Resumo: O presente artigo se propõe a uma reflexão acerca dos efeitos provenientes da operação lava jato tanto no âmbito judicial quanto no social, notadamente em razão da intensa cobertura midiática.
Palavras-chave: Operação lava jato. Mídia. Ativismo judicial. Medidas anticorrupção.
Résumé: Cet article propose une réflexion sur les effets de l’opération lava jato à réaction dans les sphères judiciaire et sociale, notamment en raison de l’intense couverture médiatique.
Mots-Clés: Opération lava jato. Média. Activisme judiciaire. Mesures anti-corruption.
Sumário: Introdução. 1. O ativismo judicial e a mídia legislando com o aplauso do homem-massa. 2. Novos papéis para o Judiciário e o Legislativo: a lição do caixa dois. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Passar o Brasil a limpo, moralizar o país; entre outros, esses têm sido os chavões do falatório nacional, repetidos mimeticamente pela mídia ao celebrar a operação lava jato e elevá-la à condição de redentora da pátria. Indiscutivelmente, a sua repercussão trouxe um novo paradigma institucional - legal e criminal - não só para a sociedade, mas também para o direito como um todo. Muito propalado e exaltado é o chamado efeito lava jato, termo genérico e abrangente, quiçá superdimensionado, ao qual se credita o condão de solucionar mazelas históricas do país. Agora, resta saber qual é o real impacto desse novo paradigma. É possível definir quais são todos os efeitos da lava jato? Estão computados nele determinados precedentes e interpretações legais que levaram inegavelmente ao fortalecimento do Estado perante o indivíduo? Com efeito, até alguns profissionais tarimbados se deixaram seduzir pela retórica e pela obstinação obtusa em se cegar perante distorções e abusos gerados.
1. O ATIVISMO JUDICIAL E A MÍDIA LEGISLANDO COM O APLAUSO DO HOMEM-MASSA
Percebe-se, nessa onda, um crescimento do ativismo judicial, na mesma medida em que é festejado pela imprensa e pela população, o que acaba retroalimentando-o, já que os magistrados se veem na obrigação constante de se mostrarem à sociedade ladeando a luta contra a corrupção, ainda que ao custo de, por vezes, passar por cima de cristalinas prescrições legais e constitucionais, permitindo-se a deturpação não só hermenêutica, mas propriamente semântica de conceitos jurídicos. Arrisca-se, desse modo, a se ficar refém dos humores da opinião em voga, a qual não poderia definitivamente ser balizadora judicial, até porque se observa sucessivamente a indignação popular frente a termos basilarmente técnicos, neutros, comezinhos no dia a dia jurídico, que, respigados de uma determinada decisão judicial tida como polêmica, parecem ao leigo um exemplo de descaso ou de infâmia, pressionando o Judiciário a ceder às conveniências e à grita. Da mesma forma, constatam-se extremismos, seja no endeusamento, seja na demonização de juízes e ministros julgadores, a depender do pretenso viés da decisão tomada, malgrado muitas dessas serem praxe na rotina forense, desconhecidas, contudo, do grande público, alheio ao direito. A farta cobertura jornalística, catalisada em uma realidade de mídias sociais facilitadoras da comunicação de massa, cria a impressão de que, assim como no futebol, a opinião de cada um, por mais leiga e despropositada que seja, é válida e merecedora de espaço em nome da pluralidade de ideias e da democracia, termos-coringa para o vale-tudo opinativo e para a consolidação da boçalidade como parâmetro. Esse é o proceder do homem médio, ou melhor, do homem-massa de Ortega Y Gasset:
Hoje, ao contrário, o homem médio tem as ‘idéias’ mais taxativas sobre tudo o que acontece e deve acontecer no universo. Por isso perdeu a audição. Para que ouvir, se já tem tudo dentro de si? Já não é tempo de escutar, mas, ao contrário, de julgar, de sentenciar, de decidir. Não há questão de vida pública na qual não intervenha, cego e surdo como é, impondo suas ‘opiniões’. (...) As ‘idéias’ desse homem médio não são autenticamente idéias, nem posse é cultura. A idéia é um xeque na verdade. Quem quiser ter idéias precisa antes se dispor a querer a verdade e aceitar as regras do jogo que ela impõe. (2016, p.144)
