DÉLCIO MEDEIROS RIBEIRO
(Orientador)
RESUMO: Este trabalho pretende evidenciar a viabilidade da reparação do dano moral nas relações familiares, especificamente nas relações paterno-materno-filiais, identificando assim as mudanças ocorridas na Constituição, no Código Civil e o surgimento do Estatuto da Criança e do Adolescente e os motivos que impedem a efetivação da compensação por dano moral nessas relações. Buscou-se durante a pesquisa, base legal e doutrinária sobre tal tema, e informações a ele relacionadas, com o objetivo de se demonstrar a importância da família e algumas particularidades do dano moral, enfocando conceitos e a evolução histórica desses. Diante disso, percebeu-se que a compensação por dano moral requerida pelo filho por ato de seu pai e/ou de sua mãe alcança as funções da responsabilidade civil, compensatória da vítima, punição do ofensor e desmotivação social, e não descaracterizando a família, como alguns doutrinadores defendem. Também, analisou-se o problema em se averiguar o quantum indenizatório do dano extrapatimonial na entidade familiar, concluindo que tal problema pode ser sanado, apurando-se, diante do caso concreto, a capacidade monetária do ofensor, a extensão do dano experimentado pela vítima e a duração dessa lesão, sendo que para a constatação desses dois últimos modos, propôs-se a realização de perícia psicológica. São poucos os magistrados que reconhecem o dano moral nesse caso peculiar, por isso, faz-se urgente um maior empenho para que, dessa forma, se tente consolidar a possibilidade da compensação por dano moral nessas relações, desse modo, sim, protegendo-se amplamente a entidade mais importante da nossa sociedade – a família.
Palavra-chave: Dano moral. Família. Relações paterno-materno-filiais.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. CONCEITO DE FAMÍLIA. 2. RELAÇÃO PATERNO-MATERNO-FILIAL. 3. DANO MORAL. 4. A INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL NAS RELAÇÕES FAMILIARES PATERNO-MATERNO-FILIAIS. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
Os estudos da área jurídica contemplam muitas ramificações; entre elas chama a atenção o dano moral nas relações familiares, já que tais relações são reconhecidamente importantes para a formação do indivíduo. Tal constatação só se confirmou no decorrer dos estudos proporcionados pelo curso de graduação em Direito, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Discutindo o conceito de família na atualidade, Maria Berenice Dias, no Manual de Direito de Família (2009), afirma que o papel principal da família é dar o suporte emocional do indivíduo. Mas, pode-se verificar que, comumente, tal suporte é quebrado e, ao invés de propiciar um bem-estar saudável para o indivíduo, acaba prejudicando-o.
Diante da quebra desse suporte, surge a possibilidade do dano moral nas relações familiares. Dano moral é aquele extrapatrimonial, que não alcança os bens materiais do ofendido, mas o atinge como pessoa, ferindo algum bem que integra os direitos de personalidade. Esses conceitos de família e dano moral estão presentes em processos movidos entre familiares, tais como marido e mulher, pai e filho, por exemplo.
Embora haja processos dessa natureza, a doutrina ainda não se pacificou sobre essa questão, pois alguns defendem que poderia haver outras soluções para esse problema, entre eles divórcio e afastamento do lar; exclusão da herança; dever de prestar alimentos; perda do poder familiar e da guarda dos filhos. Outro fator que inibe a aplicação do dano moral nas relações familiares é a dificuldade de se mensurar esse dano e torná-lo um valor líquido, pois é preciso levar em consideração o efetivo dano sofrido e evitar o enriquecimento ilícito. Por outro lado, a parcela da doutrina que reconhece o dano moral constata que é possível verificar, sim, o dano moral nas relações entre parentes e que a indenização por tal dano seria oportuna.
Neste trabalho, abordamos especificamente a possibilidade da averiguação da ofensa moral do pai para com o filho, que ocorre com omissões ou com atos comissivos do pai, e que acabam por ferir a integridade moral do filho. Ressaltamos que discutiremos situações que não sejam tipificadas como crime, mas que acabam tendo uma repercussão danosa no âmbito afetivo. Optamos por tal recorte por reconhecer que o filho, em tais relações, é normalmente o mais suscetível, já que, em geral, esse dano moral é sofrido desde criança, ou seja, antes de a pessoa ter a capacidade plena de discernimento e de defesa.
Diante do exposto, pretendemos discutir os prós e os contras da aplicação do dano moral nas relações familiares entre pais e filhos. Objetivamos, com isso, analisar a viabilidade de processos dessa natureza e, assim, contribuir para o amadurecimento da questão, já que não há consenso na doutrina.
De modo específico, traçamos como objetivos o levantamento bibliográfico acerca dos argumentos em favor e contra processos de danos morais envolvendo familiares; a discussão de conceitos relevantes para a pesquisa, tais como família, dano moral e enriquecimento ilícito. A dificuldade de se mensurar o dano moral sofrido, o modo como as relações familiares são construídas e como elas se revelam imprescindíveis para a constituição do indivíduo também compõem os fins a que se prestam este trabalho.
Para nortear o trabalho, partimos do levantamento das seguintes hipóteses: o reconhecimento do dano moral sofrido pelo filho por ato dos pais é capaz de compensar a vítima e punir o ofensor, chegando assim às funções básicas da responsabilidade civil. Há a possibilidade de o juiz, no caso concreto, determinar o valor indenizatório do dano moral sofrido pelo filho por ato do seu pai e/ou da sua mãe.
Este trabalho estrutura-se sobre uma pesquisa eminentemente bibliográfica, visando um estudo sistemático com base no material publicado de maior respaldo sobre o tema. Para melhor sistematização e entendimento da pesquisa, encontra-se estruturado em cinco partes: esta Introdução, que levanta os fatores motivacionais de realização da pesquisa e esclarece seus objetivos; o Capítulo 1, cuja abordagem apresenta alguns conceitos de família, situados historicamente, bem como sua importância para a formação sócio-afetiva do indivíduo. O Capítulo 2 discute a relação específica entre pais e filhos, já que é, dentre as relações familiares, esta a que nos interessa mais de perto para o desenvolvimento deste trabalho. O Capítulo 3 realiza uma abordagem geral sobre dano, especificamente dano moral, comparando-o com o dano material, a fim de esclarecer as distinções e promover a elucidação sobre como se pode mensurá-lo. O Capítulo 4 trata da indenização por dano moral sofrida pelo filho por ato do(s) pai(s); para tanto, discute-se, antes, o dano moral nas relações familiares de um modo geral, bem como a possibilidade de se considerar a alienação parental também um dano moral sofrido pelo filho. Por fim, apresentamos as Considerações finais, que retoma as discussões elaboradas para apresentar o nosso entendimento, diante dos argumentos levantados na pesquisa, acerca da possibilidade de o dano moral nas relações familiares ser ou não indenizável.
O conceito de família tem mudado muito no decorrer do tempo, pois vem se adaptando às transformações sociais. Na vigência do Código Civil de 1916, por exemplo, o matrimônio era essencial para o reconhecimento de uma família, a qual tinha uma função primordialmente econômica de acumular bens materiais. Essa visão, bastante diferenciada da concepção atual, como veremos, se refletia nas leis em vigor.
A visão jurídica da família contida no Código Civil de 1916 considerava os valores predominantes daquela época, afirmava a entidade familiar como unidade de produção, pela qual se buscava apenas a soma patrimonial e sua posterior transmissão à prole, uma vez que a família vigente nesse período era absurdamente materialista. Naquele ambiente familiar, hierarquizado, patriarcal, matrimonializado, os vínculos afetivos para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico necessitavam necessariamente ser chancelados pelo matrimônio[1].
