FÁBIO BARBOSA CHAVES[1]
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho irá abranger um estudo profundo sobre as causas relacionadas com o condicionamento de multas de trânsito em razão da não liberação do CRLV (Certificado de Registro e Licenciamento Veicular), será abordado a discussão polêmica que condiciona o pagamento das multas para a expedição do CRLV. Ocorre que esse condicionamento é considerado ilegal, ferindo o direito de locomoção. O presente trabalho irá abordar o entendimento dos Tribunais quanto ao tema, demonstrando os motivos da ilegalidade.
Palavras-Chave: CRLV, Multas de Trânsito, locomoção.
ABSTRACT: The present work will cover an in-depth study on the causes related to traffic ticket conditioning due to the non-release of the CRLV (Certificate of Registration and Vehicle Licensing), will be discussed the controversial discussion that conditions the payment of fines for the expedition of the CRLV. It occurs that this conditioning is considered illegal, violating the right of locomotion. The present work will address the understanding of the Courts on the subject, demonstrating the reasons for the illegality.
Keywords: CRLV, Traffic Fines, locomotion.
INTRODUÇÃO
Existe uma grande discussão quanto à ilegalidade do órgão estadual de trânsito condicionar a expedição do CRLV – Certificado de Registro e Licenciamento Veicular – ao pagamento de infrações de trânsito (multas), isso se faz necessário devido às diversas ocorrências apresentadas nos órgãos estaduais de trânsito em todo o País.
É sabido que os julgados e doutrinadores relacionados com a matéria em discussão, uma vez que o órgão de trânsito no Estado do Tocantins vem utilizando constantemente dessa prática abusiva para arrecadar as multas de trânsito condicionando-as na liberação do CRLV (Certificado de Registro e Licenciamento Veicular), uma vez que o Estado dispõe de outras ferramentas para cobrança e arrecadação das devidas multas de trânsito.
Quanto ao condicionamento do pagamento das infrações de trânsito já é bem exemplificativa no que tange a proibição do condicionamento da cobrança de multa de trânsito na ocasião da liberação da CRLV (Certificado de Registro e Licenciamento Veicular).
Para essa imposição do Estado é necessário analisar quais os mecanismos legítimos os proprietários de veículos do Estado do Tocantins devem utilizar para que cessem a continuidade da cobrança da multa de trânsito quando condicionada na liberação do CRLV (Certificado de Registro e Licenciamento Veicular) documento esse de porte obrigatório ao se conduzir veículos automotores?
Tem como objetivo principal constituir um importante mecanismo de observação e reflexão social, uma vez que pode servir de base para uma construção de conhecimento da realidade tributária em que essa prática abusiva vem sendo desenvolvida, e com isso promover um processo de educação para o exercício profissional daqueles que detém o poder de tributar e penalizar o cidadão.
Para ser realizada a pesquisa foi utilizado o método descritivo, analisando a interpretação de fatos apresentados. Para tanto será realizado a coleta de dados bibliográficos, análise de documentos (julgados e doutrinas).
1 A LOCOMOÇÃO COMO DIREITO E GARANTIA INDIVIDUAL
O direito a locomoção está expresso no ordenamento jurídico brasileiro desde a primeira Constituição Federal republicana com a seguinte redação “Em tempos de paz, qualquer pessoa pode entrar em território nacional ou dele sair, com sua fortuna e bens, quando lhe convier, independentemente de passaporte” (DIAS, p. 25).
A evolução do presente direito e garantia individual se deu gradativamente até chegar aos dias atuais.
Considerando que a locomoção é um direito de liberdade, um direito fundamental devidamente instituído na Constituição Federal em que preceitua que todos possuem o direito de ir e vir, sair, permanecer, de se locomover em todo o Brasil, conforme o artigo 5º que diz:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens (BRASIL, 1988)
O direito à liberdade de locomoção é um direito fundamental de primeira geração e garante que o Estado não seja arbitrário no seu Poder de restrição sobre esse direito, considerando a importância do direito a liberdade no qual ninguém será privado de seu direito de liberdade sem o devido processo legal que a restringirá.
A liberdade de locomoção se dá em todo o território nacional em tempos de paz concedendo livre acesso a qualquer parte do território brasileiro, pode haver mudanças, sair, entrar.
Mas, assim como todos os direitos fundamentais não são absolutos, este também não deveria de ser, ou seja, pode haver algumas restrições, não somente em infrações penais, que a restrição será total em caso de condenação ou flagrante delito, também nos casos de restrição de estrangeiros adentrarem no Brasil em caso de impedimentos.
