer os fins a que se destina, concretizando o(s) princípio(s) que lhe embasa;
2 – Quando o resultado da aplicação da regra for o de enfraquecer o(s) princípio(s) que lhe embasa, surtindo efeito oposto que aquele desejado em abstrato pelo Poder Competente (Constituinte ou Reformador), ela há de ser afastada no caso concreto, sem que com isso lhe seja declarada a sua invalidade;
3 – Sendo uma regra afastada perante um caso concreto, exsurge uma lacuna em que o intérprete (na maior parte das vezes o Juiz) há de criar uma exceção à regra, não prevista no sistema, por meio de ponderações de princípios que se revelem de acordo com os fatos do caso concreto.[105]
Logo, é possível que se fale em ponderação das regras, que consiste em ponderar o seu elemento axiológico embasador (carga axiológica decorrente do princípio constitucional preponderante) e a finalidade a que se visa promover com os meios consagrados pelas hipóteses descritas no texto.
Dessa premissa é possível concluir:
Se uma regra aplicada a certo caso não concretizar o princípio constitucional que lhe embasa e lhe sustenta (elemento axiológico), há de ser afastado o seu comando normativo (elemento deôntico), criando-se, pois novo comando normativo que figure exceção àquela regra, sem com isso invalidá-la, sendo que a criação dessa nova norma (uma regra prevendo a exceção de outra regra) operar-se-á por sopesamento de princípios.
Robert Alexy já escreveu a seguinte ideia, pensando em princípios jurídicos de direito fundamental, contudo, com as devidas adaptações, é plenamente possível sua utilização no contexto em que se escreve. Ei-la:
“Por meio dos sopesamentos da jurisprudência e de propostas de sopesamento aceitas pela Ciência do Direito, surge, com o passar do tempo, uma rede de regras concretas atribuídas às diferentes disposições de direitos fundamentais, as quais representam uma importante base e um objeto central da dogmática.”[106]
Dos sopesamentos procedidos na jurisprudência se constroem regras, que com o passar do tempo passam a ser ínsitas ao próprio sistema. Isso explica a existência de súmulas e súmulas vinculantes. Apesar de se falar que as súmulas ordinárias não vinculam o magistrado, o fato é que há regras no sistema que preveem que o magistrado há de seguir as súmulas (sopesamento feitos por tribunais), especialmente após a vigência do Código de Processo Civil de 2015. Sem adentrar na polêmica da disciplina judiciária e liberdade do magistrado, o que se defende é que seja qual for a instância de poder que pondere princípios opostos, o resultado será uma regra.
Por isso é correto afirmar que a jurisprudência e a lei se influenciam mutuamente, pois de ambas se extraem regras que permeiam o sistema, possuindo força normativa.
Contudo, há de se asseverar que superar a aplicação de uma regra é um caso excepcional que demanda carga argumentativa muito maior do que a da ponderação de princípios (quando da produção de regras legislativas ou quando um juiz julga um caso sem regra expressa, ou pondera direitos fundamentais em conflito).
Isso, pois as regras já apresentam solução previsível de um conflito de princípios já ponderado. Logo, demonstrar que os fatos previstos subsumem-se à hipótese de incidência da regra e, ao mesmo tempo, demonstrar que, ainda assim, não se concretiza a finalidade almejada previamente, pelo Poder Competente (Constituinte ou Constituídos), caso seja aplicada a referida regra, requer a demonstração de que o caso é extraordinário e que por isso requer tratamento extraordinário. Somente circunstâncias excepcionais justificam a superação de uma regra sem a declaração de invalidade.
Cria-se assim, uma regra excepcional que tem a pretensão de regulamentar os casos futuros que contenham os elementos fáticos que animaram a sua produção.
Por isso que se falou da importância da argumentação jurídica na ponderação de princípios (agora na ponderação de regras) e a necessidade de uma fundamentação objetiva da interpretação da norma. Disso decorre a possibilidade de universalização do comando criado pelo intérprete, para casos futuros que contenham a mesma configuração fática dantes não prevista pelo Poder Competente.
Assim, ponderar a aplicação de uma regra, em casos excepcionais, de acordo com a concretização teleológica de seu princípio embasador, acaba por criar nova regra (exceção), que com o passar do tempo e de aplicação análoga a outros casos semelhantes acaba por consagrá-la dentro do sistema, seja por meio de súmulas ou precedentes de observância obrigatória, seja por meio de legislação.
Tal fato reforça a importância das regras no sistema jurídico, pois lhes denota a carga axiológica que possuem, enfatiza que sua aplicação não decorre de mera aplicação automática de um comando normativo, valorizando em plano indireto a importância dos princípios e sua respectiva função no ordenamento.
Façamos um exercício.
A Lei nº 12.990/2014 prevê a reserva aos negros de 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
A regra principal que consagra esse direito está no artigo 1º da Lei, abaixo transcrito:
Art. 1o Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei.
§ 1o A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três).
§ 2o Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos).
§ 3o A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido.
