Enio Walcacer de Oliveira Filho
(Orientador)[1]
Resumo : O presente estudo vislumbra analisar a cultura do povo indígena Yanomami, em especial à prática “tradicional” do infanticídio em contraponto à normatização penal brasileira que tutela a vida como bem maior protegido sopesando a conduta indigenista e a cultura ocidental, em busca de uma composição entre o relativismo e o universalismo dos Direitos Humanos.
Palavras-chave: infanticídio; yanomami; direito penal; cultura.
Abstract : The present study aims at analyzing the culture of the Yanomami indigenous people, especially the "traditional" practice of infanticide as a counterpoint to the Brazilian penal norm that protects life as a much greater protected by weighing indigenist conduct and Western culture, in search of a composition between relativism and the universalism of human rights.
Keywords: infanticide; Yanomami; criminal law; culture.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A PRÁTICA DO INFANTICÍDIO YANOMAMI E A LEI BRASILEIRA. 2.1. A CULTURA DO INFANTICÍDIO YANOMAMI. 2.2. A LEI BRASIELRIA E O INFANTICÍDIO. 3. PARADOXO ENTRE A NORMA E A CULTURA. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
O filicídio refere-se à morte de uma ou mais crianças por um, ou ambos os pais, independentemente da idade da vítima (RESNIK, 1969). Dentro desse conceito jurídico filosófico amplo, incluímos o neonaticídio e o infanticídio, tipificado como crime no Brasil em 1830, com a implantação do Código Criminal[2]. (CORREIA, 2016)
De encontro à normatização, temos, na contemporaneidade, tribos indígenas que praticam ritual milenar de abreviar a vida de seus recém-nascidos, geralmente, quando acometidos por uma grave malformação ou deficiência de desenvolvimento, mas também, mais raramente, quando a mãe não tem condições normais de amamentar e cuidar de seu bebê. (ALBERT, 2011)
Conforme dados do Mapa da Violência e Ministério da Saúde (MS), foram registradas entre os anos de 2012 e 2015, nas aldeias Yanomami dos municípios de Alto Alegre e Caracaraí, estado de Roraima, 159 mortes de recém nascidos. (CORREIA, 2016)
Deste modo, utilizando de revisão e pesquisa bibliográfica, faremos um paralelo entre este costume indígena em específico, que em sentido lato, é defendido no caput do artigo 231[3], e o preconizado no artigo 5ª[4] caput da referida carta magna que preconiza da “inviolabilidade do direito à vida” sem distinção de qualquer natureza.
Iniciaremos nossa análise com a apresentação da cultura do povo indígena Yanomami, que salientamos, não vivem apenas em território brasileiro; logo após nos ateremos à legislação vigente no que se refere ao tema proposto para que, a posteriori, seja possível sopesar a conduta indigenista e a cultura ocidental, em busca de uma contraposição entre o relativismo e o universalismo dos Direitos Humanos.
A prática do “infanticídio” é sempre para as mães Yanomami uma escolha extrema, causadora de grande tormento psicológico. Portanto, nada nos permite rotulá-la preguiçosamente como uma simples “regra cultural”, para não dizer ritual, e logo condená-la com todo o arsenal de preconceitos com o qual nosso imaginário projetivo assola habitualmente os povos indígenas. Devemos fazer o esforço de entender o contexto social no qual essas mães são levadas a tal escolha. Casos de “infanticídio” ocorrem tradicionalmente entre os Yanomami logo após o parto quando o recém-nascido se encontra acometido por uma grave malformação ou deficiência de desenvolvimento, mas também, mais raramente, quando a mãe não tem condições normais de amamentar e de cuidar de seu bebê. Isso pode acontecer quando esta apresenta grave doença, é excessivamente jovem e/ou sem apoio alimentar do genitor, ou ainda quando tem gêmeos (neste caso um é sacrificado, pois não poderá ser devidamente amamentado). Ocorre também, pela mesma razão, quando o nascimento acontece fortuitamente antes do fim do período de amamentação de outro bebê. De fato, as mães Yanomami procuram geralmente manter um intervalo de cerca de três anos entre cada nascimento a fim de garantir uma amamentação adequada a seus filhos. (ALBERT, 2011)