Contudo, através de jurisprudências, esse conceito de família restrito ao matrimônio e vinculado à economia começou a se modificar, até que, com a Constituição da República de 1988, passou-se a considerar um número mais abrangente de relações. Além da família constituída pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis, também as uniões estáveis entre homem e mulher e as famílias monoparentais passaram a ser reconhecidas como tais, dessa forma, alargando tal conceito. É importante ressaltar que, mais tarde, o Código Civil de 2002 também integrou esses novos conceitos ao seu rol. Da mesma forma, é imprescindível salientar que outras mudanças trazidas pela Carta Maior de 1988 reconhecem a evolução das relações familiares, tornando a lei compatível com a realidade social. Como leciona Alexandre de Morais[2], a Constituição passa, portanto, a entender a família como uma “entidade” e, assim, estabelece para ela regras de regência das suas relações; nessa nova visão, ao invés de critérios econômicos, são adotados princípios que destacam questões humanistas, como responsabilidade, dignidade, igualdade e direitos humanos. Seguem-se abaixo algumas das regras estabelecidas, segundo Morais:
· cabeça do casal: os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher;
· dissolução do casamento: o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos previstos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. A Constituição Federal de 1988 previu a possibilidade do divórcio direto, sem qualquer limitação de vezes, em norma constitucional auto-aplicável, tendo exigido um único requisito para sua ocorrência, o prazo de dois anos de separação de fato, sendo absolutamente desnecessária qualquer imputação de culpa para a efetivação do divórcio;
· planejamento familiar: fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas;
· adoção: a adoção será assistida pelo poder público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros;
· filiação: os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Essa norma constitucional tem aplicabilidade imediata, garantindo-se imediata igualdade, sem que possa resistir qualquer prejuízo ao filho adotivo ou adulterino, que poderá, inclusive, ajuizar ação de investigação de paternidade e ter sua filiação reconhecida, além de ter o direito de utilização do nome e do pai casado;
· assistência mútua: os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Pela citação, podemos observar como o conceito legal de família tornou-se mais adaptado à nossa sociedade atual. É importante ressaltar que, do período em que foi editado o livro que citamos já houve mudanças quanto ao divórcio e à separação, mudanças que novamente tornaram as leis mais compatíveis com a realidade social.
Se faz mister notar, também, a importância de se igualar todos os filhos para uma nova conceituação de família. Antes da Constituição, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), já se estabelecia que os filhos adotados tivessem o mesmo tratamento legal que os biológicos[3].
O Estatuto da Criança e do Adolescente, além de criar uma nova terminologia, como “família substituta”, e implantar a idéia de “pais sociais”, ao estabelecer as regras sobre a adoção, revogou os arts. 373/374 do Código Civil de 1916, que dizia sobre a extinção do vínculo das adoções. Esses dispositivos vêm fazer coerência com uma nova visão de família e paternidade. Parecem ter entendido a família como estrutura e a desvinculação da paternidade de elementos meramente biológicos, quando não permitem mais a revogação da adoção[4].
Ademais, o fator de não se distinguir os filhos biológicos advindos de relações extrapatrimoniais (união estável, concubinato ou relacionamento breve) dos gerados com a relação conjugal – que anteriormente eram chamados de legítimos e ilegítimos respectivamente – foi, da mesma forma, um avanço essencial para que se desse mais dignidade tanto aos filhos quanto às suas mães.
Mas, apesar de toda evolução jurídica, ainda há muito que progredir, pois a lei ainda se omite quanto às relações homossexuais, por exemplo, que ainda não podem ser reconhecidas no plano legal. Contudo, a união homossexual é um fato social e, como tal, gera consequências que o direito tem ignorado, salvo raras exceções.
Há quem defenda que, com todas essas mudanças, a família está em crise, que mais tarde deixará de existir e que seu fim se deve a esse “excessivo” alargamento no conceito de família. Questões surgem quanto à natureza dessa visão: trata-se de um discurso conservador, de quem guarda simultaneamente o temor da mudança ou que vê a sua “verdade” ameaçada com outras possibilidades de existência? Trata-se de uma questão religiosa (de parte das religiões hoje praticadas no Brasil), a partir da qual a variabilidade de relações interpessoais e afetivas seria um agravo à palavra de Deus, um pecado, e por isso não deve ser admitida? Essa visão oculta (ou quem sabe deflagra) de formas de preconceito, cuja característica premente é a de condenar, sem ponderar ou conhecer fatos, pessoas que não se classificam na concepção social de um grupo hegemônico e são apontadas como “aberrações” sociais? Respostas para estas questões exigiriam uma pesquisa à parte. Mas, podemos dizer, as suposições que apresentamos compõem todas um discurso discriminador, que pressupõe a existência de uma só Verdade, podando e/ou negando algo que é intrínseco ao homem: a sua capacidade de criar novas situações, novas formas de viver e de se adaptar.
Uma análise mais coerente nos faz perceber que, como assegura Maria Berenice Dias[5].
A entidade familiar, apesar do que muitos dizem, não se mostra em decadência. Ao contrário, é o resultado das transformações sociais. Houve a repersonalização das relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor.
Ainda sobre o conceito de família, de uma forma mais didática, Alexandre de Morais traz[6] a visão de Arx Tourinho, para quem é possível compreender família de duas formas – ampla e restrita:
No primeiro sentido, a família é o conjunto de todas as pessoas, ligadas pelos laços do parentesco, com descendência comum, englobando, também, os afins – os tios, primos, sobrinhos e outros. É a família distinguida pelo sobrenome: família Santos, Silva, Costa, Guimarães, e por aí afora, neste grande país. Na acepção restrita, família abrange os pais e os filhos, um dos pais e os filhos, o homem e a mulher em união estável, ou apenas irmãos... é na acepção stricto sensu que mais se utiliza o termo família, principalmente do ângulo do jus positum...
De modo similar, Boeira[7] define família levando em consideração as características genéticas, ou seja, como o grupo de pessoas vinculadas por um mesmo ancestral. De modo estrito, para o autor, a família é composta apenas pelo pai, pela mãe e por seus filhos.
Mas, independente de conceitos legais e doutrinários, temos sempre que nos remeter à questão do afeto como elemento que impulsiona a formação de uma família, porque, dessa forma, também tornaremos a lei mais dinâmica, mais adaptável ao nosso cotidiano e, assim, mais justa, já que estará atendendo aos anseios da sociedade e acompanhando sua moral e ética. Segundo ensina Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald[8]:
Composta por seres humanos, decorre, por conseguinte, uma mutabilidade inexorável na compreensão da família, apresentando-se sobre tantas e diversas formas, quantas forem as possibilidades de se relacionar, ou melhor, de expressar amor, afeto. A família, enfim, não traz consigo a pretensão da inalterabilidade conceitual. Ao revés, seus elementos fundantes variam de acordo com os valores e ideais predominantes em cada momento histórico.
É imprescindível definir, igualmente, neste capítulo, não só o conceito de família, como também sua importância para a sociedade, de forma ampla, e para o desenvolvimento do indivíduo, particularmente. Essa importância é reconhecida pela própria Constituição, a qual entende a família como “base da sociedade” e, por conseguinte, se compromete a protegê-la[9].
Partindo do pressuposto de que a família é célula-mater da sociedade, podemos afirmar que ela proporciona aos seus membros a dimensão social de que necessitam parar se integrarem com a sociedade em sentido amplo. Em outras palavras, é no seio familiar que o indivíduo aprende a se comportar e a se relacionar de modo diferenciado nas mais variadas situações.
É essa estrutura familiar, que existe antes e acima do
Direito, que nos interessa investigar e trazer para o Direito. E é mesmo sobre ela que o Direito vem, por meio dos tempos, regulando e legislando, sempre com o intuito de ajudar a mantê-la para que o indivíduo possa, inclusive extrair como cidadão (sem esta estruturação familiar na qual há um lugar definido para cada membro, o indivíduo seria psicótico) e trabalhar na construção de si mesmo (estruturação do sujeito) e das relações interpessoais e sociais que remetem a um ordenamento jurídico[10].
Podemos usar as precisas palavras de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald[11], com a finalidade de definir a importância da família para o desenvolvimento do indivíduo como pessoa:
No âmbito familiar vão se suceder os fatos elementares da vida do ser humano, desde o nascimento até a morte. No entanto, além de atividades de cunho natural, biológico, psicológico, fisiológico..., também é a família o terreno fecundo para fenômenos culturais, tais como as escolhas profissionais e afetivas, além da vivência dos problemas e sucessos. Nota-se, assim, que é nesta ambientação primária que o homem se distingue dos demais animais, pela susceptibilidade de escolha de seus caminhos e orientações, formando grupos onde desenvolverá sua personalidade, na busca da felicidade – aliás, não só pela fisiologia, como, igualmente, pela psicologia, pode-se afirmar que o homem nasce para ser feliz.
Assim, fica evidente o quanto é fundamental o núcleo familiar para que um ser humano alcance a plenitude. Obviamente, falamos aqui de um núcleo familiar que, a despeito de sua constituição – pai, mãe e filhos, pai e filhos, mãe e filhos, etc. – seja estruturado e entendido, de fato, com família, cujo “principal papel é de suporte emocional do indivíduo, em que há flexibilidade e, indubitavelmente, mais intensidade no que diz respeito a laços afetivos”[12].
