CYNTIA COSTA DE LIMA[1]
(Orientadora)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo analisar as consequências jurídicas do reconhecimento da multiparentalidade e a tendência da justiça brasileira em reconhecer as novas modalidades de família. Para a realização da pesquisa utilizou-se do método dedutivo, em pesquisa teórica e qualitativa com emprego de material bibliográfico e documental legal, realizando revisões jurisprudenciais acerca do tema, analisando os julgados que possibilitaram tal reconhecimento. Apresentou-se também um breve recorte histórico da constituição familiar no Brasil, desde a família patriarcal até a nova concepção de família fortemente influenciada pelo princípio da afetividade. Esforçou-se, ainda, em demonstrar a importância do reconhecimento legal desse instituto, uma vez que ele gera todos os efeitos inerentes a filiação para os envolvidos. Por fim, concluiu-se que apesar da multiparentalidade ser uma realidade cada vez mais discutida e aceita por muitos tribunais, ainda não é tratado com a devida importância, poucas são as doutrinas que consolidam a matéria de modo pleno e efetivo, o que contribui para a falta de conhecimento e para o aumento de diversos debates contrários acerca do assunto.
PALAVRAS-CHAVE: Família; Filiação Socioafetiva; Multiparentalidade; Afetividade;
ABSTRACT: This article aims to analyze the legal consequences of the recognition of multiparentality and the tendency of the Brazilian justice system to recognize the new forms of family. For the accomplishment of the research the deductive method was used, in theoretical and qualitative research using bibliographical and legal documentary material, carrying out jurisprudential reviews on the subject, analyzing the judgments that made possible such recognition. There was also a brief historical review of the family constitution in Brazil, from the patriarchal family to the new conception of the family strongly influenced by the principle of affectivity. It also endeavored to demonstrate the importance of legal recognition of this institute, since it generates all the inherent effects of affiliation for those involved. Finally, it was concluded that although multiparentality is a reality that is increasingly discussed and accepted by many courts, it is still not treated with due importance, there are few doctrines that consolidate the subject in a full and effective way, which contributes to the lack of knowledge and the increase of several contrary debates on the subject.
PALAVRAS-CHAVE: Family; Socio-affective; Multiparentality; Affectivity;
INTRODUÇÃO
Diante da reformulação da concepção de família e da necessidade do ordenamento jurídico vigente em tutelar as novas realidades vivenciadas pelas famílias brasileiras surgiu o debate em torno da multiparentalidade. Isso ocorreu porque a evolução das relações familiares não vem sendo acompanhada pelos códigos modernos, deixando lacunas legais que precisam ser preenchidas.
Nesse viés, o presente artigo visa abordar acerca da multiparentalidade na ordem jurídica brasileira e os aspectos legais do seu reconhecimento, uma vez que o padrão de família vem alterando-se de forma significativa ao longo dos anos. O afeto passou a ser o elemento fundamental na consolidação das organizações familiares, por essa razão é que se debate a multiparentalidade, que surge para regimentar e propiciar a proteção dessas novas famílias.
Com os novos entendimentos acerca das entidades familiares tem-se uma visão mais ampla e moderna do conceito tradicional. Ao acolher a possibilidade jurídica da multiparentalidade, o ordenamento trouxe à tona diversas discussões relacionadas ao tema, e, entre tantos questionamentos, é de grande curiosidade saber como ficará a questão sucessória nos casos de multiparentalidade e se o filho (a) poderá herdar de ambos os pais.
À vista disso, o objetivo desse trabalho é analisar a possibilidade da coexistência da parentalidade biológica com a parentalidade socioafetiva, apontando os aspectos legais da multiparentalidade no nosso ordenamento jurídico, bem como averiguar as consequências provocadas pelo reconhecimento deste instituto.
A metodologia utilizada neste trabalho é a pesquisa bibliográfica, visto que é um texto realizado através de fontes baseadas em livros, artigos e outros textos científicos já publicados. Além do mais oferece meios que auxiliam na definição e resolução de problemas já conhecidos, bem como permite explorar outras áreas onde ainda não se firmaram suficientemente.
Desse modo, trata-se de uma pesquisa básica e descritiva, pois pretende-se preencher a ausência de estudo sobre determinado aspecto que ainda não foi completamente abordado, partindo de um problema constatado, buscando-se informações sobre o tema e analisando variáveis para que assim possa propor recomendações, sendo, portanto, uma pesquisa de método hipotético-dedutivo.
1. FAMÍLIA E MULTIPARENTALIDADE NO DIREITO BRASILEIRO
A instituição familiar passou por uma grande evolução no decorrer dos anos e por conta do surgimento de novos modelos familiares a definição de família acabou sendo reavaliada. Sua estruturação foi se adaptando a realidade imposta pela sociedade e a legislação tendo que se adequar a estas mudanças. Atualmente, o ordenamento jurídico brasileiro entende que família são pessoas ligadas umas nas outras por vínculo afetivo, sanguíneo ou jurídico, que buscam a satisfação pessoal própria e do outro (WELTER, 2009). Por essa razão, a multiparentalidade foi reconhecida juridicamente pela Repercussão Geral 622 do STF, uma vez que o instituto se firma nas relações afetivas entre pais e filhos, estando à ideia de paternidade fundada na afeição, amor e carinho estabelecidos durante a convivência.
