RESUMO: O presente artigo, partindo do enredo da obra “O mercador de Veneza”, de William Shakespeare, e com base no livro “Identidade e violência – A ilusão do destino”, de Amartya Sen, busca analisar as inúmeras possibilidades de categorização dos indivíduos, que podem apresentar diversas identidades simultaneamente. Focando na figura de Shylock, o personagem judeu da obra shakespeariana, investiga-se a pluralidade das identidades manifestas nos indivíduos, o que revela os prejuízos causados pela classificação das pessoas em campos ou civilizações estanques e incomunicáveis entre si.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Violência; Amartya Sen; Shakespeare.
SUMÁRIO: 1. Introdução: Um diálogo entre Shakespeare e Amartya Sen; 2. Shylock, apenas um judeu entre cristãos?; 3. A ilusão da identidade singular; 4. “Então, um judeu não possui olhos?”; 5. Considerações conclusivas: um olhar para a atualidade; 6. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE SHAKESPEARE E AMARTYA SEN
“Nem fiquemos ressentidos quando outros divergirem de nós. Pois todo homem tem um coração e cada coração tem suas próprias propensões. O direito de cada um é nosso erro, e nosso direito é o erro de cada um.”
(Excerto da Constituição dos Dezessete Artigos, a primeira constituição japonesa, promulgada em 604 d.C[1])
O trecho extraído da primeira constituição japonesa, promulgada no século VII pelo príncipe-regente Shotoku, bem como as menções a Shakespeare e a Amartya Sen, serve como ponto de partida para o presente artigo, que buscará demonstrar, em linhas gerais, que os indivíduos comportam diversas propensões – ou “identidades”, consoante adiante esmiuçado – e que se mostra perniciosa a compartimentação das pessoas com base em características isoladamente consideradas.
Fazendo-se uso de elementos narrativos colhidos do clássico shakespeariano “O Mercador de Veneza”, tornada pública na forma de peça teatral no início do século XVII, serão ilustradas as diferentes possibilidades de manifestação das inúmeras identidades que as pessoas podem apresentar, conforme as ideias expostas no livro “Identidade e violência: a ilusão do destino”, de Amartya Sen.
Considerando que as obras referidas distam séculos entre si e foram produzidas, naturalmente, em contextos históricos deveras distintos, esclareça-se, desde já, que não se buscará examinar ou julgar a Inglaterra elisabetana com as lupas modernas da obra de Sen, como se as dinâmicas sociais ali experimentadas pudessem ser moldadas pela lógica hodierna.
Busca-se tão-somente, como adiantado, utilizar o enredo do bardo inglês, focando-se na personagem Shylock, para exemplificar os meios pelos quais se apresenta a “grande variedade de categorias às quais pertencemos simultaneamente”[2], ainda que se atribua à pena shakespeariana o mero desenho da caricatura de um judeu usurário e devotado, acima de tudo, ao dinheiro.
No entanto, a avareza não é a única característica detectável em Shylock, personagem que, apesar de aparecer em apenas cinco das vinte cenas, protagoniza à sua maneira a história e apresenta um complexo de sentimentos e peculiaridades que aprofundam a sua existência ficcional, dotando-o, inclusive, de outras identidades além do preconceituoso estereótipo judaico.
De acordo com a ideia de que “identidades são fortemente plurais e de que a importância de uma identidade não tem de eliminar a importância das outras”, mostrar-se-á que, assim como se narra na ficção, a realidade pode revelar os prejuízos causados pela classificação das pessoas em campos ou civilizações estanques e incomunicáveis entre si.
2. SHYLOCK, APENAS UM JUDEU ENTRE CRISTÃOS?
O judeu Shylock não é a personagem mais recorrente da história nem todos os acontecimentos narrados giram em torno dele, mas, devido ao peso de sua presença e ao escopo do presente trabalho, focar-se-á em suas aparições e nos fatos que lhe dizem respeito.