Sem adentrar no mérito dessa ação afirmativa, cuja constitucionalidade já foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal (ADC 41/DF, Rel. Ministro Roberto Barroso), pensemos na seguinte situação: Fulana de Tal, negra, nos termos do artigo 2º da citada lei, se inscreve para o concurso de Juíza Federal de alguma das regiões; vindo a lograr aprovação, seja pelo seu esforço, seja pela política pública que lhe ampara; entretanto, um ano após o exercício desse importante cargo, vê que sua vocação é o Ministério Público, fato que lhe impele a prestar o concurso de Procurador da República, cujo edital está prestes a sair. Antes de imaginarmos se a Fulana de Tal passou nesse outro dificílimo certame, perguntemo-nos: após um ano atuando como Juíza Federal, merece essa pessoa ser destinatária de política afirmativa que visa à inclusão de indivíduos pertencentes a grupos étnico/raciais historicamente excluídos ou desprivilegiados no Brasil? Pode ela ainda ser considerada excluída? Contemplá-la não seria tirar a oportunidade de outra pessoa de fato ainda não incluída nos postos da burocracia brasileira?
Com base no defendido nesse artigo aplicar a referida regra à Fulana de Tal seria uma distorção do sistema, dado que o caso reclama uma superação da regra, tendo em vista que o elemento deôntico por esta perseguido não é atingido, ademais, o elemento axiológico que lha embase é ferido, vez que não prestigia a isonomia.
Frise-se não se está aqui a discutir a política das cotas em concursos públicos. Pelo contrário, está-se a perquirir a sua aplicação, considerando sua validade, entretanto, vislumbrando possível caso de dissonância na aplicação da regra criada, seja por não cumprir a isonomia que embasou o seu exsurgir, seja por não atingir a finalidade ínsita, qual seja, incluir indivíduo pertencente a minoria, cujo processo civilizatório brasileiro não foi justo. Parte-se, pois, da validade da norma em abstrato, com análise de sua aplicação em caso concreto, que a torna inválida, mas apenas para aquele caso.
Assim, voltando ao exemplo anteriormente criado, a Drª. Fulana de Tal terá de concorrer às vagas de Procuradora da República na ampla concorrência apenas, afastando-se a incidência da referida lei, inclusive o seu artigo 3º, isso, pois não há se falar em buscar incluir alguém que já está incluído, nem criar duas chances a um indivíduo que não precisa mais de políticas afirmativas. Um candidato pertencente à grupos raciais/étnicos não minoritários não tem esse privilégio, ainda que não pertença a uma elite econômica ou política, mas por ser socialmente incluído nos moldes criados pela r. lei, não se beneficia de duas oportunidades, quais sejam, concorrer na lista ampla ou na especial, que via de regra possuem notas de corte diferentes, sendo a primeira maior que a segunda lista, fato que justifica a política afirmativa. Se fosse o oposto, não haveria porquê criar a referida ação afirmativa.
Portanto, há casos no plano infraconstitucional, em que certas regras jurídicas, constitucionais em tese, podem num caso concreto se configurarem inconstitucionais, pois não concretizam os princípios que lhes são fundadores.
Mister frisar que no plano constitucional, o cuidado para se afastar uma regra constitucional há de ter maiores cautelas. Isso, pois, as regras constitucionais não podem ser afastadas diante de casos concretos, afirmando-se que aplicar a Constituição em certo caso é contrariá-la, pois estas regras são o fundamento de análise da inconstitucionalidade de uma determinada situação. Ademais, criar exceções às regras constitucionais poderia ocasionar o efeito colateral de transformar as regras em exceções e estas naquelas, enfraquecendo a sua força normativa da Constituição.
Se houver um conflito entre a aplicação de uma regra constitucional, num certo caso, e a concretização de seu escopo principiológico, este aparente conflito há de ser resolvido por meio da interpretação, sem que se afaste a aplicação da regra constitucional. Não cabe aos Poderes Constituídos proceder a ponderações quando o Poder Constituinte as fez anteriormente.
Mas nem as regras constitucionais são absolutas.
Pode ocorrer que numa interceptação telefônica determinada por um Delegado de Polícia (autoridade incompetente, de acordo com o art. 5º, XII, da Constituição Federal) descubra-se uma rede de tráfico de drogas enraizada em órgãos de Poder, envolvendo figuras importantes do governo. Mesmo nessa situação excepcional, não pode prevalecer a decisão de valer-se das interceptações a fim de julgar e punir os envolvidos, pois afastar uma regra de direito fundamental é atentar contra a própria existência do sistema jurídico. Não é o ideal conviver com situações dessa sorte, contudo, o Estado há de buscar meios lícitos e legítimos de atuação para desempenhar os seu mister, que é manter a ordem social e jurídica, garantindo-se uma vida digna a todos. Logo, mesmo num caso extremamente grave como esse, não se justifica afastar a aplicação de uma regra, por ponderação entre os meios a que visa e os fins desejados. O Constituinte já ponderou os princípios da segurança e da liberdade ao criar regra desse jaez, consagrada como cláusula de reserva jurisdicional, ou seja, somente o Juiz pode determinar que seja realizada uma interceptação telefônica.
Por outro lado, suponha-se que a mesma interceptação telefônica inconstitucional descubra uma rede de criminosos internacionais, ligados a governos estrangeiros e que visem invadir o território nacional a fim de controlar o escoamento de drogas entre a Bolívia e o Brasil, subjulgando o país a grupos a outra nação e grupo paraestatal enraizado em sua estrutura formal (traficantes que ocupam cargos estratégicos na elite política, v.g.). A situação se mostra muito mais grave, pois está em xeque a existência do próprio Estado. Como todas as normas existem para preservar a existência de todos, inclusive do Estado Nacional, garantindo-se a ordem social por meio de normas jurídicas, é possível se defender a criação de uma exceção a um direito fundamental. Entre tutelar um direito fundamental, tal qual a regra do art. 5º, XII, e tutelar a existência do próprio Estado, que é a razão de ser do próprio Direito, deve-se ponderar as razões a favor da última das soluções.
