MYLENA DEVEZAS SOUZA
(Coautora)
RESUMO [1]: Este artigo versa sobre a objetificação dos animais não-humanos. Buscar-se-á entender como essa relação veio sendo construída de modo simbólico ao longo dos últimos séculos e como o imperialismo contribuiu na sua formação. Além disso, mostrar-se-á como ela se mantem nos dias de hoje através de práticas que se reformularam na atualidade e como se constitui uma rede de explorações onde o humano subalternizado e o não-humano estão constantemente servindo aos objetivos de uma elite exploradora. Com intuito de demonstrar a como esse processo vem se realizando abordou-se a legislação brasileira que trata dos animais demonstrando alguns traços que demonstram a subjugação dos animais no seu texto. Buscou-se também avaliar brevemente o PL 6268/2016, para que se possa entender como as inovações legislativas que tratam do meio ambiente construídas nesse período de retrocesso social que vive o Brasil pode ser nefasto tanto para humanos quanto para não-humanos.
Palavras-chave: natureza, imperialismo ecológico, especismo, ecocentismo, América Latina
SUMÁRIO: 1. Introdução, 2. Representação Simbólica, 3. Influências do Imperialismo, 4. Mudanças na América Latina, 5. Cenário Brasileiro, 6. Projeto de Lei 6268/16, 7. Conclusão, 8. Referências
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo analisar algumas características elementares da relação entre humanos e animais não-humanos, mais precisamente o processo de desvalorização moral destes por aqueles. A forma pela qual esses traços vieram se construindo ao longo da História, especialmente com a difusão do modo de vida europeu realizado no processo de colonização, e como eles simbolicamente constituem os seres humanos consiste no enfoque central que se pretende abordar o tema do comércio de animais.
O trabalho apresentará um estudo analítico e, para que seja possível realizar uma abordagem consistente acerca do problema levantado optou-se por uma pesquisa bibliográfica pautada principalmente no conceito de biota portátil trazido por Albert Crosby, nos debates levantados acerca do ideário de natureza levantados por Antônio Diegues e na compreensão da cultura vinculada ao consumo de animais abordada por Ann Potts. Bem como, uma breve análise da legislação brasileira referente ao tema.
2. REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA
A relação de dominação entre homens e animais não-humanos atravessa a história de praticamente todas as sociedades componentes do globo terrestre. Em maior ou menor grau, a utilização e domesticação das mais diversas espécies funcionaram como mecanismos de desenvolvimento das sociedades humanas.
Embora a grande maioria dos animais não-humanos que se tornaram objetos de consumo dessas sociedades tenham servido de maneira utilitária (para alimentação ou transporte, por exemplo), a utilização de animais com fins não utilitários também remonta à antiguidade. Segundo Filho (2013, p.8) tem-se que:
A tradição de capturar e enjaular animais selvagens para fins não utilitários teve início na pré-história, no período conhecido como Neolítico, entre os anos de 8000 a 3000 antes da Era Cristã. Pesquisadores das áreas de paleozoologia e arqueologia encontraram vestígios da coexistência, em uma mesma localidade, tanto de animais selvagens, como de espécies domesticadas - como porco e cavalo, usados pelo homem como fontes de alimento e meios de transporte.
Como exemplo trágico e marcante na História temos as arenas romanas. Filho, (2013, p, 9) nos mostra ainda que:
Foi nessas arenas que muitos imperadores romanos desenvolveram uma forma única e particularmente cruel de demonstração de poder, prestígio e persuasão. Era nessas arenas que os cidadãos poderiam observar os animais de uma maneira inédita. Para o imperador e também para o público era uma experiência única, inédita e irresistível observar centenas de animais matando-se uns aos outros, dilacerando humanos e, principalmente, mortos por gladiadores.
As relações simbólicas estabelecidas entre o homem e os seres que o cercam sejam eles de natureza humana ou não-humana representam traços culturais indispensáveis à compreensão de um dado indivíduo ou sociedade. Nesse sentido, Potts (2016, p. 16) relaciona que o consumo de animais:
In all human cultures it is also symbolic: in the Western context it signifies important ideas about gender(Adams 2010; Parry 2010, Potts and Party 2010, Hovorka 2012), class and taste (potts and White 2008), socioeconomic position(galobardes et al 2001), geographical and economic factors (Hovorka, 2008). Its acceptance is facilitated by beliefs about humans right to dominate nature, including the bodies of animals and their reproductive lives (Luke 2007, Adams 2010, Joy 2010).