Não há nada de errado com crenças, culturas, tradições e costumes, desde que elas não afetem direitos sensíveis, essenciais e universais, como a vida de um nascituro, uma vida, bem maior tutelado pelo direito. A questão que envolve o infanticídio é a privação de direitos que ocorre a estes seres humanos. Muitas etnias indígenas brasileiras ainda praticam o ato de infanticídio de forma que deve ser observado para buscar uma forma de solucionar tal problema. (ALBERT, 2011)
Falamos aqui, de acordo com nossa nomenclatura jurídica, de neonaticídio, eliminação pós-parto de um recém-nascido (neonato) pela mãe da criança. As mulheres Yanomami dão à luz na floresta, sozinhas ou, quando mais novas, acompanhadas de mulheres de seu círculo familiar. Os homens estão excluídos do parto e das decisões referentes ao recém-nascido. Uma vez aceito pela mãe e iniciada a amamentação, o bebê é trazido à aldeia e, assim, constituído como ser humano e membro do grupo em sua plenitude, não podendo ser morto posteriormente por nenhuma razão. Não existe, portanto, filicídio entre os Yanomami. (ALBERT, 2011)
Para as mulheres Yanomami, eliminar um recém-nascido nas condições descritas acima é recorrer a uma opção drástica, porém coletivamente aceita em função de circunstâncias notoriamente adversas. Portanto, do ponto de vista da sua sociedade, essa conduta não é julgada como um desvio de conduta individual – um crime – como o seria a partir dos nossos próprios códigos morais e jurídicos. As mulheres Yanomami praticam também, ocasionalmente, o aborto por alguns dos motivos acima citados e outros, como excesso de crianças para criar em função dos recursos alimentares disponíveis etc. Portanto, o neonaticído não é considerado, na sociedade Yanomami tradicional, como uma medida corriqueira, ocorrendo somente como último recurso. (ALBERT, 2011)
Nas últimas décadas as relações dos Yanomami com a sociedade envolvente se intensificaram e essa nova situação de contato produziu uma transformação do contexto social no qual se desenvolvia o neonaticídio tradicional. Em primeiro lugar, observou-se na maioria das regiões da Terra Indígena Yanomami um aumento considerável das taxas de mortalidade infantil causada pela introdução de novas doenças advindas de sucessivas invasões de frentes econômicas (estrada, colonização agrícola, fazendas, garimpos). Portanto, a eliminação voluntária de recém-nascidos passou a constituir um fator agravante do declínio populacional que começou a afetar os Yanomami. (ALBERT, 2011)
Em segundo lugar, as lideranças políticas e os novos profissionais Yanomami (agentes de saúde e professores) que se formaram durante esse período passaram a adquirir um conhecimento do sistema de valores da sociedade nacional, no qual a prática do neonaticídio é moralmente condenada e considerada como um crime (Código Penal, art. 123). Nesse contexto, eles procuraram alicerçar sua defesa dos direitos territoriais, culturais e civis do seu povo nos princípios éticos e jurídicos igualmente fornecidos pela sociedade envolvente. Ficaram, no decorrer desse processo, cada vez mais conscientes da vulnerabilidade política de uma atitude que consistiria em reivindicar direitos (coletivos ou individuais) baseados num sistema de leis que, em certos aspectos, se pretenderia ignorar. (ALBERT, 2011)
Essas mudanças demográficas e culturais tiveram como consequência uma crescente pressão interna na sociedade Yanomami (sobretudo por parte dos homens) contra as práticas tradicionais de neonaticídio. Entretanto, não se deve esquecer aqui que as mães Yanomami só se encontram frente à penosa opção do neonaticídio quando submetidas a situações sanitárias, sociais e econômicas muito adversas. Nesse contexto, a questão do neonaticídio Yanomami deve ser tratada em termos de saúde coletiva e pública e não pode ser instrumentalizada em cruzadas moralistas medievais contra as culturas indígenas. A responsabilidade dos poderes públicos certamente não consiste aqui em inventar recursos repressivos contra as mães indígenas a pedido de uma ou outra facção religiosa, mas sim de procurar aplicar melhor a legislação sanitária existente afim de ampará-las e de lhes fornecer condições (a serem debatidas e definidas com elas) para evitar esse recurso extremo de eliminação de neonatos. (ALBERT, 2011)