Percebe-se que nem mesmo as regras constitucionais originárias, inclusive as axiologicamente mais importantes, como os direitos fundamentais, não são absolutos, pois eles só têm razão de ser, enquanto as estruturas do Estado não estão ameaçadas. Meras crises institucionais não justificam a suplantação das regras constitucionais, mas somente os casos em que o próprio Estado de Direito esteja em jogo.
Logo, as regras constitucionais podem ser ponderadas quando de sua aplicação a um caso concreto, somente se este for extraordinário o suficiente para tal mister. Do contrário, enfraquece-se a força normativa da Constituição.
Dissertando sobre as regras de maneira geral Humberto Ávila assim conclui: “[...] As regras, em geral, não são absolutas, mas também, não são superáveis com facilidade, resta saber, agora, quais são as condições necessárias para sua superação.”[107]
O autor cita alguns exemplos em que se ponderou a aplicação de certas regras jurídicas, optando-se por afastá-las sem invalidá-las. Um deles foi o caso em que a legislação tributária federal determinou que o ingresso em programa de pagamento simplificado de tributos federais implicava não importar produtos estrangeiros. Descumprida essa regra, haveria a exclusão do referido programa. Tal vedação visava estimular a produção nacional por pequenas empresas. Houve um caso em que uma pequena empresa nacional, inclusa no programa de pagamento simplificado, importou quatro pés de sofá, a fim cumprir uma encomenda. No processo 13003.000021/99-14, 2º Conselho de Contribuintes, 2ª Câmara, sessão de 18.10.2000, resolveu-se que excluir a empresa do programa ante a situação fática exposta, implicaria resultado diverso do fim pretendido pela regra ora debatida. Decidiu-se pela permanência da empresa no sistema de pagamento simplificado. Com isso, viu-se que em certos casos excepcionais concretiza-se mais o fim das normas quando não se lhas aplica. Assim, perfaz-se possível equilibrar a justiça geral, prevista no comando da regra, e que deve prevalecer para todos, e a justiça individual, que se faz necessária em casos que fogem ao padrão delineado pela regra.
Assim disserta Humberto Ávila:
“O exame dos casos acima referidos demonstra que o grau de resistência de uma regra à superação está vinculado à promoção do valor subjacente à regra (valor substancial específico) quanto à realização do valor formal subjacente às regras (valor formal da segurança jurídica). E o grau de promoção do valor segurança está relacionado à possibilidade de reaparecimento frequente em situação similar. Conjugando esses fatores, pode-se afirmar que a resistência à superação de uma regra será tanto maior quanto mais importante for a segurança jurídica para sua interpretação.
[...]
Os casos acima referidos revelam, ademais, que a superação de uma regra não exige apenas a mera ponderação do princípio da segurança jurídica com outro princípio constitucional específico, como ocorre nos casos de ponderação horizontal e direta entre princípios constitucionais. A superação até envolve uma ponderação entre esses princípios, mas uma ponderação diferente daquela existente no caso de ponderação direta entre princípios constitucionais colidentes. Isso porque a superação de uma regra não se circunscreve à solução de um caso, como ocorre na ponderação horizontal entre princípios mediante a criação de regras concretas de colisão; mas exige a construção de uma solução de um caso mediante a análise de sua repercussão para a maioria dos casos. A decisão individualizante de superar uma regra deve sempre levar em conta seu impacto para aplicação das regras em geral. A superação de uma regra depende da aplicabilidade geral das regras e do equilíbrio pretendido pelo sistema jurídico entre justiça geral e justiça individual.”
[...]
A superação de uma regra deverá ter, em primeiro lugar, uma justificativa condizente. Essa justificativa depende de dois fatores. Primeiro, da demonstração de incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente. É preciso apontar a discrepância entre aquilo que a hipótese da regra estabelece e o que sua finalidade exige. Segundo, da demonstração de que o afastamento da regra não provocará expressiva insegurança jurídica. [...] Enfim, a superação de uma regra condiciona-se à demonstração de que a justiça individual não afeta substancialmente a justiça geral.” [108]
Vê-se que a fundamentação de superação de uma regra requer um ônus muito maior do que a de ponderação de princípios colidentes. Precisa-se exteriorizar a incompatibilidade da regra e sua finalidade subjacente ao caso concreto. Isso é deveras difícil, pois a fundamentação há de deixar demonstrado que se trata de um caso excepcional que não repercutirá substancialmente no equilíbrio do sistema. Há de se demonstrar que superar a regra é na verdade aplicá-la de acordo com sua finalidade. O que de início parece demonstrar um paradoxo, apenas revela o quão excepcional é superar uma regra (sobretudo as constitucionais).
Ademais, “a mera alegação não pode ser suficiente para superar uma regra”[109], pois há de restar provada a excepcionalidade do caso concreto, com base nos fatos apresentados ao intérprete. Ou seja, não bastam os argumentos, os fatos hão de ser evidentes.
Não há elementos absolutos no sistema jurídico. Contudo, a superação das regras há de ser medida sempre excepcional, a fim de dotar o ordenamento de estabilidade, consagrando-se a segurança jurídica. Fato que não se pode ignorar é que, mesmo as regras, que já representam escolhas valoradas e ponderadas procedidas pelo Poder Competente (Constituinte ou Constituídos), não são absolutas, podendo ser afastadas diante de um caso peculiar, desde que a sua não aplicação concretize o fim que anima a própria regra. Somente se afasta o seu elemento deôntico, se concretizar o seu elemento axiológico, fato que evidencia que das regras também dimanam valores.