Seguindo o viés de estruturação social e dinâmica das classes não há como olvidar o aprendizado trazido por Bourdieu da necessidade de se avaliar a dinâmica entre significantes e significados e, portanto, a importância de se vislumbrar a prática do consumo e os objetos consumidos não somente como mero frutos de decisões utilitárias racionais, mas, principalmente, como fontes de construção do indivíduo e da sociedade como um todo.
O entendimento do “eu” perpassa a noção de identificação social onde o indivíduo utiliza do consumo como meio de autoexpressão, autoafirmação e colocação na complexa dinâmica das estruturas sociais.
Desse modo, o que se tem de mais relevante é que os objetos deixam de representar algo para serem centrais na criação do indivíduo, assim as relações constituídas através dos seres e grupos sociais com os objetos se tornam mais complexas e ultrapassam muito a visão econômica do fato.
A manutenção de animais silvestres em cativeiro, por exemplo, representa historicamente a relação com o poder a riqueza e a autoridade de um determinado reino, família ou pessoa. A relação entre a raridade, ferocidade do animal e dificuldade vinculam-se diretamente ao tamanho do prestígio de seu detentordominador.
Dessa forma reis, rainhas, imperadores e nobres expressaram seu poderio utilizando-se de animais capturados principalmente nas regiões coloniais. No que remete especificamente as coleções de animais mantidas no Brasil, Filho (2013, p. 7) relata que:
D. João VI, rei do reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por meio de uma ordem régia exigia do governador de Angola que começasse a enviar, em todos os navios que partissem daquela região para o Brasil, “um viveiro de pássaros esquisitos”. [...] Em outubro de 1819 a primeira remessa de Benguela, com 100 pássaros exóticos, seguia para o Brasil a bordo do bergantim Tejo, que também trazia 396 escravos africanos. Em apenas três anos, de 1819 a 1823, D. João VI recebeu na Corte do Rio de Janeiro um total de 762 aves de diversas espécies.
3. INFLUÊNCIA DO IMPERIALISMO
Os países componentes da América Latina são constituídos por uma imensa rede de culturas, sendo a grande maioria delas atravessada pela dominação imperialista eurocêntrica.
Assim sendo, percebe-se que embora em diversas sociedades latino americanas, como inúmeras populações indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, a percepção acerca da natureza seja construída de maneira biocêntrica e holística a visão que impera nos ordenamentos jurídicos e políticos desses países é antropocêntrica e conservadora.
Isso se reflete nas políticas públicas de “proteção à natureza” que partem do princípio de que o homem e o não-humano estão em constante disputa, não compreendendo a possibilidade de relações harmônicas serem construídas. Dessa forma, ignoram-se as relações centenárias que diversas comunidades têm com a Terra e o espaço onde habitam, vendo eles como depredadores (e quiçá predadores) do meio ambiente.
À esse respeito Diegues (2000, p.13) traz que:
Para o naturalismo da proteção da natureza do século passado, a única forma de proteger a natureza era afastá-la do homem, por meio de ilhas onde este pudesse admirá-la e reverenciá-la. Esses lugares paradisíacos serviam também como locais selvagens, onde o homem pudesse refazer as energias gastas na vida estressante das cidades e do trabalho monótono. Parece realizar-se a reprodução do mito do paraíso perdido, lugar desejado e procurado pelo homem depois de sua expulsão do Éden. Esse neomito, ou mito moderno, vem impregnado, no entanto, do pensamento racional representado por conceitos como ecossistema, diversidade biológica etc.
A construção das áreas protegidas, que se basearam no modelo norte-americano de parques, sem muitas vezes se atentarem aos benefícios (e malefícios!) dessa estrutura e as particularidades brasileiras na sua implementação, tornam-se exemplo real de que essas práticas imperialistas, onde o conceito de natureza é formado com base na separação e no distanciamento entre o homem e o não-humano, se perpetuam e integram a política e legislação brasileira.
