RESUMO: A questão do nascituro é uma constante em todas as sociedades que se propuseram a indagar a respeito do direito e da origem da pessoa como sujeito de direitos. A partir de quando o ser humano deve ser considerado pessoa, ou seja, pleno sujeito de direitos? Várias correntes tentaram obter respostas, tais como do momento da concepção ou do nascimento com vida. A questão é crucial, pois a partir do momento em que o ser humano se representa como pessoa de direitos na ordem jurídica, esta efetivará no indivíduo todas as garantias e exercícios jurídicos potenciais que se confere ao sujeito de direitos.
PALAVRAS-CHAVE: Nascituro. Código Civil. Sujeito de Direitos. Dignidade.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO 2. O NASCITURO NO CORPUS IURIS CIVILIS. 3 O NASCITURO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002. 4. CONCLUSÃO. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
O tratamento jurídico do nascituro atrela-se à compreensão da origem da pessoa como sujeito de direitos.
O objetivo deste trabalho é comparar a idéia do nascituro em duas diferentes perspectivas, refletindo a respeito do regime jurídico do nascituro estabelecido no Código Civil brasileiro, de 2002 e com as disposições a respeito do nascituro contidas no Corpus Iuris Civilis. A partir destas visões, buscar-se-á compreender melhor o momento da construção da idéia de pessoa como sujeito de direitos.
2. O NASCITURO NO CORPUS IURIS CIVILIS
A questão do nascituro no direito romano suscita debates, visto que afirmações de Paulo, Juliano, Ulpiano e Papiano nos fazem deduzir, como o faz Windscheid, que “o feto no útero materno ainda não é homem, porém, se nasce capaz de direito a sua existência se computa desde a época da concepção”. Mas Alberto Burdese, de sua parte, afirma que alguns efeitos, especialmente aqueles a favor do nascituro, são levados em conta desde a concepção, e não desde o nascimento. Algumas vezes era reconhecida personalidade ao nascituro, mas outras vezes essa personalidade era condicionada ao nascimento, e ainda em outras vezes crianças não viáveis, ou mesmo aquelas que nasciam deformadas (a ponto de serem chamadas de monstros) não adquiriam personalidade humana.
Savigny, porém, no meio de tantas contradições, encontra fortes indícios que equiparam o nascituro à criança. Para tal ele cita “D.1.5.26, Qui in útero sunt, in toto pene iuris civile intelleguntur in rerum natura esse.” Cita também “D50.16.231 Quod dicimus, eum, qui nasci speratur, pro supérstite esse, tunc verum est cum de ipsius iure quaeritur: aliis autem nom predest nisi natus.” Tais fragmentos, segundo Silmara J. A. Chinelato e Almeida, removem a aparência de contradição sobre o nascituro no direito romano. O primeiro fragmento mostra a regra geral em Roma, e o segundo era uma ficção, aplicada somente em alguns casos específicos.
Dessa maneira, vislumbra-se a paridade entre o nascituro e o nascido já no direito romano. Para Pierangelo Catalar, no Disgestas de Justiniano, é certa a paridade entre o nascituro e o nascido, exceto em algumas partes do ius. O princípio elencado é afirmado no Livro 1, tit.V (De status hominum), e tem correspondência com o ultimo livro, tit XVI (De verborum significatione). Esse princípio teria origem nas Doze Tabuas. Devia-se aplicar a interpretatio dos juristas em matéria de herança. Ele ainda afirma que a paridade entre nascituro e nascido não decorre de uma ficção, de uma construção imperativa, mas por constatação de uma realidade por parte do intérprete (como também entende Teixeira de Freitas).
Para ele também, os principio da paridade entre nascituro e nascido tem como critério-guia, pelo menos a partir da época de Adriano, o conceito de commundum do nascituro. A formulação geral encontra-se na época dos Severos, Paulo, “D.1.5.7: Qui in útero est, perinde ac si in rebus humanis esset custoditur, quotiens de commodis ipsius partus quaeritur alii antequam nascatur nequaquam prosit.” Ainda que existam certos fragmentos que não reconheçam o ente concebido como mais do que parte da mulher, é evidente que em Roma a preocupação com a idéia de nascituro já se demonstrava fundamental para a concepção de pessoa como sujeito de direitos.
3. O NASCITURO NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002
O tratamento do nascituro no ordenamento jurídico brasileiro pode ser destacado no artigo 2º do Código Civil de 2002, que nos informa: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Desse modo, cabe ressaltar que se entende por nascituro um ser já concebido, que poderá se tornar sujeito de direitos no futuro caso venha a nascer com vida. Esse ser já concebido possui a proteção legal de seus direitos, destacando-se entre eles, o direito a vida.
No entanto, ainda que goze de proteção legal, o nascituro não possui personalidade jurídica. É fato que este possui capacidade para alguns atos, como ser alvo de doação feita pelos pais, ou adquirir bens por testamento, sendo considerado sujeito de direitos nesses aspectos. Mas este fato não lhe reconhece personalidade, pois conforme o Código Civil esta depende do nascimento com vida. A condição do nascituro apenas se aproxima da personalidade, num estado de expectativa de direito. É, portanto, dado ao nascituro no Brasil uma espécie de “personalidade jurídica fictícia”, na qual se entende que este, por ter uma natureza humana, não deva ser completamente destituído de personalidade. Essa concepção revela também que apesar de poder vir a ser, o nascituro ainda não é uma pessoa juridicamente considerada, dependendo de seu efetivo nascimento com vida.