Acima[110] se entabulou o exemplo, no plano infraconstitucional, da polêmica vedação da tutela antecipada em face da Fazenda Pública. Disse-se que o legislador já havia ponderado o princípio da inafastabilidade ao Poder Judiciário com outros de igual hierarquia que são os princípios da legalidade orçamentária e o da responsabilidade fiscal. Houve por bem o legislador em não permitir que se antecipe a tutela jurídica em face do erário. Há diversas regras que dão supedâneo a essa vedação, art. 2-B, da Lei 9.494/1997[111], art. 1º, da Lei 8.439/1992[112], e art. 7º da Lei 12.016/2009[113]. Todas estas visam tutelar o erário para a consecução dos fins constitucionais, sobretudo no campo dos direitos de primeira e segunda geração (dimensão). Por isso há vedação expressa em se permitir que servidores públicos, por meio de liminares judiciais tenham melhorias salariais que julgam de direito. Privilegia-se o conjunto social em vez de um grupo específico da sociedade. O erário existe para garantir uma vida digna e buscar o ideal do mínimo existencial garantido a todos, exarado nas regras do art. 6º[114] e 7º, IV[115], da Constituição Federal. Dentre o mínimo existencial está a saúde, como direito fundamental de segunda geração (dimensão). Ora um dos fins do erário é garantir a todos o acesso à saúde, pois esta é base do direito à vida. Logo, não se pode, sob pretexto de proteger o erário, vedar a tutela antecipada em face do pedido de o Estado fornecer medicamentos essenciais a um indivíduo que deles necessite para manter-se vivo, pois este é o fim mesmo dos bens públicos e a razão de ser do Estado.
O legislador já operou à ponderação entre interesse geral e interesse de classe, por isso vedou a concessão de liminares que aumentem os salários dos servidores. Contudo, vimos que a aplicação de todas as regras do sistema não se opera de modo mecânico, mas há de ser ponderada nela mesma, ou seja, há de se perquirir se adotá-la consagrará os seus fins ou se não. Vedar a antecipação da tutela em face da Fazenda Pública, para tutelar a vida, é ir de encontro à própria razão de ser do erário; logo, eis um caso claro em que ponderar a regra e deixar de aplicá-la é fortalecer o seu escopo, sua teleologia.
Por isso se defende que, apesar da previsão legal, é possível ponderar esse conjunto de regras, a fim de afastá-lo, quando o Estado tiver de agir a fim de concretizar os direitos fundamentais, como a saúde, que é a base da vida.
Por isso é comum se falar que não há objeções orçamentárias em face de se garantir o mínimo existencial. Eis um exemplo que bem denota que aplicar regras a casos concretos não é fazê-lo de modo mecânico. Existe ponderação das regras.
Se os princípios são ponderados quando em conflito com outros princípios, em que o intérprete buscará, por meio da lei de sopesamento (Alexy) construir uma regra que contenha a resolução do problema que se lhe apresenta, as regras são ponderadas nelas mesmas, pois se verifica se os seu comando (elementos deônticos) se alinha ao seu escopo (elemento axiológico).
Em havendo desarmonia, o intérprete buscará a resolução do problema criando outra regra, excepcional, a fim de alinhar o elemento deôntico ao elemento axiológico da norma. Contudo, ao proceder nessa empreitada assumirá ônus argumentativo deveras difícil de implementar, conforme acima visto. Tanto mais difícil será este ônus, conforme a hierarquia da norma. Como visto, somente em casos em que se põe em risco a existência do próprio Estado é que se poderá perquirir a possibilidade de se ponderar as regras constitucionais.
O Direito, visto como sistema, é composto por um complexo de normas, que podem ser definidas nas seguintes espécies: princípios, regras e postulados.
De forma sintética, pode-se conceitua-las conforme se segue.
Os princípios são normas dotadas de baixa densidade normativa, pois estipulam fins a ser seguidos, estados ideais de coisas a serem buscados, valores vívidos na sociedade, mas não denotam os meios de concretizarem-nos.
As regras são normas dotadas de alta densidade normativa, pois estabelecem comandos deônticos (permitir, proibir, determinar) que visam direcionar o intérprete aos fins almejados, escolhidos pela ponderação de certos princípios, procedida pelo poder competente (Constituinte ou Constituídos), quando da elaboração da norma. Com isso se concluí que as regras também possuem seu aspecto axiológico.
Os postulados são normas metódicas, que visam auxiliar na aplicação das demais normas (princípios e regras), por isso é correto chamá-los de normas de segundo grau (metanormas).
Entre esses três espécimes não há hierarquia, pois cada qual cumpre sua importante função dentro do sistema jurídico.
Os princípios permitem que o ordenamento se renove, pois dada à fluidez de seus conceitos linguísticos – geralmente expressos em palavras de evidente plasticidade como igualdade, liberdade, devido processo legal, dignidade humana, moralidade – a cada geração que nasce as ideias por de trás dos signos em que se expressam modificam-se. Com isso, o ideal de justo, o de bom e o de équo permeiam o sistema, tornando-o mais consentâneo com a sociedade em que inserido. Portanto, os princípios são normas que permitem que o sistema se torne adaptável às novas demandas sociais, que surgem dia a dia, geração a geração.