A multiparentalidade é um instituto jurídico que se especifica por meio de dois elementos distintos, mas fundamentais e complementares: o fator biológico e a socioafetividade. A primeira situação é caracterizada pelos meios fisiológicos e sua respectiva determinação se baseia na genética, enquanto que a segunda se caracteriza pelo aspecto socioafetivo entre pais e filhos, onde o liame sanguíneo entre estes é inexistente e tem o afeto como elemento definidor da união familiar.
Ante o exposto, nota-se que a família deixou de se basear em laços biológicos para se sustentar em vínculos afetivos, novas configurações familiares surgiram e redefiniram o conceito inicial de família, sendo a multiparentalidade apenas um dos tantos outros arranjos familiares que poderão ser vistos a seguir.
1.1.AS NOVAS CONCEPÇÕES E AS NOVAS MODALIDADES DE FAMÍLIA
A família tradicional formada por um homem e uma mulher unidos pelo casamento, com o dever de gerar filhos, deixou de ser há muito tempo uma realidade absoluta. Atualmente, passou-se a priorizar o afeto como elemento essencial para composição de uma entidade familiar. Com isso, pode-se dizer que não existe mais uma moldura predefinida do que seja família, uma vez que as relações familiares podem ser constituídas de diversas maneiras.
Essa nova concepção se deu em razão de uma discussão referente ao julgado da QUARTA TURMA DO STJ RECURSO ESPECIAL Nº 889.852 - RS (2006/0209137-4) o qual tratava da possibilidade de adoção de menores por casal homoafetivo. Acontece que para que fosse possível a conferência desse direito aos homoafetivos, teria que ser feito uma reformulação no conceito de família, visto que o caso trazia uma espécie nova e totalmente diferente do modelo convencional socialmente aceito.
O afeto é o fundamento principal das uniões homoafetivas, assim como em qualquer outra entidade familiar, por essa razão não é aceitável que lhes seja negada a caracterização de família. Partindo dessa premissa, o julgado reconheceu que família é onde tem vínculo afetivo, independentemente dos laços sanguíneos, concedendo então ao casal homoafetivo a adoção dos menores, pois o que deve ser levado em consideração é o interesse do menor, sendo irrelevante a estruturação da família.
Dias (2017) elucida que “nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto pode-se deixar de conferir status de família, merecedora da proteção do Estado”, com isso, ficou estabelecido que não existe mais um modelo familiar padrão e que todos os novos arranjos familiares devem ser reconhecidos pelo ordenamento jurídico, ainda que não estejam constitucionalmente previstos.
Paulo Lôbo (2012, p. 70-71) diz:
O princípio da afetividade fundamenta as relações interpessoais e o direito de família nas relações socioafetivas de caráter patrimonial ou biológico e na comunhão de vida. A família contemporânea não se justifica sem que o afeto exista, pois este é elemento formador e estruturador da entidade familiar, fazendo com que a família seja uma relação que tem como pressuposto o afeto, devendo tudo o que for vinculado neste ter a proteção do Estado. O afeto é o resultado de todas as mudanças e evoluções ocorridas nos últimos anos nas famílias brasileiras, tem como base muitos dos valores consagrados pela Constituição Federal de 1988 e acaba sempre balizando importantes doutrinas e jurisprudências do direito de família. (LÔBO, 2012, p. 70-71)
A Constituição Federal de 1988 ampliou o conceito de família, colaborando de forma expressiva para o desenvolvimento do ordenamento jurídico, permitindo o reconhecimento de diferentes entidades familiares, normatizando o que já representava a realidade de muitas famílias brasileiras, passando a receber proteção estatal toda e qualquer modalidade familiar, independentemente de sua formação.
É evidente que os modelos de família existentes são resultados das inúmeras transformações ocorridas na sociedade brasileira, sabe-se que em tempos passados o casamento era a única forma de constituir família, sob interesses patrimoniais somados aos interesses religiosos. Hoje, se observa que a formação das famílias está baseada, principalmente, no afeto, em que o respeito, a solidariedade e a convivência são cruciais.
As novas entidades familiares surgidas na sociedade moderna são constituídas através do afeto e do respeito mútuo, portanto, devem ser reconhecidas e respeitadas, visto que o afeto é inerente ao homem, devendo ser valorado. Diante disso, cabe elencar as novas modalidades de família existentes na sociedade contemporânea.
1.1.1. Uniões homoafetivas
O Supremo Tribunal Federal proferiu em 2011 no julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 decisões reconhecendo as uniões afetivas de pessoas do mesmo sexo como entidades familiares, baseando-se em princípios constitucionais, sobretudo no princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da não discriminação e levando em conta o princípio da afetividade. Com isso, este modelo foi equiparado ao casamento e às uniões estáveis heterossexuais.
1.1.2. Família Anaparental ou parental
Essa entidade familiar tem como elemento o vínculo afetivo e a convivência entre parentes, inexistindo a figura dos pais, ou até mesmo entre pessoas, ainda que não parentes, que não possuam qualquer vínculo de natureza amorosa ou sexual.