Neste trabalho trataremos especificamente da relação entre filhos e pais, que está inserta dentro das relações familiares aqui apresentadas, com todas as características já descritas e outras peculiaridades que trataremos em capítulo específico.
Como já se afirmou a família, após a Constituição da República, pode se formar através do casamento civil ou religioso com efeitos civis, união estável entre homem e mulher e a família monoparental, ou seja, aquela formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Apesar, de atualmente, a doutrina e a jurisprudência até já reconhecer a possibilidade de outros tipos de família, nos importa aqui ressaltar que tal entidade é responsável por formar a personalidade do indivíduo, trazendo para ele o primeiro contato com a cultura em que está inserto e o rodeará, provavelmente, por toda sua vida.
É certo que o ser humano nasce inserto no seio familiar- estrutura básica social - de onde se inicia a modelagem de suas potencialidades com o propósito da convivência em sociedade e da busca de sua realização pessoal[13].
A partir do reconhecimento da importância da família, traremos algumas especificidades sobre as relações paterno-materno-filiais, para isso faz-se mister mencionar que não faremos diferença entre o filho adotado e o biológico, posto que
a Lei n. 8.069, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe novos elementos sobre a concepção de pátrio poder (poder familiar na expressão do Código Civil brasileiro de 2002) e paternidade. Ao estabelecer sobre famílias naturais e substitutas (arts. 25 e 28), essa lei introduz inovações ao referir-se aos “pais sociais”. É na compreensão do papel social do pai e da mãe, desprendendo-se do fator meramente biológico, que esse estatuto vem ampliar o conceito de pai, realçando sua função social. Podemos notar, aí, o avanço e um sinal de compreensão, pelo nosso ordenamento jurídico, de que o pai é muito mais importante como função do que propriamente como genitor[14].
Os primeiros contatos com regras acontecem no ambiente familiar, nele a pessoa vai passar a ter noção do que pode ou não fazer; do que prejudica a si mesmo e o outro, de modo a formar sua personalidade. A Psicologia explica que isso acontece através do Complexo de Édipo.
[...] a família é uma estruturação psíquica em que cada membro ocupa um lugar. Nesse caso, o lugar do pai é essencial como estruturante na formação psíquica dos filhos, para ser um terceiro na relação mãe-filho. É exatamente esse terceiro (um pai) que vem separar a mãe do filho, possibilitando que ele se torne sujeito. Foi essa necessidade, essa essencialidade que Freud demonstrou ao mundo, por meio da lenda grega Édipo, teorizando o seu Complexo de Édipo, em que o desejo da criança pela mãe deve ser interditado por um outro. É esse outro que metaforiza e exerce a função paterna[15].
É essencial ressaltar que “mesmo na ausência, o pai se faz presente pelo discurso da mãe. Esta fala da mãe é decisiva para a criança e marca o referencial de “lei”, quando fala sobre o pai”.
A História, a Psicanálise, o Direito e até mesmo as religiões asseguram ao homem, principalmente como pai, um alugar mais fundamental: fundante. Fundante porque é ele, ocupando o lugar da lei, faz o primeiro encaminhamento à cultura, por um interdito proibitório das relações exclusivamente matérias em benefício da subjetividade da criança[16].
Mas, apesar de reconhecermos a influência do pai para a formação de outra pessoa, é imprescindível demonstrar também o papel da mãe, esta que, segundo Freud, é a primeira paixão do indivíduo. Antigamente, no mundo ocidental, era a mãe quem exercia praticamente sozinha a função de educar a prole.
Com as mudanças do sistema patriarcal, não se pode mais fazer o retrato típico. No patriarcado, o pai, além de encarnar a lei, a autoridade, é instituído de um poder quase divino. Por outro lado, pouca atenção foi dada ao outro lado desse sistema: as crianças eram abandonadas afetivamente pelo pai e tornavam-se propriedades exclusivas da mãe. O início da vida se desenrolava sem a presença do pai[17].
Mas, “com a revolução feminista, os homens tendem a uma participação mais efetiva e não se limitam a ser apenas a representação da lei”, assim, ajudando mais ativamente na criação dos filhos, entre outras coisas, como realizar afazeres domésticos, posto que se passa a reconhecer a igualdade entre os sexos. De forma que, atualmente, tanto o pai como a mãe exercem papeis essenciais para a formação do(s) seu(s) filho(s).
O dano, do latim damnum, é “a lesão a um interesse jurídico tutelado – patrimonial ou não -, causado por ação ou omissão do sujeito infrator”[18]. Segundo a maior parte da doutrina, ele se subdivide em dois grandes grupos - o dano patrimonial e o dano moral. Para melhor conceituar o dano moral, é necessário evidenciar a diferença deste com o dano material.
É possível distinguir no campo dos danos, a categoria dos danos patrimoniais (ou materiais), de um lado, dos chamados danos extrapatrimoniais (ou morais), de outro. Material é o dano que afeta somente o patrimônio do ofendido. Moral é o que só ofende o devedor como ser humano, não lhe atingindo o patrimônio. A expressão “dano moral” deve ser reservada exclusivamente para designar a lesão que não produz qualquer efeito patrimonial. Se há conseqüências de ordem patrimonial, ainda que mediante repercussão, o dano deixa de ser extrapatrimonial[19].
A indenização por dano moral ou patrimonial é uma saída tão viável que a Carta Maior a propõe por duas vezes durante o seu texto, ambas no art. 5º, a primeira em seu inciso V e a outra no X. Dentre os direitos e garantias fundamentais está “assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”, segundo palavras do próprio texto constitucional, no seu inciso V, art. 5º.
No inciso X do mesmo artigo, a Constituição também propõe a indenização por dano moral ou material nos casos de violação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Dessa forma, a lei protege amplamente a imagem das pessoas em qualquer instância – seja nas relações particulares – de amizade ou familiares – seja nas relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc. Cumpre destacar que, nesse mesmo inciso consta a proteção da imagem também frente aos meios de comunicação, ou seja, caso a imagem da pessoa venha a ser divulgada de forma vexatória, ela pode requerer indenização por danos morais.
Se faz mister evidenciar que, nos dois dispositivos, a proteção é garantida tanto à pessoa física quanto à pessoa jurídica. Inclusive, é importante saber que a possibilidade desse resguardo é destinada a todos, sem distinções, dentro do território nacional, ou seja, também pessoas que não moram no país, enquanto estiverem nele, terão sua inviolabilidade garantida.
O art. 5º da Constituição Federal afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Observa-se, porém, que a expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro, não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território nacional, que possui igualmente acesso às ações, como o mandado de segurança e demais remédios constitucionais. Igualmente as pessoas jurídicas são beneficiárias dos direitos e garantias individuais, pois reconhecem-se as associações, o direito à existência, o que de nada adiantaria se fosse possível excluí-las de todos os seu demais direitos. Dessa forma, os direitos enunciados e garantidos pela Constituição são de brasileiros, pessoas físicas e jurídicas[20].
A viabilidade do processo por dano moral não era reconhecido pelas leis no Brasil, antes de 1988; embora houvesse jurisprudências que versavam sobre o assunto, a questão não era consensual. Por essa época, questionava-se se a dor teria um preço, uma valoração muitas vezes classificada como imoral. A Constituição da República de 1988, não só pacificou a possibilidade da reparação pecuniária por dano moral, como também tornou aceitável a cumulação de dano material e dano moral. Este também foi outro objeto de muita divergência doutrinária e jurisprudencial. Segundo afirma Rui Stocco, citado por Alexandre de Morais:
Pacificado, hoje, o entendimento de que o dano moral é indenizável e afastada as restrições, o preconceito e a má vontade que a doutrina pátria e alienígena impunham à tese, com o advento da nova ordem constitucional (CF/88), nenhum óbice se pode, a priori, antepor à indenizabilidade cumulada[21].
Assim, com o reconhecimento Carta Maior, superou-se a parcela da doutrina que não acreditava ser possível a indenização por dano moral, classificando tal possibilidade como imoral, pois, para ela, o dano moral não seria indenizável, partindo do argumento de que um valor pecuniário não compensaria o sofrimento da vítima. Outras objeções foram feitas por esses doutrinadores, tais com a falta de durabilidade do dano moral; a dificuldade probatória; a impossibilidade de se mensurar exatamente o quantum indenizatório, entre outras. Porém, como já foi dito, todos esses supostos obstáculos já foram superados com a disposição constitucional, reconhecendo o dano moral.