Existe também a possibilidade de cobrança para a liberdade de locomoção, como é o caso dos pedágios, em que a tarifa cobrada não é facultativa e sim obrigatória para locomoção em vias públicas.
A outra restrição, não menos importante é a restrição da emissão do Certificado de Registro Veicular em caso de débitos com infrações de trânsito, ocorre que a obrigatoriedade é somente quanto ao certificado não quanto a quitação das infrações cometidas.
2 O ESTADO COMO GARANTIDOR DA EFETIVAÇÃO DE DIREITOS INDIVIDUAIS
Os direitos e garantias individuais do indivíduo deve ser garantido pelo Estado, analisando e assegurando as liberdades e garantindo a liberdade de locomoção, no geral a liberdades públicas.
A sociedade democrática de direito deve ser a garantidora das liberdades individuais, bem como garantir o serviço estatal, a participação da população no sistema de direito, Gilmar Mendes explica:
[...] enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais asseguram a esfera de liberdade individual contra interferências ilegítimas do Poder Público, provenham elas do Executivo, do Legislativo, ou do Judiciário. Se o Estado viola esse princípio, então dispõe o indivíduo da correspondente pretensão que pode consistir [...]. (MENDES, 1999. p.37)
O Estado deve garantir a liberdade individual sem interferências, sem artifícios que venham a prejudicar a livre locomoção e bem estar.
A supremacia do interesse público advém do direito administrativo brasileiro, e por este princípio, o interesse público se sobressai ao interesse privado, considerando que o direito público deve atender inicialmente aos direitos coletivos e ao bem estar social.
Quanto à sobreposição aos direitos individuais ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
[...] As normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando [...] substituiu-se a ideia do homem como fim único do direito (própria do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais. (DI PIETRO, 2011, p. 66)
Além da efetivação dos direitos acima descritos, o Estado também deve ser o garantidor da segurança de toda a população, conforme disposto no artigo 5º da Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (BRASIL, 1988).
A segurança mencionada acima mencionada não restringe a segurança física, contra violências do tipo de furtos, roubos, sequestro, mas também a segurança no trânsito, conforme disposto no Código de Trânsito Brasileiro.
Art. 1º.
[...]
§ 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.[...] (BRASIL, 1996)
Todavia, é valido ressaltar que tal dispositivo legal não dispõe apenas aos cidadãos, mas também um dever primordial do Estado e de todos os cidadãos, já que o trânsito depende da efetiva participação de toda sociedade, não sendo possível esperar responsabilidades apenas dos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Transito. O artigo 28 do CTB estabelece a obrigação do condutor de dirigir com atenção, de forma segura e que colabore para a segurança do trânsito.
Portanto, o art. 1º, § 2º do CTB deverá ser culminado com o que vem disposto no art. 144 da CF, que também dispõe da segurança, preceitua:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:[...] BRASIL, 1996)
Neste mesmo sentido descreve RIZZARDO (2003, p. 29):
[...] tão importante tornou-se o trânsito para a vida nacional que passou a ser instituído um novo direito – ou seja, a garantia de um trânsito seguro. Dentre os direitos fundamentais, que dizem respeito com a própria vida, como a cidadania, a soberania, a saúde, a liberdade, a moradia e tantos outros, proclamados no art. 5º da Constituição Federal, está o direito ao trânsito seguro, regular, organizado ou planejado, não apenas no pertinente à defesa da vida e da incolumidade física, mas também relativamente à regularidade do próprio trafegar, de modo a facilitar a condução dos veículos e a locomoção das pessoas. (RIZZARDO, 2003, p. 29.)
É dever de o Estado buscar formas de efetivar o trânsito seguro, não somente com o intuito de tributação, garantir recolhimento de fundos, mas de fato garantir que a população tenha uma segurança como um todo.
Poder se locomover com segurança e fiscalização necessária para tal é o que toda população espera, isso se dará com políticas públicas eficazes, haja vista que já estão sendo garantidas pela Lei.
3 O VEÍCULO COMO BEM MÓVEL E A NATUREZA JURÍDICA DO CRLV
Em conformidade com o Código de Trânsito Brasileiro veículo é bom móvel de locomoção que para poder circular necessita estar enquadrado em alguns requisitos ali expressos.
