Resumo: O objetivo deste trabalho consiste em analisar o real papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade após determinado preceito normativo ser declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão definitiva. Analisar-se-ão a extensão dos efeitos produzidos e as consequências de se adotar a concepção tradicional da atribuição do Senado Federal prevista no art. 52, inciso X, da Constituição Federal, ou uma releitura do referido dispositivo. Demonstrar-se-á que houve uma evolução do entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema, sobretudo tendo em vista a ocorrência de diversas inovações nas ordens constitucional e processual, como o advento da súmula vinculante, da repercussão geral e de alguns dispositivos do novo Código de Processo Civil relacionados ao microssistema de precedentes obrigatórios. Ao final, será exposta uma análise crítica em relação ao atual entendimento do Pretório Excelso.
Palavras-chaves: Controle de constitucionalidade difuso. Função do Senado Federal. Art. 52, inciso X, da CF. Jurisprudência do STF. Evolução. Críticas.
Sumário. 1. Breve contextualização: modelo de controle de constitucionalidade adotado no sistema brasileiro. 2. Principais correntes acerca da interpretação do art. 52, inciso X, da Constituição Federal: análise extraída da Reclamação 4.335/AC. 2.1 Corrente favorável à mutação constitucional. 2.2. Corrente tradicional quanto à interpretação do art. 52, inciso X, da Constituição Federal. 3. Entendimento atual do STF exarado no julgamento das ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ. 4. Críticas ao novo entendimento do STF. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
1. Breve contextualização: modelo de controle de constitucionalidade adotado no sistema brasileiro
Atualmente, o Brasil adota o sistema híbrido de controle de constitucionalidade, o que significa dizer que os sistemas difuso e concentrado convivem de forma harmônica em nosso ordenamento. Com efeito, ao mesmo tempo em que a análise da compatibilidade de leis e atos normativos é feita incidentalmente por todos os magistrados brasileiros, inclusive pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como prejudicial para o ingresso no exame do pedido principal formulado em um determinado caso concreto, o STF também possui competência exclusiva para apreciar a constitucionalidade, em tese, de leis ou atos normativos em face da Constituição Federal.
No controle concentrado, de influência austríaca, a constitucionalidade de atos normativos é analisada por meio de ações abstratas, ajuizadas diretamente perante o Tribunal de cúpula (no caso brasileiro, o STF). Não há necessidade real de solução relacionada a um caso concreto, nem de participação do Senado Federal, pois a eficácia produzida pela decisão do STF já é erga omnes. Os efeitos gerados são, em regra, retroativos (ex tunc), além de vinculantes para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a Administração Pública.
Já o controle difuso, de origem norte-americana, embora também produza, em regra, efeitos ex tunc (retroativos), sempre fora caracterizado por gerar eficácia inter partes (somente entre as partes), não havendo efeitos vinculantes para a Administração Pública e para os demais órgãos do Poder Judiciário. Para que as decisões definitivas do STF sobre inconstitucionalidade proferidas em sede de controle difuso pudessem ter efeitos gerais, coadunando-se com o princípio da celeridade, o constituinte, já na Carta de 1934, previu a possibilidade de o Senado Federal atribuir efeitos erga omnes às referidas decisões.
Nesse sentido, estabeleceu-se que incumbiria ao Senado suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, dispositivo que foi reproduzido praticamente em todas as constituições posteriores, inclusive na atual Carta, conforme se extrai de seu art. 52, inciso X.
Por outro lado, importa notar que, durante a vigência da Constituição de 1934, o controle concentrado era bastante tímido, o que motivou o legislador constituinte a prever a atuação do Senado para outorgar eficácia geral ao controle de constitucionalidade difuso. Assim, sob a égide da Carta de 1934, não havia dúvida a respeito da importância da participação do Senado com vistas a estender os efeitos das decisões do STF para além das partes no processo, impedindo que novos demandantes ingressassem no Judiciário requerendo a declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo já analisados incidentalmente pelo Pretório Excelso.
Entretanto, é natural que o real papel da Casa Legislativa seja questionado após a ocorrência de diversas inovações na ordem constitucional.
Com efeito, o controle concentrado experimentou visível ampliação na Constituição de 1988, pois, se antes apenas o Procurador-Geral da República tinha legitimidade para propor a chamada representação interventiva, atualmente todos os legitimados do art. 103 da Constituição podem ajuizar as ações objetivas. Ademais, em 2004, surgiu uma nova modalidade de súmula de jurisprudência, a saber, a de natureza vinculante, que ostenta patamar elevado de imperatividade, obrigando a Administração Pública e todos os demais juízes e tribunais a seguirem o seu conteúdo; no mesmo ano, houve o advento da chamada repercussão geral, que auxilia na uniformização de procedimentos e na racionalidade dos julgamentos do STF[1].
Enfim, desde a Constituição Federal de 1934 – tida como exemplo de Carta que adotava o controle incidental de constitucionalidade – até o surgimento e a expansão do controle concentrado, bem como a previsão da súmula vinculante e da repercussão geral no ordenamento brasileiro, muito se discute a respeito da manutenção e do verdadeiro significado da atuação do Senado Federal no controle difuso, prevista no art. 52, inciso X, da Carta de 1988.
