Resumo: O intuito deste artigo é - a partir das principais obras de Hobbes, Rousseau e Locke – comparar as características da União Europeia com as definições de sociedade civil que esses autores apresentaram. A partir disso, veríamos se esses autores seriam favoráveis ou desfavoráveis a esse tipo de organização e quais mudanças eles iriam sugerir para que a UE se tornasse mais próxima da sociedade ideal que eles apresentaram nos livros deles. Para poder fazer essa análise, é necessário primeiro apresentar o objeto de análise, ou seja, descrever a UE.
Palavras-chave: Rousseau; Hobbes; Locke; União Europeia; Filosofia do Direito; Norma; Sociedade.
Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusão. 4. Referências Bibliográficas.
Introdução
Os autores contratualistas, para explicar o surgimento e a manutenção da sociedade, argumentam que esse surgimento resulta de um acordo geral entre pessoas. Esse acordo geral é o contrato social. Dessa forma, há um período pós contrato social e um período pré, que é o estado de natureza. Essa é a concepção geral para os autores contratualistas, no entanto, cada autor tem visões diferentes sobre as especifidades do contrato social e do estado de natureza.
A UE é uma união econômica e política composta por 28 países. Essa união tem o objetivo de, por meio da integração entre os membros, gerar o fortalecimento político e econômico do bloco perante os demais países. Dessa forma, são características fundamentais da UE a livre circulação de serviços, pessoas, mercadorias e capitais para que haja a maior integração entre os países.
Essa união tem seu começo, no ano de 1957, com a assinatura do Tratado de Roma, que envolvia a França, Alemanha Ocidental, Itália e os países do Benelux. A partir desse tratado, outros tratados foram sendo assinados com o passar do tempo para garantir a maior integração e maior desenvolvimento do bloco. Entre os diversos tratados, merecem destaque os tratados de Maastricht e o de Lisboa.
O Tratado de Maastricht foi assinado em 1992. Ele é um dos mais importantes pois criou a União Econômica e Monetária, estabeleceu a cidadania europeia e definiu os pilares que assentam a UE. Esses pilares são as Comunidades Europeias, a Política Externa e de Segurança Comum e a cooperação policial e judiciária em matéria penal. Dessas conquistas, as consequências que mais influenciaram na vida dos europeus foram o direito à livre circulação e residência na Comunidade, que resultou do estabelecimento da cidadania europeia, e o estabelecimento do euro como moeda única, que resulta da União Econômica e Monetária.
O Tratado de Lisboa não teve uma influência tão grande na vida dos europeus, mas afetou a organização da própria UE. Isso acontece porque, no Tratado de Lisboa, estabeleceu-se o Tratado sobre funcionamento da União Europeia (TFUE), que definiu competências para os estados membros e para a UE.
Desenvolvimento
A partir dessa breve apresentação de características da UE, pode-se notar que a UE aumentou a sua influência e suas competências, enquanto as nações passaram a ser mais submissas às decisões da UE.
Eu entendo que, para ser possível essa análise da UE a partir das ideias dos autores, é preciso estabelecer uma forma de igualdade para aproximar essas ideias do objeto real analisado, que é a UE. O ponto de igualdade então tem de ser o de equiparar os países às pessoas. Essa ideia surgiu a partir de um trecho da obra Leviatã de Hobbes: "Tal como então faziam as pequenas famílias, assim também fazem hoje as cidades e os reinos, que não são mais do que famílias maiores..." (HOBBES, 2003, p. 103)
Dessa forma, temos de passar a ver todos os países como se eles fossem pessoas. Isso significa que um país está em estado natural até que ele assine um tratado, ou algum outro documento que restrinja a sua liberdade em relação a outros países, e passe a fazer parte de uma sociedade civil além dos países. Do mesmo jeito que, para os três autores, a pessoa tem ampla liberdade no estado de natureza até que estabelece o contrato social. Resumindo, então: os países têm de ser entendidos como pessoas; os tratados, ou algum outro documento que restrinja a sua liberdade em relação a outros países, têm de ser entendidos como contratos sociais; o período em que um país fica sem ser signatário de algum tratado tem de ser entendido como o estado de natureza; e o período em que um país é signatário de um tratado tem de ser entendido como uma sociedade civil com os demais países signatários.