As regras, devido à sua estrutura deôntica, consagram o ideal da segurança jurídica, que embasa o concretizar da segurança (em geral), pois, todos os partícipes de certa sociedade sabem, de antemão, que condutas são proibidas ou não, tendo a liberdade de escolher como agir. Portanto, as regras dotam o sistema de estabilidade, pois estabelecem condutas selecionadas como boas, como arquétipo de comportamento, bem como estabelecem as sanções pelo seu descumprimento.
Os postulados balizam o ato de interpretar as normas, tornando-o o mais objetivo possível, pois o intérprete além de ser ator da comunidade linguística, terá de antemão conceitos que conformarão a extração de sentidos dos signos que pretendem regular certa situação em concreto. Sua função evidencia o proceder extremamente técnico que se tornou o Direito no pós-positivismo, sendo, pois, normas destinadas mais aos intérpretes do sistema, do que aos fatos.
Ressalve-se que o fato de o Direito ter se tornado técnico, não elimina de sua aplicação perquirir os valores sociais vigentes, por isso a existência dos princípios. Logo, tecnicidade não significa um proceder mecânico, significa um proceder objetivo, embora, humano.
A par dessas definições e funções dos espécimes normativos, tem-se que, estes não são absolutos em si mesmos. Dizer que algo se configura de certo modo, não é cristalizá-lo como tal perpetuamente.
Ao analisarmos as regras e os princípios, vimos que não há normas absolutas.
Os princípios, pela sua própria estrutura axiológica, existem para o conflito, sobretudo, num Estado de Direito que comporta uma sociedade plural como a Brasileira. Portanto, é comum que a liberdade de um grupo conflite com a liberdade de outro, ou que a liberdade de expressão esbarrem no direito à intimidade, que a moralidade na administração conflite com a estrita legalidade. Não há solução pronta para conflitos de princípios, pois caso a caso, os elementos fáticos delinearão aquele que deve momentaneamente prevalecer.
As regras também não são absolutas. Existem os critérios clássicos de resolução de antinomias: o hierárquico, o da especialidade e o do tempo. Mas há, também, casos em que as regras serão ponderadas nelas mesmas, a fim de se perquirir se de sua aplicação concretiza-se a sua finalidade, verificando-se se o elemento deôntico está alinhado ao seu elemento axiológico. Por isso é correto falar que as regras também são ponderáveis.
Em se tratando de regras infraconstitucionais há exemplos no sistema jurídico, como, por exemplo, o art. 2-B, da Lei 9.494/1997, que veda a antecipação de tutela em face da Fazenda Pública. A finalidade dela é proteger o erário e as regras atinentes à responsabilidade fiscal no gasto de recursos públicos. Isso, pois o Estado há de ter meios para satisfazer as prioridades políticas das receitas. Contudo, como o valor do ser humano é o elemento motriz do ordenamento, não há políticas públicas que devem ser privilegiadas em face da vida. Portanto, quando for necessário conceder liminar para que o Estado entregue remédios para o cidadão necessitado, não há que se falar em vedação da tutela antecipada. Isso, pois se a regra for aplicada, acabará por desprestigiar a vida, cuja proteção é o fim último do erário e do Estado. Os cofres públicos devem ser protegidos não contra o indivíduo, mas em prol dele, eis a finalidade do art. 2-B, da Lei 9.494/1997, que deve ser interpretado no sentido de que essa regra não se aplica nos casos em que se pleiteia tratamento de saúde ou entrega de remédios, pois contrariaria o próprio desiderato da norma.
Por isso é correta a seguinte afirmação: há ponderação nas regras e das regras.
A ponderação nas regras decorre de sua própria elaboração, quando o poder competente (Constituinte ou Constituídos) escolhe um comando deôntico que julga atingir o elemento axiológico buscado. Quando se veda a interceptação telefônica como meio ordinário de investigação (Art. 5º, XII, Constituição Federal), prestigia-se a privacidade em detrimento do jus puniendi, dois valores que expressam um dos aspectos dos princípios da liberdade e da segurança jurídica, respectivamente.
A ponderação das regras ocorre quando de sua aplicação ao caso concreto. O intérprete há de perquirir se aplicar o comando deôntico da regra concretiza o seu elemento axiológico ou não. Se concretizá-lo, há de se aplicar a regra, do contrário, há de se buscar uma exceção a esta, sem com isso declará-la inválida, apenas deixando de aplicá-la ao caso concreto. Tal mister demandará carga argumentativa de alta densidade jurídica, pois se estará a afastar a ponderação (nas regras) procedida pelo poder competente, na maioria das vezes o Legislativo, para se aplicar uma ponderação da regra, no caso concreto. Eis uma face do método de interpretação teleológico.
Com relação às regras constitucionais, não sendo o caso de reformas inconstitucionais, a ponderação das regras somente pode ocorrer em casos extremamente graves, que coloquem em risco a existência do próprio Estado. O exemplo da interceptação telefônica procedida por autoridade incompetente é elucidativo. Se um delegado de polícia desautorizado proceder à interceptação e, com isso, descobrir que há parlamentares envolvidos com o tráfico de drogas ilícitas, ainda assim, não se deve afastar a regra da cláusula de reserva jurisdicional, a fim de prosseguir na persecução penal. Contudo, numa outra situação, o mesmo hipotético delegado descobre que há parlamentares arquitetando uma invasão de tropas armadas estrangeiras, para proceder a um golpe de Estado, seria extremamente irracional desconsiderar o fato descoberto e deixar de tomar as medidas jurídicas cabíveis (Lei 7.170/1983 – Lei da Segurança Nacional), pois tal inação ocasionará o fim do Estado Nacional, elemento raiz da atual noção de Direito.