2. Principais correntes acerca da interpretação do art. 52, inciso X, da Constituição Federal: análise extraída da Reclamação 4.335/AC
2.1 Corrente favorável à mutação constitucional
A controvérsia acerca da releitura do art. 52, inciso X, da Constituição Federal ganhou grande relevo por ocasião do julgamento da Reclamação 4.335/AC. No caso, segundo a reclamante (Defensoria Pública do Estado do Acre), decisão do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da comarca de Rio Branco que denegara as progressões de regime para detentos condenados pela prática de crimes hediondos afrontava a decisão do STF proferida no Habeas Corpus 82.859, precedente emblemático no qual a Suprema Corte declarou inconstitucional a vedação abstrata à progressão de regime prevista no art. 2º, §1°, da Lei 8.072/90.
Durante o julgamento da Reclamação 4.335/AC, o STF teve a oportunidade de analisar se a declaração de inconstitucionalidade proferida incidentalmente pela Corte em decisão definitiva exarada no Habeas Corpus 82.859 já teria, por si só, eficácia erga omnes, ou se permaneceria necessária a participação do Senado prevista no art. 52, inciso X, da Constituição Federal.
Parcela minoritária dos ministros do STF entendeu que a atuação do Senado não mais se justificaria nos moldes em que foi concebida, haja vista a ocorrência da mutação constitucional[2]. Nesse sentido, com a ampliação do controle concentrado e a sua predominância, o papel do Senado no controle difuso teria se tornado retrógrado, restringindo-se, na atualidade, a tornar pública a decisão do Supremo. A comunicação ao Senado do decisum proferido pelo STF em controle difuso teria, pois, o único objetivo de instigar a Casa Legislativa a dar publicidade à decisão.
Essa foi a tese capitaneada pelo ministro Gilmar Mendes, relator da citada Reclamação. Segundo o eminente ministro, o controle de constitucionalidade brasileiro, embora considerado híbrido, tenderia a concentrar-se na dimensão abstrata, e não mais na concreta, mormente pela ampliação do direito de propositura das ações objetivas. Nesse contexto, o art. 52, inciso X, da Carta Maior teria se tornado obsoleto, já que a decisão do Supremo no controle difuso teria força normativa de per si.
A propósito, é oportuna a transcrição do seguinte excerto do voto do ilustre relator:
“A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal fique a depender de uma decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988, perdeu grande parte do seu significado com a introdução do controle abstrato de normas”[3].
Mais adiante, em outro trecho, o relator aborda as características e a importância do sistema concentrado, bem como a sua prevalência em relação ao controle difuso após o advento da Constituição Federal de 1988:
“A ampla legitimação, a presteza e a celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, fazem com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado. Assim, se continuamos a ter um modelo misto de controle de constitucionalidade, a ênfase passou a residir não mais no sistema difuso, mas no de perfil concentrado”[4].
Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes aborda diversas inovações que alteraram a relação existente entre os modelos difuso e concentrado, concluindo pela aproximação cada vez maior dos seus efeitos. Além da previsão da súmula vinculante e da repercussão geral, bem como da introdução e da ampliação das ações abstratas, com destaque para o surgimento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, menciona-se o controle concentrado nas ações coletivas.
Com efeito, para o ministro, a declaração de inconstitucionalidade de determinada lei, proferida no bojo de uma ação civil pública ou de um mandado de segurança coletivo, produz efeitos erga omnes e não inter partes. Senão, vejamos:
“A aceitação das ações coletivas como instrumento de controle de constitucionalidade relativiza enormemente a diferença entre os processos de índole objetiva e os processos de caráter estritamente subjetivo. É que a decisão proferida na ação civil pública, no mandado de segurança coletivo e em outras ações de caráter coletivo não mais poderá ser considerada uma decisão inter partes”[5].
Outrossim, a possibilidade de os tribunais superarem a cláusula da reserva de plenário quando o STF já tiver se manifestado a respeito da constitucionalidade de determinado ato normativo, ainda que em julgamento incidente, demonstra, na visão do ministro, a aproximação dos efeitos das decisões proferidas nos sistemas difuso e concentrado de controle de constitucionalidade. Deveras, havendo decisão do STF a respeito da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo, órgãos fracionários dos tribunais de segundo grau podem aplicar diretamente o entendimento da Corte Suprema, sem necessidade de aguardar a chegada da discussão pela via difusa ao STF ou a atuação do Senado para ampliar os efeitos dessa decisão.
Também a previsão da possibilidade de o relator decidir monocraticamente os recursos extraordinários manifestamente contrários à jurisprudência do Plenário do STF (previsão do art. 557, §1°-A, do CPC de 1973, e art. 932, inciso IV, do CPC de 2015) indicaria o efeito transcendente das decisões da Corte Suprema.
Nesse sentido, para a corrente em tela, a aludida competência do Senado prevista no art. 52, inciso X, da CF teria sofrido mutação constitucional, fenômeno por força do qual, com o passar do tempo, alguns dispositivos constitucionais perdem o seu significado original, devendo ser reinterpretados à luz de novos valores. A mutação constitucional é, pois, uma espécie de reforma da Constituição sem expressa modificação do seu texto.