Um desses é o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo – CRLV, que nada mais é que uma espécie de licença, sobre licença Meirelles explica:
[...] licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p. ex., o exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio. (MEIRELLES, 1995, p. 170)
A natureza jurídica do Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo é um ato administrativo unilateral e vinculado em que a Administração impõe os requisitos legais para que o veículo possa ser conduzido, que são eles:
Art. 130 - Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, para transitar na via, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado o veículo. [...]
Art. 131 - [...]
[...]
§ 3º - Ao licenciar o veículo, o proprietário deverá comprovar sua aprovação nas inspeções de segurança veicular e de controle de emissões de gases poluentes e de ruído, conforme disposto no art. 104. (BRASIL, 1996)
Em conformidade com o Código de Trânsito Brasileiro visa assegurar o interesse público como a segurança de trânsito, ou seja, o licenciamento, ao ver do Estado é uma forma de assegurar a efetividade dos direitos.
O princípio da supremacia do interesse público advém do direito administrativo brasileiro, e por este princípio, o interesse público se sobressai ao interesse privado, as normas de direito público devem atender inicialmente aos direitos coletivos e ao bem estar social.
Nesse sentido ensina Celso Antônio Bandeira de Melo:
Ora, a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade. É em nome do interesse público – o do corpo social – que tem de agir, fazendo-o na conformidade da intentio legis. Portanto, exerce “função”, instituto – como visto – que se traduz na ideia de indeclinável atrelamento a um fim preestabelecido e que deve ser atendido para o benefício de um terceiro. É situação oposta à da autonomia da vontade, típica do Direito Privado. De regra, neste último alguém busca, em proveito próprio, os interesses que lhe apetecem, fazendo-o, pois com plena liberdade, contanto que não viole alguma lei. (MELLO, 2010, p. 98)
Quanto à sobreposição aos direitos individuais ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
[...] As normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, têm o objetivo primordial de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo. Além disso, pode-se dizer que o direito público somente começou a se desenvolver quando [...] substituiu-se a ideia do homem como fim único do direito (própria do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais. (DI PIETRO, 2011, p. 66)
O Estado visa resguardar o direito público, visando a segurança do trânsito, porém um resguardo que está ferindo o direito pessoal do proprietário de veículo.
4 A ILEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO POR DESVIO DE FINALIDADE
A multa pode ser entendida como um modo coercitivo de exigir uma conduta dos condutores, em caso de ferir alguma ação já estipulada no Código de Trânsito Brasileiro.
Todos os tributos e multas se não realizado o pagamento no tempo estipulado pela Administração Pública será inserido na dívida ativa, assegurando assim o recebimento.
A exigibilidade do pagamento da multa depende da inscrição na Dívida Ativa, não restringindo a emissão de certificado do veículo para a efetividade do pagamento.
Constante expressamente no texto do Código de Trânsito Brasileiro que o pagamento de multas de infrações de trânsito é condição sine qua non para a expedição do CRLV, a matéria cabe discussão, tanto acerca da legalidade do ato perpetrado pela autoridade de trânsito, quanto acerca da constitucionalidade do referido dispositivo legal.
Para se renovar o CRLV dispõe o CTB acerca da necessidade de quitação de todos os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito, senão vejamos:
Art. 131. O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.
§ 1º (...) § 2º O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas (BRASIL, 1996)
Simplório é o entendimento do órgão responsável pela emissão do documento, do porque não se deve condicionar a emissão do CRLV ao pagamento de multas que se encontram em sede de processo administrativo junto ao órgão de trânsito, pois que a expedição de licença para o veículo tem a finalidade de estabelecer o controle sobre o nome e endereço de seu proprietário, e mais, controle de segurança veicular e de emissão de gases poluentes e de ruído, mas nunca de coagir o proprietário a efetuar o pagamento de impostos e multas vinculados ao veículo.
Em situações como a dos autos, sempre me pautei no sentido de que o Estado não pode condicionar a expedição do CRLV ao pagamento das multas de trânsito pendentes, sejam elas ou não objeto de recurso administrativo, visto que ao assim proceder está praticando autêntica coerção para cobrar os valores das referidas multas, o que é vedado, expressamente, pelo enunciado da Súmula nº. 323, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual: ‘É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.’
Mutatis mutandis, o raciocínio utilizado pelo Pretório Excelso no que se refere a tributos se aplica, integralmente, no caso das multas de trânsito. (...)
