Resumo: As recentes modificações à Lei n° 9.613/98, abolindo o rol taxativo de delitos antecedentes e necessários para a consumação da lavagem de dinheiro, ampliaram sobremaneira as hipóteses do legítimo exercício da persecução penal e combate aos crimes dessa natureza. Até que sobreviesse a alteração legislativa, o processamento da lavagem de capitais oriundos da sonegação fiscal demandava a comprovada atuação de organização criminosa, arrolada como crime antecedente. Após a inovação, mesmo considerando-se que as grandes evasões fiscais têm sido, via de regra, praticadas por organizações criminosas, viabilizou-se legalmente o processamento do delito de lavagem de dinheiro associado puramente à sonegação fiscal. Não bastando, nos crimes econômicos, punições tendentes ao encarceramento, ao Estado importa repatriar receitas evadidas ao Exterior, visando recompor o orçamento que é, principalmente, de custeio de políticas públicas e sociais (direitos fundamentais). Isto posto, maneja o instrumento da Cooperação Jurídica Internacional através do Auxílio Direto em matéria penal, ao qual busca-se, pelo presente, conferir maior visibilidade.
Abstract: The crime of evading taxes and its money laundering can be both punished together, considering that the largest evades are, in the most, practiced by criminous organizations – structure included on the Law n° 9.613/98 as an antecedent to the last crime above. Nowadays, after some changes made at the law text, such list of antecendent delicts had been abolished, allowing State Prosecutor to sue money laundering due to any other crimes, despite of that former closed list. Though, arrest is not enough to such offenses, and in this cases, State tries to recover money that goes to foreign countries underground, to balance again its budget. For this, can be used Internacional Legal Cooperation, across Direct Assistance, tool wich we intend to give more visibility by writing this article.
Palavras-chave: Sonegação fiscal. Lavagem de dinheiro. Bem jurídico tutelado. Lesão ao Erário. Direitos fundamentais. Recuperação de ativos. Cooperação jurídica internacional. Auxílio direto em matéria penal. Autoridade Central.
Sumário: 1 Introdução - 2 Considerações Iniciais Sobre os Crimes Contra a Ordem Econômica e Tributária Quanto ao Bem Jurídico Tutelado – Lavagem de Dinheiro Proveniente de Sonegação Fiscal - 3 Lavagem de Dinheiro – Evolução Legislativa - 3.1 Peculiaridades do Crime de Lavagem de Dinheiro – 3.2 Breves Comentários Sobre a Regra de Competência - 4 Órgãos Especializados no Rastreamento de Operações Suspeitas – 4.1 COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras – 4.2 ENCCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – 4.3 O DRCI – Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional - 5 Cooperação Jurídica Internacional - 5.1 A Autoridade Central - 5.2 Pedido de Cooperação Jurídica Internacional Conduzido Pela Autoridade Central Brasileira e Endereçado ao Exterior: Requisitos – 5.3 Convenção de Palermo – 6 Conclusão - 7 Referências bibliográficas
1 Introdução
A era pós-industrial inaugurada já em meados do século XX trouxe consigo o fenômeno da globalização, responsável pela integração de mercados e pessoas. Se, ao tempo das remotas tecnologias viviam os indivíduos semi-restritos à convivência com as comunidades quiçá contíguas, entre os Estados ainda eram delongados e primitivos os instrumentos de interface. Em épocas de parcos recursos de comunicação e transferência de dados, a informação tardava a aportar e a sensação de distância reverberava no tempo e espaço.
O fenômeno global, pois, inaugurado sobretudo pelo incremento e expansão das tecnologias de informática e telemática, propiciou a suavização das fronteiras e dos entraves geográficos, e a redução em abstrato das distâncias entre as relações, das pessoais às burocráticas, aí incluídas as interestatais, bem como o despontar, pela suprema valorização do princípio da livre iniciativa, dos grandes grupos econômico-mercantis, provedores de grandes receitas ao Estado.
Ao passo que a sociedade tornou-se paulatinamente adepta e entusiasta de novos mecanismos introduzidos em mercado à sua disposição, a exemplo da Internet, a criminalidade acompanhou e se valeu desses mesmos recursos como instrumento de perpetração do delito – assertiva corroborada pelo franco crescimento dos chamados crimes cibernéticos e crimes econômicos, estes últimos também conhecidos por crimes do colarinho branco.