Finalmente, não se pode pensar também que a associação de pregação pró-natalista (de inspiração religiosa ou laica) e política sanitária diretiva bastaria para resolver essa complexa questão. Nota-se, ao contrário, que tais iniciativas acabam muitas vezes gerando efeitos perversos capazes até mesmo de induzir uma intensificação da prática do neonaticídio que elas visavam desencorajar. Assim, entre os Yanomami, o incentivo sistemático à natalidade num contexto de crescimento demográfico decorrente de melhor assistência em saúde conduz progressivamente à uma redução do intervalo entre os nascimentos. Essa redução do intervalo intergenésico, por sua vez, desemboca rapidamente numa degradação do quadro nutricional e sanitário das cada vez mais numerosas crianças menores de cinco anos de idade (redução do tempo de amamentação piora imunológica). Em decorrência desse rápido aumento do número de crianças pequenas observa-se, também, uma piora notável do quadro socioeconômico das famílias (sobrecarga para as mães com muitos filhos subnutridos e frequentemente doentes, número excessivo de dependentes por adulto produtivo, escassez dos recursos alimentícios). Em reação a essa convergência de fatores adversos é então frequente que as mulheres Yanomami recorram novamente à prática do neonaticídio a fim de restaurar o equilíbrio sanitário e econômico de suas famílias. (ALBERT, 2011)
O infanticídio teve, através das épocas, considerações diversas. Em Roma, como se vê das Institutas de Justiniano (Liv. IV, Tít. XVIII, §6º), foi punido com pena atroz, pois o condenado era cosido em um saco com um cão, um galo, uma víbora e uma macaca, e lançado ao mar ou ao rio. No direito medieval, a Carolina (Ordenação de Carlos V), art. 131, impunha o sepultamento em vida, o afogamento, o empalamento ou a dilaceração com tenazes ardentes. Foi no século XVIII, sobretudo, que o delito passou a ser considerado mais brandamente, e hoje, não obstante vozes do contrário, é orientação comum das legislações e também a seguida pelos Códigos pátrios. Assim o Código Penal Brasileiro também penaliza a mãe que logo após o parto, no estado puerperal mate seu filho: Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (PEDRO & DIEL, 2014)
Nas palavras de Greco (2009, p. 217):
[...] a figura típica do infanticídio, percebe-se que se trata, na verdade, de uma modalidade especial de homicídio, que é cometido levando-se em consideração determinadas condições particulares do sujeito ativo, que atua influenciado pelo estado puerperal, em meio a certo espaço de tempo, pois que o delito deve ser praticado durante o parto ou logo após. Então, o infanticídio foi tipificado no código penal como um crime que só pode ser praticado pela mãe, ou seja, um crime próprio, contra o filho que acaba de nascer. Dessa forma o legislador tipificou o período que restava entre a conduta de aborto e homicídio.
O infanticídio, que significa assassínio de uma criança, particularmente de um recém-nascido. O artigo 123 do Código Penal caracteriza o crime de infanticídio como o ato de matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho durante o parto ou logo após. Entretanto, o ordenamento jurídico brasileiro não possui explicações mais abrangentes por faltar conhecimento sobre o caso, aonde os mesmos não têm provas a posteriori sobre o determinado assunto. (PEDRO & DIEL, 2014)
Na antiguidade matavam-se os recém-nascidos quando escasseassem alimentos ou estes eram oferecidos em cerimônias religiosas. Relata Gonçalves (2003, p.402):
No primitivo direito romano somente a mãe era incriminada. O Pai, em virtude do jus vitae AC necis sobre os filhos, não cometia qualquer crime se matasse o filho que acabasse de nascer. Este poder, afirma Mommsen estava compreendido no direito de propriedade, pelo que já na república se punia com homicídio a morte do filho realizada secreta ou aleivosamente. Foi ao templo de Constantino que o infanticídio praticado pelo pai começou a ser punido, porque foi reafirmada no império de Justiniano, culminando-se então pesadas penas para este crime, tradição que se manteve por influência da Igreja. Até o início do século XIX, unia-se severamente em toda a Europa este crime. Quando o infanticídio passou a receber o tratamento privilegiado, levava-se em conta, primordialmente, a intenção da mãe de ocultar a própria desonra, tanto assim que o Código Penal de Portugal, no tipo penal de infanticídio, até 1995 incluía a finalidade especifica” para ocultar a desonra”, que foi abolido na atual descrição típica.
