RESUMO: O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise das mudanças sofridas na estrutura do contrato, na sua interpretação e na sua aplicação. Será analisada desde a visão clássica do contrato até a concepção atual no contexto da Constituição Federal de 1988. A pesquisa tem bases essencialmente em fontes bibliográficas e jurisprudenciais. Analisando possíveis avanços e retrocessos havidos neste percurso.
Palavras-Chave: Contrato. Nova Perspectiva. Constitucionalização. Transformações.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Definição de contrato; 2.1. Contrato enquanto fato jurídico; 2.2. Contrato enquanto fato social; 3. Avanços teóricas sobre o direito privado; 4. Direito contratual brasileiro; 5. Considerações finais; 6. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O direito privado é marcado primordialmente por regulamentar a autonomia privada de agentes livres para se autodeterminar. A norma escabele sobre quais termos poderá os sujeitos poderão agir, concedendo-lhes liberdades e, ao mesmo tempo, restrições, as quais deverão obedecidas para terem o respaldo do sistema jurídico.
Partindo-se de um estudo histórico do direito privado, a Roma antiga foi a grande nascente dos principais institutos da seara privada da ciência jurídica, dentre os quais a figura do contrato. A figura jurídica deste pactum nasce de uma necessidade social em atribuir exigibilidade às relações sociais.
Brotada da liberdade individual, a vontade humana é decorrência direta da atribuição de autonomia ao indivíduo. Entretanto, manifestações de vontade em si não certeza de cumprimento daquele dever assumido. Daí surge o papel do Direito enquanto pacificados das relações sociais, facilitando e viabilizando que os agentes estabeleçam uma convergência de vontade, um contrato, a fim de concretizar um interesse comum.
Não obstante a função social primordial da figura contratual, desde meados do século XX, o contrato vem assumindo um novo papel nas relações sócio-jurídicas, em razão da nova realidade constitucional em que diversos países seguidores das tradições romanas vêm se inserindo. No caso brasileiro, tal mudança vem tomando forma desde a promulgação da Carta Política de 1988, que modificou drasticamente o panorama jurídico nacional.
2. DEFINIÇÃO DE CONTRATO
A definição do termo contractus nunca foi uma unanimidade no universo jurídico, havendo significativas variações a depender do ambiente espaço e temporal. Por exemplo, a definição do instituto contratual oscilou no tempo desde a Roma antiga até os tempos atuais, sofrendo o processo evolutivo da civilização.[1] O trato dado ao contrato também diverge no espaço conforme os ordenamentos jurídicos nacionais, havendo também diferenças entre os sistemas de civil law e de common law.
Não obstante as dissonâncias espaço-temporais, é necessário assumir alguma definição para prosseguir com os estudos. Assim, define-se contrato como todo acordo de vontades que é exigível por obedecer as regras jurídicas estabelecidas no âmbito do direito objetivo, ou seja, as leis.
2.1. CONTRATO ENQUANTO FATO JURÍDICO
Prosseguindo com o estudo da definição do contrato, cumpre inseri-lo dentro da teoria dos fatos jurídicos. Conforme os ensinamentos de Pontes de Miranda, define-se fato jurídico como:
O fato ou complexo de fatos sobre o qual incidiu a regra jurídica; portanto, o fato de que dimana, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não dimane, eficácia jurídica.[2]
Grosso modo, o fato jurídico nada mais é do que todo que fato que possui previsão em alguma norma jurídica. Cabendo ao intérprete identificar se o fato existencial foi ou não “colorido” pela hipótese normativa in abstractu. Destarte, destacam-se as duas fases de efeitos do reconhecimento de um fato jurídico: (a) reconhecimento do encaixe do fato à hipótese prevista na norma; e (b) aplicação do consequente previsto na mesma norma.
Avançando no estudo dos fatos jurídicos, estes podem ser naturais – os quais independem do agente humano, por exemplo, fenômenos naturais – ou humanos. Estes últimos já tem o fator humano como elemento essencial, haverá uma distinção de tratamento a partir de como o fator vontade agirá na relação jurídica.
O passo seguinte no iter dos fatos jurídicos é a bifurcação atos-fatos jurídicos e atos jurídicos lato sensu. Aqueles têm o sujeito humano como elemento incidental quanto à consequência final, mas essencial quanto à ocorrência do fato. Explicando, há um sujeito cria uma situação fática a partir de sua vontade, mas os efeitos desta decorrentes não emanam de sua vontade, mas de fatores que lhe eram alheios. Por exemplo, acidentes de carro.