Cumpre observar que a Constituição utiliza o termo indenização quando se trata da compensação pelo dano moral. A doutrina, entretanto, propõe uma diferenciação dos termos ressarcimento, reparação e indenização, entendendo que, no caso do dano moral, não se pode indenizar, mas reparar o indivíduo lesado. Cada uma dessas expressões definiria uma situação específica, levando-se em conta o tipo de dano sofrido, o ofensor e se o ato é lícito ou não.
Ressarcimento é o pagamento de todo o prejuízo material sofrido, abrangendo o dano emergente e os lucros cessantes, o principal e os acréscimos que lhe adviriam com o tempo e com o emprego da coisa. Reparação é a compensação pelo dano moral a dor sofrida pela vítima. E a indenização é reservada para a compensação do dano decorrente de ato lícito do Estado, lesivo do particular, como ocorre nas desapropriações[22].
A Constituição não usou tais expressões do modo como está descrito acima, mas, sim, empregando o termo indenização tanto para o pagamento por dano moral, quanto para o pagamento por dano patrimonial, dessa forma, caracterizando aquele como gênero destes, como se pode observar nos incisos V e X do artigo 5º já citados. Diante do exposto, nos sentimos à vontade para utilizar também dessa forma esse vocábulo.
É crucial mencionar que só haverá a possibilidade de indenizar se o ato, comissivo ou omissivo, causar, de fato, dano, como assegura o artigo 186 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Desta conceituação legal, percebemos que existem três elementos para que se torne exigível a reparação civil. São eles: a conduta humana, o nexo causal e o dano (prejuízo). Podemos encontrar, no dano moral, assim como no patrimonial, todos esses três subsídios. Ou seja, além da garantia no próprio texto da lei, podemos ter certeza de que o dano moral também é indenizável, porque ele alcança os pressupostos gerais da responsabilidade civil.
Assim como a maior parte da doutrina, não vemos a culpa como elemento para que se caracterize tal responsabilidade, pois pode haver indenização por dano que não decorra de culpa – responsabilidade objetiva.
Embora mencionada no referido dispositivo de lei por meio das expressões “ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência”, a culpa (em sentido lato, abrangente do dolo) não é, em nosso entendimento, pressuposto geral da responsabilidade civil, sobretudo no novo Código, considerando a existência de outra espécie de responsabilidade, que prescinde desse elemento subjetivo para a sua configuração (a responsabilidade objetiva)[23].
O primeiro elemento para que se caracterize a responsabilidade civil é a conduta humana consciente, mesmo que a ação não tenha por objetivo prejudicar o outro. Esta deve ser voluntária, independente se comissiva ou omissiva, ou seja, é o poder volitivo do ofensor que acarreta o dano. Sobre esse dano ensina Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:
Em outras palavras, a voluntariedade, que é pedra de toque da noção de conduta humana ou ação voluntária, primeiro elemento da responsabilidade civil, não traduz necessariamente a intenção de causar dano, mas sim, e tão-somente, a consciência daquilo que se está fazendo. E tal ocorre não apenas quando estamos diante de uma situação de responsabilidade subjetiva (calcada na noção de culpa), mas também de responsabilidade objetiva (calcada na idéia de risco), porque em ambas as hipóteses o agente causador do dano deve agir voluntariamente, ou seja, de acordo com sua livre capacidade de autodeterminação. Nessa consciência, entenda-se o conhecimento dos atos materiais que se está praticando, não se exigindo, necessariamente, a consciência subjetiva da ilicitude do ato[24].
O elemento que se segue é o nexo causal, que consiste na ligação entre a conduta humana, primeiro elemento, e o dano, terceiro elemento. Ou seja, o nexo causal é aquilo que vincula a ação de um sujeito ao prejuízo sofrido por outro; essa relação deve ser comprovada, em juízo, como afirma Venosa[25]:
É por meio do exame da relação causal que concluímos quem foi o causador do dano. Trata-se de elemento indispensável. A responsabilidade objetiva dispensa a culpa, mas nunca dispensará o nexo causal. Se a vítima, que experimentou um dano, não identificar o nexo causal que leva o ato danoso ao responsável, não há como ser ressarcida.
Faz-se mister averiguar se causas excludentes da responsabilidade civil ocorreram no fato concreto para que se estabeleça o elemento nexo causal. Tais causas, válidas tanto para questões de natureza moral quanto material, são enumeradas por Stolze e Gagliano. A primeira, “estado de necessidade”, se dá quando alguém age no sentido de proteger um direito seu, mas acaba por ofender um direito alheio “de valor jurídico igual ou inferior àquele que se pretende proteger”; a “legítima defesa” ocorre quando o indivíduo, diante de um risco atual e iminente, age a fim de se defender de uma situação de agressão, de forma proporcional; o “exercício regular de direito e estrito cumprimento do dever legal” se dá quando as ações praticadas são legitimadas por regras ou leis preestabelecidas (os autores citam como exemplos lutas de boxe ou desmatamentos em áreas autorizadas); “caso fortuito e força maior” se dá quando acidentalmente ocorre um fato que não se pode evitar ou impedir; no caso de “culpa exclusiva da vítima”, quando a consequência[26] do dano se dá por atos exclusivos da vítima, embora haja outras pessoas envolvidas. A última das excludentes citadas pelos autores é chamada “fato de terceiro”, quando a responsabilidade do dano sofrido não advém daquele que seria o seu agressor imediato, mas de um terceiro agente, ao qual se deveria mover o processo. Ainda quanto à possibilidade de o processo não resultar em indenização, os autores citam a “cláusula de irresponsabilidade”, a qual não será aqui abordada, por não ser passível de ocorrência em processos por danos morais entre familiares.
Para que o dano possa ser realmente ressarcido se faz necessária a presença de três requisitos mínimos – a violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa física ou jurídica; a certeza do dano; subsistência do dano. Estes requisitos são uma classificação de Stolze e Pamplona[27] e também de outros doutrinadores, mas há quem acredite que, quando se trata de dano moral, é difícil constatar os dois últimos requisitos, o que, mesmo assim, não deixaria de configurar o dano e torná-lo indenizável.
Autores, como Silvio Rodrigues[28], embora concordem com a indenização, levantam alguns impasses presentes na doutrina, como a dificuldade de descobrir o dano e a sua durabilidade, ou como se pode determinar a quantidade de pessoas lesadas, ou ainda o poder de que investe o juiz para quantificar o valor pecuniário do dano moral. Outras dificuldades do processo indenizatório por dano moral serão abordadas adiante.
Como já foi citado, o dano se subdivide em moral e patrimonial. Agora, trataremos especificamente do dano moral (extraparimonial). O dano moral é aquele que fere os direitos personalíssimos do indivíduo, não atingindo nenhum bem patrimonial, com valor pecuniário definido. Neste sentido, para Cavalieri Filho seria mais pertinente denominar esse dano de “imaterial ou não patrimonial”, já que ele abrange os sentimentos do indivíduo, extrapolando o material, o palpável, ferindo algo intrínseco à pessoa humana, como sua dignidade, honra, intimidade e vida privada.
Ultrapassada a antiga discussão quanto à possibilidade do dano moral, reconhecemos que medir o valor pecuniário de um dano moral e prová-lo é, sem dúvida, algo árduo, pois não se pauta em parâmetros econômicos. Mas, é, sim, válido, pois, como já comprovamos, havendo dano, conduta humana e nexo causal, a responsabilidade civil é viável. Apesar de se tratar de um dano que a princípio não seria quantificado monetariamente, quantificá-lo, tornando-o, assim, indenizável, é uma possibilidade de compensar o dano sofrido pela vítima. Ainda sobre o assunto Silvio Rodrigues[29] ressalta que
a idéia de tornar indene a vítima se confunde com o anseio de devolvê-la ao estado que se encontrava antes do ilícito. Todavia, em numerosíssimos casos é impossível obter-se tal resultado, porque do acidente resultou conseqüência irremovível. Nessa hipótese há que se recorrer a uma situação postiça, representada pelo pagamento de uma indenização em dinheiro. É um remédio nem sempre ideal, mas o único que se pode lançar mão.
A polêmica da quantificação do dano moral advém da dificuldade em se dar um valor concreto para algo abstrato. O fato de não existirem, no Brasil, critérios legais para mensurar a indenização, faz alguns acreditarem que isso dificultaria tal liquidação e, também, daria ao juiz uma excessiva discricionariedade. Mas, ao contrario desses doutrinadores que pensam que uma lei é melhor à medida que limita a arbitrariedade do juiz, acreditamos que a mensuração do quantum indenizatório, da forma como se faz atualmente, analisando o caso concreto, atende as necessidades da responsabilidade civil, já que, só diante de um fato real, pode se medir a gravidade e a duração do dano experimentado, ressaltando que se deve recorrer a doutrina e jurisprudência como balança para tais medidas.