No Código Penal Brasileiro de 1890, que precedeu o de 1940, previa pena privilegiada para a mãe que matasse o filho recém-nascido “para ocultar a desonra própria"(art. 298 parágrafo único). (ALBERT, 2011)
De acordo com o art. 123 do Código Penal Brasileiro, o Infanticídio caracteriza-se com a seguinte conduta: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. Esta, portanto, é a descrição legal do mencionado crime. (PEDRO & DIEL, 2014)
De acordo com Guilherme de Souza Nucci (2003, p. 138):
Trata-se do homicídio cometido pela mãe contra seu filho, nascente ou recém-nascido, sob a influência do estado puerperal. É uma hipótese de homicídio privilegiado em que, por circunstâncias particulares e especiais, houve por bem o legislador conferir tratamento mais brando à autora do delito, diminuindo a faixa de fixação da pena (mínimo e máximo). Embora formalmente tenha o legislador eleito a figura do infanticídio como crime autônomo, na essência não passa de um homicídio privilegiado, como já observamos.
Já Cleber Masson assevera que (2018, p. 49):
O infanticídio, que em seu sentido etimológico, significa a morte de um infante, é uma forma privilegiada de homicídio. Trata-se de crime em que se mata alguém, assim como o art. 121 do Código Penal. Aqui a conduta também consiste em matar. Mas o legislador decidiu criar uma nova figura típica, com pena sensivelmente menor, pelo fato de ser praticado pela mãe contra seu próprio filho, nascente ou recém-nascido, durante o parto ou logo após, influenciada pelo estado puerperal.
De acordo com Fernando Capez (2003, p. 214):
Trata-se de uma espécie de homicídio doloso privilegiado, cujo privilegium é concedido em virtude da “influência do estado puerperal” sob o qual se encontra a parturiente. É que o estado puerperal, por vezes, pode acarretar distúrbios psíquicos na genitora, os quais diminuem a sua capacidade de entendimento ou autoinibição, levando-a a eliminar a vida do infante.
O privilégio constante dessa figura típica é um componente essencial, pois sem ele o delito será outro (homicídio, aborto). Assim é que o delito de infanticídio é composto pelos seguintes elementos: matar o próprio filho; durante o parto ou logo após; sob influência do estado puerperal. Excluído algum dos dados constantes nessa figura típica, esta deixará de existir, passando a ser outro crime (atipicidade relativa). (PEDRO & DIEL, 2014)
O puerpério é o período que se estende do início do parto até a volta da mulher às condições pré-gravidez. Como toda mãe passa pelo estado puerperal – algumas com graves perturbações e outras com menos -, é desnecessário a perícia. Porém, de acordo com Rogério Greco, é exigida a conjugação do estado puerperal com a influência por ele exercida na agente. Se não houvesse influência no comportamento da gestante, o fato deverá ser tratado como homicídio. (PEDRO & DIEL, 2014)
Parte da jurisprudência vem entendendo que a influência do estado puerperal na conduta da agente que mata o próprio filho após o parto é presumida. Há entendimento contrário. No caso, considerando que os fatos não ocorreram logo após o parto, não há como reconhecer a influência do estado puerperal (RES, 224. 577-3/ Barretos, 4ª Câm. Crim. De Férias ‘ julho/98’, Rel. Passos de Freitas, v. U., 23/7/-1998). Com isso a Prova Pericial pode se fazer necessária, conforme esclarece Francisco Dirceu Barros (2016, p. 165):
o entendimento da jurisprudência majoritária é no sentido da dispensa da perícia médica para a constatação do estado puerperal, visto que este é efeito normal e corriqueiro de qualquer parto. O que na realidade existe é uma presunção juris tantum, ou seja, até que se prove ao contrário, a mulher após o parto tem perturbações psicológicas e físicas, geralmente normais, mas, quando intensas causa um distúrbio tão grande que a mulher pode eliminar o neonato, ou seja, o recém-nascido.