Já os atos jurídicos lato sensu nascem necessariamente da vontade humana, podendo seus efeitos decorrem das repercussões legais ou convencionais de tais manifestações volitivas. Os primeiros são chamados de atos jurídicos strictu sensu, já os últimos, de negócios jurídicos. O contrato se insere neste como uma espécie a qual contém o suplemento da exigibilidade.
Enquanto fato jurídico, a doutrina clássica foi bem recepcionada pela nova Constituição Cidadã, visto que as derrogações mais marcantes sobre esta teoria não incidem sobre a estrutura do contrato, mas sobre sua função dentro do ambiente democrático, conforme a seguir desenvolvido.
2.2. CONTRATO ENQUANTO FATO SOCIAL
Desde os tempos romanos até o século XX, as relações sociais no campo patrimonial conservavam-se frias e estáticas, limitadas aos cânones de igualdade formal e da cega fé à autonomia privada[3]. Esta realidade social convergiu a uma perspectiva de contrato centrada no formalismo e no absoluto respeito às manifestações individuais.
Uma decorrência bastante evidente disto é a máxima pacta sunt servanda, enfatizando que os acordos firmados pelas partes e expressos no contrato devem ser cumpridos. A finalidade precípua desta lógica é atribuir aos acertos o máximo de segurança jurídica possível, garantindo que aquelas obrigações firmadas vinculariam as partes independentemente de fatores extrínsecos aos contratantes.
Em contrapartida, a cláusulas rebus sic stantibus apareceria posteriormente como uma mitigação daquele primeiro brocardo, por força da teoria de imprevisão. Quando as circunstâncias que envolveram a formação do contrato não forem as mesmas no momento da execução obrigacional, de modo a prejudicar uma parte em benefício da outra, ensejar-se-á à revisão contratual.[4]
A grande mudança quanto à natureza social do contrato só viria a emergir, todavia, com a onda neoconstitucionalista de meados do século passado, quando a Constituição passou ao posto de mestra do ordenamento. Desenvolveu-se a tese da força normativa da Constituição, que teve como seu expoente Konrad Hesse[5]. Realizar a Wille der Verfassung, ou vontade da Constituição, passou a ser o dever precípuo do legislador e do jurista. Uma consequência foi a afetação do direito privado por normas de natureza cogente.
Inserindo-se no contexto brasileiro, a Constituição de 1988 provocou direta e indiretamente profunda interferência em esferas antes restritas à autonomia privada. A afetação direta se dá por suas normas terem aplicação imediata (art. 5º, § 1º, CF/88); indiretamente, ocorre por força de normas legais que têm sua raiz constitucional, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil.
O contrato inserido no ambiente pós-1988 adquire um papel instrumental, não sendo mais um mero mecanismo jurídico facilitador de relações econômicas. Evidentemente, não se pode abandonar a função econômica primordial do contrato, mas agora ele assume também o seu papel como promotor dos princípios constitucionais.
3. AVANÇOS TEÓRICAS SOBRE O DIREITO PRIVADO
Nas últimas décadas, a teoria do Direito vem sofrendo profundas transformações que precisam ser muito bem compreendidas para que se possa perceber com exatidão como se procederam as mudanças sobre a definição de contrato e sobre como dá sua interpretação e aplicação.
Os primeiros avanços foram quanto às fontes do Direito. Tomando-se como base o positivismo clássico, exegético, a lei era tida como fonte máxima e soberana do Direito. O juiz deveria ser meramente a boca da lei, não podendo promover interpretações que distorcessem o suposto sentido claro da lei. Defendia-se a autossuficiência da lei como fonte jurídica, e o jurista a ela deveria se restringir. [6]
Porém, principalmente no pós-Segunda Guerra, essa visão clássica foi ultrapassada, passando a surgir elementos novos ao mundo jurídico como a eficácia normativa dos princípios, a eficácia normativa da jurisprudência e a técnica legislativa das cláusulas gerais etc.