Cícero Camargo Silva[30], em seu artigo Aspectos relevantes do dano moral, traz os já citados e outros aspectos a se avaliar para a mensura da indenização por dano moral. São eles: grau de reprovação da conduta lesiva; intensidade e durabilidade do dano sofrido pela vítima; capacidade econômica do ofensor e do ofendido; e condições pessoais da vítima.
Segundo o próprio autor, essas são as pautas de mensuração que podem
[...] nortear o Estado-juiz em seu mister de arbitrar o quantum justo como satisfação dos padecimentos morais, o sistema jurídico pátrio prescreve critérios específicos para aferir e valorar, por aproximação, o montante reparatório adequado[31].
É importante reportar que com a indenização por dano moral alcançar-se-ão as funções gerais da responsabilidade civil, que no dano moral de modo específico se fazem igualmente importantes; são elas: a compensação do dano à vítima; a punição do ofensor; e a desmotivação social. Através da indenização por dano moral objetiva-se compensar a vítima pelo dano sofrido, de forma, a tentar confortá-la, mesmo sabendo-se ser impossível o retorno ao status quo ante, posto que se trata de ofensa moral, e não algo material que possa ser reconstituído. Já a punição do ofensor tem como finalidade castigar o causador do desdouro de outrem, assim, configurando-se numa espécie de pena para aquele que realizou a conduta humana capaz de desencadear no dano. Tal punição existir faz com que, não só o próprio ofensor seja desmotivado a cometer a conduta novamente, bem como, toda a sociedade de praticá-la, posto que, uma vez conscientizando-se das repreensões que tal conduta pode trazer, será um obstáculo para concretizá-las, constituindo-se, assim, a terceira função da responsabilidade civil aqui enumerada.
A dificuldade probatória também é um obstáculo à reparação por dano moral. Pois, como se mensurar algo que fere a alma do indivíduo? Como se limitar algo que é invisível? Por essa impossibilidade é que no dano moral não se faz necessária a prova material, mas, mas somente a prova do ato que teve como consequência o dano moral. Assim, “os prejuízos extrapatrimoniais suportados pela vítima independem de prova material para emergir o direito à reparação moral, bastando a comprovação da prática antijurídica perpetrada pelo ofensor” [32].
O medo da banalização do dano moral também é algo que assombra os doutrinadores e operadores do direito; teme-se uma indústria do dano moral, em que não se procuraria a justiça a fim de compensar uma dor latente, mas, somente visando buscar um enriquecimento pecuniário. De fato, há essa possibilidade, porém o juiz tem que estar atento para, no caso concreto, distinguir esses casos, daqueles em os indivíduos realmente procuram o judiciário para obter uma compensação de algo que fere sua alma. Por fim, sobre esse assunto, assegura Cavaleiri Filho[33]:
Só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação, que fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exarcebada estão fora da órbita do dano moral, porquanto além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos.
A família é um fenômeno social e biológico amplamente protegido pelo Direito, inclusive, a Constituição em seu texto reconhece nela a base da sociedade e a oferece especial proteção, a respeito desse tema Rodrigo Cunha[34] garante:
É nessa estrutura familiar, que existe antes e acima do Direito, que nos interessa investigar e trazer para o Direito. E é mesmo sobre ela que o Direito vem, por meio dos tempos, regulando e legislando, sempre com o intuito de ajudar a mantê-la para que o indivíduo possa, inclusive, existir como cidadão (sem esta estruturação familiar na qual há um lugar definido para cada membro, o indivíduo seria psicótico) e trabalhar na construção de si mesmo (estruturação do sujeito) e das relações interpessoais e sociais que remetem a um ordenamento jurídico.
É dentro de tal estrutura que analisaremos a responsabilidade civil, especificamente, a possibilidade de compensação por dano moral, posto que, como em todas as demais relações humanas, há a possibilidade de dano moral, e este deve, sim, ser indenizado, mas sempre se respeitando a especial proteção dada à família pela Carta Magna. Assim, é imprescindível ressaltar
que as propriedades próprias do vínculo familiar não admitem a incidência pura e simples das regras da responsabilidade civil, exigindo uma filtragem, sob pena de desvirtuar a natureza peculiar (e existencial) da relação de Direito de Família[35].
A família é o locus que proporciona o desenvolvimento do indivíduo, e, por isso, tal proteção anteriormente citada. Contudo, tem-se que reconhecer que uma família desestruturada, em que ocorrerem frequentes violações aos direitos personalíssimos de seus membros, cria indivíduos com uma série de problemas, já que
no âmbito familiar vão se suceder os fatos elementares da vida do ser humano, desde o nascimento até a morte. No entanto, além de atividades de cunho natural, biológico, psicológico, fisiológico..., também é a família o terreno fecundo para fenômenos culturais, tais como as escolhas profissionais e afetivas, além da vivência dos problemas e sucessos. Nota-se, assim, que é nesta ambientação primária que o homem se distingue dos demais animais, pela susceptibilidade de escolha de seus caminhos e orientações, formando grupos onde desenvolverá sua personalidade, na busca da felicidade – aliás, não só pela fisiologia, como, igualmente, pela psicologia, pode-se afirmar que o homem nasce para ser feliz[36].
Apesar de existirem doutrinadores e jurisprudência que não reconhecem o dano moral nas relações familiares, assim como já houve uma época que sequer se reconhecia o dano moral, pode se depreender da Constituição de 1988, para alguns estudiosos do Direito, como Edvaldo Sapia Gonçalves[37], que:
A família passou a ser reconhecida como um lugar onde a vida deve ser compartilhada e a dignidade humana enaltecida. Se assim o é, impõe concluir que os atos que revelem a falta do afeto e de respeito mútuo entre seus membros, especialmente quando deles resultem dano, devem ser compreendidos como ilícitos. Por sua vez, como atos ilícitos devem ser considerados fatos geradores de responsabilidade civil.
O entendimento de que o dano moral é possível nas relações familiares, apesar de ainda não ser pacífico na doutrina e nem na jurisprudência, já vem sendo levado em consideração, até por aqueles que se mostram contrários a ele. Maria Berenice[38], apesar de se posicionar contrariamente a possibilidade de reparação por dano moral na esfera familiar, citando Ruy Rosado de Aguiar Jr., reconhece que:
há uma acentuada tendência de ampliar o instituto da responsabilidade civil. O eixo desloca-se o elemento do fato ilícito para, cada vez mais, preocupar-se com a reparação do dano injusto.
Apesar de não haver lei específica que determine o reconhecimento do dano moral nas relações familiares, deve se reconhecer, igualmente, que não há nenhuma ressalva, nem na Constituição da República de 1988 e nem no Código Civil de 2002, que impeça a aplicação de tais danos no âmbito familiar. Cabe lembrar que a Carta Magna, sem fazer qualquer exclusão, assegurou o princípio da reparabilidade do dano moral (art. 5º, V e X da CF), impondo aos operadores jurídicos o dever de resguardar os direitos que dele emergem[39].
É flagrante que nas relações envolvendo parentes podem ocorrer violações aos direitos personalíssimos, ocasionado, desse modo, a possibilidade da reparação civil. Se essas podem ocorrer fora do ambiente familiar, por que não poderiam estar presentes na família?
Como já citado no capítulo anterior, são três elementos para que se torne exigível a reparação civil - a conduta humana, o nexo causal e o dano (prejuízo). O dano moral nas relações familiares alcança todos esses elementos, tendo um membro da família como sujeito da conduta humana, um elo que liga esta ao dano – nexo causal –, e, por fim, o dano, no caso, moral. Assim, existindo o dano, é através da relação causal que vai se chegar ao ofensor, ao sujeito da ação humana; da mesma forma que é indispensável na responsabilidade civil genérica, também se faz imprescindível na responsabilidade civil no Direito de Família. Portanto, não há prejuízo de nenhum dos elementos da responsabilidade civil, quando se trata de dano moral nas relações familiares.
Em relação aos requisitos da responsabilidade civil, acreditamos, sim, que podem ser encontrados no dano moral no âmbito familiar, mas, para isso, o Direito não pode se isolar como ciência autônoma, urge haver uma visão interdisciplinar para se aperfeiçoar problemas como o de provar a certeza do dano e a subsistência do dano, dois dos requisitos da responsabilidade civil. O primeiro requisito, violação a um interesse jurídico, é perfeitamente observável a partir de uma análise hermenêutica do texto constitucional e do Código Civil, que como já afirmamos não restringe a responsabilidade civil das relações entre parentes.