Não significa que o puerpério acarrete sempre uma perturbação psíquica, é preciso que fique constatado que esta realmente sobreveio em consequência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento da parturiente. Fora daí, não há por que distinguir entre infanticídio e homicídio. (PEDRO & DIEL, 2014)
A influência do estado puerperal pode exercer diversas funções e produzir diferentes efeitos, dependendo do contexto em que se encontra. Assim, por exemplo, será elementar do tipo quando apenas influenciar a conduta de matar o próprio filho; quando, porém, sua intensidade for suficiente para perturbar a saúde mental a ponto de reduzir-lhe a capacidade de discernimento e determinação; ou, ainda, poderá excluir a imputabilidade, se atingir o nível de doença mental. (PEDRO & DIEL, 2014)
A vontade e a consciência devem abranger a ação da mãe puérpera, os meios utilizados na execução (comissivos ou omissivos), a relação causal e o resultado morte do filho. A tipificação deste crime só admite a modalidade dolosa, como destacava Heleno Fragoso: “Exige o dolo, porém, na forma de vontade viciada pelas perturbações resultantes da influência do estado puerperal”. (PEDRO & DIEL, 2014)
Objetivamente considerada, a ação de matar o próprio filho é, em tese, mais desvaliosa que matar um estranho. Embora a “influência do estado puerperal” não constitua elemento estrutural do dolo, não se pode negar que a sua presença minimiza a intensidade deste. É exatamente essa circunstância subjetiva especial da puérpera que tora menos desvaliosa a ação de matar o próprio filho, comparando-se com a mesma ação de matar alguém. (PEDRO & DIEL, 2014)
A pena é a detenção de dois a seis anos, para o crime consumado. Não há previsão de qualificadoras, majorantes ou minorantes especiais nem modalidade culposa. A ação penal é pública incondicionada. (PEDRO & DIEL, 2014)
Nesse sentido, apresentamos as Jurisprudências a posteriori:
Existindo fortes indícios de que a acusada agiu com animus necandi, não há como acolher, de plano, a tese de erro de tipo razão pela qual deverá a acusada ser submetida a julgamento pelo Tribunal do Júri. Se as provas dos autos, inclusive as de natureza pericial, atestam que a recorrente matou o seu filho, após o parto, sob a influência de estado puerperal, imperiosa a desclassificação da imputação de homicídio qualificado para que a pronunciada seja levada a julgamento pelo cometimento do crime de infanticídio (art. 123 do Código Penal) (TJMG, AC 1.0702.04.170251-/001, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ08/05/2009).
Inexistindo elemento probatório a demonstrar que psiquicamente perturbada sua consciência e vontade, por efeito do estado puerperal, salvo as condições de miséria em que vivia não se pode, de plano, operar a desclassificação da conduta (TJRS, Recurso em Sentido Estrito 70014057491, 3ª Câm. Crim., Relª. Elba Aparecida Nicolli Bastos, j. 9/3/2006).
Deve-se desclassificar a imputação feita pela prática de homicídio, para o crime de infanticídio, pelo fato de a agente ter praticado o crime logo após o parto e sob a influência do estado puerperal (TJMG, AC 1.0120. 03.900021-7/002 (1), Rel. Des. Paulo Cézar Dias, DJ 2/8/2005).
Tanto o homicídio quanto o infanticídio pressupõem a conduta típica ‘matar’, repousando a diferença entre ambos apenas na específica situação em que se encontra o agente deste último, qual seja, o ‘estado puerperal’, definindo como sendo ‘o período que vai do deslocamento e expulsão da placenta à volta do organismo materno às condições normais’ (MIRABETE, Júlio Fabrini. Código penal interpretado. 4. Ed. São Paulo: Atlas, p.842) (TJMG, Processo 1.0003.01.000863-3/001 (1), Rel. Sérgio Braga, pub. 16/9/2005).
A destruição do feto durante o parto caracteriza o crime de homicídio, desde que não praticada por quem se encontrar nas condições do privilégio previsto no art. 123 (infanticídio) do Código Penal (TJMG, Processo 2.0000.00.432144-2/000 (1), Rel. Alexandre Victor, pub. 29/5/2004).
Parte da jurisprudência vem entendendo que a influência do estado puerperal na conduta da agente que mata o próprio filho após o parto é presumida. Há entendimento contrário. No caso, considerando que os fatos não ocorreram logo após o parto, não há como reconhecer a influência do estado puerperal (SER, 224.577-3/ Barretos, 4ª Câm. Crim. De Férias ‘Julho/98’, Rel. Passos de Freitas, v. U., 23/7/1998). Estado puerperal. Prova. Perícia médica dispensável. Efeito normal de qualquer parto. Inteligência do at. 123 do CP (TJSP, RT 655, P.272).
Mãe que, ao satisfazer suas necessidades fisiológicas em uma fossa, deu à luz a uma criança, abandonando dentro da mesma. Autoria e materialidade comprovadas. Conduta praticada logo após o parto – Influência do estado puerperal. Desnecessidade de seu reconhecimento por prova pericial. Recurso provido para esse fim (SER, 155.886-3/Bauru, Rel. Gomes de Amorim, 1ª Câm. Crim., v. U., 24/4/1995).
Ré. Ininputável em razão de doença mental. Estado Puerperal. Correta absolvição sumária com aplicação de medida de segurança (TJRS, RD 70014810014, 1ª Câm. Crim., Rel. Ranolfo Vieira, DJ 21/6/2006).