Desta forma, tenho por nítida a inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, CTB, já que restringe o direito de propriedade assegurado pela Carta Magna, uma vez que autoriza a restrição ao direito de usar, gozar e dispor livremente de seus bens, faculdades estas conferidas a todo e qualquer proprietário (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2009)
Ademais, a não renovação do documento – independentemente da existência de recursos administrativos ou quitação de débitos – coagindo o cidadão ao pagamento de supostas ou efetivas penalidades configura ato de desvio de finalidade do ente público. Assim vejamos o que Melo informa acerca do desvio de finalidade:
[...] Não se pode buscar através de um dado ato a proteção de bem jurídico cuja satisfação deveria ser, em face da lei, obtida por outro tipo ou categoria de ato. Ou seja: cada ato tem a finalidade em vista da qual a lei o concebeu. Por isso, por via dele só se pode buscar a finalidade que lhe é correspondente, segundo o modelo legal”.(...) Ocorre desvio de poder, e, portanto, invalidade, quando o agente se serve de um ato para satisfazer finalidade alheia à natureza do ato utilizado (2010, p. 247 e 248)
Cabe observar que as infrações que se encontram em sede de procedimento administrativo ainda são passíveis de revogação, desta feita não é cabível compelir o cidadão a pagá-las sem que a ele seja dado o direito constitucionalmente assegurado à ampla defesa e o contraditório.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (BRASIL, 1988);
Conforme se extrai do art. 5º, inciso LVII da CF, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Deste artigo se convalida o princípio da inocência. Por este princípio, o acusado somente será tido como culpado após a decisão proferida pela autoridade competente e desde que não haja mais recurso.
Ferrajoli sobre tal princípio descreve:
[...] Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova na tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido à pena. Sendo assim, o princípio de submissão a jurisprudência – exigindo, em sentido lato, que não haja culpa sem juízo, e, em sentido estrito, que não haja juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação – postula a presunção de inocência do imputado até prova contrária decretada pela sentença definitiva de condenação. (2002, p. 441)
Pelo princípio da presunção de inocência, visa resguardar o acusado da arbitrariedade estatal, já que a inobservância deste princípio enseja de maneira autoritária do Estado, que este exerça antecipadamente do jus puniendi, aos indivíduos que não há certeza da culpa.
Alguns doutrinadores de renome nacional, como Nestor Távora e Ferrajoli, entendem que o reconhecimento da autoria da infração só pode ocorrer após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Válido se torna dizer que não há exceções quanto ao princípio em análise, já que todo acusado é presumidamente tido como inocente, deste modo, fica a cargo da acusação o ônus da prova de culpa do indiciado.
Explica Ary Lopes Junior (2011, p. 183/188) que o princípio da presunção de não culpabilidade se convalida em dois aspectos, na dimensão negativa, pelo qual se considera o acusado inocente até prova contrária e na dimensão positiva, que o indiciado seja tratado devidamente como inocente.
No caso da dimensão positiva, é um dever de tratamento, o qual determina que: i) o ônus da prova é de quem acusa; ii) caso haja dúvida quando a culpa do acusa, deverá ser absolvido pelo princípio do indubio pro reo, ou seja, na dúvida, beneficia-se o réu.
O princípio em análise merece destaque no Direito Penal, já que não protege apenas os acusados, mas sim, qualquer inocente. Entende-se deste princípio que é melhor um culpado solto do que um inocente preso, já que o interesse maior é a proteção ao inocente.
Se o entendimento fosse pela prescindibilidade do princípio em análise, haveria um retrocesso aos ditames inquisitivos no passado, já que antigamente a presunção de culpabilidade já ensejaria no jus puniendi do Estado. Sobre isso discorre Aury Lopes Junior:
[...] A presunção de inocência remonta ao Direito romano (escritos de Trajano), mas foi seriamente atacada e até invertida na inquisição da Idade Média. Basta recordar que na inquisição a dúvida gerada pela insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve. Era na verdade uma presunção de culpabilidade. (LOPES, 2011, p. 183/184):
Além da presunção da inocência em todas as infrações de trânsito até o último recurso apresentado, há de salientar que todos possuem o direito a ampla defesa e ao contraditório.
O artigo 5º, LV da Constituição Federal de 1988, dispõe que, “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, como os meios e recursos a ela inerentes”.
O princípio do contraditório é o direito que às partes tem de serem informadas de todos os acontecimentos do processo antes de qualquer decisão. No processo penal o contraditório tem que ser pleno e efetivo, além de existir a figura do contraditório diferido, futuro ou postergado, onde o contraditório só é praticado após a produção da prova em casos de urgência, pode ser concedida a concessão de medidas judiciais sem dar ciência a outra parte, devendo depois de cumprida a medida assecuratória, intimar a outra parte sob pena de nulidade do ato.