A narrativa baseia-se na dívida contraída por Antônio, o mercador de Veneza do título, junto a Shylock, que lhe empresta três mil ducados que seriam destinados a Bassânio, seu grande amigo que precisava da quantia para o seu próprio empreendimento: o casamento com Pórcia, a qual estava às voltas com a escolha do seu pretendente.
Movido pelo ódio e pelo sentimento de vingança, Shylock aceita emprestar o montante mediante uma garantia mortal assim estipulada a Antônio: “(...) será estipulado que, se não pagardes em tal dia, em tal lugar, a soma ou as somas combinadas, a penalidade consistirá numa libra exata de vossa bela carne, que poderá ser escolhida e cortada de não importa que parte de vosso corpo que for de meu agrado”[3].
Decorrido o prazo estabelecido para o pagamento do empréstimo, não tendo este sido honrado por Antônio, Shylock recorre à Justiça – não para ver satisfeita a obrigação de que era credor, mas para, de maneira implacável, exigir a penalidade cruenta firmada.
Ao longo da história, conforme esmiuçado adiante, muitas facetas de Shylock e das personagens que com ele contracenam são reveladas, demonstrando que “ignorar tudo, exceto a fé, é apagar a realidade de interesses que têm motivado as pessoas a afirmar identidades que vão muito além da religião”[4]. Noutros termos, os indivíduos podem ostentar, a depender do contexto em que se encontram, as suas mais diversas filiações, restando insuficiente a categorização da sociedade com base apenas na fé.
3. A ILUSÃO DA IDENTIDADE SINGULAR
Amartya Sen, em “Identidade e Violência – A ilusão do destino”, discorre acerca das “desastrosas consequências de definir pessoas segundo sua etnicidade religiosa e dar prioridade predeterminada à perspectiva fundamentada na comunidade em detrimento de todas as demais identidades”.
Assim como a identidade judaica de Shylock se mostrava primordialmente relevante aos concidadãos venezianos e a identidade cristã destes repugnava ao judeu, a ilusão das categorizações superficiais permeia toda a História. Para Sen, os conflitos baseados em identidades – ignoradas ou superestimadas – ocorrem quando se desconsidera “a pertinência de todas as outras filiações e associações” que uma pessoa pode ter, bem como quando se redefinem “as exigências da identidade ‘exclusiva’ em uma forma particularmente beligerante”[5].
Trata-se o mundo muitas vezes – como se tratou em grande parte na obra literária em questão – como uma “federação de religiões ou civilizações”, em que se relevam todas as formas pelas quais as pessoas se veem[6].
Em suma, para Sen[7]:
Uma das questões básicas refere - se a como os seres humanos são vistos. Devem eles ser categorizados em termos de tradições herdadas, especialmente a religião herdada, da comunidade na qual acaso nasceram, fazendo com que essa identidade não escolhida tenha prioridade automática sobre outras filiações que envolvem política, profissão, classe, sexo, língua, literatura, relações sociais e muitas outras ligações? Ou devem elas ser entendidas como pessoas com muitas filiações e associações cujas prioridades elas mesmas têm que escolher (assumindo a responsabilidade decorrente da escolha racional)?
Todos apresentamos as mais diversas filiações e características – compartilhadas ou não com indivíduos que apresentam outras tantas filiações e características. Por exemplo, um engenheiro cearense pode ser evangélico, torcedor do Fortaleza Esporte Clube, ter um filho com deficiência e ser doador de sangue. Por que, então, destacar apenas a sua religião, se ele pode congregar-se com outros torcedores do seu time de futebol, unir-se a outros pais de filhos com a mesma deficiência do seu e fomentar publicamente a doação de sangue?