Anteriormente, os princípios eram vistos como elementos secundários no ordenamento jurídico, meros tapadores de lacunas. Um exemplo disso é a nossa Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro de 1942, que em seu artigo 4º determina que, quando a lei for omissa, o juiz decidirá conforme a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Entretanto, hoje não é mais necessário que a lei seja omissa para que um princípio seja aplicado, por força da própria Constituição, que atribui aplicabilidade imediata aos direitos e garantias contidos no artigo 5°. Note-se que este artigo constitucional é tão amplo que dificilmente haverá sequer um caso concreto que não sofra interferência de uma alguma de suas normas.
A expressão princípio pode ser encontrada em sentidos diversos na doutrina brasileira. Mais comumente define-se princípio como uma norma basilar para o ordenamento, que serve de diretriz para outras normas mais restritas e concretas. Outra leitura comum para o conceito é a de obra de Robert Alexy, que classifica os princípios como mandamentos de otimização por serem referenciais hermenêuticos para se atingir um certo bem jurídico. Frise-se que não há a chamada colisão em prima-facie, ou em abstrato, entre princípios. O autor alemão afirma que somente pode ser classificada como princípio aquela norma que é passível de ponderação, caso contrário tal norma será uma regra. Por exemplo, para Alexy, o que é chamado como princípio da legalidade não seria princípio, mas regra, pois a obediência à legalidade não se trata de ponderação, mas de subsunção do que a lei prescreve como a conduta a ser seguida.
Para o doutrinador alemão, embora prima facie um princípio não colida com nenhum outro, diante das peculiaridades do caso concreto, haverá conflitos que deverão ser resolvidos pelo julgador de acordo com as circunstâncias fáticas. Princípios conflitantes podem conviver no mesmo ordenamento, o que difere do que ocorre com regras conflitantes, que não convivem nem mesmo no plano abstrato, pois tais normas seriam necessariamente incompatíveis entre si. Havendo descompasso entre regras, uma delas será revogada pelos critérios de hierarquia, cronologia e especialidade.
Outra abordagem interessante a ser feita quanto à distinção feita entre regras e princípios é a desenvolvida por Humberto Ávila em sua Teoria dos Princípios, in litteris:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual a descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação de correlação entre estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. [7]
Na obra Teoria dos Princípios, Ávila defende que a partir de um mesmo texto normativo é possível se extrair tanto uma regra, quanto um princípio a depender do grau de abstração da interpretação daquele determinado dispositivo normativo. A regra, para o autor, seria a norma que prevê condutas (ou meios) que visam à realização de fins definidos pela norma, enquanto que os princípios preveem fins cuja realização depende de condutas necessárias.[8]
Em suma, o princípio agora possui um papel central no ordenamento jurídico. Destaque-se, porém, que a regra continua tendo sua importância, pois sempre que houver uma regra prevendo certa hipótese fática, esta regra deverá ser o ponto de partida para o interprete, não obstante sua aplicabilidade poderá ser mitigada conforme as exigências de um princípio contraposto.
O segundo elemento central de mudança nas fontes do Direito é o fortalecimento da jurisprudência. O Poder Judiciário, que na visão de Montesquieu deveria ter seus poderes limitados pelo restrito texto da lei e que, conforme os ditames da Escola da Exegese, não era autorizado interpretar a lei – in casu, interpretar o Código napoleônico –, ganha cada vez mais força no modelo jurídico do civil law. O juiz vem deixando de ser a boca da lei para se tornar cada vez mais um sujeito ativo no processo de aplicação e de interpretação do Direito, um criador do Direito.
Esse processo de valorização do julgador é natural consequência das transformações sofridas pela Ciência Jurídica. Por exemplo, ao se reconhecer que o texto normativo nada mais é do que um aglomera de signos linguísticos e que o real conceito de norma jurídica não pode surgir sem que sejam reconhecidas as características especiais do caso concreto, aparece o julgador como elo entre o texto e a realidade.
Recentemente, no cenário brasileiro, vem surgindo diversas discussões a cerca dos limites do Supremo Tribunal Federal. Estaria o STF extrapolando sua competência constitucional ou simplesmente estaria cumprindo o seu papel de guardião da Constituição? Esta pergunta dá ensejo a muitas discussões doutrinárias, porém não é oportuno trazê-las no presente artigo. Convém, porém, ressaltar que o Judiciário vem chegando até limites antes nunca desbravados por ele no contexto brasileiro, atingindo um grau de autonomia e de repercussão social sem precedentes.