Quanto ao requisito subsistência do dano, queremos asseverar, que apesar de alguns doutrinadores acreditarem que não existe a permanência do dano moral, ela há, sim, especialmente no âmbito familiar, que é aquele que deveria dar estrutura para o indivíduo, mas também pode marcá-lo por muito tempo ou, até mesmo, por toda sua vida, interferindo nas suas relações profissionais e ou sociais.
Propomos aqui que para alcançar os requisitos da responsabilidade civil, certeza e subsistência do dano, no caso de dano moral nas relações familiares, haja a presença de perícia psicológica para se averiguar tais requisitos. Num processo, o julgador deve analisar, dentre outras coisas, o impacto que o homem médio teria ao sofrer determinadas ofensas no âmbito familiar, mas, para averiguar a certeza e a subsistência do dano, deve, principalmente, determinar a perícia de um psicólogo e acreditar no laudo dado por ele.
Ressalvando que deve sempre se preservar a entidade familiar, de forma que não se estimule a busca do dano moral por questões de vingança ou enriquecimento ilícito, ou seja, do qual não se deu causa, mas sim para as questões que de fato firam os direitos personalíssimos do individuo inserto nessa entidade amplamente resguardada. E para que isso seja possível temos que contar aqui novamente com o discernimento do juiz no caso concreto.
Neste trabalho, nos preocuparemos especificamente em analisar a possibilidade do dano moral e da sua reparação nas relações familiares entre pais e filhos. Escolhemos tal recorte, por reconhecer, na criança e no adolescente, o pólo mais vulnerável de uma família, posto que ainda se encontra em formação. Por isso, também percebemos uma preocupação legal em protegê-los enquanto pessoas, não só são protegidos pela Carta Magna, como também através de legislação específica, em que se reconhecem suas especificidades, como no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº. 8.069 de 1990[40], que traz as seguintes garantias:
Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e a dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.
Através desses artigos podemos depreender que, além de reconhecer que as crianças e os adolescentes gozam dos direitos fundamentais garantidos na Constituição da República, esses têm ampla proteção específica na Lei, o que impõe que se tenha um maior cuidado para que esses direitos não venham a ser violados, inclusive, no âmbito familiar. Ou melhor, principalmente no âmbito familiar, já que é nele que se forma a personalidade do indivíduo, a base para que ele conviva com os outros de sua espécie. O reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos de personalidade são incomensuráveis, posto que eles que formam a pessoa.
De modo que podemos conceber a personalidade como um composto de elementos que lhe dão estrutura. Vale dizer que, sem ditos bens, não se integra uma pessoa; e logo, privadas as pessoas deles, não há falar em comunidade de homens na ordem jurídica e, por conseguinte, não há falar em ordem jurídica nem em verdadeira sociedade[41].
Por tudo isso, deve se proteger as ofensas a tais direitos, mesmo que ocorridas em casa, no ambiente familiar, mesmo que os ofensores sejam os pais da criança, porque tais direitos, talvez sejam os mais importantes da nossa ordem jurídica, pois como fala o autor acima, sem eles provavelmente nem ela nem a sociedade existissem, de tão inerentes que são ao ser humano.
Outro princípio, também, vem corroborar para que se reconheça a possibilidade de compensação por dano moral requerido pelos filhos por atos do pai ou da mãe. O princípio do melhor interesse do menor, que pode se depreender do caput do artigo 227 da Constituição, tem fundamentado muitas decisões judiciais em favor da criança ou do adolescente, por isso esse princípio deve ser trazido para que se possa analisar melhor o dano moral na família. Devemos sempre observar com absoluta prioridade aquilo que garantirá ao menor o pleno gozo dos direitos personalíssimos, e permitir que se repare um dano extrapatrimonial por ato dos seus pais, dessa forma, se amenizando a dor sofrida pelo menor dentro de sua própria família, concretizando-se, assim, mais uma forma de se efetivar o princípio do melhor interesse do menor.
Faz-se mister, ressaltar como pode ocorrer o dano moral no ambiente da família, Sapia[42] afirma que a violência doméstica contra as crianças e adolescentes pode manifestar-se de diversas maneiras, dentre elas nos interessa enumerar as ameaças, humilhações e outras formas de afetação psicológica. Ainda sobre esse tema assevera Alexandre Sturion[43] que:
De pronto observa-se que um dos meios empregados para a ocorrência do fato danoso não se restringe apenas ao físico, corporal, mas pode caracterizar-se com facilidade na forma verbal ou expressões simbólicas, ou seja, um sujeito será atacado em sua integridade por emprego de palavras, gestos, símbolos, figurações, etc..
Utilizando a técnica dos renomados doutrinadores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, ainda sobre as formas de os pais causarem dano a criança ou adolescente, há uma música de Chico Buarque que choca-nos por enumerar tantas formas de ferir moralmente um filho, dentre outras até criminosas.
Por que creceste, curuminha/ Assim depressa, e estabanada/ Saíste maquiada/ Dentro do meu vestido/ Se fosse permitido/ Eu revertia o tempo/ Para viver a tempo/ De poder
Te ver as pernas bambas, curuminha/ Batendo com a moleira/ Te emporcalhando inteira/ E eu te negar meu colo/ Recuperar as noites, curuminha/ Que atravessei em claro/ Ignorar teu choro/ E só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, curuminha/ Cinquenta graus, tossir, bater o queixo/ Vestir-te com desleixo/ Tratar uma ama-seca/ Quebrar tua boneca, curuminha/ Raspar os teus cabelos/ E ir te exibindo pelos botequins
Tornar azeite o leite/Do peito que mirraste/ No chão que engatinhaste, salpicar mil cacos de vidro/ Pelo cordão perdido/ Te recolher pra sempre/ À escuridão do ventre, curuminha/ De onde não deverias/Nunca ter saído
(Chico Buarque, Uma canção desnaturada)
Na música, é possível observar vários atos que poderiam causar danos morais, como o ato de negar-se a cuidar de um filho, negar-lhe o colo, usar a imagem do filho para que este sinta vergonha de si, vestindo-o mal propositadamente e raspando seu cabelo com o mesmo intuito. E, também, não podemos deixar de comentar, que a depender do caso, o ato de quebrar a boneca de uma criança é um ato muito violento, posto que a boneca, normalmente exerce um poder simbólico para a criança, como se fosse uma espécie de “amiga”. Por tudo que aqui já se mostrou, temos que reconhecer o quanto é covarde o ato de causar dano moral, no ambiente familiar, às crianças e aos adolescentes.
Por tudo isso, é imprescindível o reconhecimento do dano moral nas relações familiares, especialmente aqueles causados por ato dos pais aos seus filhos. Fazendo- se, assim, exígua a aplicação dos efeitos jurídicos sancionatórios pela prática de tal dano, apontados por alguns doutrinadores como suficientes, como ruptura do vínculo; separação de corpos e afastamento do lar; exclusão da herança; dever de prestar alimentos; perda do poder familiar e da guarda dos filhos. Realmente, é essencial, em alguns casos, a compensação por dano moral. Como reconhece o ministro Barros de Monteiro, num recurso para o STJ.
Único a votar pelo não-conhecimento do recurso, o ministro Barros Monteiro considerou que a destituição do pátrio poder não interfere na indenização. "Ao lado de assistência econômica, o genitor tem o dever de assistir moral e afetivamente o filho", afirmou. Segundo Barros Monteiro, o pai estaria desobrigado da indenização, apenas se comprovasse a ocorrência de motivo maior para o abandono[44].
Com o reconhecimento de que é possível a compensação por dano moral nas relações familiares, também, alcançaríamos as funções da responsabilidade civil, o que no âmbito do Direito de Família, teria uma importância imensa. As funções da responsabilidade civil são compensatória do dano à vítima, punitiva do ofensor, desmotivação social da conduta lesiva. No caso estudado neste trabalho, compensar uma vítima já tão vulnerável naturalmente, punir o ofensor inibindo que este pratique tal conduta danosa novamente e, também, a sociedade como todo, que ao perceber que a punição existe, ver-se-á desmotivada em praticá-la, constitui-se, assim, um benefício para todos.