4. “ENTÃO, UM JUDEU NÃO POSSUI OLHOS?”[8]
A centelha que originou o presente artigo partiu da menção feita por Amartya Sen, em sua obra ora analisada, da resposta dada por Shylock à provocação de Salarino, que perguntou a este para que lhe serviria a libra de carne de Antônio:
SHYLOCK: Para cevar os peixes. Se para mais nada servir, alimentará minha vingança. Ele me cobriu de opróbrio, impediu-me de ganhar meio milhão; riu-se de minhas perdas, ridicularizou meus lucros, menosprezou minha nação, dificultou meus negócios, esfriou meus amigos, esquentou meus inimigos; e, que razão tem para fazer tudo isso? Sou um judeu. Então, um judeu não possui olhos? Um judeu não possui mãos, órgãos, dimensões sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado pelos mesmos alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que um cristão? Se nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, não morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos? Se somos como vós quanto ao resto, somos semelhantes a vós também nisto. Quando um cristão é ultrajado por um judeu, onde coloca ele a humildade? Na vingança. Quando um judeu é ultrajado por um cristão, de acordo com o exemplo cristão, onde deve ele pôr a paciência? Ora essa, na vingança! A perfídia que me ensinais, eu a porei em prática. Ficarei na desgraça, se não superar o ensino que me destes.
Trata-se de trecho convertido em incontáveis monólogos e adaptações, no teatro e no cinema, que demonstra como as pessoas contêm inúmeras filiações alheias à religião, sendo indevida, conforme Amartya Sen, a “visão unicamente divisional da população mundial”, a qual “vai contra não só a antiga crença de que ‘as pessoas são mais ou menos iguais no mundo inteiro’, mas também contra o importante e esclarecido entendimento de que somos diferentes de muitas maneiras diversas”[9].
Shylock também põe em xeque a perspectiva cristã-ocidental de sua superioridade civilizacional. Se naquela comunidade se utilizam escravos que são tratados como animais, não poderiam considerar vil e inaceitável a sua exigência pelo cumprimento da penalidade prévia e livremente aceita por Antônio[10]:
SHYLOCK: Que sentença devo temer, não havendo feito mal algum? Tendes entre vós numerosos escravos que comprastes e que empregais, como se fossem burros, vossos cães e vossas mulas, em trabalhos abjetos e servis, por que vós os comprastes. Posso dizer-vos: dai-lhes liberdade, casai-os com vossas herdeiras? Por que estão suando debaixo de tanto peso? Por que as camas deles não são tão macias quanto as vossas? Por que não lhes servis os mesmos alimentos que os vossos? Vós me respondereis: “Os escravos nos pertencem”. Muito bem, do mesmo modo eu respondo: Esta libra de carne que reclamo, custou-me muito dinheiro, é minha e eu a conseguirei. Se ela me for negada, anátema contra vossa lei! Não há força nos decretos de Veneza! Quero justiça. Será que conseguirei? Respondei.
De fato, uma análise minimamente detida da História, de acordo com Sen, revela, por exemplo, que, enquanto Giordano Bruno era queimado por heresia em Roma, na virada do século 16, o imperador mongol Akbar – muçulmano – concluía, em Agra, a codificação dos direitos das minorias, que contemplava até mesmo a liberdade religiosa para todos[11].
Eis uma visão das pessoas e civilizações encerradas em compartimentos incomunicáveis e inexpugnáveis. Da mesma forma, Shylock, enquanto judeu, não poderia abandonar tal “papel” nem mesmo diante do simples convite para jantar feito por Bassânio. No entanto, nesse caso, mais que a mera repulsa de ordem religiosa que havia em relação aos cristãos, Shylock sustenta que pode conviver com “eles” nas mais diversas situações, mas não para jantar[12]:
Bassânio: Se quiserdes, podereis jantar conosco.
Shylock: Sim, para sentir o cheiro de porco! Para comer na casa em que vosso profeta, o Nazareno, fez entrar o diabo por meio de exorcismos! Quero comprar convosco, vender convosco, falar convosco, passear convosco e assim sucessivamente; mas não quero comer convosco, beber convosco, nem orar convosco. Quais são as notícias do Rialto? Quem está chegando?
Shylock, além de judeu, pertence ao grupo daqueles que não comem porco, ainda que por razões religiosas. Outros não judeus poderiam pertencer ao mesmo grupo, por razões diversas, assim como outras filiações de Shylock pode ser compartilhadas, como a atividade de emprestar dinheiro, também exercida por Antônio.