Não obstante, o princípio da ampla defesa é um efeito do contraditório. Assegurando ao acusado a utilização, para a defesa de seus direitos, de todos os meios legais e moralmente admitidos. Tem o Estado o dever de facultar ao acusado a mais completa defesa quanto à imputação que lhe é realizada, portanto ninguém pode ser condenado sem antes ter a oportunidade de ser ouvido quanto aos fatos imputados.
Não há de se imputar a penalidade ao condutor em restringir a certificação em casos de uma infração de trânsito que possa a vir ser contestada.
É fato que algumas infrações de trânsito não são dispostas corretamente e todos devem ter direito a ampla defesa e ao contraditório, além de que todos não são culpados até a análise do último recurso.
6 OS PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS
Cumpre assinalar que o entendimento se pauta pela total ilegalidade do condicionamento do CRLV ao pagamento de multas, até mesmo nos casos em que as penalidades já foram impostas ou que estão desprovidas de recurso administrativo, vez que o ente, seja ele público ou autárquico, não deve utilizar de via obliqua para cobrar créditos junto ao cidadão, pois a administração possui meios legais para proceder a tais cobranças, qual seja, a execução fiscal.
A Súmula 127 do Superior Tribunal de Justiça entende que "É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa da qual o infrator não foi notificado".
A presente súmula é bem oportuna, considerando que alguns casos o veículo é multado e não existe a notificação para conhecimento das infrações cometidas, restringindo assim o contraditório e ampla defesa do suposto acusado de cometer as infrações.
É necessário salientar que muitas vezes não se refere apenas a notificação da infração de trânsito, mas sim quanto a todo trâmite processual até o término dos recursos, seja no âmbito administrativo quanto no judicial.
Nesse sentido Rizzardo explica que:
[...] o licenciamento de veículo pode ser condicionado ao pagamento de débitos relativos ao veículo, todavia, como antes ressaltado, quando exigível a multa, não cabendo mais recurso não se dispensa o prévio recolhimento, o que já foi enfatizado pela jurisprudência. Ou seja, até o julgamento de eventual recurso interposto, a parte continua exercendo o seu direito de defesa conforme o disposto em art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal (RIZZARDO, 2004, p. 406).
É passível o entendimento doutrinário que a emissão do licenciamento não pode estar condicionado ao pagamento das infrações de trânsito, sem que haja o devido processo, ou seja até a análise do último recurso, ainda nessa esfera o autor em comento explica que em conformidade com o artigo 286 do Código de Trânsito não pode exigir o pagamento da multa, enquanto ainda esteja em recurso (art. 226: “Não há exigibilidade da multa de trânsito na pendência de recurso, que impede seja seu pagamento demandado pela administração pública para a renovação da licença”)(BRASIL, 1996).
Impedir que o proprietário do veículo exerça o direito de licenciar o seu veículo a Administração está cometendo um ato ilícito e passível de Mandado de Segurança.
E nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. LICENCIAMENTO DE VEÍCULO. PAGAMENTO DE MULTAS. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. RECURSO ADMINISTRATIVO. EFEITO SUSPENSIVO. 1. O prequestionamento dos dispositivos legais tidos como violados é requisito indispensável à admissibilidade do recurso especial. Incidência das Súmulas n. 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal. 2. “É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado” (Sumula n. 127/STJ). 3. “Não há exigibilidade da multa de trânsito na pendência de recurso, o que impede seja seu pagamento demandado pela administração pública para a renovação da licença.” (REsp 249.078/MG, Relator Ministro Franciulli Netto, julgado em 20.06.00) 4. Recurso especial parcialmente conhecido e improvido. (STJ, REsp 621.489/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, 2ª Turma, julgado em 17/04/2007, DJ 07/05/2007 p. 302)
Neste sentido, é a decisão proferida pelo TJMG - 1.0024.03.116249-8/001(1); Des. BELIZÁRIO DE LACERDA, publicado em 03.03.2005.
ADMINISTRATIVO - LICENCIAMENTO DE VEÍCULO - CONDICIONAMENTO AO PAGAMENTO DE MULTAS - INADMISSIBILIDADE. A renovação de licença de veículo não poderá ficar condicionada ao pagamento de multa porventura existente oriunda de infração, pois a administração tem ao seu dispor meios judiciais próprios para o recebimento de possíveis créditos.
