RESUMO: Apesar de usucapião e hipoteca serem bem delineados há bastante tempo pela doutrina, nova situação se apresenta à análise. A pretensão de usucapir determinada propriedade que já seja objeto de hipoteca implica confronto entre os dois institutos supracitados. Para solucioná-lo, é imperativo o detido exame de suas peculiaridades, a que este artigo se presta. O conflito em questão tem ganhado espaço na jurisprudência, com abordagens que consolidam a relevância do tema.
Palavras chaves: sequela – usucapião – hipoteca – aquisição originária.
A delimitação de posse e propriedade, em alguns momentos, parece insuficiente para solucionar determinadas contendas que exsurgem na realidade jurídica. A complexa combinação de elementos objetivos e subjetivos de tais conceitos traz à tona a necessidade de bem pontuar os caracteres dos direitos reais.
Quando não só a doutrina, mas a própria realidade confunde até onde vai a relação de posse e, por outro lado, onde se inicia a condição de proprietário, manifesta-se imprescindível ter esclarecidos certos conceitos e bem colocada a posição prevalente.
É em tal contexto que se dá a polêmica entre a hipoteca e a usucapião. Somente com a clareza de ambos os conceitos e com a visão geral acerca do fundamento desses dois institutos é que se pode ponderar, em determinadas situações, se subsiste um ou outro.
A teoria do Direito precisa servir à estabilidade das relações sociais. E, para isso, não é preciso ir muito longe; revisitar detidamente seus próprios conceitos pode certificar conclusões relevantes.
A hipoteca é um instituto conhecido desde o Direito Romano e transformado pelo longo tempo que já percorreu em sua existência. Trata-se de uma espécie de direito real de garantia. Isso significa dizer que seu fim último é o de assegurar o pagamento de determinada obrigação. Por outro lado, particulariza-se por ser um direito vinculado a um bem específico. Em linhas gerais, o credor hipotecário tem por direito a possibilidade de excussão desta coisa para obter o valor da avença que seja eventualmente inadimplida pelo hipotecante.
"O termo hipoteca vem do grego hypotheke e indica a ideia de pôr debaixo, submeter uma coisa a outra; começou a ser empregado no Direito Romano no segundo século do Império, quando se havia abandonado o princípio do antigo direito, em que os bens não garantem as obrigações pessoais."[1]
A garantia hipotecária se fundamenta na relação de propriedade. Em outras palavras, é o fato de o devedor ser proprietário que lhe permite conceder tal segurança ao credor. É caracterizada como um direito acessório, porque dependente do direito principal - o crédito - e do próprio direito de propriedade para existir. Não fosse o devedor dono da coisa, não poderia ele, por si só, dá-la em garantia.[2]
Como destaca Orlando Gomes, a natureza real da hipoteca se manifesta em duas vertentes distintas, com efeitos próprios. Para o devedor, assume a figura de ônus real, gravando a coisa hipotecada, acompanhando-a daí por diante. Já para o credor, as características que se sobressaem são a sequela e a preferência.[3] A uma, porque a garantia segue a coisa onde quer que ela esteja. A duas, porque, basicamente, o valor do bem excutido judicialmente servirá prioritariamente para adimplir o crédito daquele que desfruta da garantia hipotecária, conforme será analisado mais adiante.
Uma importante vantagem da hipoteca é a manutenção da posse com o devedor do bem dado em garantia. Além disso, mantém ele também o poder de disposição sobre a coisa, com a possibilidade de aliená-la, por exemplo, o que só é possível graças à sequela que grava o bem. Pode, sim, ser vendido, mas sem deixar de ser um bem hipotecado. Ocorre aqui que o direito é que se transmite e, assim, permanece com seus atributos - incluindo também seus gravames.
Neste diminuto artigo, só haverá espaço para refletir aspectos essenciais da hipoteca. A doutrina é riquíssima em detalhes e situações merecedores de atenção do leitor que, infelizmente, não cabem aqui.
Antes de passar à análise dos requisitos legais da hipoteca, é preciso observar que esse instituto está sujeito ao condão de dois princípios fundamentais. Trata-se da especialização e da publicidade.