A respeito da mutação constitucional, asseverou o ministro Eros Grau por ocasião do julgamento da Reclamação 4.335/AC:
“A mutação constitucional é transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação, vale dizer, na sua dimensão constitucional textual. Quando ela se dá, o intérprete extrai do texto norma diversa daquelas que nele se encontravam originariamente involucradas, em estado de potência. Há, então, mais do que interpretação, esta concebida como processo que opera a transformação de texto em norma. Na mutação constitucional caminhamos não de um texto a uma norma, porém de um texto a outro texto, que substitui o primeiro”[6].
No fundo, está o eminente ministro, na esteira do relator da Reclamação, a defender a existência de uma verdadeira alteração da essência do art. 52, inciso X, da Constituição da República. Tal dispositivo passaria a ser lido da seguinte maneira: compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo STF, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo.
Em suma, para o ministro Eros Grau, apesar de a redação do dispositivo permanecer intacta, caberia ao Judiciário efetuar uma nova leitura do seu significado, indo além de uma simples interpretação para “criar a norma” e adequá-la à realidade social. Essa seria a solução mais adequada e prudente para o problema da incongruência entre a constituição formal e a constituição material.
2.2 Corrente tradicional quanto à interpretação do art. 52, inciso X, da Constituição Federal
Por outro lado, os demais ministros que participaram do julgamento da Reclamação 4.335/AC invocaram ponderosos argumentos favoráveis à tese da imprescindibilidade da participação do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade.
Conforme o ministro Sepúlveda Pertence, que inaugurou a divergência no julgamento da Reclamação 4.335/AC quanto à tese da mutação constitucional, a inaplicação da cláusula de reserva de plenário pelos tribunais de segundo grau quando já houver a declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo e a existência da súmula vinculante não implicam, por si sós, a redução da função do Senado Federal estabelecida no art. 52, inciso X, da CF a “um nada”. Tal pensamento não se coadunaria com o texto da Constituição Federal de 1934 e com as Cartas subsequentes (com exceção da do Estado Novo), que mantiveram incólume a função do Senado de suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão conclusiva do STF.
Além disso, acaso a participação da Casa Legislativa de atribuir eficácia erga omnes às decisões do Supremo estivesse perdendo sentido, isso não decorreria do fenômeno da mutação constitucional, mas, antes, da edição de súmulas vinculantes. No entender do ministro, a nova modalidade de súmula seria a responsável por enfraquecer a atuação do Senado, mas, ainda assim, não haveria que se falar em redução do seu papel a um mero órgão de publicidade.
Nas exatas palavras do eminente ministro:
“A Emenda Constitucional 45 dotou o Supremo Tribunal de um poder que, praticamente, sem reduzir o Senado a um órgão de mera publicidade de nossas decisões, dispensa essa intervenção. Refiro-me, é claro, ao instituto da súmula vinculante, que a Emenda Constitucional 45, de 2005, veio a adotar depois de mais de uma década de tormentosa discussão. De tal modo que reproduzirei no meu voto, para efeitos didáticos, o dispositivo do vigente art. 102, § 3º, que vincula, ele sim, a súmula vinculante, editada na conformidade da Lei de 2006, que a disciplinou. Vincula, nos termos da Constituição, sim, não apenas os tribunais, no que o eminente Ministro Gilmar Mendes, cada vez mais religioso, chama de efeitos transcendentes, mas este restrito aos tribunais que tenham de enfrentar a mesma questão de inconstitucionalidade. E tenho dúvidas se até aí seria vinculante, porque a dispensa da remessa ao Plenário da argüição de inconstitucionalidade não impede o tribunal inferior de alterá-la enquanto não dotada a jurisprudência do Supremo Tribunal do efeito vinculante, que, ou decorre, no nosso sistema, de decisões nos processos objetivos de controle direto, ou decorrerá da adoção solene, pelo Tribunal, da súmula vinculante. Esta, sim, vinculante de todos os demais órgãos do Poder Judiciário, salvo o próprio Supremo Tribunal, e dos órgãos da Administração Pública Federal, Estadual e Municipal”[7].
Na mesma esteira, o ministro Joaquim Barbosa sustentou uma concepção tradicional e literal do art. 52, inciso X, que autoriza o Senado a suspender a execução da norma reputada como inconstitucional, sem, contudo, cercear a autoridade do STF. No entender do ministro, a função do Senado seria um complemento à eficácia das decisões da Corte, e não um obstáculo.
De mais a mais, se a questão for grave o suficiente a justificar a eficácia geral da decisão do STF, na visão do ministro, o Pretório Excelso deveria editar súmula vinculante a respeito do tema e não cogitar da ocorrência de mutação constitucional do art. 52, inciso X, da CF.
O eminente ministro Joaquim Barbosa afastou, ainda, o enquadramento da multicitada função senatorial como mutação constitucional, pois tal fenômeno demandaria um espaço de tempo prolongado, além de exigir o completo desuso do dispositivo constitucional. Como se não bastasse, não haveria mutação propriamente dita pela mera mudança no sentido de uma norma constitucional.