Nesse diapasão também vale expor o entendimento do Desembargador Alvim Soares que diz:
Inicialmente, tenho que é dispensável o levantamento de incidente de inconstitucionalidade no caso vertente, nos termos do art. 248, § 1º, I, do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça; ora, o caso vertente comporta, mutatis mutandis, a aplicação da Súmula 323/STF, a demonstrar toda a irrelevância da argüição de inconstitucionalidade perante a Corte Superior deste Sodalício, data venia.
Visto isto, tenho que patente a inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro, ao condicionar a expedição de CRLV ao prévio pagamento de multas do veículo automotor; (...)
A exigência do pagamento de multas para que o CRLV seja expedido é uma arbitrariedade, vez que seria uma auto-executoriedade, que é, no caso, vedada; a auto-executoriedade consiste no poder que detém a Administração de executar seus atos administrativos, sem a necessidade da intervenção do Poder Judiciário; somente são auto-executórios os atos dotados de imperatividade; todavia, nem todo ato imperativo goza da auto-executoriedade.
Assim, inconstitucional a norma do Código de Trânsito que condiciona o licenciamento do veículo ao pagamento de multas à ele relativas, eis que, o ato administrativo em questão, não goza, repete-se, da auto-executoriedade conferida à Administração (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2009)
É pacífico o entendimento de que condicionar a emissão do CRLV ao pagamento de infrações de trânsito é ato abusivo, devendo tal ilicitude ser reconhecida não só pelo poder judiciário, mas afastada na rotina administrativa dos órgãos fazendários.
CONCLUSÃO
Impedir que os proprietários regularizem seus veículos em função da existência de multa de trânsito constitui ofensa direta ao direito de propriedade, vez que, sem o documento de porte obrigatório o proprietário fica impedido de usar e gozar do seu bem, podendo este até mesmo ter medida administrativa de remoção.
A expedição de licença veicular (CRLV) tem a finalidade de estabelecer o controle sobre o nome e endereço de seu proprietário, e mais, controle de segurança veicular e de emissão de gases poluentes e de ruído, mas nunca de coagir o proprietário a efetuar o pagamento de impostos e multas vinculados ao veículo.
Então o condicionamento da emissão do CRLV ao pagamento de multas constitui ato abusivo e ilegal, uma vez que o Estado não deve usar de via obliqua para compelir o contribuinte a realizar seus débitos.
Em função das questões postas acima, a pesquisa proposta neste projeto se constitui um importante mecanismo de observação e reflexão social, uma vez que pode servir de base para uma construção de conhecimento da realidade tributária no cenário tocantinense, até mesmo em todo o território nacional, locais que essa prática abusiva vem sendo desenvolvida, e com isso promover um processo de educação para o exercício profissional daqueles que detém o poder de tributar e penalizar.
Consoante o exposto acima, podemos tirar as seguintes conclusões de que de forma alguma não pode a Administração condicionar a emissão do CRLV – Certificado de Registro de Licenciamento Veicular ao pagamento de multa mediante o qual o direito de defesa em relação às necessárias notificações não tenha sido devidamente assegurado ao proprietário do veículo.
E quanto ao princípio do contraditório e da ampla defesa, não pode de forma alguma haver imposição de penalidade/multa, uma vez que a parte não tenha seu direito de exercer a sua prévia defesa, de forma que a liberação do CRLV esteja condicionada ao pagamento de multa da qual não ocorreu o correto processo legal da notificação e/ou o administrado de qualquer forma não teve ciência de sua defesa prévia apresentada junto à Administração Pública, em tese, configurando puro ato abusivo e ilegal.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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[1] Orientador, graduado em direito pela Unievangélica de Anápolis (2000) e Mestrado em Direto, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2012). Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017). Atualmente é Professor de Graduação e Pós-graduação da Faculdade Católica do Tocantins. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil, Direito Eleitoral e Direito Previdenciário.
Graduando no curso de direito pela faculdade Serra do Carmo .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GAMA, Antonio de Jesus Pereira. A exigibilidade de quitação das multas de trânsito como condicionante à expedição do CRLV - certificado de registro e licenciamento veicular Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52341/a-exigibilidade-de-quitacao-das-multas-de-transito-como-condicionante-a-expedicao-do-crlv-certificado-de-registro-e-licenciamento-veicular. Acesso em: 22 nov 2024.
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