Existe uma noção de direito potencial de um ser que ainda não foi concebido. Tal noção, conhecida por direito eventual, observa que mesmo um ser ainda não concebido pode ser beneficiado em testamento. A visão do direito eventual observa os direitos do nascituro em uma condição suspensiva.
Dessa forma, é possível afirmar que o Brasil não adota estritamente em seu ordenamento jurídico nem uma teoria natalista, que considera a pessoa apenas a partir do nascimento com vida, e nem uma teoria concepcionista, que considera a pessoa a partir da concepção, haja vista não conferir ao nascituro todos os direitos inerentes às pessoas. A personalidade jurídica é atribuída somente no nascimento, mas deixa-se um rol limitado, embora não taxativo, de atribuições de direitos tanto de forma passiva quanto ativa para o nascituro. Esse rol de direitos faz com que o ente ainda por nascer seja considerado sujeito de direitos, ainda que sua personalidade jurídica não esteja totalmente constituída.
Essa perspectiva é até certo ponto contraditória, conforme demonstrado no próprio artigo 2ª do Código Civil brasileiro de 2002. O Código garante a personalidade civil apenas a partir do nascimento com vida, mas em seguida confere ao nascituro uma devida proteção jurídica, partindo do entendimento de que este possui uma personalidade incipiente, inerente aos seres humanos, cabendo ao direito tratá-la como personalidade jurídica naquilo que vise a efetivar sua potencialidade. Nesse sentido, uma expectativa de vida compreende, no mínimo, uma expectativa de direitos, que em parte já se encontram efetivados em alguns artigos do Código Civil de 2002, como o artigo 552, que garante ao nascituro a capacidade de receber doações. Outro exemplo é a proteção patrimonial do nascituro, observada na obrigação paterna de ajudar financeiramente a genitora, para que esta não arque sozinha com os custos da gestação.
O fato de o nascituro possuir direitos no ordenamento jurídico brasileiro demonstra que o nosso direito entende o nascituro como sujeito de direitos naquilo que lhe cabe, ainda que com personalidade incipiente dada a sua potencialidade. A natureza humana não se modifica independentemente do momento em que se encontra a gestação, o que justificaria o tratamento dado ao nascituro. Um exemplo que se dá é em relação ao Código Penal brasileiro, que trata do aborto na parte dos crimes contra a pessoa, deixando claro que, para o Direito Penal, o nascituro é considerado pessoa de direitos, devendo receber o devido tratamento legal.
Portanto, a partir de uma idéia de “personalidade incipiente”, percebe-se a forma sistemática com a qual o nascituro é tratado no nosso ordenamento jurídico. O direito brasileiro reconhece o nascituro como pessoa em potencial, protegendo-o nos aspectos que visam garantir o desenvolvimento da sua potencialidade humana, sendo que nestes aspectos o nascituro atua como efetivo sujeito de direitos. A partir de então, posiciona-se o nascimento com vida como condição concretizadora da totalidade da potencialidade jurídica, efetivando a aquisição de todos os direitos imanentes da personalidade.
4. CONCLUSÃO
A questão da personalidade jurídica do nascituro se refere às origens da própria atribuição do direito. Observa-se que tanto nas sociedades romana e brasileira, tal discussão gerou perspectivas próprias sobre a idéia de nascituro, mas que dialogam na medida em que buscam estabelecer parâmetros delineadores da efetiva constituição da pessoa de direitos. A partir deste ponto, a pessoa de direitos se torna o agente ao qual se volta todo ordenamento jurídico, buscando efetivar a fruição daquilo que lhe cabe e garantir-lhe a devida proteção jurídica.
Assim sendo, a compreensão do nascituro abarca a compreensão da própria natureza humana. Aquilo que foi concebido por homens há de estar imbuído de humanidade e, portanto, há também de possuir toda a potencialidade humana. Dessa forma, o nascituro deve ser protegido juridicamente para que se garanta o seu apropriado desenvolvimento e o efetivo exercício de sua potencialidade. Essa preocupação é a mola mestra que se observa no tratamento do nascituro sob qualquer perspectiva jurídica.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Silmara Chinelato. Tutela Civil do Nascituro. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
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JUSTINIANO, Imperador. Corpus iuris civiles. Berolini: Weidmannas, 1954-59. 3v.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições do Direito Civil. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
PUSSI, William Artur. Personalidade Jurídica do Nascituro. 2. ed, revista e atualizada. Curitiba: Juruá Editora, 2008.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
SEMIÃO, Sérgio Abdalla. Os direitos do nascituro: aspectos cíveis, criminais e biodireito. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
SILVA, Alexandre Marlon. O Direito do Nascituro a Alimentos. 1. ed. Rio de janeiro: Editora Aide, 2001.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 12. ed. Rio de Janeiro: 1993. 4v.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: volume 1: Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GANEM, Leandro Wehdorn. O regime jurídico do nascituro estabelecido no Código Civil brasileiro e no corpus iuris civilis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2018, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51861/o-regime-juridico-do-nascituro-estabelecido-no-codigo-civil-brasileiro-e-no-corpus-iuris-civilis. Acesso em: 22 nov 2024.
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