A desconexão existente entre a percepção do homem e do meio natural reflete-se também na forma como a própria natureza é tratada legalmente. Esse distanciamento reforça a percepção especista que impera na(s) sociedade(s) brasileira(s), em relação aos animais não-humanos, sendo essa claramente representada no ordenamento jurídico pátrio.
Animais não-humanos, mesmo com todo desenvolvimento científico demonstrando sua sensciência, são colocados no patamar de objetos de direito, tendo seus interesses protegidos somente no limite do interesse humano.
Aparentemente desconexos os dois pontos unem-se justamente na construção acerca do ideário de natureza e das relações que se estabelecem entre os não-humanos e os humanos.
Como bem identifica Crosby, o imigrante colonizador trouxe consigo uma biota portátil, onde além e fauna e flora, ele trouxe também seu modus vivendi e, consequentemente, sua forma de se relacionar com a natureza. Desse modo, o processo dominação não foi (e continua sendo!) só de um povo sobre outro, mas de uma tecnologia de organização social sobre a outra.
Sendo assim, ao realizar o processo de “domesticação” da natureza o colonizador já define qual parte dela ele deseja reproduzir. Tendo, hoje, a natureza se tornado fruto dessa atividade, sendo uma espécie de reconstituição de um modelo europeu, compondo uma espécie de natureza globalizada. (CROSBY, 2011, p. 13-19).
Essa dinâmica repercutiu diretamente nas relações entre os homens e a natureza não-humana que se ressignificaram, de maneira geral, em todo planeta, sobre a forma de relações de exploração, subjugação e inferiorização, fato esse que muitas vezes não fazia parte da cultura tradicional de diversos povos, como as citadas populações indígenas ameríndias.
Isso porque, como já mencionado, a colonização Norte-Sul superou (e muito!) a barreira da dominação territorial significando um imperialismo social, étnico, cultural e político.
Em relação especificamente a construção legal das normativas de proteção a natureza, o que se percebe é que os países latino-americanos que tiveram maior abertura ao pluralismo representado em sua sociedade, também apresentam proposta de correlação com a natureza em que o processo de objetificação desses seres é bastante reduzido comparativamente.
São exemplos dessa diferente proposta legislativa a Constituição Equatoriana de 2008, bem como para a lei boliviana intitulada Lei da Mãe Terra.
Mais recentemente foi lançada também diretiva jurisdicional da Suprema Corte Colombiana que reforçar a percepção, onde a Amazônia Colombiana foi elevada ao patamar de sujeito de direito, sendo determinada pela Corte que esta região tem direitos e recaem sobre os homens os deveres a ela referentes, entre eles o principal é sua preservação.
Nesse sentido, foram estabelecidos como alguns dos deveres:
Entre las órdenes que emitió la Corte, está la de ordenar a la Presidencia y al Ministerio de Ambiente a que, en un plazo de no más de cuatro meses, formule un plan de acción de corto, mediano y largo plazo para contrarreste la tasa de deforestación en la Amazonía, en donde se haga frente a los efectos del cambio climático. Asimismo, el alto tribunal ordenó a las anteriores autoridades a que dentro de cinco meses formulen un pacto intergeneracional por la vida del amazonas colombiano, en donde se adopten medidas encaminadas a reducir a cero la deforestación y las emisiones de gases efecto invernadero.(El espectador, Redacion Judicial, 5 de abril de 2018).
Muito embora os manuais de direito ambiental remontem a referência dessas normativas à uma visão da ecologia profunda sobre o Direito Ambiental, acredita-se que alegar esse fato é mais uma vez apropriar-se da percepção ancestral dos ameríndios dando margem a uma teoria eurocêntrica que se põem inovadora, mas que de certa forma nada mais é que a teorização de um conceito relacional que já existe nessa região há milhares de anos.
Esses países tiveram levantes populares, pelos quais, as populações tradicionais ganharam mais poder e visibilidade, chegando a cargos políticos e sendo responsáveis por inúmeras mudanças sociais. Por óbvio, a visão legal e jurídica acerca da natureza não passou de forma despercebida por essa mudança, sendo essas diretivas legais formas de representação de alguns avanços conquistados nesse processo.
5. CENÁRIO BRASILEIRO
No Brasil, infelizmente, essa dinâmica vendo sendo produzida de modo diferente, quiçá oposto. Para aprofundarmos essa percepção vamos levar em consideração ao posicionamento dos animais no nosso cenário jurídico.