O convívio entre parentes ou entre pessoas, ainda que não sejam parentes, dentro de uma composição de pessoas dividindo o mesmo teto com identidade de propósito, impõe o reconhecimento de uma entidade familiar, reconhecida pelos doutrinadores como família parental ou anaparental. (DIAS, 2016)
1.1.3. Família Mosaico ou pluriparental
Essa nova composição familiar é formada pela união de um casal, seja de fato ou por casamento, no qual um ou ambos possuem filhos provenientes de relacionamentos anteriores. É caracterizada pela convivência estabelecida através do vínculo afetivo entre os filhos e os companheiros dos genitores, envolvendo não somente o afeto, como também as questões pertinentes a educação, alimentação, cuidado e proteção, guarda, administração de bens, respeito, nome e identidade moral como existente em qualquer família.
Esta modalidade é tratada no artigo 69, § 2º do Projeto de lei Estatuto das Famílias Nº 470 DE 2013, o qual dispõe: “§ 2º Família pluriparental é a constituída pela convivência entre irmãos, bem como as comunhões afetivas estáveis existentes entre parentes colaterais”
Para Dias (2016, p. 218) a especificidade decorre da peculiar organização do núcleo, reconstruído por casais onde um ou ambos são egressos de casamentos ou uniões anteriores. Eles trazem para a nova família seus filhos e, muitas vezes, têm filhos em comum.
1.1.4. Família Multiparental
A família multiparental é caracterizada pela coexistência dos vínculos parentais biológicos e afetivos, ou seja, pela pluralidade de relações parentais. Nesse modelo observa-se o acúmulo de critérios distintos de filiação, podendo originar-se de diferentes situações. Apesar de ser uma realidade cada vez mais presente, as famílias multiparentais não possuem regulamentação legal específica que fixe direitos e deveres aos seus membros, tendo somente reconhecimento jurisprudencial e doutrinário.
Mediante o exposto, com a reformulação da concepção de família, notou-se que é preciso ter uma visão pluralista da família, uma vez que os diversos arranjos familiares são fundamentados sobre os pilares da afetividade como o mais importante elo de união entre seus membros, impondo uma nova aparência axiológica ao direito de família.
1.2. PROCEDIMENTO DO RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
A paternidade socioafetiva existe quando é estabelecida uma relação de pai e filho mesmo sem um vínculo sanguíneo ou de adoção. A jurisprudência nacional já firmou o entendimento de que é possível a coexistência das paternidades, de modo que no assento de nascimento de determinada pessoa pode constar múltiplos pais.
A multiparentalidade reconhecida judicialmente não é nenhuma novidade. Todavia, o Provimento 63 de 14 de novembro de 2017 do Conselho Nacional de Justiça, publicado em 17 de novembro de 2017 possibilitou que o reconhecimento de filiação socioafetiva pudesse ser efetivado diretamente nos Cartórios de Registro Civil de qualquer unidade federativa, sem a necessidade de recorrer ao judiciário, permitindo assim o reconhecimento extrajudicial.
A solicitação do reconhecimento não precisa ser efetivada no Cartório de Registro Civil em que o nascimento foi lavrado, podendo ser feito no cartório mais próximo. É necessário para dar início do processo que sejam apresentados documentos com foto e certidão de nascimento da pessoa que será reconhecida, sendo obrigatório o pai/mãe socioafetivo ser maior de 18 anos. Além dos documentos exigidos, um termo específico deverá ser assinado pela mãe biológica, caso o filho seja menor de 12 anos, e caso de filhos com idade superior a 12 anos, é necessário seu consentimento.
O cartório realizará a análise de todos os documentos apresentados e estando corretos prosseguirá com o reconhecimento. Pois, é preciso atender aos requisitos estabelecidos pelo Provimento 63. Sendo estes alguns dos principais requisitos necessários:
Art. 10. O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais.
§ 1º O reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade será irrevogável, somente podendo ser desconstituído pela via judicial, nas hipóteses de vício de vontade, fraude ou simulação.
§ 2º Poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva de filho os maiores de dezoito anos de idade, independentemente do estado civil.
§ 3º Não poderão reconhecer a paternidade ou maternidade socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes.
§ 4º O pretenso pai ou mãe será pelo menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido.
Art. 11. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva será processado perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, ainda que diverso daquele em que foi lavrado o assento, mediante a exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem constar do traslado menção à origem da filiação.
§ 4º Se o filho for maior de doze anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá seu consentimento.
§ 5º A coleta da anuência tanto do pai quanto da mãe e do filho maior de doze anos deverá ser feita pessoalmente perante o oficial de registro civil das pessoas naturais ou escrevente autorizado.
Desta maneira, com a edição do referido provimento, tornou-se possível reconhecer a filiação socioafetiva diretamente no cartório, desde que haja anuência dos pais biológicos e do filho maior de 12 anos, quando for o caso. No entanto, o reconhecimento de paternidade/maternidade socioafetiva de mais de dois pais ou de duas mães não poderá ser feito por via extrajudicial, nesses casos o reconhecimento será feito mediante decisão judicial. Pois, o Provimento nº 63/17 veda em seu Art. 14 o reconhecimento espontâneo de multiparentalidade em cartório, exigindo a propositura de ação.