Além de não se reconhecer o dano moral nas relações materno-paterno-filiais, a doutrina que é contrária a isso, também põe como obstáculo, para a compensação por dano moral, a dificuldade de se quantificar monetariamente tal dano. De fato, não negamos que é uma tarefa árdua, mas entendemos que é possível. Para mensurar o quantum compensatório por dano moral sofrido pelo filho por ato do pai ou da mãe, deve se levar em conta, a quantidade do sofrimento experimentada pelo filho, o tempo que isso demoraria a ser sanado, se for o caso, ou, da mesma forma, reconhecer-se a irreparabilidade do dano no tempo, e, também, o poder aquisitivo do pai, posto que uma das funções da responsabilidade civil é a punição da vítima, dentre outros quesitos que cada caso em particular trará.
Não daria aqui para especificarmos as possibilidades de requerimento de danos morais dos filhos por ato dos pais, mas, com o intuito exemplificativo, queríamos enumerar alguns: o dano moral pelo não reconhecimento da paternidade, o dano moral pelas lesões pré-natais e transmissão de moléstia ao nascituro na reprodução natural, dano moral por obstrução dos direitos de visitas, dano moral provocado pelo descumprimento do dever de sustento, dano moral provocado pelo descumprimento do dever de assistência moral e intelectual. Como se pode observar, muitas são as possibilidades, que, tornamos a ressaltar, contudo não se esgotam.
Inclusive, uma questão que tem sido questionada pelos juristas hodiernamente, é se a alienação parental seria uma tutela a ser requerida por um dos pais ou pelo filho, a questão é: quem é a verdadeira vítima diante desse fato? Alienação parental é o termo proposto por Richard Gardner, em 1985, para a situação em que a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro cônjuge, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor[45]. A nosso ver, realmente o maior prejuízo experimentado é o da criança, que se torna parte de um jogo vingativo de um de seus pais, ou algumas vezes, até mesmo, de ambos os pais. Por isso, entendemos que também neste caso devemos nos socorrer da responsabilidade civil, de forma a, entre outras coisas, compensar a verdadeira vítima – o filho, e inibir a conduta danosa.
Realmente, até então, não são muito frequentes os pedidos judiciais de compensação por dano moral nas relações familiares, segundo Sapia, citanto ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, isso acontece por dois motivos:
O fato de essa responsabilidade não ser exigida perante os tribunais brasileiros resulta, principalmente, de duas causas: do profundo respeito pelos laços familiares, dificultando a transferência dessas questões para o poder decisório do Judiciário, e da falta de espírito criador dos homens da Justiça - predominando a primeira causa, nos tempos passados, e a segunda, nos dias de hoje[46].
De fato, é importante respeitar-se a família, é até um cumprimento ao dispositivo constitucional e legal, mas deixar de reconhecer fatos danosos, dessa forma impedindo sua reparação, é errado. Por isso, temos que evitar tal prática e passar a verificar melhor as questões de dano no âmbito familiar, para que tanto se proteja efetivamente a criança e o adolescente, quanto se impeça a perpetuação de práticas que prejudique as mesmas, caso contrário, continuaremos legitimando ofensores e deixando vítimas indefesas.
E quanto à falta de espírito criador citada pelo autor, isso só depende de nos que lidamos com o direito de achar novas formas de que a justiça alcance a todos, e isso se fará através de estudo de caso, análises hermenêuticas da Constituição e das leis e, também, se faz imprescindível a comparação com leis de outros países, assim, poderemos refletir sobre o assunto e torná-lo, de fato, possível.
Neste trabalho, analisamos a possibilidade da reparação do dano moral sofrido pelo filho por ato dos pais. Para isso, apesar de reconhecermos que parte da doutrina se posiciona contrariamente a essa possibilidade, mostramos a viabilidade de processos dessa natureza, de forma a contribuir para o amadurecimento da questão, já que tal tema ainda é pacifico na doutrina.
Antes de chegarmos ao tema central, trouxemos alguns conceitos de família, mostrando as evoluções históricas destes e o quanto têm sofrido mudanças no decorrer do tempo. Para isso, ressaltamos as restrições do conceito de família durante o Código Civil de 1916, e as mudanças que ampliaram tal conceito na Carta Magna de 1988.
No Código Civil de 1916, só se reconhecia como família aquela advinda do casamento, mas essa restrição não mais acompanhava os avanços sociais, por isso, com julgados, doutrinas e jurisprudências, começou-se a transformação e ampliação desse conceito limitado. Até que a Constituição de 1988 pôs fim a essa celeuma, passando a considerar família, além daquela formada através do casamento civil ou religioso com efeitos civis, as uniões estáveis entre homem e mulher e as famílias monoparentais. Dessa forma, transmutando a família de um foco patrimonialista, para um mais humanista, em que o afeto é o elemento definidor. Apesar de perfilharmos toda a evolução jurídica sobre o que é família, é evidente que ainda se tem muito o que evoluir, pois, por exemplo o Direito ainda se omite quanto as relações homossexuais.
A família é muito importante, tanto para a sociedade, como para a formação do indivíduo. Ela é a célula-mater para que exista a sociedade, para que os indivíduos se aglomerem de forma civilizada, por isso a Carta Maior a caracteriza como base da sociedade e lhe confere especial proteção. Contudo, a importância da família não se exaure nisso, ela também é essencial para a formação do individuo, posto que é nela que se formada a personalidade deste.
Por conseguinte, tratamos especificamente sobre a relação entre pais e filhos e referimo-nos a esses membros insertos na família – os filhos, e comprovamos a sua maior susceptibilidade diante dos demais, principalmente, evidenciando que os que não atingiram a maioridade, por não terem o discernimento completamente formado, dependeriam mais de um núcleo familiar saudável.
Para mostrar que esses indivíduos podem sofrer dano moral no âmbito familiar, conceituou-se o dano moral, apresentando as diferenças deste com o dano patrimonial, entre outras peculiaridades.
O dano moral já sofreu muitos questionamentos quanto a sua possibilidade, até que, novamente, com a Constituição de 1988 foi consolidado seu reconhecimento, inclusive, consolidando também a viabilidade de cumulá-lo com o dano material. Suprindo a natural falta de especificidade da Carta Magna, o Código Civil estabelece as condições para que ocorra a reparação do dano, mencionando o CC de 2002 os elementos e os requisitos da responsabilidade civil.
Dentre as questões suscitadas por aqueles que se opunham ao dano moral, estava a dificuldade em mensurá-lo e em prová-lo, mas tais empecilhos foram superados, através do reconhecimento de que, apesar de não se tratar de algo econômico, a compensação pecuniária amenizaria a dor experimentada pela vítima e pune o ofensor, dentre outras coisas. Quanto ao problema de mensura do dano moral, confiou-se no juiz para, diante do caso concreto, definir o quantum indenizatório. Apesar de (até hoje) haver quem defenda que é discricionariedade demais para um julgador.
O reconhecimento do dano moral é essencial para que se repare algumas situações, porém, não pode se permitir que esse se transforme num meio para se realizar vingança ou enriquecer sem causa, enriquecimento ilícito, transformando-se, assim, esse instituto tão respeitável numa industria do dano moral. Isso deve ser totalmente desestimulado, e para isso faz-se mister a observação do juiz para que demandas com esse propósito não sejam recompensadas.
A partir do momento que se passou a considerar a família um meio que deve propiciar o desenvolvimento de seus membros e assegurar a dignidade humana desses, aquilo que ferir tais direitos passa-se, também, a ser considerado dano, no caso, moral, por ofender direitos extrapatrimoniais. Dessa forma, entendemos que é possível o dano moral nas relações familiares.
Impõe-se ressaltar que a Constituição não fez nenhuma ressalva quanto à responsabilidade civil nas relações familiares. Apesar de não haver dispositivo específico sobre a possibilidade da compensação por dano moral nas relações familiares, restrição também não há, de forma que, numa análise hermenêutica podemos concluir que tal compensação é possível.
Queremos aqui ressaltar, que do mesmo modo como ainda não é pacífica a questão da aplicação da responsabilidade civil nas relações familiares, antes também não era pacífica a possibilidade de dano moral. Assim, provavelmente, o reconhecimento do dano moral nas relações familiares só dependa mesmo da evolução dos conceitos, que a princípio serão somente doutrinários e jurisprudenciais, para depois se alcançar a letra da lei.
Pudemos observar durante o capítulo anterior que o dano moral nas relações familiares cumpre a maioria das características da responsabilidade civil, como os elementos para sua constituição – conduta humana, nexo causal e dano. A maior particularidade do dano moral na família consiste em efetivamente se dar maior proteção a ela, posto que sua importância é merecidamente reconhecida, inclusive, ou melhor, principalmente, pela Carta Magna.