Estes são os argumentos extraídos do voto do ministro Joaquim Barbosa:
“(...) Mas o que vislumbro com a proposta é que ocorrerá pura e simplesmente, pela via interpretativa, a mudança no sentido da norma constitucional em questão, hipótese essa que Canotilho, por exemplo, não elenca como modalidade idônea de mutação (Direito Constitucional, p. 1102). Além disso, mesmo que se aceitasse a tese da mutação, entendo que seriam necessários dois fatores adicionais: o decurso de um espaço de tempo maior, para a constatação dessa mutação, e a consequente e definitiva ‘désuetude’ do dispositivo. Ora, em relação a esse último fator, impede, a meu juízo, esse reconhecimento um dado empírico altamente revelador: pesquisa rápida na base de dados do Senado Federal indica que desde 1988 aquela Alta Casa do Congresso suspendeu a execução de dispositivos de quase 100 normas declaradas inconstitucionais (sendo sete em 2006, Resoluções do SF de n° 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16; e uma já, neste ano, em 2007, resolução n° 2 )”[8].
Conclui o ministro que a norma do art. 52, inciso X, não cerceia a missão do STF de guardião da Constituição, além de atribuir maior vigor à democracia constitucional.
Por sua vez, o ministro Ricardo Lewandowski também afastou a atribuição meramente histórica e remanescente do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade, seja em virtude da frequência com que esse órgão edita resoluções suspendendo a execução de dispositivos declarados inconstitucionais, incidentalmente, pelo STF, seja em virtude da harmonia dos Poderes.
Com efeito, o ministro esclareceu em seu voto que o fortalecimento do STF não se deu em detrimento do poder do Senado e que a mutação não pode contrariar o sentido da norma constitucional.
O ministro Teori Zavascki, a seu turno, defendeu que a resolução do Senado Federal não é a única forma de ampliação da eficácia subjetiva das decisões do STF. Acrescentou que a manifestação expressa acerca da ocorrência de mutação constitucional do art. 52, inciso X, da CF seria indiferente para analisar o objeto da Reclamação 4.335/AC.
Os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello acompanharam o voto do ministro Teori Zavascki, julgando procedente a reclamação por violação ao enunciado 26 da súmula vinculante.
3. Entendimento atual do STF exarado no julgamento das ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ[9]
Malgrado o resultado final da Reclamação 4.335/AC tenha mantido a concepção clássica acerca do papel do Senado no controle difuso, houve uma guinada jurisprudencial da Corte Suprema no final do ano de 2017, ocasião em que a tese da mutação constitucional passou a prevalecer.
Ao julgar duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade do Estado do Rio de Janeiro – ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ, o STF acabou analisando incidentalmente a constitucionalidade do art. 2º da Lei 9.055/95, que versava sobre a mesma temática da lei estadual impugnada – a saber, a autorização de uso da crisotila, substância atualmente reconhecida como cancerígena.
No julgamento, o ministro Gilmar Mendes, na esteira da sua posição já exarada no bojo da Reclamação 4.335/AC, reiterou que, com o advento do rito da repercussão geral, a atuação do Senado no controle difuso de constitucionalidade perdera a sua razão de existir. Acrescentou que novos mecanismos previstos no novo Código de Processo Civil corroborariam tal entendimento.
Na sua visão, ao considerar inexigível obrigação fundada em título executivo reputado inconstitucional pelo STF em ambos os controles, o art. 535, § 5°, do CPC/15[10] reforça os efeitos equânimes das decisões proferidas em sede de controles de constitucionalidade difuso e concentrado.
No mesmo sentido, o art. 927, inciso III, do CPC/15 determina que os juízes e tribunais observem os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. Ou seja, o julgamento de recursos extraordinários sob o rito dos repetitivos influencia as demais instâncias, tornando desnecessária a atuação do Senado para que haja a transcendência dos efeitos das decisões conclusivas do STF acerca da constitucionalidade de preceitos normativos.
Logo, o ministro concluiu que, na releitura do art. 52, inciso X, da CF, a função do Senado no controle de constitucionalidade difuso seria fazer a publicação da decisão do STF, intensificando-a.
Para o ministro Celso de Mello, a nova interpretação proposta visa expandir os poderes do STF com relação à jurisdição constitucional, de modo que o Senado simplesmente divulgaria, mediante publicação, a decisão do Tribunal, cuja eficácia vinculante, contudo, resultaria dela própria. No sentir do eminente ministro, a função do Senado na atualidade seria de chancela meramente formal à decisão do STF.
Já a ministra Cármen Lúcia esclareceu que o STF está caminhando para uma inovação da jurisprudência, pois não haveria necessidade de cada norma específica ter a sua constitucionalidade aferida, mas, antes, a própria matéria nela contida é que seria objeto de análise.
O ministro Edson Fachin, por sua vez, manifestou-se no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade, mesmo quando proferida em sede de controle difuso, gera uma preclusão consumativa da matéria. Assim, evitar-se-ia o revolvimento de matérias semelhantes, em uma “metodologia semicircular progressiva”.
O ministro Luiz Fux também se manifestou favoravelmente à tese da equiparação dos efeitos produzidos nos controles difuso e concentrado, invocando, para tanto, a inovação, trazida pelo CPC/15, no sentido de que o executado pode se recursar a cumprir obrigação fundada em norma declarada inconstitucional, seja no controle difuso ou concentrado.
O ministro Dias Toffoli subscreveu, na íntegra, o posicionamento acerca da extensão da eficácia erga omnes às decisões proferidas pelo STF em sede de controle difuso.