Nesse viés, crescentes também as lesões aos cofres públicos praticadas de forma transcendente das fronteiras nacionais, a exemplo dos crimes contra a ordem tributária e de lavagem de dinheiro, praticados não raras vezes por ramificadas organizações criminosas escudadas sob a ainda vigente inimputabilidade penal da pessoa jurídica (à exceção dos crimes ambientais), dotadas de todo o apresto tecnológico para evadir receitas cujo titular primeiro é o erário, custodiante de atividades e serviços destinados finalmente ao cidadão.
Para fazer frente a essa demanda pelo repatriamento de receitas que, por fim, restam adstritas aos investimentos em políticas públicas e serviços dos quais o Estado não pode se eximir, exsurgiu a premente necessidade do estreitamento das relações internacionais com o fito precípuo de desenvolver procedimentos de cooperação jurídica voltada à localização dos ativos evadidos e seu efetivo retorno ao detentor primevo.
Em que pese a tradicional rigidez do conceito de soberania e a convivência de modelos jurisdicionais de inspirações distintas em cada país, a cooperação jurídica internacional emerge como mecanismo dos mais hábeis e céleres ao desenvolvimento de atos processuais que demandem providências em território alheio.
Este, pois, o objeto do presente trabalho: esquadrinhar de maneira pragmática os instrumentos de que dispõe o Estado brasileiro, especificamente o Ministério Público, no exercício do seu mister de defesa dos direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, em auxílio do Poder Público prestador de políticas e serviços sensivelmente dependentes de receitas destinadas a compor a dotação orçamentária.
2 Considerações Iniciais Sobre os Crimes Contra a Ordem Econômica e Tributária Quanto ao Bem Jurídico Tutelado – Lavagem de Dinheiro Proveniente de Sonegação Fiscal
São de amplo espectro os delitos em estudo, assente que abarcam a ordem tributária, financeira, monetária e as relações de consumo, direcionada a tutela penal às atividades praticadas mormente no âmbito societário. Assim, os bens jurídicos tutelados sob o título de ordem econômica e tributária revestem-se de caráter supra-individual e conteúdo econômico-empresarial, conformando essa vertente do Direito verdadeiro microssistema jurídico esparsamente capitulado em diplomas legais tais como a Lei n° 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária), Lei n° 9.613/98 (lavagem de dinheiro), Lei n° 7.492/86 (crimes financeiros), e demais correlatos.
Até que sobreviessem as modificações trazidas pela Lei n° 12.683/12 à lei de lavagem de dinheiro, era dificultosa a legitimação do processamento de agentes que praticassem tal crime a partir de verba proveniente de sonegação fiscal. A lei 9.613/98, despida das recentes alterações, apresentava rol taxativo de delitos antecedentes à lavagem de dinheiro e, dentre eles, não listava-se a evasão tributária. Exigia-se, a título de justa causa para a persecução penal por lavagem de ativos fiscais sonegados, a configuração de organização criminosa – espécie que a lei arrolava dentre os chamados crimes antecedentes.
A alteração legislativa veio, portanto, atender a necessidades observadas na vivência diária do exercício das atribuições ministeriais, já que percebe-se recorrentemente a prática da aplicação do capital oriundo da sonegação fiscal em atividades aparentemente lícitas, fazendo por demais tormentosa a recuperação desses ativos.
Principal fonte de custeio da atividade estatal e da elaboração do Orçamento e Planos Plurianuais, o tributo uma vez elidido é verba subtraída, em última análise, em desfavor do indivíduo, que vê combalido o patrimônio público e reduzido o potencial exercício de seus direitos fundamentais constitucionalmente assegurados e cuja efetivação resta atrelada a investimentos da Administração em áreas sociais.