As jurisprudências apresentadas corroboram o apresentado.
Como já mencionado, no capítulo 2 deste trabalho as principais legislações brasileiras que tratam as questões indígenas no país são a Constituição Federal e o Estatuto do Índio. Existe um projeto de Lei tramitando no congresso a respeito da criminalização do ato de infanticídio indígena, o PL 1057, apresentado pelo Deputado Henrique Afonso (PT-AC) em 2007, Lei Muwaji. (PEDRO & DIEL, 2014)
Todavia, ao falar em - práticas nocivas entre outras expressões discriminadoras do ato o projeto se tornou etnocêntrico, precisando, portanto, de ajustes, inclusive quanto à criminalização. (PEDRO & DIEL, 2014)
O Estatuto do Índio protege a cultura dos índios nos seguintes termos:
Art. 6º Serão respeitados os usos, costumes e tradições das comunidades indígenas e seus efeitos, nas relações de família, na ordem de sucessão, no regime de propriedade e nos atos ou negócios realizados entre índios, salvo se optarem pela aplicação do direito comum.
Também no Estatuto do índio há previsão quanto à garantia do respeito à cultura indígena:
Art.47 - É assegurado o respeito ao patrimônio cultural das comunidades indígenas, seus valores artísticos e meios de expressão.
A Constituição Federal também protege a cultura. Conforme artigo 215 e seu § 1º:
Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Também versa o supracitado artigo, direitos atribuídos aos povos indígenas de forma a serem preservados pelo Estado:
Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Entretanto a Constituição Federal também protege o direito à vida o que como já citado neste trabalho:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida [...]
Deve-se levar em consideração o conteúdo supra e cabe aqui reforçar a ideia da importância da vida, visto que sem esta, todos os outros direitos restam comprometidos. Para que haja cultura, deve haver vida. Se não há vida humana direito algum tem serventia. Perde o objeto a qual se pretende garantir a tutela: (JUNIOR, 2011)
A priori, o conflito tal como se ramifica, situa-se na colisão de caráter negativo de um direito com o caráter positivo desse mesmo direito, em outros termos, o conflito entre a tutela constitucional da vida e a proteção dos costumes, no qual está compreendido o infanticídio. Assim diante do infanticídio indígena há um conflito entre direitos que precisa ser sanado. Há nesses casos, conforme versa Canotilho (1993, p. 228): [...] a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros.
Para que um preceito não exclua o outro, deve-se ser utilizado o princípio da concordância prática, conciliando-se assim os dois direitos.
Despindo-se de qualquer resquício de etnocentrismo, deve-se observar que mesmo na cultura indígena das tribos brasileiras, como a suruhawá, a inviolabilidade do direito à vida deve ser preservada, pois praticar o infanticídio é não permitir que uma pessoa que nasça numa determinada cultura sequer participe desta. Não há que afirmar o desrespeito a cultura indígena, entretanto, apenas um auxílio ao desenvolvimento cultural existente no dinamismo. (PEDRO & DIEL, 2014)
O direito à vida é garantido a todos constitucionalmente, portanto garantir a vida dessas crianças é também respeitar estas comunidades, trazendo à estas culturas o entendimento e o conhecimento de que a vida é relevante. Não que eles não compreendam a grandiosidade da vida, mas seja possibilitada à eles a oportunidade de visualizar a complexidade de se privar a vida destes novos seres que, por serem incapazes de expressar claramente suas vontades, dependem de proteção alheia. (JUNIOR, 2011)
Toda cultura é dinâmica, e está sujeita a modificações de acordo com a evolução social. Nesse sentido: (JUNIOR, 2011)
a solução do conflito deve ser norteada pela ponderação, seguido por circunstâncias que serão avaliadas em cada caso. [...] Frise-se, desde já, que o direito dos povos deve ser resguardado a todo custo e não apregoamos a iniciativa despreparada de interceder com vistas autoritárias. A contrário sensu, clamamos pela criação de comissões especializadas em etnografia, compostas de antropólogos com notável conhecimento na área, para que criem -pontes ou, no dizer de Boaventura, -diálogos interculturais que definidos pela ética, alcancem soluções que se coadunem com o paradigma da Constituição e seus ditames. Portanto, é possível solucionar a questão do infanticídio sem exterminar a cultura destes índios. Todavia, cabe a realização de análise e estudo de cada caso concreto para que seja avaliada, exposta, aprovada e aplicada a melhor medida cabível à sua solução.