Outro ponto de avanço recente na seara jurídica é a criação da técnica legislativa chamada de cláusulas gerais. Esses dispositivos legais são basicamente textos normativos muito abertos, em que nele podem ser encaixadas infinitas situações fáticas. Nessas cláusulas, a hipótese prevista e o seu consequente jurídicos são poucos claros, dando margem a interpretações discrepantes conforme o caso concreto.[9] Tal técnica foi usada primeiramente em países de maior tradição romano-germânica como Alemanha, Itália e Portugal, recentemente, chegando ao Brasil.
O texto constitucional, como parece inevitável pelo seu natural grau de abstração e de generalidade, contém sem-número dispositivos classificáveis como cláusulas gerais, mas este não é o foco da discussão. O alvo central aqui são as normas legais, que são pretensamente normas prontas para serem aplicadas de forma objetiva e sem muita margem à interpretação. Ou seja, a inovação aqui são as cláusulas gerais em leis, e não na Constituição. Por exemplo, restringindo-se a área de interesse do presente trabalho, o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor estão ricos de cláusulas desse tipo, as quais viriam a repercutir frontalmente na realidade contratual brasileira. Observe-se o seguinte enunciado normativo retirado do CC/02: “art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”
Com base neste enunciado normativo, pode-se perceber a amplitude interpretativa possível e uma diversidade gigantes de normas que dela podem ser extraídas conforme o caso concreto. A exigência boa-fé objetiva e a determinação do que ela é de fato dá uma grande contribuição para a composição deste texto normativo como uma cláusula geral, tendo em vista que é muito complicado se definir in abstrato o que seria a boa-fé. Apenas com o caso concreto em mãos, analisando-se a compatibilidade e a razoabilidade das condutas é possível constatar o que pode ser definido como boa-fé.
Além das inovações relativas à teoria das fontes jurídicas, devem ser destacadas também as inovações no campo da hermenêutica jurídica. Um desses avanços foi a distinção entre texto e norma. O texto normativo é apenas um conjunto de símbolos linguísticos que adquiriram conteúdo conforme o método de interpretação e o intérprete, o qual jamais será absolutamente neutro. A norma é o fruto da interpretação, podendo variar substancialmente a depender o ângulo de compreensão extraído do dispositivo.
Um pensador que muito contribuiu para esse entendimento foi Friedrich Müller, que, em sua obra Teoria Estruturante do Direito, traça a delimitação entre texto e norma muito claramente. Destaca o doutrinador germânico a função central do intérprete no processo de produção da norma, pois é dele a função primordial de reconhecer as peculiaridades do caso concreto a fim de se chegar à decisão mais justa e conforme o Direito. [10]
Outro avanço teórico foi o definitivo reconhecimento de que aquele que interpreta e aplica o Direito necessariamente também está, em certa medida, criando o Direito. Isso se deve ao fato de que a norma só é criada confrontando o texto produzido pelo legislador ao caso concreto. Não deve haver, como apregoavam os clássicos positivistas, a mera subsunção do fato à norma, pois isso geraria sérias distorções no momento de aplicação e nem sempre a lei previa a situação encarada. Também se deve destacar o papel central que a proporcionalidade e a razoabilidade assumiram como instrumentos centrais para o ideal exercício jurídico, assumido o jurista o seu papel criativo.
A doutrina brasileira usualmente trata a proporcionalidade e a razoabilidade como sinônimas. Embora haja certas diferenças acerca da natureza de ambos, não há prejuízos práticos no uso indistinto deles.[11]
Aqueles que possuem uma relação mais conservadora veem com certo temor e cautela estes novos elementos hermenêuticos. Para eles, essas figuras interpretativas poderiam tornar o Direito demasiadamente relativístico e inseguro. Em parte, há razão, porém é preciso reconhecer que a independência jurisdicional é fundamental para se chegar a um Direito mais condizente com os anseios sociais, visto que a lei não se basta.
Outro ponto fundamental a ser destacada é a interferência dos direitos fundamentais nas relações privadas. Três posições existem discordantes neste sentido: a posição que defende a não eficácia; a da eficácia indireta; e a da eficácia direta.