A esse respeito vale citar as palavras de Pedro Roberto Decomain:
Quando os autores de crimes contra a ordem tributária [...] atuam no sentido de não pagar o tributo devido, ou no sentido de não recolher aos cofres públicos valores que retiveram, a título de tributo, de outras pessoas, na realidade não se os pode encarar simplesmente como pessoas que não estão pagando ao Estado uma quantia de dinheiro que lhe devem. Os autores de tais crimes necessitam ser sempre vistos como pessoas que de algum modo, por menos que seja, contribuem para que o Estado esteja algo mais debilitado no cumprimento do seu papel de provedor de serviços públicos. (Decomain, 2008, p.81)
Embora constitucionalmente superado o paradigma do Estado Social, essencialmente intervencionista e centralizador (Wellfare State), a prestação e manutenção ao dispor do cidadão de certos serviços a cargo do Poder Público, ainda que não exclusivamente, é meio de concretizar direitos fundamentais também na Carta Magna assegurados, a exemplo da saúde, educação, segurança, assistência social, cuja efetiva concretude só é possível pela preservação de uma ordem econômica equilibrada, conforme tencionou prever o art. 170 da Lei Maior. Ademais, permaneceu no texto constitucional, a cargo do Estado, a atribuição fiscalizatória, regulatória, de incentivo e de planejamento indicativo direcionado ao setor privado, mediante a observância da principiologia vigente.
Implementada a transição do modelo que converteu em direito positivo as várias aspirações sociais do pós-Primeira Guerra, erigidas então à categoria de princípios constitucionais, tomou lugar a chamada Constituição Econômica, mesclando normas de conteúdo social e econômico. Nesse contexto o salutar funcionamento do sistema econômico passou a compreender quatro postulados de jaez social e de direitos fundamentais, a saber: a valorização do trabalho humano, a livre iniciativa, a existência digna e de conformidade com os ditames da Justiça Social.
Com fulcro nesse panorama é que, no que tange especificamente à norma incriminadora da lavagem de dinheiro, o bem jurídico aí tutelado recai sobre a credibilidade e o bom funcionamento das instituições financeiras e a estabilidade da ordem econômica em geral. Conforme ensina Rogério Filippetto de Oliveira,
[...] a ordem financeira também constitui um bem jurídico que reforça a natureza categorial do bem jurídico ordem econômica. É que a ordem financeira insere-se na ordem econômica, cuida-se de modalidade específica de bem jurídico que guarda relação de espécie com a genérica ordem econômica. Não se pode falar em ordem financeira sem se cogitar de atingir a ordem econômica. Por sua vez, a ordem financeira abrange as finanças públicas e a política financeira do Estado. (Oliveira, 2011, p. 204)
Demonstrando a relação entre os dois crimes em comento, Marco Antônio de Barros leciona que
[...] em linguagem popular, costuma-se dizer que há três tipos de dinheiro fora do País: um é o dinheiro quente, que possui origem regular comprovada; outro é o dinheiro frio, não declarado ao governo, visto que sonegado geralmente em caixa 2 das empresas; e o terceiro é o chamado dinheiro sujo, cuja origem corresponde ao produto do ilícito penal. (Barros, 2007, p. 45).
Estar-se-á diante do crime de lavagem de dinheiro sempre que empreendida pelo agente manobra tendente a ocultar lucros ilícitos, aí inclusos os advindos do crime de sonegação fiscal, bem como, após a edição da lei n° 12.683/12, os originados de qualquer outro ilícito penal[1]. A operação burlesca toma contornos de transnacionalidade sempre que escolhido um destino internacional como porto seguro para conferir aparente lisura ao capital, bens ou direitos ilicitamente amealhados, ou simplesmente albergá-los por algum espaço de tempo, impingindo aos órgãos de inteligência do sistema financeiro e aos encarregados da persecução penal – Polícias e Ministério Público –, esforço articulado para o efetivo repatriamento desses valores.
3 Lavagem de Dinheiro – Evolução Legislativa
Inobstante a existência de corrente que sempre considerou a lavagem de dinheiro como crime que se consuma por si só, independente da ocorrência de outro que lhe fosse antecedente e viesse a gerar os recursos de origem ilegal que se buscasse sanear, houve por bem o ordenamento jurídico pátrio, em 1998, adotar entendimento oposto. Embora pacífico que seu processamento pudesse e pode ser levado a efeito de forma autônoma em relação aos crimes a ele concorrentes, a Lei n° 9.613/98 ementou os delitos cuja ocorrência se requeria para preceder a caracterização da lavagem de dinheiro.