1.3. A INCONSTITUCIONALIDADE DO ESTATUTO DA FAMÍLIA: PL 6583/2013
O Estatuto da Família é um projeto de lei de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE) que dispõe sobre os direitos da família e as diretrizes das políticas públicas voltadas para a valorização e apoiamento a entidades familiares. O projeto é de grande importância para toda população, uma vez que trata dos direitos de família já reconhecidos no Art. 226 da Constituição Federal.
O Estatuto teve enorme destaque, causando diversos debates em razão do texto apresentado definir como deve ser uma família, restringindo o conceito à união única entre o homem e a mulher ou por um dos pais e seus descendentes. Logo, limita-se o reconhecimento de direitos já consolidados pelo sistema jurídico, criando-se precedentes para negar direitos a vários outros arranjos familiares.
Assim sendo, exclui do princípio da legalidade diversas modalidades de família, como as homoafetivas, as adotivas, as formadas por pessoas solteiras, filhos frutos de inseminação, as que são formadas por pais adotivos, as recompostas por outras uniões, poliafetivas, além de muitas outras minorias igualmente consagradas pelo princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade de todos perante a lei.
O principal motivo que levou a proposta a inúmeras discussões é o fato de ser uma lei que já nasce inconstitucional, por ser contrária a definição constitucional de família. A Constituição Federal não define como deve ser a família, não estabelece um modelo específico, porém, reconhece a família como um instituto social essencial que é base da sociedade e, diz que toda e qualquer entidade familiar terá proteção especial do Estado.
O conceito definido pelo Estatuto da Família é excludente, pois faz com que sejam criados precedentes para se negar a vários outros arranjos familiares, não previstos neste estatuto, acesso a direitos que a eles já foram concedidos. Por essa razão, entende-se que a intenção desse projeto não é dar mais direitos para quem faz parte de uma família tradicional, mas sim tirar daqueles que fazem parte de outros modelos familiares seus direitos.
Diante disso, é concluso que se trata de uma legislação contrária aos princípios constitucionais, a dignidade da pessoa humana, bem como a autonomia das pessoas em relação as suas escolhas íntimas. O Brasil conseguiu construir nos últimos anos uma sociedade com mais acesso a direitos e ao reconhecimento da diversidade. Esse projeto é, claramente, uma reação a essa progressão, se vê como um retrocesso, a vontade de não reconhecer essa diversidade por medo e preconceito.
2. REFLEXOS DA MULTIPARENTALIDADE NO EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR
O poder familiar é irrenunciável, intransferível, inalienável e imprescritível. Decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal e da socioafetiva (DIAS, 2017, p. 488). Sendo assim, não há necessidade de remodelação no poder familiar quando se tratar de casos em que há o reconhecimento de múltiplos vínculos de filiação, pois cada um dos pais exercerá o poder familiar em sua totalidade.
No que tange à titularidade e exercício do poder familiar, o artigo 1.631 do CC/02 dispõe que a autoridade parental cabe igualmente a ambos os genitores, o que permanece inalterado mesmo após eventual dissolução dos vínculos afetivos entre eles. Da mesma forma que o artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente regulamenta que o poder familiar será exercido por ambos os pais, em igualdade de condições, sendo que em caso de discordância há o direito de se recorrer à autoridade judiciária.
Logo, o poder familiar é facilmente adaptável ao modelo de família multiparental, sem a necessidade de qualquer modificação, pois independentemente de como se apresenta o exercício do poder familiar, sempre se deve buscar preservar e atender o melhor interesse da criança ou adolescente.
2.1. PATERNIDADE SIMULTÂNEA
A paternidade simultânea ocorre com a cumulação das parentalidades, ou seja, quando há no mesmo momento mais de duas figuras parentais. Isso pode ser bem visualizado nos casos de multiparentalidade ou até mesmo nas famílias mosaico, onde se observa a existência de mais de duas pessoas como genitores. Desta forma, não há a sobreposição de uma paternidade sobre a outra, mas sim a junção de ambas.
O aplicador do direito não pode ignorar o fato de que não mais existe um critério exclusivo para se definir a figura parental e mais, que uma pessoa, pode, sim, ter dois ou mais pais ao lado da mãe, ou vice-versa. (VALADARES,2016).
A unicidade parental deixou de existir há muito tempo, é valido lembrar que no início, com o Código Civil de 1916, a paternidade era uma só: a presumida, decorrente de presunção legal. Posteriormente, com a chegada do exame em DNA, a paternidade passou a ser comprovada também através do vínculo biológico. Até que a doutrina e jurisprudência acataram como nova forma de parentalidade a paternidade socioafetiva, caracterizada pela posse de estado de filho fundada no vínculo de afeto.
Segundo Cysne (2008, p.213):
Por meio de uma análise histórica conclui-se que a relação paterno-filial divide-se em três momentos: em um primeiro momento considerava-se verdadeira a paternidade oriunda da relação matrimonial, que resultava no ato registral, conhecida como paternidade jurídica; em um segundo momento, passou-se a considerar como verdadeira a paternidade baseada na consanguinidade, conhecida como paternidade biológica e, atualmente, vive-se no terceiro momento, onde a paternidade predominante é a socioafetiva, que é aquela fundada nos laços de amor e afeto (CYSNE, 2008, p.213).