Em voto minoritário, o ministro Marco Aurélio acentuou que o fenômeno do art. 52, inciso X, da CF atende ao princípio da separação dos Poderes e é constitutivo – e não simplesmente declaratório –, pois se refere à suspensão da execução da lei no território nacional. Acrescentou, ainda, que a Constituição Federal, sendo a lei das leis, não poderia ser interpretada a partir do Código de Processo Civil, diploma hierarquicamente inferior.
O ministro Alexandre de Moraes, a seu turno, a par de esclarecer que a análise acerca da mutação constitucional do art. 52, inciso X, demandaria provocação por meio de questão de ordem, ponderou, na esteira o ministro Marco Aurélio, que não seria viável interpretar a Constituição Federal com base em dispositivos do Código de Processo Civil.
Não obstante as manifestações dos ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes, pode-se dizer que, com o julgamento das ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ, o STF adota, atualmente, a teoria da abstrativização do controle difuso, porquanto, se o Plenário da Corte decidir sobre a constitucionalidade ou não de uma lei ou ato normativo, ainda que em sede de controle difuso, os mesmos efeitos do controle concentrado serão produzidos – leia-se, operará a eficácia vinculante e erga omnes.
Dessa forma, a tese capitaneada pelo ministro Gilmar Mendes foi adotada, praticamente na íntegra, pelo STF, que ao entender, incidentalmente, que o art. 2° da Lei 9.055/95 seria inconstitucional, decidiu que essa inconstitucionalidade deve gerar efeitos vinculantes e erga omnes[11].
Vale asseverar que, em virtude do overruling ocorrido quanto à interpretação do art. 52, inciso X, da CF, discute-se a possibilidade de realizar a modulação dos efeitos da decisão proferida pelo STF no bojo das ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ. A despeito de o resultado proclamado não ter analisado o pedido de modulação, porquanto o momento adequado para tanto seria no bojo dos embargos de declaração, a ministra Rosa Weber (relatora) deferiu liminar solicitada em petição da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria para suspender, em parte, os efeitos da decisão, apenas no ponto em que se atribuiu eficácia erga omnes à declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 2º da Lei 9.055/95, até a publicação do acórdão respectivo e fluência do prazo para oposição dos embargos de declaração.
A concessão da medida liminar em comento demonstra que a discussão acerca do verdadeiro papel do Senado no controle difuso de constitucionalidade, além de gerar grandes debates, mostra-se sensível e impactante, sobretudo em virtude do longo prazo em que prevaleceu a concepção tradicional do art. 52, inciso X, da CF.
4. Críticas ao novo entendimento do STF
A nosso sentir, não obstante os judiciosos argumentos tecidos pelos ministros favoráveis à mutação constitucional quanto ao papel Senado no controle de constitucionalidade difuso, seja por ocasião do julgamento da Reclamação 4.335/AC, seja, recentemente, no bojo das ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ, a tese divergente afigura-nos mais adequada à realidade brasileira.
De fato, essa participação do Senado é de inegável relevo para resguardar o equilíbrio federativo, a democracia e a harmonia entre os Poderes. Ora, o constituinte de 1934 já inserira a possibilidade de o Senado suspender a eficácia de decisão do STF justamente para permitir eventual ratificação dos representantes eleitos e, consequentemente, da sociedade, acerca da constitucionalidade de uma lei no âmbito do controle difuso.
Assim, a competência do Senado prevista no art. 52, inciso X, da CF representa, ainda que indiretamente, uma participação democrática no controle difuso, e a sua retirada implicaria extirpar “qualquer possibilidade de chancela dos representantes do povo deste referido processo, o que não parece ser sequer sugerido pela Constituição da República de 1988”[12].
Nesse sentido, asseveram Eduardo Arruda Alvim, Angélica Arruda Alvim e Eduardo Aranha Ferreira:
“A despeito do que preveem os referidos dispositivos [927, IV e 1030, I, do CPC/15], não nos parece correto dizer que as decisões do STF em controle difuso de constitucionalidade passaram, em virtude disso, a ter eficácia erga omnes. Como vimos dizendo, o ar. 52, inciso X da Constituição Federal não dá margem razoável à interpretação de que a função do Senado Federal é de mera publicização da decisão da Corte, mas de verdadeira integração de legitimidade democrática, bem como de pleno exercício do sistema de freios e contrapesos. Ademais, sequer haveria possibilidade de que lei ordinária, com o é o CPC/15, alterasse a Constituição Federal ou mesmo a forma como ela deve ser interpretada”[13].
Ressalte-se, ainda, que a investigação acerca da examinada competência do Senado implica não só um estudo sobre a natureza do poder constituinte, mas também uma apreciação das características do controle de constitucionalidade brasileiro, em que coexistem os modelos difuso e concentrado.
Em verdade, admitir a ocorrência de mutação constitucional, como preconiza a atual jurisprudência do STF, importa em contrariedade ao caráter incondicionado e ilimitado do poder constituinte originário. Além disso, não cabe ao Supremo “corrigir” a Constituição, sob pena de transformar-se em poder constituinte ilegítimo.