A especialização diz respeito à determinação do bem dado em garantia e do valor da dívida assegurada. Não há como existir a hipoteca geral - estando onerados todos os bens do devedor - ou sem que se saiba o valor da dívida, como em uma hipoteca ilimitada.
A publicidade está intrinsecamente ligada à sua caracterização como direito real. Deve ser a hipoteca registrada, a fim de definir a ordem entre os credores hipotecários, assim como para dar a conhecer o ônus a eventuais adquirentes do bem.
"Daí dizer a doutrina, com razão, que há 'un stretto collegamento tra la pubblicità e l'opponibilità. [...] O registro vem de uma assentada tradição medieval germânica, que exigia formas solenes para a transmissão de direitos sobre imóveis, depois evoluídas para a imprescindibldiade da inscrição nos livros públicos."[4]
Uma outra característica da hipoteca, que podemos chamar aqui princípio, é a indivisibilidade. Significa dizer que o pagamento parcial não dirime proporcionalmente a garantia, que permanece incidindo sobre o bem em sua inteireza. É preciso compreender que esse atributo não advém da indivisibilidade do bem; pode mesmo ser ele divisível e, ainda assim, esse caráter será mantido, vez que diz respeito à garantia e não ao bem garantidor.
Para configurar a hipoteca, é necessário esclarecer, antes mesmo dos requisitos que a lei lhe impõe, qual deve ser o seu objeto. Essa garantia incide em bens imóveis, salvo a exceção das hipotecas especiais - aeronaves e navios. Estas últimas são possíveis apenas porque esses bens são plenamente identificáveis e a conveniência econômica assim aconselha[5]. Também é possível hipotecar o domínio direito, o domínio útil, os acessórios incorporados ao solo, as estradas férreas e determinados recursos naturais (jazidas, minas, demais recursos minerais). Só podem ser hipotecados os bens passíveis de alienação.
Como a hipoteca significa, em último caso, levar o bem à venda, só pode ser constituída por quem tenha capacidade de alienação do bem. Pelo mesmo motivo, a pessoa casada não prescinde da outorga uxória ou marital para levar a cabo tal garantia, a menos que o seja sob o regime de separação absoluta. Incapazes podem hipotecar através de seus respectivos representantes. A propriedade é direito essencial à configuração da hipoteca. Quem firma esse gravame sem ter a propriedade pode convalidar a garantia se a adquire supervenientemente.
A hipoteca pode ser constituída convencional, legal ou judicialmente. No primeiro caso, através de contrato. Não é possível constituí-la por ato unilateral de vontade, exigindo-se sempre a anuência do credor. Não apenas o devedor pode dar seu imóvel em garantia, como também um terceiro sem qualquer vínculo com a obrigação pode fazê-lo sobre imóvel próprio, em favor daquele. O contrato é título constitutivo, mas carece da escritura pública para efetivar a hipoteca - salvo quando o bem é de pequeno valor, quando pode se revestir da forma particular -, exigindo-se sempre o registro. Em síntese, o contrato de hipoteca é unilateral, solene e consensual.
Na hipoteca legal, é a sentença da especialização que constitui documento hábil a levar a registro o gravame. Já no caso da hipoteca judicial, é a carta de sentença ou o mandado judicial que configuram o título. Em ambos os casos, o registro também é imprescindível.[6]
Quanto a seus efeitos, a garantia hipotecária se traduz em situações jurídicas distintas para os diferentes sujeitos envolvidos. Quanto ao devedor, este dá bem seu em garantia, mas conserva sua posse. Como efeito disso, pode ainda dispor do bem e utilizar-se dos interditos para manter-se com ele. O credor, por sua vez, diante da hipoteca, tem como principal efeito o direito de excutir o bem em caso de descumprimento da obrigação pelo devedor. É estritamente vedado pelo direito brasileiro o pacto comissório - que significa a simples adjudicação do bem dado em garantia em caso de inadimplemento da avença. Afinal, esse instituto pode levar ao enriquecimento ilícito, vez que o valor do bem pode ultrapassar o do crédito, e viola o devido processo legal, tomando do devedor a coisa sem que haja o devido trâmite[7]. Em relação a terceiros, é direito oponível erga omnes.
A extinção da hipoteca se dá conforme as previsões do Código Civil.