Deve-se, então, conhecer e explorar os costumes específicos de cada comunidade indígena, na qual esteja inserida a prática de infanticídio, descobrindo as possíveis formas de aplicação de medida sanadora para tal prática, uma vez que, a cultura local é fator determinante para as atitudes sociais. (JUNIOR, 2011)
Ser brasileiro é ter a inocência do índio e buscar a esperteza dos colonizadores. Essa afirmação é registrada através de toda a história do Brasil onde a formação do Estado se deu de invasões e colonizações que levaram os primeiro habitantes destas terras a modificarem sua maneira de viver para se adequar as necessidades dos novos moradores. (MELO & GONZAGA, 2015)
Mesmo com toda devastação cultural, existente até hoje, os povos indígenas não perderam sua identidade por completo, já que está enraizada em seus costumes e crenças e é passada de geração a geração. Dessa forma a cultura é um meio fundamental de preservação de identidade social e deve ser resguardada a fim de que não se prejudique a consciência comportamental do povo. (JUNIOR, 2011)
No Brasil a cultura é protegida pela legislação máxima, Constituição Federal, de forma que se constitui um direito fundamental à pessoa. Assim o brasileiro tem direito a ter cultura, bem como a ser respeitado dentro de sua escolha cultural. Essa conquista foi alcançada ao longo dos anos com o desenvolvimento das legislações vigentes bem como das diversas Constituições que fundamentaram a nação. (CORREIA, 2016)
Com a mudança constitucional o Brasil protegeu os índios de maneira a lhes salvaguardar direitos merecidos desde sempre, já que foram estes que iniciaram a habitação das terras brasileiras. Também outras legislações mais específicas dispuseram os limites nas relações de direitos entre as comunidades indígenas e as civis fortalecendo a proteção jurídica pessoal bem como a harmonia dos povos. (ALBERT, 2011)
Também no rol dos direitos fundamentais ao homem previstos na Constituição Federal atual, está o direito à vida ao qual ninguém pode ser privado de desfrutá-lo. Não cabe a discussão sobre qual seria o bem jurídico mais valioso uma vez que a vida é o pressuposto lógico da existência, e esta é suporte fático para todo e qualquer direito. (JUNIOR, 2011)
Todavia surge um conflito normativo entre diretos fundamentais quando a cultura se opõe à vida e esta responde negativamente à suas necessidades. Ou seja, diante de práticas culturais que atentem contra a vida cabe ao direito buscar a adequação para regulamentar de maneira justa a situação em questão. (MELO & GONZAGA, 2015)
Assim ocorre diante da prática de infanticídio realizada em comunidades indígenas. O Infanticídio indígena distinto do crime tipificado no Art. 123 do Código Penal Brasileiro, se refere a casos onde a cultura de determinada comunidade indígena priva a vida de crianças a fim de proteger espiritualmente a comunidade. (ALBERT, 2011)
Surge então o ápice do conflito entre os direitos fundamentais -vida e -respeito à cultura. Sob a óptica do próprio índio é preciso buscar uma solução eficaz à seguinte questão, uma vez que a privação da vida retira a possibilidade de qualquer outro direito pertencente à pessoa, inclusive o respeito à cultura. (JUNIOR, 2011)
É, portanto, necessário que o Estado democrático brasileiro, investigue a ação cabível que deve ser tomada em resposta aos problemas sociais e finalize as omissões ocorridas em anos de existência, uma vez que as comunidades indígenas precisam da devida atenção às suas necessidades por parte daquele que tem o papel de buscar as condições plausíveis ao desenvolvimento da sociedade brasileira. (CORREIA, 2016)
Assim, analisar a prática de infanticídio a luz da constituição e ao olhar indígena é verificar que um direito anula outro de forma a extinguir a possibilidade de direitos ao ser afetado pela prática, a criança morta. Cabe então respeitar a cultura, entretanto fazer possível a defesa do direito à vida dessas crianças, conciliando assim os dois direitos. (ALBERT, 2011)
Através de políticas públicas de ensino à valorização da vida o Estado pode, não só trazer solução a questão, mas também, incrementar as culturas dessas tribos que praticam o infanticídio. Dessa forma o Estado revaloriza as raízes dos povos indígenas, uma vez que contribui ao seu desenvolvimento e não a sua diminuição, pois, estará inclusive utilizando-se da visão indígena e não de uma maneira etnocêntrica de ver as coisas. (ALBERT, 2011)
Portanto, é indispensável que os juristas se ocupem dessa questão a fim de embasar soluções ao infanticídio indígena que estejam de acordo com a Constituição Federal, mas também aos próprios costumes dessas comunidades. Vale ressaltar que se trata de comunidades indígenas do Estado Brasileiro, não sendo aceitável a ideia de que são -nação a parte. (JUNIOR, 2011)
Incumbe ao governo do Brasil a responsabilidade de encontrar soluções aos problemas do povo brasileiro, portanto, tarefa do Estado e dever social não se omitir diante de questões com possíveis soluções, pois todo problema onde a solução é procrastinada torna-se maior e mais forte, diante do silêncio. (MELO & GONZAGA, 2015)
Albert, B. (2011). “Infanticídio” Yanomami: Esclarecimentos e Comentários. Povos indígenas no Brasil 2006/2010, 284-286.