Afastar uma regra do caso concreto, criando-se uma exceção, é algo deveras difícil, em termos de argumentação jurídica. Somente casos excepcionais permitem, em termos fáticos e em lógico-jurídicos, o afastamento de uma regra do caso concreto. Se a dificuldade é evidente quanto às regras infraconstitucionais, potencializa-se em inúmeras vezes, em se tratando das regras constitucionais.
Por certo, não há norma em absoluto no Direito. As espécies normativas possuem função padrão, sem com isso dizer que não haverá exceções para se as concretizar.
As regras cumprem importante papel no sistema, pois são o resultado de ponderações de princípios, logo, são o arquétipo de proceder considerado bom. Por isso, contrariar um comando normativo contido numa regra é muito mais grave que contrariar princípios jurídicos, pois pela natureza destes, eles existem para serem contrariados, pois estão sempre a colidir com outros, de acordo com os diversos conflitos sociais que existem. Já as regras existem para serem aplicadas, contudo, por não se tratar a interpretação jurídica de uma atividade mecânica, é possível as afastar em certos casos, que demandarão argumentação jurídica de alta densidade, a demonstrar que o caso concreto merece solução outra que o comando deôntico da regra, para satisfazer o elemento axiológico desta. Não se demonstrando essa excepcionalidade, cometer-se-á a gravidade de afrontar uma regra, fato que em última instância é não aplicar o sistema normativo, quando ele deveria ser aplicado na íntegra; o que contribuiria para abalar as estruturas do Estado de Direito.
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[1] Não se diz com isso que estão as normas apartadas da realidade, apenas se diz que têm o mister de influir na realidade.
[2] STRAUSS, Claude Levi. Antropologia Estrutural. 6. ed. Biblioteca Tempo Universitário – 7. Tempo Brasileiro Ltda.
[3] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010, p.191/197
[4] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010, p.194.
[5] Idem, p.194.
[6] WITTGENSTEIN, Ludiwig. Tratacutus Logico-Philosophicus / Lugwig Wittgeinstein; Tradução, apresentação e estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos; [Introdução de Bertrand Russell]. – 3. ed. 2. Reimpr. – São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2010.
[7] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito / Lenio Luiz Streck. 8. ed. rev. Atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2009, p.61.
[8] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010, p.195 e196.
[9] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 12. ed. Malheiros. 2011, p, 30/31.
[10] WITTGENSTEIN, Ludiwig. Investigações filosóficas / Ludwig Wittgenstein; tradução de José Carlos Bruni. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 27/41.
[11] ÁVILA, Humberto. Op. Cit. p, 32/33.
[12] Os autores citados usam nomenclaturas diferentes para designar o texto das leis (lei em sentido amplo), muitos se referem a textos normativos, ou a dispositivos, ou enunciados normativo. Mas todos diferem texto (amontoado de signos dotados de significados) e norma (produto de construção linguística).
[13] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010, p.197.
[14] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Sergio Antonio Fabris Editor. 1991.
[15] Pode-se até dizer que os E.U.A. não se sagraram somente vencedores materiais deste grande conflito mundial, simbolicamente influenciaram o velho mundo e as periferias ocidentais, tal qual o é o Brasil.
[16] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010, p. 199 e 200.198.
[17] Idem, p. 199 e 200.
[18] Adiante trabalha-se melhor com o conceito de supremacia da Constituição, mediante análise do princípio da supremacia das normas constitucionais, dentro do sistema normativo.
[19] Ibidem.
[20] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional / Alexandre de Moraes. – 23. Ed. – São Paulo : Atlas, 2008, p. 11.
[21] BARROSO, Luís Roberto Barroso, op. cit, p. 200.
[22] BARROSO, Luís Roberto Barroso. , op. cit, p. 201/204.
[23] Idem, p. 202.
[24] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. Malheiros. 2010, p. 570/572.
[25] BARROSO, Luís Roberto Barroso. , op. cit, p. 203.
[26] Idem.
[27] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional / Alexandre de Moraes. – 23. Ed. – São Paulo : Atlas, 2008, p. 12/14.
[28] Adiante veremos ser possível falar em três estruturas básicas.
[29] Fala-se em normas jurídicas, mas ambos os autores estão preocupados com o modo como se aplicam as normas constitucionais.
[30] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p.350/352.
[31] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério / Ronald Dworkin; tradução e notas Nelson Boeira. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. – (Justiça e direito), p. 35.
[32] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério / Ronald Dworkin; tradução e notas Nelson Boeira. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. – (Justiça e direito), p. 36/41.
[33] Por “tudo-ou-nada” pode-se entender o modelo da subsunção: premissa maior, premissa menor e conclusão.
[34] DWORKIN, Ronald, op. cit, p. 128.
[35] Idem, p. 181.
[36] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5 – ed. alemã. Theorie der Grundrechte. Suhrkamp Verlag. 2006. São Paulo: Malheiros. 2008. P. 87/91.
[37] Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (Decreto-Lei Nº 4.657, De 4 De Setembro De 1942.
[38] Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
[39] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010, p. 204/205.
[40] Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.
Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.
[41] Todos os seres humanos têm direitos ao estado ideal de coisas prometidos pelos princípios jurídicos e os valores neles expressos, portanto, todos temos direito subjetivo à liberdade, igualdade, propriedade, segurança, dignidade, bem estar, trabalho socialmente valorizado, etc.