A adoção de uma dessas teorias pelo ordenamento jurídico varia conforme os contextos histórico-culturais de cada país. Por exemplo, a teoria da inaplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas teve maior predomínio nos Estados Unidos, onde os ideais liberais clássicos ainda são preponderantes. Esta teoria defende que os direitos fundamentais simplesmente não têm interferência nas relações privadas, pois seu único destinatário é o Estado. Portanto, para aqueles que defendem a não incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, a autonomia privada estaria livre da obrigação jurídica de efetivar os preceitos constitucionais.[12]
A segunda teoria tem seu reduto mais marcante na Alemanha. Após a Segunda Guerra Mundial, com a promulgação da Lei Fundamental de Bonn, predominou a ideia de que os direitos fundamentais somente poderiam ter incidência no âmbito das relações privadas se por via indireta. A doutrina germânica, em sua maioria, chegou ao entendimento de que os direitos fundamentais contidos no texto constituinte precisariam de dispositivos infraconstitucionais de maior concretude para que possam ter aplicação às relações entre particulares.
No contexto da atual Constituição brasileira, por outro lado, o entendimento da maioria é no sentido de que os direitos fundamentais têm, sim, incidência direta nas relações privadas. Até se chegar à redemocratização, a Constituição colocava-se num plano jurídico pouco significante e proteção à dignidade humana era secundária. Somente após a nova constituinte, os direitos e as garantias fundamentais passaram a assumir uma posição central no ordenamento.
De fato, normas infraconstitucionais menos abstratas possibilitam uma efetivação mais clara e segura dos princípios constitucionais, porém é inegável também que os direitos fundamentais – nos termos da Carta Política de 1988 – têm como seus destinatários não só o Estado, mas também a sociedade. Deve-se reconhecer, portanto, que mesmo nas relações privadas os direitos fundamentais devem ser efetivados ao máximo e servir sempre de diretrizes para os negócios jurídicos, devendo, por isso, haver a chamada aplicação direta e horizontal dos direitos fundamentais.
4. DIREITO CONTRATUAL BRASILEIRO
A Constituição Cidadã nos trouxe um rol gigantesco de princípios, que passariam a servir de pivô para todas as relações jurídicas a partir de então constituídas, incluindo-se os contratos.[13] Logo em seu artigo 1º, onde estão os fundamentos da República Federativa do Brasil, já podem ser vistos dois incisos fundamentais para a análise das relações privadas: a dignidade da pessoa humana (inc. III); e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inc. IV). Não faria sentido considerar que tais incisos só teriam como destinatário o Estado, pois para a efetiva realização de um Estado Democrático não só o Poder Público, mas também toda a sociedade deve ser permeada por tais princípios.
Além da aplicação imediata, há também a eficácia horizontal entre os particulares. O termo horizontal é utilizado aqui, pois o Estado não está presente na relação jurídica, estando os particulares em um plano, em tese, horizontal entre si, a despeito das disparidades existenciais entre eles. A função da eficácia horizontal dos direitos fundamentais emerge precisamente da busca pelo tratamento materialmente igualitário entre os particulares. Numa relação contratual sujeita à horizontalização dos princípios constitucionais, ambas as partes contratantes terão de arcar com deveres anexos advindos diretamente de mandamentos constitucionais, ou indiretamente a partir de disposições legais próprias.
Quanto à chamada aplicação direta dos direitos fundamentais no ordenamento brasileiro, ainda a diversas divergências doutrinárias sobre qual seria a exegese ideal do artigo 5º, §1º, da CF. O constituinte originário definiu, in litteris, que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. A maioria dos estudiosos[14] defende que tal expressão quer dizer que os direitos fundamentais têm repercussão direta nas relações privadas o que significa que, se, por exemplo, um negócio jurídico ferir desrazoavelmente qualquer direito fundamental deverá ser tido como inválido por violar norma constitucional. Embora parte da doutrina[15] defenda que não se aplica diretamente as determinações constitucionais, mas apenas indiretamente, a ala majoritária dá amparo a tese de incidência direta.
Por exemplo, um ponto muito importante e controverso na análise do contrato é a sua função social. Esta é baseada no principio constitucional da função social do trabalho (art. 1º, inc. IV, CF/88).[16] A controvérsia nasce das tensões existentes entre a função social e a livre-iniciativa no mundo concreto, que são constantes. Os clássicos criticam veementemente essa função social por considerá-la um conceito extremamente abstrato e, por isso, inseguro e prejudicial à prática negocial.