Como já mencionado, seguindo os ensinamentos trazidos pelo Direito Romano, os animais, no Brasil, são tratados como objeto de Direito. Sua posição primordial continua sendo a de coisa, semovente. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves:
O art. 82 do Código Civil considera móveis “os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. Trata-se dos móveis por natureza que se dividem em semoventes e propriamente ditos. Ambos são corpóreos.
(...)
Semoventes – São os suscetíveis de movimento próprio, como os animais. Movem-se de um local para outro por força própria. Recebem o mesmo tratamento jurídico dispensado aos bens moveis propriamente ditos. Por essa razão, pouco ou nenhum interesse prático há em distingui-los.[2]
É necessário que se entenda que há, no ordenamento jurídico pátrio, uma discussão referente ao conceito de fauna. Isso recai em uma divisão dos animais em dois grupos, sendo cada um destes considerados dentro de uma espécie de bem jurídico diferente.
A Constituição Federal trata o tema da proteção aos animais no seu art. 225, §1º, inciso VII, que tem a seguinte redação:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
José Afonso da Silva (SILVA apud RODRIGUES, 2008, p. 69) interpreta o artigo literalmente, considerando, portanto, que o termo fauna, no texto constitucional, refere-se aos animais silvestres e aos peixes. Sendo a proteção jurídica ditada pela Carta, a eles referentes. Divergem desse entendimento, juristas como Celso Antônio Pacheco Fiorillo, Edna Cardozo Dias, Laerte Fernando Levai[3], entre outros. Para estes doutrinadores, a expressão fauna silvestre inclui todos os animais não-humanos na sua mais completa classificação, sendo a garantia constitucional elencada no dispositivo em voga estendida a todos os animais que estejam no território nacional, sejam eles pertencentes ou não à fauna brasileira (RODRIGUES, 2008, p. 69).
Essa falta de unidade conceitual também está presente na legislação, dificultando ainda mais a formulação de um entendimento convergente. A Lei 5.197/67 definiu, em seu art. 1º, caput, animais silvestres como:
Art. 1º. Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.
Enquanto que a Lei 9.605/98, em seu art.29, §3º, traz:
§ 3° São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras.
Ademais, o Ibama, através do art. 2º da Portaria 93, de 07.07.1998, conceitua três tipos de faunas diferentes, sendo elas:
Art. 2º - Para efeito desta Portaria, considera-se:
I - Fauna Silvestre Brasileira: são todos aqueles animais pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do Território Brasileiro ou águas jurisdicionais brasileiras.
II - Fauna Silvestre Exótica: são todos aqueles animais pertencentes às espécies ou subespécies cuja distribuição geográfica não inclui o Território Brasileiro e as espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive domésticas em estado asselvajado ou alçado. Também são consideradas exóticas as espécies ou subespécies que tenham sido introduzidas fora das fronteiras brasileiras e suas águas jurisdicionais e que tenham entrado em território brasileiro.
III - Fauna Doméstica: Todos aqueles animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico tornaram-se domésticas, apresentando características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou.
Essa discussão culmina com a necessidade de se fazer uma categorização dos animais para sua efetiva proteção jurídica. Nas palavras de Rodrigues (2008, p. 70):
Os animais são juridicamente protegidos mediante certa classificação segundo suas características físicas (...) e qualificados em categorias de selvagens ou não, domésticos ou domesticados, aquáticos, terrestres, migratórios ou não, exóticos ou não, ameaçados ou em extinção.
Desta forma, sob a égide jurídica, a proteção dos animais é feita da seguinte forma: existe um primeiro grupo de animais, compreendendo os domésticos ou domesticados, que continuam sendo tratados como coisas ou semoventes ou como coisas sem dono, de acordo com sua situação e enquadramento no Código Civil Brasileiro.
Neste sentido, sua proteção é feita dentro do Direito de Propriedade, sendo estes considerados como propriedade privada do homem, sujeitos à apropriação.
Pode-se averiguar, por exemplo, nos art. 1.444 a 1.446, disposições concernentes ao penhor pecuário, que os animais são objetos válidos de penhor e alienação, além de compra e venda. Abaixo os artigos, para melhor visualização:
Art. 1.444. Podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios.