[42] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010, p. 206/207.
[43] Idem, p. 208/212.
[44] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 12ª Edição. Ed. Saraiva. 2011, p. 78/79.
[45] REALE, Miguel. Noções Preliminares de Direito / Miguel Reale. – 27. ed. ajustada ao novo código civil – São Paulo: Saraiva, 2002, p. 304/305
[46] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. Malheiros. 2011, p.53/54.
[47] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 12ª Edição. Ed. Saraiva. 2011, p. 134/135..
[48] ÁVILA, Humberto. Op. Cit, p. 147/149.
[49] O autor refere-se à distinção forte, pois contrapõe à definição de Josef Esser, Claus-Wilhelm Canaris e Karl Larenz a que nomina de diferenciação fraca, pois estabelecem como padrão de diferenciação entre princípios e regras o fato de aqueles expressarem valores e terem a linguagem mais aberta, sem contudo minudenciar o modo de aplicação de cada uma dessas espécies normativas.
[50] Humberto Ávila diferencia os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, aduzindo que o primeiro refere-se a situações de manifesto conflito entre o geral e o individual e que o segundo a situações em que se busca relação de causalidade entre meio e fim.
Neste trabalho, seguiremos a linha predominante na doutrina brasileira e também no Supremo Tribunal Federal de tratar a razoabilidade e a proporcionalidade como (quase) sinônimos. Ambos a expressar que o direito veda comportamentos excessivos, desnecessários ou inadequados. Novamente utilizando-se de metáforas: não se mata pardais com balas de canhão.
[51] Ainda que de modo virtual, com lentes de câmera que sejam tão potentes que consigam adentrar a sala das residências de celebridades.
[52] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 12ª Edição. Ed. Saraiva. 2011, p. 162.
[53] WITTGENSTEIN, Ludiwig. Investigações filosóficas / Ludwig Wittgenstein; tradução de José Carlos Bruni. – 2. ed. – São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 27/41.
[54] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 386/387.
[55] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 12ª Edição. Ed. Saraiva. 2011, p. 176.
[56] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009.
[57] Para Luís Roberto Barroso o conceito de princípio instrumental de interpretação constitucional enquadra-se no conceito de postulado normativo aplicativo para Humberto Ávila.
[58] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 371.
[59] Idem. p. 165.
[60] Ibidem, p. 168.
[61] Ibidem, p. 372.
[62] Não se faz aqui uma hierarquia entre os artigos originários do Constituição, aqueles existentes já desde de 5 de outubro de 1988, e os decorrentes do poder de reforma. Como se verá pelo postulado da unidade, não há hierarquia entre normas constitucionais. Contudo, há hierarquia entre Poder Constituinte e Poderes Constituídos, dentre eles o Poder Reformador cujos titulares, na órbita federal são o Poder Legislativo e o chefe do Poder Executivo, respeitadas as limitações prodecimentais previstas no art. 60 da Constituição Federal.
[63] Não se desconhece a atuação do Poder Executivo e do Poder Legislativo no Controle de Constitucionalidade das leis, seja o prévio (durante o processo legislativo até a sanção ou veto presidencial), seja o repressivo (sustação dos atos normativos que exorbitem do poder regulamentar, procedida pelo Poder Legislativo e não aplicação de Lei considerada inconstitucional pelo Presidente da República, por exemplo).
[64] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 373.
[65] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Op. Cit. p. 194/195.
[66] Idem, p. 373.
[67] J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, cit., p.196.
[68] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 202.
[69] Idem, p. 218.
[70] Idem, p.374.
[71] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Op. Cit., p. 375.
[72] A rigor é desnecessário até a reforma que mencionou a questão de portar o cigarro aceso, pois se a proibição de fumar fosse interpretada com objetividade, ninguém se daria o direito de entrar num elevador portando, mas não tragando, cigarro aceso.
[73] Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;
II - do Presidente da República;
III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
§ 1º - A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio.
§ 2º - A proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.
§ 3º - A emenda à Constituição será promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com o respectivo número de ordem.
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
§ 5º - A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
[74] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 2. ed. – São Paulo: Saraiva. 2010 166/167.
[75] É viável suprimir as cláusulas pétreas se estivermos a falar de força, revolução (seja qual for a ideologia), mas não se estivermos a falar de Direito. Por isso, a doutrina e Jurisprudência do STF refutam a tese da dupla revisão, que justamente consiste em reformar o art. 60, para depois extrair da Constituição, as normas que outrora eram tidas como cláusulas pétreas.
[76] Isso dentro do sistema normativo pátrio, não se levando em consideração o conflito entre normas nacionais e internacionais, objeto de estudo de Direito Internacional Privado.
[77] Esse é o modelo teórico predominante, mas sempre é bom lembrar que já houve outros paradigmas como a Supremacia do Parlamento, a Supremacia do Rei, a Supremacia da Igreja.
[78] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9.
[79] Em se tratando de normas oriundas de uma Constituição posterior a outra, tudo dependerá do Poder Constituinte Originário. É possível que este recepcione a Constituição antiga como norma legal, ou mesmo que simplesmente a revogue. Pela amplitude desse tema, têm-se que foge do foco desse trabalho que é, no momento, investigar as antinomias entre normas infraconstitucionais.
[80] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 9.