Como já foi mencionado, atualmente, admite-se o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, assim sendo, pode-se dizer que a paternidade socioafetiva tem tanta relevância quanto a paternidade biológica. Ressalta-se que as paternidades possuem origens distintas, enquanto a biológica se origina na consanguinidade, ou seja, nos vínculos genéticos existentes entre pai e filho, a socioafetiva tem origem nos laços de afinidade e afetividade.
Todavia, permite-se o reconhecimento de ambas as paternidades de forma simultânea, dando aos pais/mães e ao filho todos os direitos inerentes a paternidade e a filiação, tais como: nome dos pais no registro de nascimento, poder/dever familiar, alimentos, parentesco, guarda, visitas e demais direitos existentes. Beneficiando ainda mais o filho, tendo em vista que ele passa a ter mais carinho, amor, afeto e proteção.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a coexistência da paternidade simultânea no RE Nº 898.060 do Tema 622 - SC - caso de Repercussão Geral, o qual discutia-se a prevalência ou não da paternidade socioafetiva sobre a biológica, decidindo que ambas se encontram em situação de igualdade perante ordenamento jurídico. Deste modo, entende-se que houve um posicionamento do STF referente a impossibilidade de hierarquizar as relações afetivas, devido o vínculo afetivo ser tão forte quanto o biológico, não cabendo ao Estado ditar qual prepondera sobre o outro.
Afinal, por que um filho não poderia ter mais de dois pais ou mais de duas mães, se o próprio ordenamento brasileiro reconhece mais de uma forma de parentalidade? A resistência em aceitar a paternidade simultânea se mostra em virtude de uma cultura enraizada na ideia de que toda pessoa descende apenas de um pai e uma mãe, levando em consideração apenas o fator biológico. Acontece que a afetividade se tornou um elemento de suma importância para o direito, os tribunais entendem que relação de afeto pode ser até mais forte que o vínculo biológico, a depender do caso concreto.
Valadares (2016, p. 57) diz:
A resistência existente não é da legislação, mas, sim, dos aplicadores do direito e de parte da sociedade, ainda com dificuldade em vencer o protótipo da biparentalidade e da força do critério biológico, como se preponderante fosse na definição de uma filiação. (VALADARES, 2016, p. 57)
À vista disso, pode-se dizer que a paternidade simultânea trata de mais um mecanismo no sentido de promover o melhor interesse da criança, sem distinção de natureza das composições familiares nas quais sejam inseridas.
2.2. REGISTRO CIVIL
No que diz respeito ao nome e registro, depois de reconhecida a multiparentalidade, o nome do filho poderá ser composto pelo prenome de todos os pais, independentemente da origem, não possuindo nenhum impeditivo legal. Destaca-se aqui a Lei Nº 6.015/73 de Registros Públicos que possibilita a inserção de todos os genitores, não impondo limitações, ou seja, o filho poderá usar o nome de todos os pais.
O principal efeito jurídico gerado por esse instituto é a filiação e o meio mais fácil de comprovar a paternidade/maternidade é por meio do registro no assento de nascimento, logo, não se permite vedar a utilização dos nomes dos pais em registro, posto que se trata de um direito fundamental.
O artigo 54, itens 7º e 8º da Lei nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos, estabelece que no registro deverão constar os nomes e prenomes dos pais e dos avós maternos e paternos. Dessa forma, constará no registro de nascimento os nomes dos pais biológicos, do pai ou mãe socioafetivo (a), bem como constarão como avós todos os ascendentes destes e filho poderá usar o nome de todos os pais.
2.3. GUARDA E DIREITO DE VISITAÇÃO
Em relação à guarda de filhos menores, os pais socioafetivos possuem os mesmos direitos que os biológicos, pois não existe preferência sobre o exercício da guarda. Antigamente, os interesses dos pais biológicos eram priorizados, uma vez que se prevalecia o vínculo sanguíneo, todavia, hoje a relação de afetividade é o elemento indicativo para a definição de guarda.
Partindo do pressuposto de que o poder familiar cabe de modo igual a todos os múltiplos pais e mães, sejam estes afetivos ou biológicos, como destacado anteriormente, uma consequência lógica será também da mesma forma compreender quanto ao direito de guarda e visitação, uma vez que expressamente decorrem do exercício da autoridade parental.
A guarda poderá ser tanto unilateral quanto compartilhada, respeitando sempre o melhor interesse da criança e do adolescente (DIAS, 2017). As responsabilidades deverão ser acordadas entre ambos os pais e àqueles que não ficarem com a guarda terão direito às visitas, bem como poderão fiscalizar sua manutenção e educação.
Quando houver separação entre os pais biológicos, tal como dos pais socioafetivos, será concedida a guarda compartilhada, visto que é a regra adotada pelo Código Civil brasileiro, pois entende que ambos os pais sejam eles biológicos ou socioafetivos irão exercer concorrentemente a guarda, visando a todo momento atender as necessidades básicas dos filhos.
Quanto ao direito de visitas, não há preferência em virtude da parentalidade ser biológica ou afetiva, tanto o pai quanto a mãe e até mesmo os avós, sejam eles biológicos ou socioafetivos, terão direito de conviver com o menor.