O direito não é, por outro lado, um muro intransponível, gnosticamente isolado e exclusivo apenas para os iniciados, até porque, quanto mais circunscrito e autofágico, acadêmica ou profissionalmente, mais desenraizado com a realidade ele se mostra. Todavia, deve haver um ponto intermediário entre a vulgarização do direito, com sua consectária nivelação por baixo, e o direito insulado enquanto clube restrito a uma plêiade de iniciados. A atual profusão de opiniões acerca de cada ato e desdobramento processual invariavelmente vem influindo nos julgamentos per fas et nefas, quebrando a ordem legal, por vezes servindo às conveniências políticas ou sociais do momento. Como é sabido, já se tornou regra, nesse país, legislar criminalmente a partir de casos de repercussão social explorados ad nauseam pela mídia, não sendo um fenômeno recente, bastando voltar um pouco no tempo, para se constatar que a legislação penal evolui, pari passu, à cobertura jornalística. Não se pode olvidar a tipificação do assédio sexual em decorrência de uma reportagem do Globo Repórter, como relembra Nilo Batista:
Em 30 de março de 2001, o programa Globo Repórter ocupou-se de assédio sexual. Um Sérgio Chapelin doutrinal indagava ‘qual o limite entre a paquera e o assédio sexual’, respondendo em seguida que ‘o assédio causa constrangimento e muita dor’, e convocando a participação da enorme audiência: ‘Você já foi vítima? Ajude-nos com a sua informação’. A seguir, foram apresentados alguns casos. [...] De fato, um mês e meio depois dessa matéria, a lei no 10.224, de 15.mai.01, viria a criminalizar o assédio sexual (art. 216-A CP). (2003, p.11)
Ou então a sui generis aprovação repentina das reformas no Código de Processo Penal através de diferentes projetos de lei no fervor do caso Nardoni (RIBEIRO; MACHADO; SILVA, 2012), reformas essas que já vinham se arrastando por um longo período. Nesse último caso, é interessante ressaltar que as mudanças em si não tinham necessariamente relação com o crime, mas trouxeram à luz o debate legislativo penal, ainda que por vias transversas.
2. NOVOS PAPÉIS PARA O JUDICIÁRIO E O LEGISLATIVO: A LIÇÃO DO CAIXA DOIS
Outro efeito lava jato ironicamente paradoxal é que, na conjuntura atual, os papéis entre o legislativo e o judiciário parecem ter-se invertido; isso porque, tradicionalmente, o congresso acabava atendendo aos anseios populares, por mais toscos e dissociados empiricamente da realidade que fossem, atuando como o principal fiador do endurecimento penal. Argumenta-se, inclusive, que são jogadas populistas; e são; porém, não é o Poder Legislativo o legítimo representante da vontade do povo, a tradução em representantes da vox populi? Ao Judiciário, de outra banda, caberia o papel precípuo de controle dessa atividade legislativa, fiscalizando e tolhendo os excessos, em conformidade com a lei e com a constituição. No ponto em que o país chegou, tem-se os parlamentares como limitadores do avanço da punibilidade e ocasionais entusiastas do garantismo penal, mesmo que em função de estarem advogando, casuisticamente, em causa própria, procurando precaver-se contra o tino persecutório estatal que chegou aos mais altos escalões do estamento burocrático, na assentada definição de Raymundo Faoro (2012). Na vertente oposta, alguns magistrados – de todas as instâncias – e membros do Ministério Público autoproclamaram-se, à Napoleão, perseguidores da efetividade penal desmedida, corretores de todo aparato legal e constitucional, em um claro e questionável ativismo que, às claras, confronta expressas disposições do ordenamento jurídico, arvorando-se, pois, em paladinos da moral e redefinidores do direito, feitas as devidas ressalvas.