Há razão em se afirmar que a função social é um conceito abstrato e de certa forma inseguro, até por isso é considerada um conceito jurídico indeterminado, variando a sua significação de acordo com o caso concreto e com a percepção de equidade de cada julgador. Porém, é inegável a sua contribuição para que o contrato deixe de ser meramente um instrumento hermético, e passe a dar sua contribuição para uma sociedade mais justa e solidária, promovendo a igualdade material e o equilíbrio da relação jurídica.
A função social de qualquer coisa pode ser definida como reconhecer funções inerentes àquele determinado ser que extrapolem as suas típicas funções em favor de ideais de desenvolvimento social. Nesse sentido, a função social do contrato seria reconhecer que o contrato vai muito além de um mero acordo de vontades que visem a um interesse comum, mas que também há nele interesses alheios ao que foi estabelecido inter partes, como o equilíbrio contratual, a igualdade material e a sua interferência no meio social externo.
A força normativa da Constituição, para a doutrina majoritária e para o STF[17], tem aplicabilidade e eficácia diretas nas relações privadas. Porém, para reforçar as= força dos direitos fundamentais e para atender ao constituinte originário, o legislador pós-1988 teve a preocupação de editar leis que reforçassem as prescrições constitucionais. No presente artigo, o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor de 1990 serão os objetos em análise logo em seguida. O primeiro foi uma necessidade decorrente do descompasso do CC/16 com os novos tempos e com a CF/88, e o segundo foi uma exigência do constituinte, no art. 5º, inc. XXXII. Quanto ao estudo contratual, os dois dispositivos contratuais são complementares: este regulamenta bem relações assimétricas, tutelando até mesmo o momento pré-contratual[18], protegendo o vulnerável e promovendo a chamada igualdade material nas naturalmente desiguais relações de consumo; enquanto aquele regula as relações contratuais de forma geral, com base na sociabilidade, na eticidade e na operabilidade, reforçando a função social do contrato e preservando da boa-fé.[19]
O CC não é omisso na regulamentação da fase pré-contratual, porém há pobreza, pois este dispositivo tem por pressuposto o equilíbrio entre as partes. Por outro lado, o CDC tem maior preocupações com esta fase preliminar já que tem contrario sensu por seu pressuposto a desigualdade entre as partes contratuais. Enriquecendo a discussão, afirma Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:
Não é difícil compreender a opção empreendida pelo CDC. Na formação das relações contratuais de consumo, é necessário corrigir previamente as profundas desigualdades materiais entre as partes, a fim de se alcançar uma real autonomia da vontade àquele que é submetido por pressões e métodos publicitários à efetivação do contrato. Esta vontade racional e ponderada só será alcançada se o conteúdo dos contratos não mais se reduzir às imposições do subjetivas do fornecedor, atendendo objetivamente aos ditames da boa-fé objetiva e aos deveres anexos dela decorrentes. (...) Tenta-se assim conceber uma real autonomia contratual ao consumidor – pela via de uma declaração de vontade refletida e prudente –, mediante o reforço do princípio da boa-fé objetiva na etapa formativa do contrato, seja pela imposição de deveres anexos de proteção, cooperação e informação ao fornecedor, como pela vedação do exercício abusivo de posições jurídicas.[20]
Portanto, o CDC tem por escopo corrigir um desequilíbrio decorrente da assimetria técnica, jurídica e econômica entre as partes contratuais – no caso, consumidor e fornecedor.
No Capítulo V do CDC regulamentam-se as práticas comerciais, sendo sujeitos dessa norma todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas (art. 29). Na Seção I do capítulo, a oferta é normatizada, sendo definida como toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado (art. 30). Também se deve assegurar informações corretas, claras e precisas sobre os elementos essenciais do produto ou serviço, como características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, etc[21]. Caso o fornecedor se recuse a cumprir a oferta, faculta-se ao consumidor exigir o cumprimento forçado da obrigação, aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente, ou rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos, conforme o art. 35 e incisos.
Também é regulamentada a publicidade na Seção III do capítulo supracitado. Ela deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal (art. 36), proibindo-se toda publicidade enganosa[22] e abusiva[23] (art. 37). Daí, conclui-se o papel fundamental do CDC na constituição contratual no atual ordenamento jurídico brasileiro.