Esse é o entendimento esposado por Lenio Streck, Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira:
“Agir no limite de um contexto significa obedecer aos ditames do poder constituído, condição existencial do Supremo Tribunal Federal como poder jurisdicional vinculado à Constituição. Esta compreensão, claro, origina-se do simples fato de que os poderes de um Estado estão submetidos a uma mesma vontade política, objetivamente identificada num determinado percurso histórico das sociedades, ou seja, o instante constituinte. E a importância disso é incontestável, bastando, para tanto, examinar o papel das constituições para a consolidação das democracias no século XX”[14].
Uadi Lammêgo Bulos não vislumbra a ocorrência de autêntica mutação constitucional do art. 52, inciso X, da CF, uma vez que o fenômeno não poderia ser arquitetado, ainda que por ministros da Suprema Corte, mas deveria ocorrer de forma espontânea. Veja as palavras do ilustre doutrinador:
“Os juízes podem proferir decisões paradigmáticas, alegando a tese da mutação constitucional. Mas, se o fenômeno inexistir, de nada adianta o magistrado dizer o contrário.
Expliquemos: qualquer mutação constitucional planejada, arquitetada, programada, não é mutação. O fenômeno só pode ser percebido de modo natural e espontâneo, quando comparamos o entendimento atribuído às cláusulas constitucionais em momentos afastados no tempo.
(...)
Ora, o fenômeno da mutação constitucional é algo que em nada se compara ao trabalho desenvolvido pelos legisladores positivos, juízes legisladores ou ativistas judiciais, ainda quando estes a invoquem para defenderem determinados pontos de vista e fundamentarem, inclusive na melhor das intenções, os seus vereditos”[15].
Assim, para Bulos, a substituição de um texto normativo por outro configura não mutação constitucional, mas manipulação inconstitucional, o que é combatido pelo próprio STF. O correto seria a superação do art. 52, inciso X – que, na visão do doutrinador, estaria fadado ao desuso –, pelo poder reformador (procedimento de emenda à constituição).
Paulo Napoleão Nogueira da Silva reconhece que o STF e o Senado não são adversários na ordem jurídica, mas, ao invés, possuem competências devidamente delimitadas, integrantes de etapas distintas do procedimento do controle difuso. A esse propósito, confira-se:
“Assim, é necessário que reiteradamente se lembre, o princípio da tripartição reside na inexistência da preponderância de um Poder sobre o outro, ou de um órgão de um Poder sobre um órgão de outro: cada um tem suas atribuições perfeitamente caracterizadas e delimitadas na Constituição, para serem livre e soberanamente exercidas nas etapas e nos limites em que lhe é destinado atuar, no curso de quaisquer procedimentos que objetivem os fins procurados pelo sistema constitucional. Declarar a inconstitucionalidade entre partes e, como regra fazê-lo com eficácia retroativa, é função completamente diversa daquela de estender a todos e para o futuro a eficácia e os efeitos dessa declaração”[16].
Nesse contexto, a redução do papel do Senado Federal no controle difuso a um mero diário oficial acabaria por gerar uma indevida concentração de atribuições em um único Poder, o que não parece ser a intenção do constituinte brasileiro. Deveras, constituiu um dos pilares de sustentação da nossa Carta exatamente a teoria dos freios e contrapesos, que irradia seus efeitos por todo o sistema.
Comungando de tal entendimento, Sérgio Resende de Barros assevera a importância da participação do Senado no controle difuso, sobretudo no que tange à separação dos Poderes, nos seguintes termos:
“A intervenção do Senado no controle difuso é um engenhoso meio jurídico-político de atender ao princípio da separação de poderes, entre cujos corolários está o de que só lei pode revogar lei. Esse princípio tem que ser mantido no controle difuso, pois faz parte de sua lógica. A lógica do controle concentrado é outra: admite a corte constitucional como legislador negativo, o que é inaceitável no controle difuso. Cada modo de controle deve manter sua lógica para conviver em harmonia. Se não, o misto se torna confuso”[17].
Diga-se, ademais, que a essência do disposto no art. 52, inciso X, foi evitar que também o controle difuso passasse a ser um monopólio do STF. Ora, “a Constituição vigente desejou, plenamente, a manutenção e o aperfeiçoamento do sistema misto de controle de constitucionalidade”[18], sendo que apenas o controle abstrato é exclusivo do Pretório Excelso, já que o concreto pode ser feito por qualquer juiz ou tribunal.
Importa notar que, em relação ao controle de constitucionalidade brasileiro, ainda persistem consideráveis diferenças entre os sistemas difuso e concentrado. Efetivamente, no sistema difuso, o STF analisa a constitucionalidade de uma norma como preliminar de mérito para tratar do caso concreto, que alcançou a instância suprema por meio de recurso. Não há o julgamento de uma tese em abstrato, como ocorre no controle concentrado.
De mais a mais, atribuir à decisão do STF, proferida em controle difuso, eficácia geral, pode implicar grave violação a direitos e garantias fundamentais, como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, já que pessoas não participantes do processo acabariam afetadas pela prolação da decisão.
Percebe-se, destarte, que a vontade do constituinte, seja sob a égide da Carta de 1934 ou da atual Constituição, sempre foi a de diferenciar os dois controles, afigurando-se impossível atribuir efeitos ampliativos ao controle difuso, de forma automática. Desse modo, a corrente que atribui ao Senado uma atuação mais ativa no controle difuso parece-nos mais adequada, pois compatível com o sistema misto, mantido pelo ordenamento pátrio mesmo após as reformas realizadas pelo constituinte derivado.