Pela extinção da obrigação principal. A hipoteca é um direito real acessório. Existe para assegurar a obrigação e não tem vida para além dela, pois não teria razão de ser. O direito do credor hipotecário consiste numa garantia, que, portanto, só existe enquanto há o que garantir.
Pelo perecimento da coisa. Trata-se aqui de uma impossibilidade fática. Tendo o bem, por um evento natural, por exemplo, perecido, não há mais objeto para a garantia, que se revela insustentável.
Pela resolução da propriedade. Esta possibilidade de extinção é prevista para os casos em que o devedor hipotecário possui apenas a propriedade resolúvel do bem dado em garantia. Até se implemente a condição ou o termo a que se sujeita sua posição jurídica, subsistirá a hipoteca. Advindo uma ou outro, ela será extinta, também, por falta de objeto. Ainda que o bem exista, sem propriedade, não se pode falar em hipoteca.
Pela renúncia do credor. A garantia hipotecária é constituída em favor do credor. É por esse evidente motivo que se justifica a possibilidade de renúncia, a qual inevitavelmente levará a hipoteca à extinção.
Pela remição. Em poucas linhas, a remição é instituto através do qual se faculta ao adquirente de bem hipotecado fazer o resgate dessa garantia, saldando a dívida em lugar do devedor originário e se sub-rogando na posição de credor.
Pela arrematação ou adjudicação. Uma e outra possibilidade se configuram no curso da execução da dívida, quando a arrematação ou a adjudicação se apresentam para a satisfação do credor. São formas de extinguir a dívida e, assim o fazendo, não resta espaço para a hipoteca, sem substrato no qual possa incidir. A hipoteca também pode ser extinta findo o prazo para o qual foi prevista - que é, no máximo, de até 30 anos.
"A extinção da hipoteca é o ato pelo qual a garantia real regularmente constituída sobre um imóvel ficará suprimida e não produzirá mais efeitos jurídicos. Com a extinção da garantia, mesmo não sendo paga a totalidade da dívida, o credor perde o direito à execução hipotecária sobre o imóvel, passando à condição de mero credor quirografário, de garantia fidejussória, ou seja, cuja garantia é uma cártula ou contrato de natureza obrigacional, e não de direito real."[8]
Para debater sobre a hipoteca, não é possível esquecer dois caracteres seus: a acessoriedade e a sequela. São alicerces do instituto que, no decorrer deste texto, serão invocados recorrentemente.
Quanto à sequela, é importante sedimentar seu conceito e extensão. Esse traço fundamental dos direitos reais significa que o bem objeto de qualquer desses institutos pode ser perseguido por seu titular onde quer que esteja. Essa possível persecução, chamada sequela, é o aspecto dinâmico que se manifesta da inerência, outra característica dos direitos reais, tida como a adesão intrínseca deles ao bem que lhes serve de objeto.[9]
A acessoriedade, por sua vez, é decorrente de sua própria finalidade. Como garantia que é, a hipoteca só subsiste enquanto persistir a obrigação garantida. Por outro lado, trabalhamos aqui uma outra perspectiva de acessoriedade da hipoteca. Essa garantia só pode ser dada porque o bem oferecido pertence ao devedor. Não pode ele dar em garantia o que não é seu. A hipoteca, portanto, é corolário da propriedade.
Em razão da sequela, por outro lado, o direito real uma vez constituído se mantém como gravame da coisa, ainda que a propriedade do hipotecante seja transmitida. Essa compreensão é difundida e aceita pacificamente, em razão dos próprios caracteres dos direitos reais.
A usucapião é um instituto criado para adaptar os conceitos jurídicos a uma nova realidade. Explica a aquisição de propriedade por aquele que é mero possuidor a partir do decurso do tempo e do preenchimento dos requisitos legais. A posse e a ação do tempo são os seus elementos essenciais, determinantes da aquisição. Não há qualquer vínculo com o proprietário anterior.
Na tentativa de justificar filosoficamente o instituto, os juristas terminaram por desenvolver duas teorias. A primeira, subjetiva, fundamenta-se na ideia de que haveria, diante da posse e do passar do tempo, uma renúncia do proprietário anterior. A bem da verdade, essa teoria está escorada em uma presunção de vontade muito frágil. A renúncia pode servir à aquisição da propriedade, mas, nos casos aqui analisados, ela não existe. Como assinala Orlando Gomes, é fugir à natureza humana aceitar tal ideia. A segunda teoria, objetiva, considera que a usucapião existe como forma de dar estabilidade às relações. Diante da posse e do tempo decorrido, de mais vale legitimá-la do que manter situações conflituosas.