Retomando o estudo do diploma civilista, um dos pontos centrais da análise do contrato é a boa-fé objetiva, a qual apregoa que as partes, além de agir conforme a lei, devem agir a fim de que o negócio seja adimplido da forma mais satisfatória possível às partes contratantes, respeitando os costumes próprios daquela prática negocial naquele determinado espaço-tempo. A sua fundamentação pode ser extraída dos artigos 116[24] e 422[25] do Código Civil 2002. Mas, a partir de uma leitura constitucional, pode-se também extrair a boa-fé do princípio da solidariedade contido no dispositivo do art. 3º, I, CF/88.[26]
Os efeitos disso podem ser observados em diversos julgados de tribunais superiores que relativizam a convenção contratual em favor de valores que, naquele determinado caso, se sobrepõe ao contrato inicialmente pactuado. A título de exemplo, tem-se a doutrina da substantial performance, ou teoria do adimplemento substancial, que determina que, mesmo quando a obrigação contratual não tiver sido integralmente adimplida, poder-se-á esta obrigação ser tida como adimplida para certos efeitos jurídicos com base na boa-fé e na função social do contrato. Nesse sentido, endossa a Min. Nancy Andrighi:
A boa-fé objetiva induz deveres assessórios de conduta, impondo às partes comportamentos obrigatórios implicitamente contidos em todos os contratos, a serem observados para que se concretizem as justas expectativas oriundas da própria celebração e execução da avença, mantendo-se o equilíbrio da relação.
Essas regras de conduta não se orientam exclusivamente ao cumprimento da obrigação, permeando toda a relação contratual, de modo a viabilizar a satisfação dos interesses globais envolvidos no negócio, sempre tendo em vista a plena realização da sua finalidade social.
Dessarte, o princípio da boa-fé objetiva exercer três funções: (i) instrumento hermenêutico; (ii) fonte de direitos e deveres jurídicos; e (iii) limite ao exercício de direitos subjetivos. A esta última função aplica-se a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios, como meio de rever a amplitude e o alcance dos deveres contratuais, daí derivando os seguintes institutos: tu quoque, venire contra facutm proprium, surrectio e supressio.
Para o deslinde da presente controvérsia interessa apenas a supressio, que indica a possibilidade de se considerar suprimida determinada obrigação contratual na hipótese em que o não exercício do direito correspondente, pelo credor, gerar ao devedor a legítima expectativa de que esse não-exercício se prorrogará no tempo.[27]
Também nesta linha, votou o Min. Luis Felipe Salomão:
É de se notar, portanto, que a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença quando viável e for de interesse dos contraentes.[28]
Portanto, na substantial performance, caso haja cumprimento de parte considerável da obrigação assumida pelo devedor, o credor fica impedido de rescindir o contrato, porém, não perde o direito de obter o restante do crédito, podendo ajuizar ação de cobrança para tal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conceito clássico de contrato vem sendo mitigado pelo desenvolvimento de novas teorias jurídicas: os princípios deixaram de ter importância meramente subsidiária, ganhando posto fundamental no ordenamento; a jurisprudência vem ganhando cada vez mais força como fonte do direito nos ordenamentos estruturados pelo civil law; os dispositivos legais com estrutura de cláusula geral têm cada dia maior presença nos ordenamentos jurídicos; a distinção entre texto e norma foi consolidada; a proporcionalidade e a razoabilidade ganharam reconhecimento com elementos centrais na interpretação e na aplicação do Direito; e foi reconhecida, ao menos no âmbito brasileiro, a eficácia direta e horizontal dos direitos fundamentais.
Dentro de tal contexto evolutivo, a Constituição de 1988 serviu para consolidar definitivamente essa nova visão jurídica no Brasil. O mar de princípios da nova Carta Política e a sua pretensão de promover amplas transformações sociais modificaram consideravelmente os pilares do direito contratual clássico, buscando associar a função social e livre iniciativa. Além da interferência direta dos direitos fundamentais, foram editados o Código Civil de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor, com olhares voltados em obedecer aos mandamentos do constituinte. Operou-se uma ampla reforma no direito civil brasileiro.
O efeito disso tudo foi uma reviravolta no modelo clássico de contrato e, consequentemente, no modo com que as pessoas se relacionam. Mudança essa voltada à efetivação de valores constitucionais como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais.
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TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor. 3. ed. São Paulo: Método, 2014.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tomo III. Recife: Renovar, 2009.
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. 4 - Contratos. 3. ed . Salvador: JusPodivm, 2013, pp. 52-53.
[2] Apud MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico – plano da existência. 12. ed. São Paulo, Saraiva, 2003, p. 93.