Nessa ordem de ideias, a atuação do Senado ainda se revela imprescindível, competindo-lhe, por força de vontade expressa do constituinte originário, atribuir efeitos erga omnes à decisão do Supremo acerca da inconstitucionalidade da lei ou ato normativo proferida em sede de controle difuso. Em outras palavras, a função do Senado não pode ser a de simples divulgador das decisões da Suprema Corte.
Noutro giro, a suspensão da execução da lei feita pelo Senado, que corresponde à sua revogação, não se confunde com a retirada da eficácia da lei, que ocorre no controle concentrado e implica sua nulidade. No primeiro caso, os efeitos produzidos permanecem hígidos, ao passo que, na segunda hipótese, não persistem quaisquer efeitos (vale frisar, é como se a lei jamais tivesse existido). Veja-se, a esse respeito, o escólio de Lenio Streck:
“Nesse sentido, há que se fazer uma diferença entre o que é retirada da validade da lei, em sede de controle concentrado, e o que significa a suspensão que o Senado faz de uma lei declarada inconstitucional em sede de controle difuso. Suspender a execução da lei não pode significar retirar a validade da lei. Caso contrário, não haveria diferença, em nosso sistema, entre o controle concentrado e o controle difuso. Suspender a vigência ou a execução da lei é como revogar a lei. Pode-se agregar ainda outro argumento: a suspensão da lei somente pode gerar efeitos ex nunc, pela simples razão de que a lei está suspensa (revogada), à espera da retirada de sua eficácia”[19].
Vale lembrar, ainda, que o art. 52, inciso X, da CF permanece vigente na ordem constitucional brasileira. Por isso, enquanto não houver procedimento de reforma constitucional, se o STF pretende que a sua decisão em controle difuso tenha efeitos vinculantes, deve fazê-lo submetendo o seu julgamento ao Senado Federal ou mediante a edição de súmula vinculante.
Não se pode, portanto, igualar o controle concentrado ao controle difuso, já que, no modelo difuso, exige-se um plus do Poder Legislativo para outorgar eficácia genérica às decisões. Além disso, a não aplicação do art. 52, inciso X, da CF significa, no fundo, diminuir a força normativa da Constituição, ignorando-se a clareza do comando contido no dispositivo.
Diga-se, ainda, que a existência da súmula vinculante e a possibilidade de dispensa da cláusula de reserva de plenário quando o STF já tenha se manifestado sobre o tema, apesar de demonstrarem a transcendência das decisões do Supremo, não têm o condão de generalizar a noção de que a atuação do Senado no controle difuso teria se tornado inútil. A função desse órgão legislativo, como já asseverado, permanece hígida, a fim de que se possam preservar o princípio federativo e a harmonia entre os Poderes.
De resto, o reconhecimento de que o art. 52, inciso X, da CF sofrera mutação constitucional implica atribuir a esse fenômeno um errôneo significado de substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário, em prejuízo ao princípio democrático. Com efeito, “um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode ‘inventar’ o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa democracia”[20].
Desse modo, a nosso sentir, é perfeitamente possível – e necessário – que o Supremo avalie a compatibilidade das normas com a realidade social, mas ele não deve ferir a essência da Constituição do país. Aliás, não se pode olvidar que o STF é o guardião da Carta Maior, não lhe sendo legítimo exorbitar dos estritos limites nela contidos, mesmo que com o louvável intuito de implementar uma justiça corretiva.
Em verdade, a tese do ativismo judicial deve ser vista com ressalvas, pois acarreta inegável mudança na relação entre os Poderes. Ademais, o exercício de função atípica por um Poder – no caso, o exercício de atividade legiferante pelo Judiciário – possui natureza excepcional, e não ocorre na hipótese, porquanto, como visto, a Constituição não permite ao Supremo, por ocasião de julgamento proferido em sede de controle difuso, atribuir à decisão os efeitos do controle concentrado.
Além disso, a partir do momento em que admitimos o caráter misto do controle de constitucionalidade brasileiro, indubitavelmente estamos reconhecendo a existência de diferenças entre os sistemas difuso e concentrado, o que impede a equiparação dos efeitos neles produzidos. Parece-nos, dessa maneira, que a tese encampada pelo STF no julgamento das ADIs 3406/RJ e 3470/RJ só poderia imperar caso o sistema brasileiro fosse exclusivamente concentrado – e não híbrido.
5. Conclusão
O controle de constitucionalidade brasileiro é considerado misto, uma vez que as modalidades difusa e concentrada são simultaneamente adotadas no ordenamento pátrio.
Se, durante muito tempo, o controle difuso era exclusivo ou predominava no sistema brasileiro, com o passar dos anos, o controle concentrado ganhou relevo, sobretudo por ser mais célere e potencializar a segurança jurídica.