Art. 1.445. O devedor não poderá alienar os animais empenhados sem prévio consentimento, por escrito, do credor.
Parágrafo único. Quando o devedor pretende alienar o gado empenhado ou, por negligência, ameace prejudicar o credor, poderá este requerer se depositem os animais sob a guarda de terceiro, ou exigir que se lhe pague a dívida de imediato.
Art. 1.446. Os animais da mesma espécie, comprados para substituir os mortos, ficam sub-rogados no penhor.
Parágrafo único. Presume-se a substituição prevista neste artigo, mas não terá eficácia contra terceiros, se não constar de menção adicional ao respectivo contrato, a qual deverá ser averbada.[4]
Os animais silvestres em ambientes naturais e os exóticos (sendo estes os originários de outros países) compreendem o segundo grupo e são tratados como bens jurídicos de uso comum do povo, tendo natureza difusa, assim como os demais bens socioambientais. Os bens jurídicos de uso comum do povo não são públicos nem privados, eles pertencem à coletividade. Assim sendo, é dever do Poder Público e de todos protege-los. Como bem salienta Pedro Lenza (2010, p. 941):
(...) o meio ambiente é bem de fricção geral da coletividade, de natureza difusa e, assim, caracterizado como res omnium – coisa de todos, e não como res nullius (...). Trata-se de direito que, apesar de pertencer a cada indivíduo é de todos ao mesmo tempo e, ainda, das futuras gerações.
A esse respeito, cabe mencionar que os bens de uso comum ou bens difusos, não são os bens públicos de uso comum elencados no art. 66 do Código Civil Brasileiro, mas sim bens que independente da natureza pública ou privada, sendo considerados bens comuns de todos.
Uma propriedade privada não deixa de assim ser, por ser um bem difuso, o que poderá ocorrer é um gravame de uma limitação ou restrição de uso a ela imposta para que haja maior preservação, visto que ela pertence à coletividade. Contudo, isso não indica que haja transmissão de propriedade para o poder público, nem que possa ser reivindicado o espaço por ser bem de uso comum.
De todo modo, a classificação constitucional dos animais como bens difusos foi uma grande evolução no que concerne ao protecionismo animal, mesmo o dispositivo tendo aberto margem à discussão e de modo geral deixado de lado grande parte da efetiva fauna brasileira. Contudo, a maior parte da legislação brasileira que se propõe à tutela jurídica da fauna ainda funciona de forma parca e termina por preservar primordialmente o interesse humano, leia-se aqui de um grupo humano dominante.
Como diz Rodrigues (2008, p.77):
Portanto, toda essa parafernália legislativa está sendo impotente para proteger os direitos à vida, à liberdade e dignidade dos Animais porque é tida sob a ótica antropocêntrica do ordenamento jurídico.”
E, claro, em um momento político onde há avanço significativo do conservadorismo, expresso por medidas como a Reforma Trabalhista, no campo legislativo. E, no campo jurisdicional, na recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça autorizando a prisão em segunda instância, se faz quase irreal pensar em uma inovação legal que possa trazer benefícios a qualquer grupo subalternizado, seja ele humano ou não-humano.
Pelo contrário, sejam elas legais ou jurisdicionais estão cada vez mais nefastas para ambos os grupos.
Como exemplo crucial de como esse cenário político pode ser extremamente maléfico ao meio ambiente e aos humanos vulneráveis e como estão ambas as questões interligadas na sociedade brasileira, optou-se por fazer uma breve análise do Projeto de Lei 6268/2016 (PL da Caça).
6. PROJETO DE LEI 6268/2016
O Projeto de Lei 6268/2016, de autoria do deputado membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, Valdir Colatto (MDB-SC), que tramita na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados (CMAD), tendo como relator o deputado Nilto Tatto (PT- SP), cujo objetivo é legalizar a caça de animais silvestres no Brasil.
Uma breve análise ao projeto de lei em questão foi trazida aqui, pois ele demonstra com facilidade como para se entender a relação entre o homem e a natureza no sistema jurisdicional brasileiro é fundamental compreender como o mesmo grupo que constantemente luta pela manutenção da visão eurocêntrica importada, ou melhor, imposta ao longo do processo de colonização, também é responsável pela constante reprodução de paradigmas exploradores, que aumentam os abismos existentes em nossa sociedade, principalmente nas áreas rurais.