[3] A doutrina, em geral, diferencia autonomia privada e autonomia da vontade. Enquanto a segunda se aproxima à noção clássica de vontade como soberana, a primeira vai além, tratando da composição contratual como um misto de vontade das parte e fatores de ordem pública necessariamente conexos ao negócio. Neste sentido: TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor. 3. ed. São Paulo: Método, 2014, p. 246.
[4] No Código Civil brasileiro, a teoria da imprevisão está consagrada no artigo 317: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.” Também enseja à revisão contratual, por força de onerosidade excessiva, a hipótese prevista no artigo 478: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.” Em contrapartida, o CDC adotou, em seu artigo 6º, inc. V, a teoria da base objetiva do negócio jurídico: “ São direitos básicos do consumidor: V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”
[5] HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, pp. 10-12.
[6] Vide KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[7] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 85.
[8] Op. cit., pp. 78-80.
[9] Vide MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção” - As cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/383/r139-01.pdf?sequence=4>. Acesso em: 05 de novembro de 2017.
[10] MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 2. ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2009, p. 150.
[11] Por isso mesmo, a razoabilidade não tem utilidade apenas no controle da relação entre meios e fins, mas também em muitas outras circunstâncias, tais como na determinação do critério de discriminação a ser usado na concretização do princípio da isonomia em seu aspecto material, no emprego da equidade quando da interpretação e da aplicação de regras jurídicas etc.
Já o princípio da proporcionalidade realiza especificamente o controle da relação entre meios e fins, e o faz por meio da ponderação dos valores constitucionalmente positivados inerentes ao problema. Caso o meio seja adequado e necessário, tem-se ainda de ponderar se o valor por ele prestigiado não está sendo demasiadamente sobreposto a outros, igualmente nobres. Nesse último exame, pelo qual teóricos do direito procuram objetivar tanto quanto possível as valorações feitas pelo intérprete da norma, deve ser dada preponderância ao valor que, em prevalecendo, cause menores estragos aos demais que com ele se chocam. MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Ponderação de princípios – há como afastá-la? Disponível em: <www.fdsm.edu.br/site/posgraduacao/volume26/07.pdf>. Acesso em: 07 de novembro de 2017.
[12] PIMENTA, José Roberto Freire; BARROS, Juliana Augusta Medeiros de. A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses. Disponível em: . Acesso em: 07 de agosto de 2013.
[13] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. 4 - Contratos. 3. ed . Salvador: JusPodivm, 2013, p. 139.
[14] TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Tomo III. Recife: Renovar, 2009. Em igual sentido: PIMENTA, José Roberto Freire; BARROS, Juliana Augusta Medeiros de. A eficácia imediata dos direitos fundamentais individuais nas relações privadas e a ponderação de interesses. Disponível em: . Acesso em: 07 de agosto de 2013.
[15] SILVA, Virgílio Afonso da. Conceitos-chave na vinculação dos particulares a direitos fundamentais. in A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, pp. 50-65.
[16] Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[17] Como demonstração desse entendimento, vide RE 201819 / RJ - 11/10/2005 - Relator(a): Min. ELLEN GRACIE - Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES: SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOSDIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO.
[18] Arts. 30-38, CDC/90.
[19] Arts. 427-435, CC/02.
[20] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Vol. 4 - Contratos. 3. ed . Salvador: JusPodivm, 2013, pp. 99-100.
[21] É necessário ter atenção para fazer a distinção entre oferta e proposta nas relações civis. Pelo CC, a oferta seria uma proposta ao público, carecendo de elementos essenciais ao contrato. A proposta, por outro lado, possui todos os elementos essenciais do contrato, sendo seus termos vinculantes ao proponente.
[22] § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. (...) § 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.
[23] § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
[24] Art. 116. A manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado.
[25] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
[26] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
[27] RECURSO ESPECIAL Nº 1.202.514 – RS (2010/0123990-7) / Rel. Min. Nancy Andrighi.
[28] RECURSO ESPECIAL Nº 1.051.270 - RS (2008/0089345-5) / Rel. Min. Luis Felipe Salomão.
Mestrando em Direito na Universidade Federal do Ceará. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Thúlio Mesquita Teles de. Constitucionalização do direito privado e a nova perspectiva de contrato Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jan 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51195/constitucionalizacao-do-direito-privado-e-a-nova-perspectiva-de-contrato. Acesso em: 22 nov 2024.
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