A lei impõe alguns requisitos básicos, de ordem pessoal, formal e objetiva. Quanto aos primeiros, requer o ordenamento que haja a capacidade específica do usucapiente de adquirir aquele bem - veda-se por isso, por exemplo, a aquisição por usucapião de imóvel de ascendente para descendente. Objetivamente, é necessário determinar quais bens podem ser sujeitos à usucapião. Podem sê-lo todos aqueles que podem ser objeto de posse[10], exceto aqueles fora do comércio, com expressa vedação constitucional à usucapião dos bens públicos - embora esta seja hoje uma nova fonte de discussão.
Formalmente, os requisitos essenciais da usucapião, sem os quais nenhuma de suas modalidades se concretiza, são a posse e o decurso do tempo. É possível obtê-la com maior facilidade se houver também requisitos suplementares, o justo título e a boa-fé.[11] "Usucapio deriva de capere (tomar)e de usus (uso). Tomar pelo uso."[12]
A usucapião configura uma hipótese, no mínimo, curiosa. Trata-se de recorrente situação na realidade em que poucos detêm muito e muitos, pouco ou nada. Um possuidor que se aloja e um proprietário que se mantém inerte são peças suficientes para uma eventual aquisição por usucapião. Há uma tênue relação entre a posse e a propriedade, transformando aquela nesta através dos efeitos saneadores do tempo, que são capazes inclusive de superar eventual ilegitimidade daquela relação possessória.[13] Há mesmo quem defenda até a possibilidade de se entender cessado o vício da posse precária para admitir contagem de prazo para usucapião, em prol do direito de moradia assegurado constitucionalmente.[14] Filiamo-nos a esta corrente, que cresce em teoria e em jurisprudência.
Quanto à posse, na doutrina tradicional, exige-se que tenha animus domini, seja mansa e pacífica, além de que tenha continuidade. É possível, para a contagem do prazo, juntar o tempo já decorrido com possuidor anterior, desde que a posse deste não seja viciada. Se houver esses atributos, objetivamente considerados, a intenção subjetiva não importará para a aquisição por usucapião; a boa-fé ou má-fé só terá seus efeitos sentidos quanto ao prazo determinado pela lei.
Fala-se em usucapião extraordinária para determinar aquela em que a posse se deu por 15 anos, para imóvel, ou 10, caso o possuidor tenha estabelecido no imóvel moradia habitual, ou realizado obras e serviços de caráter produtivo nele. Não se exige justo título, nem boa-fé. É o caso também daquele que possui apenas um dos requisitos suplementares, além dos essenciais - apenas o justo título ou apenas a boa-fé, sem aquele. A usucapião ordinária, por sua vez, exige a reunião da posse, do justo título, da boa-fé e do prazo de 10 anos. Pode ser esse período reduzido a 5 anos, em caso de posterior cancelamento de matrícula regularmente realizada a partir de aquisição onerosa, desde que o possuidor tenha estabelecido moradia ou realizado investimentos de interesse social e econômico no bem.
Justo título e boa-fé, esclareça-se, são elementos distintos. O justo título é o ato ou fato jurídico que potencialmente teria capacidade de transmitir a propriedade, mas, em razão de algum vício, tem esse característica tolhida. Como ato ou fato jurídico responsável por fundamentar uma relação, não se exige seja escrito, registrado ou formalmente válido. É imaginável a situação na qual determinado possuidor detenha o justo título, mas de má-fé, sabendo, por exemplo, ter adqurido a non domino.[15]
A aquisição por usucapião é originária não porque, como afirmam alguns[16], se dá antes de que tenha havido qualquer outro proprietário daquele bem, hipótese cada vez menos palpável hoje. Fosse assim, também a aquisição por avulsão ou aluvião não seriam formas originárias e seria cada vez mais rara esse meio de obtenção da propriedade. Fala-se na usucapião como forma originária de aquisição porque ela se desvincula de tal maneira do proprietário anterior que independe de sua existência ou inexistência.