Hobbes tem a visão de que o ser humano, em seu estado natural, está em uma situação de guerra de todos contra todos. Nesse estado, todos os indivíduos são livres e se guiam pela lei da natureza de que tudo é válido para que a integridade do indivíduo seja preservada. Como só quer preservar seus interesses, o ser humano teme as ações dos demais, que podem prejudicá-lo, e acaba optando por agir antes do que os outros ajam. O efeito dessa tentativa de ação prévia é o de que todos estarão tentando se antecipar aos demais, logo, cria-se um cenário de constantes ações de pessoas que, para não se prejudicarem, prejudicam os outros. Cria-se então uma condição de guerra no estado natural. A saída da condição de guerra depende da saída do estado de natureza. Para sair do estado de natureza, precisa-se então de um contrato social para estabelecer um Estado. (HOBBES, 2003, p. 75)
O contrato, para Hobbes, é uma transferência de direitos entre partes. Dessa forma, o contrato social é uma transferência de direitos entre as pessoas e o responsável por governá-los. A partir disso, o soberano, que pode ser uma assembleia, tem de garantir que haja uma condição de paz ao invés de uma condição de guerra. Para manter o estado de paz, esse governante deve propiciar a possibilidade de obtenção das coisas necessárias para haver uma vida confortável, ele deve garantir que essas coisas sejam obtidas pelo trabalho e ele deve sempre ser temido pelos súditos. Além disso, o soberano é responsável por proteger a sociedade das ameaças externas. (HOBBES, 2003, p. 77)
O argumento utilizado pelo autor para ilimitar o poder do soberano é o de que ele é apenas um ator enquanto toda a sociedade é autora. Isso significa que, no contrato social, as pessoas abriram mão de alguns direitos para que o soberano estivesse autorizado a fazer tudo desde que seja com o intuito de manter a condição de paz, logo, qualquer ação do soberano é de autoria do povo mas executada por ele. (HOBBES, 2003, p. 131)
A visão de Hobbes a respeito da EU, creio eu, seria a de intensificá-la. Isso porque, como já há um soberano a todos os países, ele defenderia que esse soberano tem de cada vez ser mais poderoso para evitar uma condição de guerra. Dessa forma, ele seria a favor de que a UE concentrasse as atribuições dos Estados, porque os países ao assinarem os tratados permitiram que a UE fosse atora, enquanto os países são autores, e pudesse fazer de tudo para a preservação da situação de paz.
Outro ponto da teoria de Hobbes que dá a entender que ele defenderia que apenas a UE fosse soberana é o de que não pode haver concomitância de soberania. Isso significa que não pode haver mais de um soberano no mesmo espaço. Dessa forma, a atual estrutura não estaria de acordo com as ideias dele, pois ele defenderia que os judiciários, executivos e legislativos de todos os países passassem a ser apenas um judiciário e um executivo-legislativo para toda a Europa.
Sobre a questão da defesa contra ameaças externas, Hobbes elogiaria a união dos países em um grupo que se defende conjuntamente caso algum dos membros seja atacado. Ele, no entanto, sugeriria que essa cooperação fosse elevada e passasse a haver um grande exército comum para toda a UE.
Em suma, pode-se crer que Hobbes, caso analisasse a EU, afirmaria que ela deve ser potencializada até que se torne uma nação abarcando toda a Europa. Uma nação centralizada nas mãos do soberano que tomaria as ações necessárias para garantir a paz internamente e para se proteger das ameaças externas.
Locke afirma que o ser humano, em seu estado de natureza, encontra-se numa situação de perfeita liberdade, pois o indivíduo pode regular as ações dele com bem entender, e igualdade, pois todos têm o mesmo poder e jurisdição. O estado de natureza é assim pois foi assim que Deus dispôs as criaturas na Terra. (LOCKE, 1998, p. 382)
O comportamento dos seres humanos no estado de natureza também é consequência da vontade divina. Deus estabeleceu a lei da natureza, assim como estabeleceu as leis da natureza em Hobbes, que a todos obriga e que afirma que: "...ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses." (LOCKE, 1998, p. 384) Essa lei, no entanto, às vezes é desobedecida e cabe a cada homem punir os transgressores dessa lei da natureza para garantir a paz e para garantir que essa lei seja executada no futuro.
Esse comportamento baseado na lei da natureza passa a falsa ideia de que não há conflitos no estado de natureza. Os conflitos no estado de natureza, na verdade, resultam dessa responsabilidade que cada ser humano tem de punir aqueles que violam a lei da natureza. Isso acontece porque o homem, quando vai punir, não está livre de paixões e teria de ser juiz em causa própria, logo, ele geraria mais confusão e desordem quando tivesse de agir como um juiz. Esse período, resultante da necessidade de cada um ter de executar a lei da natureza, em que há inimizade, violência e destruição mútua é entendido como um estado de guerra que acontece durante o estado de natureza. O governo civil então é a ferramenta que deve ser utilizada para evitar essas inconveniências, que são breves momentos de estado de guerra, do estado de natureza. (LOCKE, 1998, p. 391)
Um ponto interessante abordado pelo autor durante o texto é o de que ainda há homens em estado de natureza. Esses homens são os chefes de governos independentes, pois não estão submissos a algo que restrinja a liberdade deles em relação aos demais países. (LOCKE, 1998, p. 392)
Trazendo a obra de Locke para a realidade da UE, pode-se perceber a característica que chamaria mais a atenção desse autor. Essa característica é a de que, com o estabelecimento de um Judiciário para todo o bloco que vincula os países membros, há a superação do estado de natureza entre os países que fazem parte dessa união. Isso acontece porque agora há uma entidade superior aos países que fica responsável pela aplicação das leis e não há mais a necessidade de os países imporem punições aos outros, visto que a UE agora fará isso. Dessa forma, pela superação do estado de natureza entre esses países, não há mais a possibilidade de haver um estado de guerra.