Nessa quadra, até a entrada em vigor da recente alteração legislativa, enumerava-se pelo mencionado diploma legal rol taxativo de crimes antecedentes, aí inclusos os praticados por organização criminosa, em que pese excluídos os de sonegação fiscal pura e simples, não praticados por esse tipo de grupamento. Entretanto, a ausência de previsão expressa do crime previsto na Lei n° 8.137/90 dentre os da precitada relação em nada obstava o seu processamento em concurso com o de lavagem de dinheiro, se praticada por organização criminosa, nem tampouco vedava o pedido de cooperação jurídica internacional com arrimo nesse fundamento.
Consoante Luiz Regis Prado,
No caso da lei brasileira, como mencionado, a lavagem de capitais, dinheiro ou bens é delito referente ou de conseqüência, visto que exige a prática de um delito anterior (delito-base, referido ou de referência) inserto no catálogo legal, havendo, portanto, um mero vínculo lógico-formal e não um post delictum.
Não obstante isso, tem o crime de lavagem de dinheiro plena autonomia no conteúdo e na forma. [...] Não é uma decorrência do delito antecedente, visto que não se trata de delito acessório.[...] De outro lado, no aspecto formal, a ação penal é independente do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país, bastando a prova da sua existência (art. 2°, II, Lei n° 9.613/98). Contudo, é indispensável que o delito antecedente também seja considerado crime no país onde foi cometido, conquanto não haja necessidade que as infrações penais sejam textualmente idênticas, bastando que tenham em comum ao menos o bem jurídico tutelado. (Prado, 2009, p. 358).
Assim, a nova lei superou o debate quanto ao rol numerus clausus de delitos antecedentes ao crime de lavagem de dinheiro, estipulando relação aberta, suficiente, para a configuração deste último, ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de quaisquer bens, direitos ou valores provenientes direta ou indiretamente de qualquer infração penal, o que certamente vem ampliar sobremaneira as possibilidades de atuação Estatal para a recuperação de capitais evadidos, conferindo maior efetividade àquele diploma legal.
3.1 Peculiaridades do Crime de Lavagem de Dinheiro
Além da já mencionada conjuntura econômica e técnica propiciadora da atividade de organizações criminosas voltadas para a lavagem de dinheiro, outros vetores apresentam-se como indícios veementes do crime em apreço. Segundo Luiz Regis Prado,
Em se abrindo e se internacionalizando, o sistema financeiro oferece ao dinheiro de origem ilícita lugares mais secretos, circuitos mais rápidos, rendimentos mais atrativos. A ausência de intermediação financeira, a facilidade crescente oferecida às empresas para criar filiais offshore[2], a expansão de paraísos fiscais, as sociedades fantasmas ou de fachada, as dificuldades operacionais redirecionadas aos proprietários reais de algumas empresas que utilizam todas as possibilidades jurídicas para proteger suas identidades e ativos, a concorrência entre estabelecimentos financeiros, os avanços tecnológicos no campo das telecomunicações e as transferências eletrônicas de fundos são igualmente alguns fatores que concorrem à expansão da lavagem de dinheiro. (Prado, 2009, p. 349)
Sem embargo de outras sendas para a concretização do delito, considera a doutrina, via de regra, concentrada em três pilares a lavagem de dinheiro: na primeira fase, denominada colocação ou inserção, introduzido o montante líquido no mercado financeiro; no segundo estágio, de ocultação, cobertura ou encobrimento, busca-se camuflar sua origem ilícita para, em seguida, na chamada integração ou reciclagem, completar o ciclo criminoso a reintrodução do dinheiro lavado junto à economia legal.
No circuito ora delineado, tornam-se suspeitas operações envolvendo corretoras, consultorias, contabilistas, cambistas, paraísos fiscais, aquisições de bens, gerência de ações e investimentos, empréstimos, atividades empresariais de factoring, comércio de jóias, obras de arte e animais de alto pedigree, (cuja valoração seja subjetiva), dentre outros, notadamente as em que o dinheiro trafegue de maneira vivaz. Dentre as alterações promovidas pela Lei 12.683/12, introduzida nos arts. 10 e 11 da Lei n° 9.613/98 a obrigação de que tais instituições ali arroladas, ou mesmo pessoas físicas atuante nessas áreas, registrem cadastros de seus clientes e comuniquem ao COAF as operações que, por ostentarem características inusuais, despertem suspeitas.