Nesse sentido, Sen assevera que “qualquer pessoa é membro de muitos grupos diferentes (sem que isso de modo algum seja uma contradição), e cada uma dessas coletividades , a todas as quais essa pessoa pertence , dá a ela uma identidade potencial que — dependendo do contexto — pode ser bastante importante”[13].
A propósito da atividade compartilhada de emprestar dinheiro, na sequência do mesmo diálogo acima, Shylock aprofunda as razões pelas quais não gosta dos cristãos, aduzindo que estes não cobram juros em suas transações, fazendo “baixar a taxa da usura em Veneza”[14].
No entanto, o ódio de Shylock a Antônio é apenas uma ilustração do embate entre identidades variadas, que não se limita à religião nem à cobrança ou não de juros, como sustenta Gustavo H. B. Franco, no livro “Shakespeare e a Economia”[15]:
Aí se chocam o novo e o velho, o empreendedor e o banqueiro, o capitalista e o usurário, o agnóstico e o religioso, o cristão e o judeu. É sempre e deliberadamente confundindo o sentido pessoal e o impessoal, emocional e o financeiro, do bond – termo em inglês que compreende um sentido de contrato ou fiança, mas também a ligação especial entre pais e filhos, amigos e amantes, e também vassalos e seus amos – que une Shylock e Antônio, a saber a equivalência entre os 3.000 ducados emprestados sem juros e a ‘libra de carne’ como multa pelo não pagamento. Está em jogo muito mais que uma discussão a respeito de conceitos novos e velhos sobre juros.
Como adiantado, o negócio havido entre Shylock e Antônio, com a exigência do judeu pela libra de carne, desembocou em uma disputa judicial, diante do doge de Veneza. O magistrado, mesmo demonstrando compaixão pela posição delicada de Antônio, esclarece que nada poderia fazer diante da intransigência de Shylock, o que já era esperado pelo mercador, que já havia admitido que o doge não poderia “impedir o curso da lei[16]”.
Antônio reconheceu, ainda, que as garantias encontradas em Veneza, mesmo em favor dos judeus, “não poderiam ser suspensas sem a que a justiça do Estado ficasse comprometida aos olhos dos mercadores de todas as nações cujo comércio faz a riqueza da cidade”.
A identidade associada a uma comunidade, compartilhada entre os venezianos, inclusive pelo doge, ainda que demonstrasse potencial para suplantar as demais filiações verificadas naquele contexto, não poderia violar a justiça que, por meio das consagradas garantias comerciais, mantinha o prestígio e a riqueza de Veneza.
De fato, o entendimento poderia ser outro, se a identidade veneziana e cristã compartilhada naquele contexto prevalecesse, o que estaria consoante a ideia de Sen de que “uma identificação com outros na mesma comunidade social pode melhorar significativamente a vida de todos nessa comunidade; um sentimento de pertencer a uma comunidade é, pois, visto como um recurso – como capital”[17].
No entanto, o valor cultivado naquela comunidade consistente no respeito às garantias e aos costumes mercantis resistiu ao compartilhamento da identidade comunitária havida entre o doge e Antônio, mesmo com o reforço da aversão que se verificava em relação a estrangeiros, notadamente judeus.
Eis a demonstração, por meio de obra literária, de que não se pode substituir “a riqueza de uma vida humana abundante pela estreita fórmula da insistência de que qualquer pessoa está ‘situada’ em apenas um pacote orgânico”, tendo em vista que, mesmo em uma comunidade marcada pela xenofobia, há espaço para a complexidade de grupos plurais e “lealdades múltiplas”[18].
Do contrário, cai-se no reducionismo da “suposição da filiação única”, quando, em verdade, “estamos todos individualmente envolvidos em identidades de vários tipos em condições díspares em nossas respectivas vidas, que surgem de nossos antecedentes, associações ou atividades sociais”[19].
Por essa razão, mesmo tendo afirmado que Antônio fora chamado “para responder a um inimigo de pedra, um miserável humano”[20], que não aceitara sequer a oferta de pagamento do triplo do valor emprestado, o doge manteve o curso normal da querela, que só não teve um desfecho trágico para o demandado graças à intervenção de Pórcia, que irrompe na cena como verdadeiro deus ex machina, um elemento inesperado capaz de reverter uma situação que já se mostrava insolúvel.