De acordo com Cassettari (2016, p. 127):
Aquele que não tiver a guarda dos filhos poderá visita-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação. Cumpre lembrar que o direito de visita se estende a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente. (CASSETARI, 2016, p. 127)
Dado o exposto, diante de múltiplos vínculos parentais, para além do direito à guarda, também quanto ao direito à visitação nenhuma diferenciação pode ser feita quanto ao tipo de filiação, não podendo ser retirado seu direito a conviver com o filho, bem como dirigir sua criação e educação, o que, conforme o que foi visto, decorre do próprio poder familiar, pois o que sempre deve se priorizar é o melhor interesse do menor.
Após a exposição dos reflexos provocados pelo reconhecimento da multiparentalidade referente ao exercício do poder familiar, será tratado a seguir os reflexos econômicos provenientes deste instituto.
3. REFLEXOS JURÍDICOS E ECONÔMICOS DA MULTIPARENTALIDADE
Importante discussão que também permeia a multiparentalidade está diretamente ligada aos reflexos econômicos e patrimoniais. O reconhecimento da multiparentalidade trouxe muitas consequências para o direito de família, mas também refletiu grandemente no campo do direito previdenciário e sucessório. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal, o reconhecimento jurídico da afetividade fez com que o vínculo biológico e socioafetivo ficassem no mesmo grau de hierarquia.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, ficou estabelecido a igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem genética, o que fez uma adaptação da legislação. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro tornou-se mais eficiente na resolução das demandas geradas pelo conflito criado entre a paternidade socioafetiva e a paternidade biológica.
Diante disso, percebe-se que o ordenamento tem sido omisso quanto aos direitos gerados da multiparentalidade resguardada constitucionalmente. Os julgadores, ao decidirem, trazem para a relação de afetividade o mesmo status da filiação biológica, verificando sempre se nas relações existem o tratamento comum presente entre pais e filhos, ou seja, se há o vínculo de afetividade recíproco. Assim, ao ser confirmada a existência da relação, sob ela passam a incidir todos os direitos inerentes à filiação.
Saliente-se a seguir como o instituto da multiparentalidade é aplicado no âmbito previdenciário e sucessório, tendo em vista a preocupação dos juristas ao julgar a ação de multiparentalidade para que não torne uma jogada de interesses para fins financeiros e sucessórios.
3.1. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
Posteriormente a determinação da guarda, surge a discussão quanto aos alimentos, na multiparentalidade a obrigação de alimentar será de ambos os pais, todos terão que participar de forma ativa na vida do filho, contribuindo igualmente no sustento e educação, respeitando sempre o binômio possibilidade e necessidade.
Diante de múltiplos vínculos de filiação, portanto, entende-se que subsiste direito ao filho de pleitear alimentos do pai/mãe socioafetivo, uma vez que é dever daquele que desempenha as funções parentais a prestação alimentícia, não excluindo a responsabilidade do pai biológico, que persistiria simultaneamente e em complementação às despesas alimentares ou ainda em decorrência de uma impossibilidade dos pais afetivos.
Sobre o tema, Correia (2017, p. 80) afirma:
Assim, caberá aos pais socioafetivos tanto quanto os biológicos, em relação aos filhos menores, dirigir-lhes a criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda; conceder ou negar a eles consentimento para casar; nomear tutor por testamento ou documento autêntico, representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte. (CORREIA, 2017).
Vale ressaltar que a prestação de alimentos é recíproca, ou seja, atrelados aos direitos assegurados aos filhos em relação aos múltiplos pais, estão também os direitos desses múltiplos pais em relação aos filhos. Logo, assim como todos os pais devem prestar alimentos ao filho, este deverá prestar alimentos a todos os pais. Assim dispõe o Art. 229 da Constituição: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice ou enfermidade”.
Portanto, entende-se que será aplicado igualmente às famílias multiparentais a solidariedade mútua entre pais e filhos, o que implica em uma responsabilidade alimentar dos filhos para com os pais, independentemente de quantos sejam.
3.2. QUESTÃO PREVIDENCIÁRIA NA MULTIPARENTALIDADE
Na multiparentalidade a relação previdenciária será como em qualquer relação de filiação, uma vez que o estado de filho lhe garante tal direito. Assim, uma pessoa que tem sua filiação socioafetiva reconhecida e registrada tendo, portanto, mais de dois pais, pode receber duas ou mais pensões por morte, visto que a lei é omissa quanto à cumulação de pensões oriundas dos óbitos dos pais.
Então, independente da relação de filiação ser socioafetivo ou genética, os benefícios a que fazem jus os dependentes dos segurados serão gerados em favor do filho ou dos pais. Pois, assim como acontece no direito aos alimentos e de sucessão, também existe a reciprocidade entre os pais e os filhos. É o que dispõe sobre os beneficiários da Previdência Social no art. 16, da Lei Federal nº.8.213/91, que aponta:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I - O cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave;
II - Os pais;
III - o irmão, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;
No que concerne à multiparentalidade para o Direito Previdenciário, Cohen e Felix (2013, p. 34) ensinam que “estes podem ser observados quando do seu reconhecimento, visto que, nesses casos, o filho se torna dependente de, no mínimo, três pessoas, por exemplo, dois pais e uma mãe”.