3.2 Breves Comentários Sobre a Regra de Competência
É cabível, no foro da Justiça Comum Estadual, o processamento do crime de lavagem de dinheiro mesmo que constatada a execução de pelo menos uma fase do delito em território estrangeiro[3]. Apesar de o art. 109 da Carta Magna ter elencado, dentre o feixe de competências da Justiça Federal, os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente, a lei de lavagem de dinheiro optou por disciplinar a matéria, estabelecendo de forma expressa os casos sujeitos à jurisdição federal.
Assim, tramitarão em varas federais os crimes de branqueamento de capitais praticados em detrimento do sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou de bens, serviços e interesses da União, suas autarquias e empresas públicas e, ainda, quando a apreciação da infração penal antecedente competir à Justiça Federal. Os demais, submetem-se à alçada da Justiça Estadual, dada sua competência residual.
Na esteira da entrada em vigor da Lei n° 9.613/98, cuja publicação decorreu do momento histórico pós-estabilização da moeda brasileira e abertura do mercado ao capital estrangeiro – acontecimentos que tornaram o país mais sedutor aos olhos da criminalidade organizada –, uma gama de órgãos vinculados ao Poder Executivo foram criados para atender a demanda pelo desenvolvimento de sistemas de inteligência dedicados à detecção da ocorrência do crime e compartilhamento de informações sigilosas, deflagrando assim, verdadeira resposta estatal no combater desse tipo de criminalidade que se vale recorrentemente de meios sofisticados.
Nesse intento, de fulcral importância a atuação coordenada de Polícias, Ministérios Públicos, Secretarias Municipais, Secretarias de Estado e Ministérios, o que passou a se dar, no mais das vezes, através da celebração de Termos de Cooperação Técnica para a consecução de objetivos comuns, tocantes, como no caso em comento, à recuperação de ativos.
4.1 COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras
Dentre os mais atuantes órgãos de fiscalização de operações monetárias e financeiras, merece relevo o COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras –, braço do Ministério da Fazenda, especializado na disciplina, aplicação de sanções administrativas, exame e identificação de transações suspeitas, as quais uma vez rastreadas, são encartadas, em caráter reservado, nos chamados Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s), cujos destinatários, via de regra, são os chefes das Polícias e dos Ministérios Públicos.
Cuida-se, portanto, de órgão multifacetado, cuja composição agrega servidores do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários, da Superintendência de Seguros Privados, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Receita Federal, da Polícia Federal, do Ministério das Relações Exteriores e, mais recentemente, da Controladoria-Geral da União.
4.2 ENCCLA - Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro
De atuação paralela ao COAF, despontou, por iniciativa do Ministério da Justiça, política governamental intitulada Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, de natureza perene e também de composição mista, com vistas à prevenção e repressão ao crime de lavagem de dinheiro. Mediante a estipulação de metas estratégicas definidas em reuniões anuais, referido instituto promove a capacitação de servidores públicos, o adequado aproveitamento das informações obtidas através de bancos de dados de caráter público, ampliação da eficiência do Departamento de Recuperação de Ativos Ilícitos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), do qual passaremos a tratar.
4.3 O DRCI - Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional
No mesmo contexto da fundação da ENCCLA, com subordinação direta à Secretaria Nacional de Justiça e vinculação com o Ministério da Justiça, ganhou vida em 2004 o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional – DRCI. Dentre suas competências, enumera-se a análise de conjunturas, identificação de ameaças e definição de políticas eficazes no combate à lavagem de dinheiro.
Visa, também, divulgar e intermediar a recuperação de ativos enviados ao exterior de forma ilícita, assim como dos demais produtos de crimes antecedentes, sobretudo por meio dos instrumentos de cooperação jurídica internacional.