Com o surgimento de inovações na ordem constitucional, em especial a expansão dos legitimados ativos para propor ações abstratas, o surgimento da súmula vinculante e da sistemática da repercussão geral e, mais recentemente, as previsões dos arts. 927, inciso III, e 535, § 5°, do CPC/15, passou-se a contestar a função do Senado Federal, prevista no art. 52, inciso X, da CF. Segundo tal dispositivo, incumbe àquela Casa Legislativa suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, atribuindo efeitos erga omnes a essas decisões.
Para os defensores da corrente favorável à releitura do art. 52, inciso X, a atuação do Senado teria se tornado obsoleta, já que, em virtude das recentes inovações nas ordens constitucional e processual, não haveria mais sentido em diferenciar os efeitos produzidos em ambas as espécies de controle de constitucionalidade. Assim, a decisão do STF, ainda que exarada em controle difuso, por si só, já produziria efeitos vinculantes e genéricos, e a atuação do Senado se cingiria a divulgar o resultado do julgamento.
Já para os adeptos da tese contrária, a participação do Senado permanece imprescindível, seja porque as funções do STF e do Senado no controle difuso seriam bem delimitadas, seja porque esse mecanismo seria basilar da separação dos Poderes ou, ainda, porque a intenção do constituinte não fora a de atribuir um papel de exclusividade do Poder Judiciário.
Embora seja complexa a questão referente à verdadeira participação do Senado Federal no controle difuso, entendemos que a regra tradicional do art. 52, inciso X, da CF deve ser preservada, ao menos enquanto não alterada mediante emenda constitucional, pois o papel daquela Casa Legislativa, ao invés de atravancar as decisões do Supremo, complementa a sua efetividade, concretizando, assim, o regime democrático.
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[1] Ambas as inovações – súmula vinculante e repercussão geral – foram implementadas pela Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004.
[2] Apesar de o resultado do julgamento ter sido pelo provimento da Reclamação 4.335/AC, o fundamento prevalecente para tal decisão foi a violação ao enunciado 26 da súmula vinculante, e não a ocorrência de mutação constitucional do art. 52, inciso X, da CF.
[3] Voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento da Reclamação 4.335-AC, p. 33 do acórdão.
[4] Voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento da Reclamação 4.335-AC, p. 36 do acórdão.
[5] Voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento da Reclamação 4.335-AC, p. 52 do acórdão.
[6] Voto proferido pelo ministro Eros Grau no julgamento da Reclamação 4.335/AC, p. 72 do acórdão.
[7] Voto proferido pelo ministro Sepúlveda Pertence no julgamento da Reclamação 4.335/AC, p. 94-95 do acórdão.
[8] Voto proferido pelo ministro Joaquim Barbosa no julgamento da Reclamação 4.335/AC, p.100 do acórdão.
[9] Até a conclusão do presente estudo, o acórdão proferido nas ADIs encontrava-se pendente de publicação no sítio eletrônico do STF, sendo que as informações utilizadas para a elaboração deste trabalho foram extraídas do Informativo de Jurisprudência 886 e do áudio da sessão de julgamento (disponível em: http://www.radiojustica.jus.br/arquivo/radioNoticia/multimidia/2017/NOVEMBRO/291117ADIs34063470parte2.mp3).
[10] Embora o art. 535, § 5°, do CPC/15 refira-se especificamente à inexigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública, há dispositivo semelhante referente à inexigibilidade de obrigação envolvendo demais executados (art. 525, § 12).
[11] O ministro Gilmar Mendes restou vencido na parte em que defendia a transcendência dos motivos determinantes. Deveras, a despeito de o Pretório Excelso haver definido que a decisão por ele proferida em controle difuso produz efeitos vinculantes e erga omnes, o entendimento sufragado no julgamento das ADIs 3.406/RJ e 3.470/RJ caminhou no sentido de que somente o dispositivo da decisão, e não os seus motivos, vinculam os demais entes e órgãos.
[12] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 551.
[13] ALVIM, Angélica, ALVIM, Eduardo e FERREIRA, Eduardo Aranha. Críticas à abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. In: Jurisdição e hermenêutica constitucional em homenagem a Lenio Streck. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2017, p. 77.
[14] LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto, OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de, e STRECK, Lenio Luiz. A Nova Perspectiva do Supremo Tribunal Federal sobre o Controle Difuso: Mutação constitucional e Limites da Legitimidade da Jurisdição Constitucional, p. 1. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10253/a-nova-perspectiva-do-supremo-tribunal-federal-sobre-o-controle-difuso.
[15] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 232.
[16] SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. O controle de constitucionalidade e o Senado. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 140.
[17] BARROS. Sérgio Resende de. Constituição, artigo 52, X: reversibilidade? In: Revista de informação legislativa. Ano 40, n. 158, abril/junho. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 236.
[18] MORAIS, Dalton Santos. Controle de constitucionalidade. Exposições criticas à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 128
[19] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 555.
[20] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 554.
graduada pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduada em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal (ESMA-DF).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Fernanda Rocha. A evolução do entendimento do STF a respeito do papel do Senado Federal no controle difuso de constitucionalidade (art. 52, inciso X, da Constituição Federal): análise crítica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 mar 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51394/a-evolucao-do-entendimento-do-stf-a-respeito-do-papel-do-senado-federal-no-controle-difuso-de-constitucionalidade-art-52-inciso-x-da-constituicao-federal-analise-critica. Acesso em: 22 nov 2024.
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