Barros, F. D. (2016). Direito Penal – Parte Especial – Volume I. 3ª edição. Saraiva. São Paulo.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
_______. TJMG, AC 1.0120. 03.900021-7/002 (1), Rel. Des. Paulo Cézar Dias, DJ 2/8/2005
_______. TJMG, AC 1.0702.04.170251-/001, Rel. Des. Renato Martins Jacob, DJ08/05/2009
_______. TJRS, RD 70014810014, 1ª Câm. Crim., Rel. Ranolfo Vieira, DJ 21/6/2006
_______. TJRS, Recurso em Sentido Estrito 70014057491, 3ª Câm. Crim., Relª. Elba Aparecida Nicolli Bastos, j. 9/3/2006
BRASIL. TJSP, RT 655, P.272
Capez, F. (2003). Curso de direito penal. São Paulo. Saraiva, 2003. V.2.
Correia, L. G. (2016). RR registra 159 infanticídios em 4 anos. Folha Web.
Fragoso, H. C. (2003). Lições de Direito Penal. Forense.
Freire, A.C., Figueiredo, B. (2006). Filicídio: Incidência e factores assiciados. Análise Psicológica, 4, 437-446.
Gonçalves, M. L. M., (2003). Código penal português: anotado e comentado, legislação complementar. Coimbra. Almedina.
Greco, R. (2009). Curso de Direito Penal parte especial. 3 vol. 04 edição. Niterói, RJ:Impetus.
Junior, R. P. M. (2011). Direito e Interpretação: Racionalidades e Instituições. 1ª edição. Saraiva. São Paulo.
Masson, C. (2018). Direito Penal – Parte Geral. Volume 01. 18ª edição. GEN – Método. São Paulo.
Melo, D. M. S., Gonzaga, J. L. V. (2015). Direito à vida na Constituição Federal Brasileira e o Infanticídio em Comunidades Indígenas. Refletindo o Direito – Revista do Curso de Direito do Cesmac, nº 1, V. 1 – 2015, 158-195.
Nucci, G. S. (2003). Código penal comentado. 3º ed. SÃO PAULO: RT
Pedro, C. Q., Diel, T.O. (2014). O Delito de infanticídio e o estado puerperal. III Congresso Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais Aplicadas – III CONAPE Francisco Beltrão/PR, 01, 02 e 03 de outubro de 2014.
Resnick, P.J. (1969). Child munder by their parentes: A psychiatric review of filicide. American Journal of Psychiatry, 126, 325-334.
[1] Docente da Faculdade Serra do Carmo, Palmas, Tocantins.
[2]LEI DE 16 DE DEZEMBRO DE 1830.
Infanticídio
Art. 197. Matar algum recém-nascido.
Penas - de prisão por três a doze anos, e de multa correspondente á metade do tempo.
Art. 198. Se a própria mãe matar o filho recém-nascido para ocultar a sua deshonra.
Penas - de prisão com trabalho por um a três anos.
Art. 199. Ocasionar aborto por qualquer meio empregado interior, ou exteriormente com consentimento da mulher pejada.
Penas - de prisão com trabalho por um a cinco anos.
Se este crime for cometido sem consentimento da mulher pejada.
Penas - dobradas.
Art. 200. Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que este se não verifique.
Penas - de prisão com trabalho por dois a seis anos.
Se este crime for cometido por medico, boticário, cirurgião, ou praticante de tais artes.
“Penas - dobradas.”
(redação original)
[3] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Bacharelando do Curso de Direito da Faculdade Serra do Carmo, Palmas, Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TAKAHASHI, Bruno César. Entre o Costume e a Lei Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51822/entre-o-costume-e-a-lei. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
Precisa estar logado para fazer comentários.