Há outras modalidades de usucapião - especial, do Estatuto da Cidade, e especialíssima, do novo art. 1.240-A do CC - que não cabem na discussão aqui desenvolvida, mas que precisam ser analisadas para que sua aplicação seja a mais coerente possível.
Entender isoladamente a hipoteca e a usucapião é uma tarefa sem grandes problemas, muito bem esclarecida pela doutrina. No entanto, desponta uma situação nova, cuja compreensão tem sido desenvolvida, sobretudo, pela jurisprudência. O que deve prevalecer quando há um bem hipotecado que preenche os requisitos para aquisição por terceira pessoa?
Para os partidários da garantia hipotecária, a solução parece clara. A realidade do direito do credor hipotecário, materializada na sequela como seu efeito, imputa ao adquirente, seja por qualquer forma, o ônus de arcar com a hipoteca. É preciso, porém, fazer uma análise mais detida, pois conclusões irrefletidas podem ser prejudiciais à sociedade e à compreensão jurídica.
Para responder à situação posta, é imprescindível partir de uma confrontação entre os principais caracteres de cada um dos institutos.
A hipoteca não pode ser compreendida senão como um direito acessório. Diferente do que muitas vezes se apregoa, não é acessório apenas em relação ao crédito, mas é acessório diante também do direito de propriedade. Como já se referiu, só é possível dar algo em garantia se há, por fundamento, a relação de propriedade. No entanto, a hipoteca, uma vez constituída, não se restringe à propriedade enquanto ela estiver nas mãos do devedor hipotecante. Pela sequela, estudada anteriormente, acompanhará o bem, porque compreende a transmissão da propriedade. Em um olhar apressado, parece que essa característica da hipoteca, direito real que é, será suficiente para sobrepor-se também à aquisição por usucapião.
Contudo, a usucapião é caracterizada por ser uma forma de aquisição originária da propriedade. Há total desvinculação do proprietário anterior. Não se trata, aqui, de transmissão de propriedade. Deixa de existir aquela que ali havia para dar legitimidade a esta que a usucapião permite. Inexiste também, então, a hipoteca, e prevalece a usucapião.
Haveria, então, a mitigação da sequela? Não se trata de enfraquecer essa característica da garantia hipotecária. Mas é a compreensão de que diante da inexistência do direito principal - a propriedade - perde razão de ser o direito acessório - a hipoteca - e com ela, todos os seus efeitos.[17] Na usucapião, a propriedade não se adquire do antigo proprietário, mas, de fato, é contra ele que se dá. "Inclui-se entre os modos originários. É que, a despeito de acarretar a extinção do direito de propriedade do antigo titular, não se estabelece qualquer vínculo entre ele e o possuidor que o adquire."[18] Não há uma transferência de direitos. A situação se assemelha àquela em que o bem perece - e, com ele, a hipoteca.
O raciocínio falacioso dos defensores da prevalência da garantia hipotecária tropeça no fato de que não há como subsistir a propriedade frente à usucapião, que é forma originária de aquisição. Sem que o direito principal persevere, também o acessório, a hipoteca, sucumbe.
Diante dos apontamentos feitos, a discussão encontra um norte. A prevalência há de ser dada à usucapião, como forma de aquisição originária, frente à hipoteca sem alicerces, que não tem onde se fundar, se inexiste propriedade. Não havendo transmissão do direito de propriedade gravado, mas sua extinção, deixa de existir também a hipoteca.
A ideia aqui apresentada se consolida paulatinamente na jurisprudência brasileira.[19] O próprio STJ, no Informativo de Jurisprudência no. 527, publicado em 9 de outubro de 2013[20], já assegura a preponderância da usucapião frente à garantia hipotecária judicialmente constituída. Já houve decisão unânime, inclusive, da 3ª Turma do mesmo STJ no sentido de que a outorga de hipoteca não é, por si só, medida que interrompa o lapso prescricional para a aquisição pelos efetivos possuidores.[21]
A conjugação entre os próprios conceitos jurídicos e a realidade conduz ao entendimento apresentado. No entanto, como conformá-lo com as hipóteses previstas de extinção da hipoteca no Código Civil?