Para tanto, é legitimado a firmar acordos internacionais na qualidade de Autoridade Central Brasileira, seja para assuntos penais ou cíveis, intercambiando pedidos de auxílio jurídico transnacional
5 Cooperação Jurídica Internacional
Em se tratando do chamado Direito Penal Econômico, eventual condenação ao encarceramento, por si só, não constitui medida penalizante reparadora do bem jurídico sensibilizado, eis que na maioria das vezes decorrem desses crimes prejuízos concretos de ordem pecuniária para o Estado, que tem legítimo interesse em reaver receitas evadidas.
A finalidade principal da recuperação de ativos baseia-se na retirada de poder financeiro do criminoso econômico, bem como a de desestimular a prática do delito, retornando o proveito do crime para a economia do país. (Silva, 2011).
Com fincas nesse escopo os órgãos encarregados da persecução penal, notadamente o Parquet, vinham deparando-se com entraves de ordens diversas, seja pela dificuldade em localizar os ativos elaboradamente escamoteados em paraísos fiscais, seja pela igualmente morosa e complexa tarefa de postular junto a jurisdições alienígenas.
Enquanto a criminalidade organizada, primordialmente através da informática, abre contas, transfere importâncias, gerencia empresas, desenvolve contra-tecnologias voltadas à burla da legislação, os Estados, pela lavratura de tratados, convenções e pactos internacionais, passaram a formalizar mecanismos comuns de reciprocidade para a uniformização, na medida do possível, dos requerimentos de auxílio jurídico no combate àqueles ilícitos financeiros – consectário dos anseios compartilhados por todos os signatários.
A cooperação internacional verifica-se por dois instrumentos distintos. O primeiro, mais antigo e de maior conhecimento por parte da comunidade jurídica, já que previsto nas codificações processuais brasileiras, versa sobre as cartas rogatórias, forma clássica pela qual um juízo requer a outro, de jurisdição estrangeira, a prática ou comunicação de atos processuais.
Tal modalidade vem sendo crescentemente substituída pelo chamado auxílio direto, em que não há pedidos de um magistrado a outro; o que se pleiteia, outrossim, é a obtenção de uma decisão judicial estrangeira acerca de um litígio interno, e o papel das Autoridades Centrais é então majorado, posto que instruem o interessado a propor a demanda de forma mais clara e objetiva, no sentido de preencher, em formulário semi-padronizado, os requisitos exigidos pelo país solicitado para a prestação do auxílio.
O Manual de Cooperação Jurídica Internacional elaborado pelo Ministério da Justiça divide, ainda, os dois aludidos tipos de auxílio entre o jurídico e o jurisdicional. Enquanto que o primeiro não demanda obrigatoriamente a intervenção do Poder Judiciário, requerendo somente atividade administrativa, o segundo tem lugar quando o ato visado é de natureza jurisdicional, ou seja, é apreciado necessariamente por magistrado.
Mais célere do que a carta rogatória, o auxílio direto por vezes dispensa a autenticação formal de documentos, a tradução juramentada, a concessão de assistência judiciária gratuita, entre outros. Amalgama-se perfeitamente ao ordenamento jurídico brasileiro, visto que a Constituição Federal, em seu art. 4°, inciso XI, dos princípios que regem as relações internacionais, alçou à categoria de objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”.
No entanto, mesmo essa nova forma de cooperação jurídica internacional foi concebida como instrumento de comunicação entre Estados, na acepção organicista da palavra, de ente federativo, excluído o sentido de representatividade do cidadão individualmente. Por isso, está excluído o particular dessa maneira de postular ao exterior. Quem postula, portanto, é o Estado.
Segundo Carolina Yumi de Souza, trata-se de instituto de natureza híbrida, “que não é puramente de direito processual penal nem de direito internacional. Traz consigo características dos dois ramos do direito e deve seguir alguns de seus princípios básicos.” De acordo ainda com a citada autora, oportunizado nesse procedimento o contraditório, “a única matéria de defesa que pode ser utilizada é a ocorrência de ofensa à ordem pública e à soberania”, conceitos de larga amplitude e dotados de grande subjetividade.