Nesse ponto de vista, independentemente do regime previdenciário a que os pais pertençam, se todos os assegurados da Previdência Social vierem a falecer, o filho terá direito ao recebimento cumulado de, no mínimo, três pensões por morte, muito embora a legislação seja omissa quanto à hipótese de cumulação desse benefício no caso de morte dos pais.
Portanto, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro, muitas vezes, tem sido omisso quanto aos direitos gerados da multiparentalidade resguardada constitucionalmente. Todavia, ao ser confirmada a existência da relação socioafetiva, haverá a necessidade do reconhecimento dos direitos previdenciários, passando assim a incidir todos os direitos inerentes à filiação.
3.3. QUESTÃO SUCESSÓRIA NA MULTIPARENTALIDADE: JULGADO RESP Nº 1.618.230 – RS
A questão do direito hereditário nos casos de multiparentalidade ainda carece de muito empenho do Poder Legislativo e do Poder Judiciário para que sejam sanadas as lacunas legais ainda existentes. Isso se dá pelo fato de o ordenamento jurídico ao determinar no Código Civil de 2002 como seria a sucessão entre os herdeiros, não prever a possibilidade da multiparentalidade e, por essa razão, não dispor sobre como seria feito a divisão dos bens nessa situação específica.
Apesar de haver discussão doutrinária, entende-se que todos os pais são herdeiros dos filhos, da mesma forma como o filho é herdeiro de todos os pais. O próprio artigo 227, § 6º da CF prevê que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Assim, pode-se dizer então que independentemente da forma de reconhecimento dos filhos, todos possuem os mesmos direitos, inclusive os sucessórios. Segundo Cassettari (2016) serão aplicadas todas as regras sucessórias na parentalidade socioafetiva, devendo os parentes socioafetivos ser equiparados aos biológicos no que concerne a tal direito.
Em vista disso, por não haver distinção jurídica nas relações paterno filiais biológicas ou afetivas, estando reconhecida a multiparentalidade, o filho é herdeiro de seus pais e eles herdeiros de seus filhos, além dos vínculos com os demais parentes colaterais até o quarto grau. Consequentemente então o filho multiparental é herdeiro necessário de todos os pais que tiver.
Veloso (2003, p. 240) ressalta:
A sucessão independe do vínculo de parentesco e sim do vínculo de amor, pois sua relevância na atual sociedade deve fazê-la seguir as mesmas normas sucessórias vigentes no Código Civil, onde os descendentes (em eventual concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente) figuram na primeira classe de chamamento, sendo que os mais próximos excluem os mais remotos. Existindo, portanto, filhos do de cujus, estes concorrem entre si em igualdade de condições, recebendo cada qual por cabeça a sua quota do quinhão hereditário. (VELOSO, 2003).
É sabido que a Repercussão Geral 622 do STF trouxe consideráveis consequências, principalmente, no âmbito do direito das sucessões, onde muito se discute acerca de sua extensão e reflexos na realidade fática. Em virtude dessas consequências inúmeros questionamentos foram surgindo e, uma questão recorrente, por exemplo, é se a pessoa poderá receber a herança de dois pais ou de duas mães, sabe-se que o ordenamento jurídico não colocou nenhum impedimento nesta questão, sendo assim, não existe vedação legal acerca desse tipo de sucessão.
Nesse sentido, cumpre trazer o julgamento da decisão da TERCEIRA TURMA DO STJ RESP Nº 1.618.230 - RS (2016⁄0204124-4) que garantiu a um homem de 61 anos o direito de herdar do pai biológico mesmo já tendo recebido a herança do pai socioafetivo. Alinhado com a decisão do STF na Repercussão Geral 662, o qual reconhece a possibilidade concomitante de uma pessoa ter dupla paternidade, ficou decidido que a paternidade socioafetiva declarada ou não em registro não impede o reconhecimento de vínculo de filiação baseada na origem biológica.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, § 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF. 1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal). 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido.
Resta claro que o julgado acima concretiza que a existência de um vínculo com o pai registral não é um empecilho ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Ao contrário disso, os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são inteiramente compatíveis.
Deste modo, aquele que foi criado e registrado por pai ou mãe socioafetivo não precisa, portanto, negar sua paternidade biológica, e muito menos se abster de direitos inerentes ao seu status familiae. Assim, a pessoa que possuir, por exemplo, uma mãe biológica e uma mãe socioafetiva, não poderá ser privada do seu direito de herdar bens de ambas, uma vez que, para o próprio ordenamento jurídico, trata-se de uma filiação absolutamente legítima.
CONCLUSÃO
A reformulação na definição de família se deu em razão das mudanças ocorridas na sociedade causadas pela evolução dos costumes. Pode-se dizer que houve uma repersonalização das relações familiares, uma vez que a família matrimonial, hierarquizada e patrimonial cedeu lugar a um modelo de família eudemonista, que busca a satisfação pessoal própria e do outro.
Em razão dessas evoluções, nasce novos meios e formas de constituições familiares, comprovando que o vínculo sanguíneo, por algumas vezes, fica em segundo plano se comparada com os laços afetivos criados pelos sujeitos da relação. A partir disso é que o poder judiciário é acionado para dar uma resposta à sociedade, não deixando de efetivar os princípios que norteiam e fundamentam essas relações.