Ontologicamente, poder-se-ia dizer que a situação explanada se assemelha àquela prevista para a propriedade resolúvel. Neste caso, não por condição ou termo deixou de haver a perpetuidade desse direito, mas por um outro instituto, juridicamente legitimado: a usucapião.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. – 6. ed. – Salvador : Jus Podivm, pp. 274-275.
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[1] MARQUES, Beatriz Pereira de Samuel, Marques, Luiz Henrique de Oliveira. O rumos da hipoteca diante do advento da súmula 308 do superior tribunal de justiça. Revista de Direito Imobiliário. São Paulo, 63, p. 11 - 37, jul./dez.2007. p. 20.
[2] Pode-se opor a tal afirmação, à primeira vista, a situação do representante que firma a hipoteca de bem do representado, embora saibamos que não é proprietário desse bem. Em verdade, só poderá dar em hipoteca bem do representado ou curatelado em razão de obrigação assumida no nome deste, sendo que, tanto para convencionar a avença, quando para dar bem em garantia, se faz necessária a autorização judicial. A propriedade é tão essencial na configuração da hipoteca que não podem dar em garantia de dívidas próprias os bens daqueles que representam.
[3] GOMES, Orlando. Direitos reais – 19. ed. – atual. Luiz Edson Fachin. – Rio de Janeiro : Forense, 2008. p. 411.
[4] ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. A relação jurídica real no direito contemporâneo : por uma teoria geral do direito das coisas - Recife : O Autor, 2010. p. 67.
[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. – 22. ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2014. pp. 319-320.
[6] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. – 22. ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2014. pp. 323-328.
[7] AQUINO, Leonardo Gomes de. Garantias reais: disposições gerais do penhor, da hipoteca e da anticrese. Revista de Direito Privado. São Paulo, 39, p. 222- 248, jul./set.2009. p. 232.
[8] FIGUEIREDO, Ivanildo. Direito imobiliário. – São Paulo : Atlas, 2010. p. 23.
[9] ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. A relação jurídica real no direito contemporâneo : por uma teoria geral do direito das coisas - Recife : O Autor, 2010. p. 63.
[10] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil : direitos reais. – 9. ed. – São Paulo : Atlas, 2009. p. 201.
[11] GOMES, Orlando. Direitos reais – 19. ed. – atual. Luiz Edson Fachin. – Rio de Janeiro : Forense, 2008. p. 188-191.
[12] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil : direitos reais. – 9. ed. – São Paulo : Atlas, 2009. p. 199.
[13] GOMES, Orlando. Direitos reais – 19. ed. – atual. Luiz Edson Fachin. – Rio de Janeiro : Forense, 2008. p. 188.
[14] MAIDAME, Márcio Manoel. A possibilidade de mudança do caráter da posse precária e sua utilidade para fins de usucapião . Revista de Direito Privado. São Paulo, 11, p. 188- 213, jul./set.2002.
[15] DOMINGUES, Rogério Ribeiro. Estudo acerca do justo título na usucapião ordinária, com exame da evolução dos institutos da posse, da propriedade e da usucapião . Revista Forense. [S.l.], 408, p. 317- 350, mar./abr.2010. p. 348.
[16] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. – 22. ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2014. p. 118.
[17] FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. – 6. ed. – Salvador : Jus Podivm, pp. 274-275.
[18] GOMES, Orlando. Direitos reais – 19. ed. – atual. Luiz Edson Fachin. – Rio de Janeiro : Forense, 2008. p. 187.
[19] Jurisprudência mineira. Belo Horizonte, a. 64, n° 205, p. 47-237, abr./jun. 2013. pp. 204-208.
[20] Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso 21 dez 2014.
[21] BRASIL, Superior Tribunal de Justiça – REsp 1.253.767/PR, Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Data de Julgamento: 18/02/2016, DJe 26/02/2016, T3 – TERCEIRA TURMA.
advogada, graduada pela UFPE. Segundo lugar no Prêmio IBDP Marília Muricy.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Valquíria Maria Novaes. Usucapião e a insubsistência da hipoteca: um confronto na relação entre posse e propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51237/usucapiao-e-a-insubsistencia-da-hipoteca-um-confronto-na-relacao-entre-posse-e-propriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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