5.1 A Autoridade Central
Incumbida de concentrar os atos que envolvem pedidos de cooperação jurídica internacional, a Autoridade Central é órgão administrativo representado pela Secretaria Nacional de Justiça, por meio do DRCI, com sede no Ministério da Justiça, concebida com o fim de tornar mais ágeis e diretas as relações entre os estados cooperadores e cooperados, também nominados solicitantes e solicitados. A expressão Autoridade Central foi cunhada desde o surgimento dos primeiros tratados e convenções internacionais sobre o tema, na década de 60, representando uma opção às tradicionais vias diplomáticas, excessivamente formalistas e burocráticas.
Cabe, pois, à Autoridade Central, intermediar todo o circuito percorrido pelo pedido de cooperação jurídica internacional via auxílio direto, seja ativo – quando solicitado pelo Brasil – ou passivo (quando o Brasil é o país solicitado), com funções que transpassam o mero envio e recepção de documentos, conforme atribuições constantes do artigo 11, incisos IV e VI do Decreto n° 6.061/07, que encarta o Regimento do Ministério da Justiça.
De acordo com o Manual de Cooperação Jurídica Internacional em matéria penal, elaborado pela Secretaria Nacional de Justiça, as atribuições da Autoridade Central são diversificadas, ao talante da infinidade de objetos contemplados nos pedidos, a exemplo de meras comunicações de atos processuais até a oitiva de testemunhas, a obtenção de decisões judiciais e documentos aptos a instruir investigações e buscas pessoais e domiciliares. Inserem-se na relação de pedidos de cooperação comumente manejados o cruzamento de informações tocantes a fraudes fiscais e o consequente repatriamento de ativos.
Insta salientar, no entanto, que não é a Autoridade Central órgão isolado no processamento da cooperação jurídica internacional. Lida nesse procedimento também o Ministério das Relações Exteriores, por meio da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, acompanhando os pedidos que seguem pelos canais diplomáticos. Da mesma forma, quando necessária a obtenção de decisão judicial no território brasileiro, atuam em juízo as Advocacias Públicas e Ministérios Públicos, por competentes para a postulação no foro em geral.
Dentre os países signatários de acordos de cooperação internacional mútua com o DRCI pode-se mencionar os Estados Unidos, Argentina, Colômbia, Peru, Portugal, Paraguai, Uruguai, Grã-Bretanha, França, Itália, Ucrânia, Suíça, Líbano, Angola, Canadá, China, Cuba e Coreia do Sul, reservando cada um desses países, inobstante a busca por uma uniformidade nos requerimentos, requisitos próprios.
5.2 Pedido de Cooperação Jurídica Internacional Conduzido Pela Autoridade Central Brasileira e Endereçado ao Exterior: Requisitos
Nas situações em que entidade brasileira figura como a solicitante do auxílio direto, tal pedido deve seguir ditames estipulados em cada acordo bilateral firmado, expondo-se com clareza os fatos e fundamentos que ensejam e guarnecem o pleito. Nesse sentido, imperioso descrever o objeto da investigação, sua fase atual de tramitação e que provas já foram obtidas, fazendo-se imprescindível trazer a lume a legislação nacional de regência, critério que permite a aferição do princípio da dupla incriminação ou dupla tipicidade: que o fato capitulado como crime no ordenamento brasileiro também o seja na legislação do país solicitado.
Inexistindo ajuste bilateral entre os Estados solicitante e solicitado, ainda assim é viável a cooperação por auxílio direto, com supedâneo na garantia de reciprocidade oferecida pelo requerente.
A autoridade pública solicitante deve ser necessariamente declinada quando do preenchimento do competente formulário de auxílio jurídico, indicando-se a que órgão representa. Da mesma forma, quando possível, a qualificação completa da pessoa visada.
Questões de mera formalidade, como a indicação do tipo de procedimento que se busca instruir e a numeração dos respectivos autos também se fazem relevantes, já que as informações originadas de um pedido vinculam-se à utilização estrita no caderno apuratório mencionado no formulário – a menos que o Estado solicitado consinta expressamente na reutilização a título de prova emprestada.
Pormenorizada, também, a descrição da assistência requerida, especificando as providências e procedimentos que o solicitante pretenda sejam aplicados.