Nesse contexto, surge o instituto da multiparentalidade, caracterizado pela existência de mais de dois vínculos na linha ascendente de primeiro grau, de maneira simultânea ou sucessiva. O qual se firma nas relações afetivas entre pais e filhos, estando à ideia de paternidade fundada na afeição, amor e carinho estabelecidos durante a convivência familiar.
A multiparentalidade merece ser aprofundada, principalmente no que diz respeito às consequências jurídicas para os sujeitos envolvidos. Não se pode esquecer que, além do amor, respeito, zelo, ainda existem os fatores jurídicos a serem respeitados como o registro de nascimento, alimentos, fixação de guarda, direito de visita, direitos sucessórios e previdenciários, tanto entre os afetivos quantos os biológicos.
Em síntese, conclui-se que o reconhecimento da coexistência de múltiplos vínculos parentais não é apenas uma possibilidade, ao passo que se revela uma realidade dos dias atuais. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro deve ter postura ativa, a fim de atender os interesses das novas modalidades familiares, com observância dos princípios da dignidade da pessoa humana, do melhor interesse da criança e do adolescente, da afetividade, da solidariedade e da convivência familiar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de Outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 3 out. 2018
BRASIL. Lei Nº 6.015, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1973. Dispõe sobre os Benefícios da Previdência Social. Disponível em: . Acessado em: 4 out. 2018.
BRASIL. Lei Nº 6.015, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1973. Dispõe sobre a Lei de Registros Públicos. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6015consolidado.htm>. Acesso em: 3 out. 2018.
BRASIL. Projeto de Lei 6.583/13. Dispões sobre o Estatuto da Família e dá outras providências. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1159761>. Acessado em: 28 set 2018
BRASIL. Provimento Nº 63, DE 14 DE NOVEMBRO DE 2017. Dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro "A" e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3380>. Acesso em: 28 set 2018.
BRASIL. Projeto de Lei do Senado Nº 470 de 2013. Dispões sobre o Estatuto da Família e dá outras providências. Disponível em: < http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/Estatuto%20das%20Familias_2014_para%20divulgacao.pdff>. Acessado em: 28 set 2018.
BRASIL. Lei Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 03 out. 2018.
BRASIL. Lei Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Institui o Estatuto da Criança e do Adolescente
CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva. 2ªedição. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2015.
COHEN, Ana Carolina Trindade Soares, FELIX Jéssica Mendonça. Multiparentalidade e Entidade Familiar: Fundamento Constitucional e Reflexos Jurídicos. Cadernos de Graduação - Ciências Humanas e Sociais Fits. Maceió, v. 1, n.3, nov. 2013.
CORREIA, Emanuelle Araújo. Elementos Caracterizadores da Multiparentalidade. Pontifícia Universidade Católica de Mina Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Belo Horizonte – BH, 2017.
CYSNE, Renata Nepomuceno e. Os laços afetivos como valor jurídico: na questão da paternidade socioafetiva. In: BASTOS, Eliene Ferreira. LUZ, Antônio Fernandes da. Família e Jurisdição. Vol. II. Ed. Del Rey. Belo Horizonte: 2008.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito de família de acordo com o novo CPC/2016. 11ªEdição. São Paulo: Editora Rt - Revista Dos Tribunais, 2016.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12º Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). Código Civil Comentado, São Paulo: Atlas, 2003, vol. XVI.
VALADARES, Maria Goreth. Multiparentalidade e as novas relações parentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2016.
VELOSO, Zeno. Direito de família, alimentos, bem de família, união estável, tutela e curatela. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.). Código Civil comentado. São Paulo: Atlas, 2003. Vol.17.
WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
STF. RECURSO ESPECIAL: RE 898.060 do Tema 622 SC - caso de Repercussão Geral. Relator: Ministro Luiz Fux. JusBrasil, 2017. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciarepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4803092&numeroProcesso=898060&classeProcesso=RE&numeroTema=622>. Acesso em: 21 set 2018.
STJ.RECURSO ESPECIAL: REsp1618230 RS 2016/0204124-4. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Data de Julgamento: 28/03/2017, JusBrasil, 2017. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/465738570/recurso-especial-resp-1618230-rs-2016-0204124-4?ref=juris-tabs>. Acesso em: 3 out. 2018.
STJ. RECURSO ESPECIAL: RE 889.852 - RS 2006/0209137-4. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. JusBrasil, 2010. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16839762/recurso-especial-resp-889852-rs-2006-0209137-4/inteiro-teor-16839763. Acesso em: 21 set 2018.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4277. Relator Ministro Ayres Britto. Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20627236/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-4277-df-stf>. Acesso em março de 18 set 2018.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132. Relator Ministro Ayres Britto. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em março de 18 set 2018.
[1] Professora Orientadora M.ª Cyntia Costa de Lima formada pela Universidade do Estado do Amazonas e mestra em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas; e-mail: [email protected]
Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Martha Falcão - Wyden
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOUZINHO, Marcia Cristina da Silva. Multiparentalidade na ordem jurídica brasileira: aspectos legais de seu reconhecimento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 nov 2018, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52441/multiparentalidade-na-ordem-juridica-brasileira-aspectos-legais-de-seu-reconhecimento. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
Precisa estar logado para fazer comentários.