Quando o julgamento chegava inexoravelmente ao cumprimento da penalidade imposta a Antônio, Pórcia, disfarçada de “jovem e sábio doutor” e por recomendação de Belário, um jurisconsulto veterano, esclarece que Shylock poderia extrair a libra de carne do peito do devedor, mas somente a carne. Nenhuma gota de “sangue cristão” poderia ser derramada. Caso contrário, as terras e os bens do judeu seriam confiscados pelo Estado.
Surpreendido, Shylock passa a aceitar a proposta de pagamento do triplo do valor do empréstimo, mas nova intervenção de Pórcia frustra as suas intenções, advertindo-lhe que, pelas leis de Veneza, quando um estrangeiro, direta ou indiretamente, atenta contra a vida de um membro daquela comunidade, o ofendido tem o direito de apoderar-se de metade dos bens do agressor, ficando a vida deste à mercê do doge.
Por seu turno, o doge – e aqui reside mais uma diferenciação entre cristãos e judeus elucubrada pela narrativa shakespeariana – sentencia[21]:
DOGE: Para que bem vejas a diferença de nossos sentimentos, eu te perdoo a vida antes que peças. Quanto a teus bens, a metade pertence a Antônio e a outra metade vai para o Tesouro público. Teu arrependimento pode ainda fazer comutar a confiscação numa multa.
Shylock, revelando apego desmedido aos seus bens, replica que sem recursos já estaria privado de sua existência, pelo que também sua vida poderia ser retirada pelo Estado. No entanto, Antônio estabelece duas condições que são aceitas pelo judeu: converter-se em cristão e deixar, ao morrer, todos os seus bens para a filha e Lourenço, com quem esta fugira para casar-se.
A conversão de Shylock, embora desprovida de qualquer razão de fé, suscita a discussão sobre a possibilidade de se abandonar determinada identidade diante de circunstâncias específicas. Mesmo assim, conforme Amartya Sen, os indivíduos que intentam promover alterações em suas filiações identitárias podem sofrer restrições, as quais “podem ser particularmente rigorosas ao definir-se o grau em que podemos persuadir os outros, em especial, a nos verem de uma forma diferente (ou mais diferente) daquela em que insistem em nos ver”[22]. Seria o caso, por exemplo, de um judeu na Alemanha nazista, na qual, não importando as condutas supervenientes que pudessem apresentar, poderia ser vítima da Solução Final engendrada por Adolf Hitler.
Na narrativa de Shakespeare, por outro lado, não se pode assegurar que havia um interesse sincero de Antônio para que Shylock se tornasse cristão – muito menos que o judeu tivesse sido tocado naquele momento por um súbito sentimento de fé cristã –, sendo muito mais plausível que a condição imposta pelo mercador nada mais era que um agravamento da desforra obtida.
Outro ponto da obra em que se revela tal modalidade de restrição, embora alheio ao drama de Shylock, é a declaração do Príncipe do Marrocos, quando de sua candidatura ao casamento com Pórcia, em que, mesmo se orgulhando de sua tez escura, diz que a trocaria apenas para satisfazer a sua pretendida[23].
Contudo, nem sempre seria exigível a renúncia a certas identidades, sendo muitas vezes suficiente uma espécie de suspensão, pela qual se priorizaria uma em detrimento de outras em caso de conflito e a depender da decisão específica. Trata-se da possibilidade de relativização das diferentes filiações que o indivíduo apresenta[24].
5. CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS: UM OLHAR PARA A ATUALIDADE
A partir do cotejo entre a narrativa shakespeariana de fins do século XVI e a obra de Amartya Sen, pode-se lançar um olhar ao presente, quando se verifica um acirramento da desconfiança em relação aos muçulmanos, tendo em vista os atentados terroristas que têm ocorrido em todo o mundo, principalmente na Europa.