5.3 Convenção de Palermo
Especificamente quanto ao crime organizado internacional, firmou-se em 1999 a Convenção de Palermo, ou Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, prevendo em seu art. 7° medidas de combate à lavagem de dinheiro, dentre outros crimes. Pelo referido diploma, o caráter transnacional da infração poderá ser identificado se cometido o delito em mais de um Estado ou, caso consumada em apenas um, parte substancial de seus atos preparatórios ou executórios tenha lugar em outro ou nele produza efeitos.
O Brasil, na esteira do disposto na Convenção de Palermo e através da Lei n° 12.694/12[4], optou por definir o conceito de organizações criminosas como associação de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.
O artigo 2° da Convenção permite ainda a inclusão de pessoa jurídica como parte no pedido de cooperação jurídica, desde que para subsidiar investigações, ações ou outros atos processuais.
É legítimo ao Estado demandado recusar o auxílio direto desde que sob os fundamentos de contrariedade aos princípios de soberania, segurança, ordem pública ou, ainda, que o fato elencado no requerimento já tenha sido objeto de processo ou investigação no destino da cooperação, como garantia do ne bis in idem.
Não podem os signatários, todavia, recusar a cooperação aduzindo questões de violação de sigilo bancário ou em razão de o crime envolver sigilo fiscal.
Também com albergue na Convenção de Palermo é que promove-se a recuperação de ativos evadidos ao exterior, posto que previstos naquele instrumento internacional o confisco, a apreensão e o repatriamento de bens, direitos e valores obtidos como produto de crime.
6 Conclusão
Do presente trabalho, duas conclusões se projetam com maior expressão. Num primeiro plano, impende destacar que mesmo antes de promovida a recente abolição do rol fechado de delitos antecedentes à lavagem de dinheiro, não vigiam óbices ao processamento desse crime em decorrência de sonegação fiscal, nem tampouco havia impedimento ao pleito de recuperação de ativos respectivos. Isto porque, antes da inovação trazida pela Lei n° 12.683 a previsão na Lei n° 9.613/98 do delito antecedente “praticado por organização criminosa” perfazia o liame entre as duas infrações, considerando-se que a grande sonegação é perpetrada sobretudo no âmbito de tais concílios criminosos estruturados.
Nessa perspectiva, chancelada está a atuação do Ministério Público em defesa da ordem econômica e tributária, em combate aos delitos de caráter econômico que em última análise, surrupiam receitas de custeio das atividades do Estado e desequilibram o mercado formal e a credibilidade do sistema financeiro – direitos de envergadura constitucional.
Deflagrada a persecução penal por crimes dessa natureza, a cooperação jurídica internacional via auxílio direto, por meio da Autoridade Central, se apresenta como mais um mecanismo de que o membro do Parquet pode lançar mão, na qualidade de órgão de investigação e dominus litis, notadamente para a localização e repatriamento de ativos. Por conferir respostas com maior agilidade do que as instâncias diplomáticas, referido instituto exerce papel primordial no combate à impunidade na exata medida em que colima evitar que o simples transpor de fronteiras geográficas torne o criminoso de viés econômico imune ao jus puniendi Estatal.
7 Referências Bibliográficas:
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[1] Nesse aspecto, importa relembrar que o conceito de ilícito penal abrange crimes e contravenções, sendo esta a intenção da nova lei.
[2] Sociedades não-residentes,caracterizadas pelo fato de não exercerem nenhuma atividade comercial ou industrial no país sede.
[3] Nesse sentido, vide Conflito de Competência n° 124937/PE, julgado pela 3ª Seção do STJ, publicado em 17/04/13.
[4] A Lei n° 12.694/12 foi apelidada de “Lei do Juiz Sem Rosto”, por prever o julgamento colegiado de crimes praticados por organizações criminosas, nos termos em que as define (art. 2°).
Pós-graduada em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; graduada em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Assessora Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.<br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORLEY, Letícia Carvalho Ribeiro. A cooperação jurídica internacional para recuperação de ativos tributários como mecanismo de efetivação dos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2018, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52156/a-cooperacao-juridica-internacional-para-recuperacao-de-ativos-tributarios-como-mecanismo-de-efetivacao-dos-direitos-fundamentais. Acesso em: 22 nov 2024.
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