Rousseau afirma que o contrato social é uma convenção cujo objetivo é proteger as pessoas e os bens delas, mas que, ao mesmo tempo, garanta a liberdade que a pessoa tinha antes do contrato. (ROUSSEAU, 1999, p. 21) Esse é um ponto paradoxal, pois os demais contratualistas afirmam que participar do contrato social obriga que a pessoa ceda direitos para os soberanos, enquanto Rousseau afirma que isso não é necessário.
A forma proposta pelo autor para que haja a mesma liberdade de antes do contrato, é a de que a vontade geral deve dirigir as forças do Estado. Essa vontade geral tenderá para o bem comum, que é o propósito do estabelecimento do Estado. A partir disso, o autor afirma que a soberania advém da vontade geral e somente dela, logo, a soberania não pode ser separada da vontade do povo. (ROUSSEAU, 1999, p. 33)
Comparando as características da UE com as da sociedade ideal para Rousseau, pode-se notar pontos que ele aprovaria e reprovaria. O primeiro ponto que ele aprovaria é o de que, tanto a sociedade civil rousseauniana quanto a UE, surgem com o objetivo de: "... arrebatar ao homem suas próprias forças para lhe dar outras que lhe sejam estranhas e das quais não possa fazer uso sem o auxílio de outrem.". (ROUSSEAU, 1999, p. 50) Essa parte do texto relaciona-se com um dos motivos da criação do bloco, que foi o fortalecimento econômico e político de todos os membros.
Outro ponto que ele aprovaria da UE é o de que ela surge com o intuito de, além de beneficiar os membros, criar uma situação de paz. (ROUSSEAU, 1999, p. 60) Isso acontece porque ela surge da CECA, um projeto de dependência entre países que haviam sido protagonistas na Segunda Guerra Mundial. Essa dependência faria com que eles tivessem mais laços entre si, logo, em caso de desentendimentos, esses laços dificultariam alguma espécie de rompimento.
Um problema que ele provavelmente veria na UE é o da extensão. Isso acontece porque Rousseau afirma que as mesmas leis não são efetivas para povos de cultura tão distinta. (ROUSSEAU, 1999, p. 57) Logo, é de se esperar que ele veja problema em as mesmas leis, que são elaboradas pela Comissão, serem aplicadas para povos com línguas, colonizações e crenças diferentes.
O principal problema que eu creio que ele veria seria o do não favorecimento igual para todos os cidadãos, que é um dos preceitos da sociedade civil para Rousseau. (ROUSSEAU, 1999, p. 41) Ele estranharia que os membros desse bloco contribuem com valores muito diferentes e que os investimentos são destinados para alguns países mais do que para outros. Isso faz com que a UE receba críticas dos eurocéticos, em sua maioria são dos países ricos do bloco, que acreditam que o bloco está servindo como uma forma de transferir renda dos ricos para os países mais pobres.
Conclusão
Mesmo os objetos de análise nesse ensaio estando tão distantes um dos outros no tempo, pode-se notar que é possível fazer conexões entre eles. Conexões que mostram como os grandes clássicos podem trazer luz para discussões atuais e que mostram como textos, que são insignificantes no tamanho mas ricos em conteúdo, são capazes de influenciar na construção de estruturas sociais e políticas tão grandes.
Conclui-se então que os autores, por terem diferenças conceituais no próprio contratualismo, teriam diferentes críticas e elogios a fazer à União Europeia. Essas opiniões, mesmo vindo de filósofos antigos, ainda assim seriam de grande valia.
Referências Bibliográficas
HOBBES, Thomas. Leviatã- ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ROUSSEAU, Jean – Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
ARISTÓTELES. "Ética a Nicômaco" in. Os Pensadores. São Paulo: Victor Civita, 1984.
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CONSTANT, Benjamin, "Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos" in. Filosofia Política. Porto Alegre: L&PM,
GARGARELLA, Roberto (Coord.). Teoría y crítica del derecho constitucional. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2010.
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Bacharelando pela Faculdade de Direito - UnB
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Pedro Henrique Fachini Lustosa da. Diferentes visões contratualistas sobre o Direito da UE Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jun 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/51949/diferentes-visoes-contratualistas-sobre-o-direito-da-ue. Acesso em: 22 nov 2024.
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