Assim como em “O Mercador de Veneza” a vilania de Shylock é recorrentemente atrelada à sua condição de judeu, temos observado associações generalizadas e irrefletidas do terrorismo à religião islâmica. A cada explosão em uma grande cidade europeia ou a cada tiroteio ocorrido nos Estados Unidos da América, espera-se a reivindicação de autoria por parte de alguma facção fundamentalista de índole islâmica.
É certo que a maioria dos atentados sofridos no Ocidente ostenta fundo religioso, especificamente islamita. Não está em discussão a motivação religiosa de tais grupos, ainda que por distorção do que se convencionou chamar de “islã verdadeiro”. O que se deve evitar é o foco na classificação religiosa dos indivíduos, que é importante, mas que, isoladamente, “não só deixa escapar outras preocupações e ideias significativas que movem as pessoas como também cria o efeito de geralmente ampliar a voz da autoridade religiosa”[25].
De fato, ainda que as organizações terroristas reclamem para si a perfeita interpretação do Corão, revelando o seu móvel religioso, estender a identidade violenta destas aos muçulmanos em geral contribui para a simplificação indevida do problema, afinal o mundo não é uma mera “federação de religiões e civilizações”[26].
Igualmente imprecisa é a generalização oposta, de que, na verdade, os membros da civilização islâmica compartilham indistintamente uma cultura de paz e boa vontade, o que faz incidir sobre todos eles um estereótipo que desconsidera as suas inúmeras classificações internas[27].
Não se busca, com estas conclusões, trazer o diagnóstico preciso acerca do terrorismo e dos conflitos modernos em geral, mas é necessário examinar essa complexa problemática levando em consideração “eventos e maquinações contemporâneas”, isto é, contextos específicos que alçaram certos grupos terroristas à condição de ameaçar a incolumidade dos cidadãos até das nações mais poderosas e tidas como seguras[28].
Em suma, não se pode sucumbir à compreensão lamuriosa de Antônio sobre o mundo: “um palco onde cada homem deve representar um papel e onde o meu é de ser triste”[29]. Embora sob o manto lírico da fala de uma personagem, a frase revela o pensamento reducionista aqui discutido, pelo qual cada pessoa tem uma determinada posição na sociedade, específica, bem definida e estanque. O triste não pode ser feliz, e os papeis desempenhados não podem ser trocados, assim como os conflitos “seriam “rixas antigas que presumivelmente colocam os atores de hoje em papéis predeterminados em uma peça presumivelmente ancestral”[30]. Eis a ilusão da identidade singular.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FRANCO, Gustavo H. B.; FARNAM, Henry W. Shakespeare e a economia. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2009.
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006.
SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015.
[1] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 1407 (e-book).
[2] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 669 (e-book).
[3] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 33.
[4] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posições 3828-3830 (e-book).
[5] Idem, posição 4139.
[6] Ibidem, posição 134.
[7] Ibidem, posições 3552-3561.
[8] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, página 63.
[9] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 1236 (e-book).
[10] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 88.
[11] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 601 (e-book).
[12] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 29.
[13] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 1244 (e-book).
[14] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 29.
[15] FRANCO, Gustavo H. B.; FARNAM, Henry W. Shakespeare e a economia. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 2009, p. 67.
[16] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 77.
[17] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 337 (e-book).
[18] Idem, posição 699.
[19] Ibidem, posição 761.
[20] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 85.
[21] Idem, p. 88.
[22] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 895. (e-book).
[23] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 35.
[24] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 864.
[25]SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 541.
[26] Ibidem, posição 545.
[27] Ibidem, posição 1175.
[28] Ibidem, posição 1184.
[29] SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 20.
[30] SEN, Amartya. Identidade e violência – A ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras, 2015, posição 1184 (e-book).
Mestrando em Ordem Jurídica Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BELARMINO, Afonso Roberto Mendes. As identidades em "O Mercador de Veneza": uma análise à luz de Amartya Sen Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 fev 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51341/as-identidades-em-quot-o-mercador-de-veneza-quot-uma-analise-a-luz-de-amartya-sen. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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