[81] Quando há um conflito entre regras gerais e especiais não se pode falar que estas revogam aquelas, mas sim que existe prevalência das especiais sobre as gerais. Por isso o Código de Defesa do Consumidor não revogou o Código Civil, na parte que regulamenta a os negócios jurídicos, as obrigações e os contratos. Na doutrina nacional fala-se em diálogo das fontes, para designar esse fenômeno normativo em que muitas fontes normativas regulam uma mesma relação jurídica, com influência recíproca uma sobre a outra.
[82] Possibilidade de ser aplicada a futuros casos análogos.
[83] O autor se refere às normas jurídicas: princípios e regras.
[84] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5 – ed. alemã. Theorie der Grundrechte. Suhrkamp Verlag. 2006. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 91/94.
[85] Idem. p. 139.
[86] Os princípios são os valores internalizados no sistema jurídico. De acordo com Robert Alexy, os princípios possuem natureza deontológica (permitem, proíbem ou compelem) e os valores possuem natureza axiológica (conceito de bom).
[87] ALEXY, Robert. Op. cit, p. 167/169.
[88] Considerando princípios e regras constitucionais, ou princípios e regras infraconstitucionais.
[89] “Cumpre, pois, inicialmente, indicar, em que sentido estamos a tomar o termo princípio, tal como vimos fazendo desde 1971, quando pela primeira vez enunciamos a acepção que lhe estávamos a atribuir. À época dissemos: “Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque defina a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico.” Eis porque: “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, por que representa a insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.” (op. cit. p. 53/54).
[90] “A nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas.” (op. cit. p. 304).
[91] Princípios mais específicos ou regras que definem comportamentos, competências e estruturam órgãos e entes públicos.
[92] O Poder Judiciário é dentre os poderes aquele que produz as regras mais concretas do ordenamento, consubstanciada no dispositivo da sentença. Mas estas hão de guardar harmonia com o sistema normativo que existe, oriundo desde o Poder Constituinte Originário até os mais concretos dos atos administrativos.
[93] As normas mais concretas que são produzidas no bojo do sistema são os dispositivos da sentença, que possuem a tutela da coisa julgada material, garantia constitucionalmente por outra regra, que por sua vez estabelece meios de assegurar o princípio da segurança jurídica, uma das faces do princípio da segurança, que por sua vez é um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
[94] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 12ª Edição. Ed. Saraiva. 2011, p. 90..
[95] Ibidem, p. 103/104.
[96] ÁVILA, Humberto. Op. Cit, p. 108.
[97] Idem, p. 106.
[98] Idem, p. 114.
[99] Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:
[...]
IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos;
[...]
VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.
[...]
§ 2º - Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
§ 3º - Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.
[...]
[100] Tal dispositivo figura-se como verdadeira cláusula pétrea, conforme o art. 60, §4º, III, da Constituição Federal, o que justifica ainda mais a sua observância.
[101] Por isso se entende nesse trabalho que o decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 565 deve guiar os demais julgamentos de casos análogos (condenação de parlamentares e perda do cargo público). A polêmica Ação Penal 470, popularmente conhecida como mensalão, deve ser desconsiderada como precedente, em face de certos casuísmos que a norteou. Eis aqui um ponto no Direito Nacional que divide as mais balizadas opiniões.
[102] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Sergio Antonio Fabris Editor. 1991, p. 25.
[103] BULFINCH, Thomas. O Livro da Mitologia: histórias de deuses e heróis – Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 234
[104] BARROSO, Luís Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora – 7.ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 351/352.
[105] Por isso se disse linhas acima que os art. 4º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e o art. 126 do Código de Processo Civil merecem uma releitura, pois somente denotam uma das possíveis aplicações concretas de um princípio jurídico.
[106] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5 – ed. alemã. Theorie der Grundrechte. Suhrkamp Verlag. 2006. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 175.
[107] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios, da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 12. ed. Malheiros. 2011, p. 115.
[108] ÁVILA, Humberto. Op. Cit, p. 118/120.
[109] Ibidem, p. 120.
[110] Quando se tratou de conflitos entre regras e princípios.
[111] Art. 2o-B. A sentença que tenha por objeto a liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive de suas autarquias e fundações, somente poderá ser executada após seu trânsito em julgado.
[112] Art. 1° Não será cabível medida liminar contra atos do Poder Público, no procedimento cautelar ou em quaisquer outras ações de natureza cautelar ou preventiva, toda vez que providência semelhante não puder ser concedida em ações de mandado de segurança, em virtude de vedação legal.
§ 1° Não será cabível, no juízo de primeiro grau, medida cautelar inominada ou a sua liminar, quando impugnado ato de autoridade sujeita, na via de mandado de segurança, à competência originária de tribunal.
§ 2° O disposto no parágrafo anterior não se aplica aos processos de ação popular e de ação civil pública.
§ 3° Não será cabível medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação.
§ 4° Nos casos em que cabível medida liminar, sem prejuízo da comunicação ao dirigente do órgão ou entidade, o respectivo representante judicial dela será imediatamente intimado.
§ 5o Não será cabível medida liminar que defira compensação de créditos tributários ou previdenciários.
[113] Art. 7 [...]
§ 2o Não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza.
[...]
[114] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[115] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
[...]
IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
[...]
Advogado da União. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo; Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; Especialista em Direito Constitucional pela Damásio Educacional; Especializando-se em Direito Processual pela PUC-Minas (EAD).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Rafael Tawaraya Gualberto de. Normas jurídicas: princípios, regras e postulados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 dez 2017, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51130/normas-juridicas-principios-regras-e-postulados. Acesso em: 22 nov 2024.
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