Quanto ao problema em se provar a certeza e a subsistência do dano – alguns requisitos para que se reconheça a responsabilidade civil -, propomos a realização de perícias com psicólogos, que, como técnicos da área da Psicologia, terão mais aptidão para analisar se de fato o indivíduo sofreu o dano e se ele ainda existe em sua psique. Não afastando, é claro o discernimento do juiz, que deve se basear no homem médio. Queremos aqui asseverar, também, que o julgador da causa realmente deve levar em conta a perícia técnica feita, assim, socorrendo-se da Psicologia, através dos psicólogos, para decidir os casos práticos, havendo, dessa forma, uma interdisciplinaridade na análise das situações concretas.
É imprescindível destacar que se o dano moral nas relações familiares já é algo muito nocivo, quando esse dano é sofrido por alguma criança ou adolescente isso se torna muito mais grave, posto que ainda é um indivíduo em desenvolvimento, tendo seus direitos não só garantidos pela Constituição e por outras leis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por tudo isso, podemos perceber que é imperativa a proteção desses seres.
E, também, por isso, deve se admitir que eles possam sofrer dano morais no ambiente familiar, inclusive dos seus pais; e que a compensação por tal dano se faz necessário, posto que é um meio que, além de alcançar as funções da responsabilidade civil – compensação da vítima, punição do ofensor e desmotivação social -, traz, da mesma forma, justiça para essas pessoas vulneráveis que sofrem atos lesivos daqueles que teriam a obrigação de lhes defender, educar, sustentar, entre outros deveres dos pais.
A maior parte da doutrina ainda acredita que alguns efeitos jurídicos impostos para o pai ou a mãe que causar dano moral ao seu filho, como o dever de prestar alimentos; perda do poder familiar e da guarda dos filhos, seriam suficientes para “resolver” os eventuais descuidos dos pais, mas tais medidas se mostram incapazes de realmente reparar os danos morais sofridos pela vítima em alguns caso, já que pode acontecer de, apesar de tais medidas, continuar-se a ferir os direitos personalíssimos do filho. Inclusive, registra-se que, segundo Barros Monteiro num recurso do STJ sobre abandono afetivo, o pai só estaria desobrigado a compensar a vítima, seu filho, se comprovasse a existência de motivo maior para o abandono.
O outro ponto que abordamos foi como se mensurar o dano moral sofrido nas relações familiares, especialmente analisando a relação entre filho e pais, para isso nos socorremos do dano moral de forma genérica, e, assim, chegamos à conclusão de que o dano moral também para ser quantificado nessa relação específica, além do que já foi enumerado, deve se levar em consideração a prostração sofrida pelo filho, o tempo que isso demoraria para findar, se for o caso, ou, da mesma forma, reconhecer-se a irreparabilidade do dano no tempo, e, também, o poder aquisitivo do pai, posto que uma das funções da responsabilidade civil é a punição da vítima, dentre outras.
Por todos os argumentos e conceitos expostos neste trabalho, concluímos que a compensação por dano moral sofrido pelo filho por ato de um dos seus pais ou ambos é possível e tem-se, sim, como mensurá-la.
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[1] CALHEIRA, Luana Silva. Os princípios do direito de família na Constituição Federal de 1988 e a importância aplicada do afeto: o afeto é juridicizado através dos princípios? Uberaba, MG: Boletim Jurídico.
[2] MORAIS, Alexandre de. Direito constitucional. 21 ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2007, p. 802-803.
[3] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. V 5. Direito de família, p. 11.
[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família, uma abordagem psicanalítica. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.121.
[5] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. Edição revista, atualizada e ampliada-2009, p. 34.
[6] TOURINHO, Arx apud MORAIS, 2007, p.802.
[7] BOEIRA apud KOVALSKI, Keila. Filiação socioafetiva: a desbiologização das relações de família (2007). Centro de Ensino superior dos Campos Gerais – Faculdade de Direito. Monografia. 53 fls..
[8] DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Belo Horizonte: Lumen Juris, 2008, p. 13.
[9] BRASIL. Constituição da República Federativa, de 5 de outubro de1988. Diário Oficial da União, Brasília, n. 191-A. Capítulo VII, art. 226, caput.
[10] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 3 ed. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 2003, p. 14.
[11] DE FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 02.
[12] DIAS, 2004, p. 42.
[13] DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Belo Horizonte: Lumen Juris, 2008, p. 2.
[14] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 3 ed. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 2003, p. 117.
[15] Id., 2003, p. 126.
[16] PEREIRA, 2003, p. 114.
[17] Id., 2003, p. 127.
[18] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. 4 ed. Novo curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006. v. III Responsabilidade civil, p. 36.
[19] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das obrigações: Parte especial – responsabilidade civil. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 88-89.
[20] MORAIS, 2007, p. 29-30.
[21] STOCCO, Rui, 1995. p. 444 apud MORAIS, 2007, p. 45.
[22] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das obrigações: parte especial – responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2008. Coleção Sinopses jurídicas. v 6, p. 89-90.
[23] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2006, p. 24.
[24] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2006, p. 28.
[25] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, contratos em espécie e responsabilidade civil. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2001, p. 517.
[26] GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2006, p. 101 et seq.
[27] Id. p. 39-40.
[28] RODRIGUES, Silvio. Direito civil – responsabilidade civil. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. v 4.
[29] Id., p. 186.
[30] SILVA, Cícero Camargo. Aspectos relevantes do dano moral. Jus Vigilantibus: 2010.
[31] SILVA, Cícero Camargo. Aspectos relevantes do dano moral. Jus Vigilantibus: 2010.
[32] SILVA, Cícero Camargo. Aspectos relevantes do dano moral. Jus Vigilantibus, 2010.
[33] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5 ed. São Paulo: MALHEIROS, 2003, p. 99.
[34] PEREIRA , Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 3 ed. Belo Horizonte, MG: Del Rey, 2003, p. 6.
[35] DE FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Belo Horizonte: Lumen Juris, 2008, p. 75.
[36] DE FARIAS; ROSENVALD. 2008, p. 75.
[37]GONÇALVES, Edvaldo de Sapia. O dano moral nas relações familiares. Disponível em: <http://www.correioforense.com.br/interna/ox/dano/id/713/titulo/o_dano_moral_nas_relacoes_familiares.html>. Acessado em: Set. 2010.
[38]DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. Edição revista, atualizada e ampliada-2009, p. 115.
[39]GONÇALVES, Edvaldo de Sapia. O dano moral nas relações familiares. Disponível em: <http://www.correioforense.com.br/interna/ox/dano/id/713/titulo/o_dano_moral_nas_relacoes_familiares.html>. Acessado em: Set. 2010.
[40] BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de junho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília. Capítulo II, arts. 3º, 15 e 17.
[41] CURY, Munir Coord.. Estatuto da criança e do adolescente, comentários jurídicos e sociais. 7 ed. São Paulo: Malheiros. 2005, p. 88.
[42]STURION, Alexandre apud GONÇALVES, Edvaldo de Sapia. O dano moral nas relações familiares. Disponível em: <http://www.correioforense.com.br/interna/ox/dano/id/713/titulo/ o_dano_moral_nas_relacoes_familiares.html>. Acessado em: Set. 2010.
[43]DE PAULA, Alexandre Sturion. Dano moral: um prima de sua admissão e da aferição de seu quantum sob a ótica da conotação sancionatória. Revista Eletrônica Jus Navegandi. Disponível em: <http: //jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5026>. Acessado em: Set. 2010.
[44] Associação de Pais e Mães Separados. Dano moral. Disponível em: <http://www.apase.org.br/83007-danomoral.htm >. Acessado em: Out. 2010.
[45] SAP. O que é alienação parental. Disponível em: <http://www.alienacaoparental.com.br/o-que-e> Acessado em: Out. 2010.
[46] DE AZEVEDO, Antonio Junqueira apud GONÇALVES, Edvaldo de Sapia. O dano moral nas relações familiares. Disponível em: <http://www.correioforense.com.br/interna/ox/dano/id/713/titulo/ o_dano_moral_nas_relacoes_familiares.html>. Acessado em: Set. 2010.
Graduação em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB. Pós-graduada em Direito Tributário pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Lorena Nunes de. O dano moral nas relações familiares: a possibilidade da reparação do dano moral sofrido pelo filho por ato dos pais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 ago 2018, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52133/o-dano-moral-nas-relacoes-familiares-a-possibilidade-da-reparacao-do-dano-moral-sofrido-pelo-filho-por-ato-dos-pais. Acesso em: 22 nov 2024.
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