É oportuno citar um curioso episódio da crônica legislativa nacional. À época do draconiano pacote das “dez medidas anticorrupção”, em que o Congresso foi pespegado pela imprensa enquanto traidor da pátria ao pretensamente desfigurar as proposições, vislumbrou-se a possibilidade da tipificação legal do caixa dois. Em suma, a prática teria uma efetiva, insofismável e expressa definição legal, tornando-se, dessa forma, crime autônomo. Ocorre, contudo, que, a priori paradoxalmente, os defensores e entusiastas de um novo e mais duro regramento penal se posicionaram veementemente contra. Mesmo que soe estranho aos leigos - os mesmos homens-massa palpiteiros diuturnos do direito -, isso tem uma explicação técnica, a qual não deixa de soar inusitada. Atualmente, o caixa dois vem sendo enquadrado como falsidade ideológica eleitoral, previsto no Artigo 350 do Código Eleitoral. Acaso se criminalizasse o caixa dois em si, enquanto crime autônomo, essa interpretação extensiva, por assim dizer, não teria mais lugar. Sabe-se precipuamente que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu, e, nesse caso, não se aplicaria retroativamente à criminalização de uma conduta que, se foi criminalizada agora, é porque, por um silogismo lógico, não era crime anteriormente. Essa premissa do processo penal ganhou o apelido de anistia pela imprensa. A tipificação legal do caixa dois, dadas as circunstâncias atuais, encontra respaldo fático a justificar-se, no sentido de desestimular negociatas em período eleitoral que semeiam a corrupção durante o mandato; assim sendo, por essa ótica, a iniciativa do Congresso seria louvável. Não por ingenuidade dos parlamentares, essa escapatória jurídica, se assim podemos nomear, é de conhecimento dos congressistas. A crítica que se faz é acerca da incoerência entre defender um endurecimento penal, ao mesmo tempo em que se contrapõe a eventual legislação nesse sentido que possa, pelos princípios que regem o ordenamento, beneficiar o acusado. A justificativa de uma anistia geral aos corruptos é incoerente, pois, se a conduta não é claramente um delito, como anistiar o que não era crime? Esse é mais um exemplo do apego diletante ao ativismo, a um sistema acusatório enjambrado, circunstancial, pernicioso e manipulável. Renuncia-se a toda construção legislativa, com seus acertos e erros absorvidos pelo tempo na busca da correção. Já ensinava o fulcral mantra do admirável mundo novo: Mais vale dar fim que consertar. Quanto mais se remenda, menos se aproveita. (HUXLEY, 2014, p.72)
Tudo isso em prol de uma operação policial, de uma limpeza geral que, ainda que idealizada como perene, revela-se superficial, por não adentrar à raiz do problema central da corrupção. Será deveras preferível isso que se quer, sendo esse o efeito lava jato que tanto se apregoa? Contra os possíveis disparates surgidos nessa sanha, impõe-se o princípio da legalidade; este é um escudo contra a retroatividade da lei penal mais maléfica, mas também vedador das incriminações vagas, decorrendo daí o chamado princípio da taxatividade, além coibir o emprego de analogia para criar crimes ou enquadrar o cidadão (nullum crimen nulla poena). Sustentando-se esse nobre objetivo maior e moralizador, talvez o grande efeito da lava jato acabe por ser relativizar o princípio da legalidade, suscetível casuisticamente.
CONCLUSÃO
Não parece auspicioso desmuniciar o cidadão das garantias, que já são débeis no contexto presente, tendo em vista que o risco não se cingirá exclusivamente aos alvos da vez, o que é ledo engano dos incautos; o efeito é para todos. Longe de ser perfeito, o atual sistema já vinha ruindo gradativamente, atingindo o cume em função dos escândalos policias devassados pela operação lava jato. Enfim, o efeito será escancarar o salve-se quem puder, com a ruína do arremedo de estado de direito, do fingimento de ordem legal e do epíteto das “instituições funcionado”.
O ponto nevrálgico é não reduzir o debate a ser contra ou ser a favor de uma operação, mas, sim, de analisar, sob enfoque crítico, malgrado os benefícios, as consequências desse fenômeno jurídico-social, divisando, pois, as paixões provocadas, mesmo que sem desconsiderá-las do conjunto analítico, até porque dissociá-las é uma falha grave em prol de uma irreal observação neutra.
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. 2003. Disponível em:<http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf>. Acesso em 20 ago. 2018.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Prefácio Gabriel Cohn. 5.ed. São Paulo: Globo, 2012.
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. trad. Lino Vallandro. Vida Serrano. 22.ed. São Paulo: Globo, 2014.
ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. trad. Felipe Denardi. Campinas, SP: Vide Editorial, 2016.
RIBEIRO, Ludmila Mendonça Lopes; MACHADO, Igor Suzano; SILVA, Klarissa Almeida. A reforma processual penal de 2008 e a efetivação dos direitos humanos do acusado. Rev. direito GV, São Paulo, v.8, n. 2, p. 677-702, Dec. 2012 Available from . Acesso em 17 ago. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S1808-24322012000200012.
Advogado. Bacharel em Direito pela PUCRS. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Tesoureiro do Instituto Lia Pires (ILP). Formação Complementar: Direito Penal Empresarial (PUCRS); Introdução ao Direito Penal Internacional - Introduction to International Criminal Law (Case Western Reserve University, EUA); Compliance Criminal, Anticorrupção e de Dados (ESA/OAB-RS).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KURBAN, Pedro Guilherme Müller. O efeito Lava Jato e o admirável Brasil novo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 dez 2018, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52524/o-efeito-lava-jato-e-o-admiravel-brasil-novo. Acesso em: 22 nov 2024.
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