Isso porque, além de autorizar a caça e o abate de animais silvestres ameaçados de extinção, legalizar o comércio de animais silvestres e exóticos e a manutenção desses em criadouros comerciais, permitir a erradicação de espécies exóticas que sejam considerados nocivos à saúde pública, às atividades agropecuárias ou correlatas e à integridade e diversidade biológica dos ecossistemas, autorizar o estabelecimento de campos de caça em propriedades privadas, permitir que animais resgatados que estejam sendo mantidos em campos de triagem sejam vendidos a campos de caça, ou levados a eutanásia sumária, possibilitar a comercialização de animais por zoológicos e o do abate de animais silvestres em unidades de conservação, ou seja, representar um retrocesso sem tamanho no que tange a legislação vigente no país referente à proteção à fauna. O supracitado projeto traz, entre outros pontos, em seu texto, a permissão de utilização de armas de fogo, proposta esta que se faz ameaçadora no que se refere também ao caráter humano.
Em seu texto:
Art. 38. O abate de espécimes da fauna silvestre é proibido. a) com visgos, atiradeiras, fundas, bodoques, veneno, incêndio ou armadilhas que maltratem o animal; b) com armas a bala, a menos de três quilômetros de qualquer via férrea ou rodovia pública; c) com armas de calibre .22 para animais de porte superior à lebre européia (Lepus capensis); [...]
Em um cenário de aumento de mais de 20% na violência rural entre os anos de 2016 e 2017, segundo dados do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, uma modificação que traga qualquer abertura ao aumento do índice de armas nas áreas rurais do país se propõe ameaçadores, principalmente aos socioambientalistas, membros de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.
Propostas como essa servem ao propósito de um grupo dominante que explorada animais humanos e não-humanos, sendo responsáveis por esses indivíduos serem subalternizados, silenciados e, por que não?, abatidos todos os dias.
O deputado Valdir Colatto, autor do Projeto de Lei, é abertamente a favor do armamento da população rural, tendo apoiado o Projeto de Lei 6717/2016 que libera o porte de arma a moradores de zona rural com pelo menos 21 anos (modificando e reduzindo a idade mínima vigente no Estatuto de Desarmamento de 25 anos). Nesse sentido o deputado mencionou em entrevista dado ao programa Direito ao Ponto, do Canal Rural, que:
Estamos precisando que o agricultor tenha uma arma na propriedade. Imagine alguém lá no interior, isolado, sem telefone e os bandidos dizimando, assassinando as pessoas. A lei do abigeato aumentou a pena para quem rouba os animais, mas mesmo assim não conseguimos resolver o problema da criminalidade.[5]
No breve relato fica clara a posição do deputado e a que grupo se filia, sendo reforçada a percepção acerca da conexão entre os sujeitos que são responsáveis pela objetificação e instrumentalização dos não-humanos e da constante exploração dos humanos mais vulneráveis.
Como brevemente abordado o tema é composto por inúmeros recortes que demonstram sua complexidade.
Ao buscar compreender o universo simbólico que permeiam as mais diversas relações humanas nos deparamos com signos, significantes e significados plurais que formam uma colcha de retalhos. Assim sendo, trabalhar a dinâmica das relações humanas e não-humanas não poderia deixar de envolver toda essa amalgama.
O objetivo com esse trabalho, portanto, não poderia ser esgotar o tema, visto que diante desses fatos essa busca seria no mínimo inocente. Buscou-se, portanto, iluminar alguns dos pontos de choque que se tem ao discutir a significação da relação entre os homens e os não-humanos que os cercam.
A compreensão da necessidade de se reinterpretar o conceito de Natureza para que se torne ao menos possível o diálogo dos mais diversos atores que compõem as sociedades latinoamericanas é fundamental na tentativa de debater qualquer evolução relacionada as políticas públicas e as legislações que abarcam o tema.
Além disso, é imprescindível a interpretação do papel que a natureza (principalmente no que tange aos animais não-humanos) exerce na construção simbólica dos indivíduos afim de se poder discutir novas propostas política, jurídicas e legais. Para tanto, não é possível se olvidar da percepção do que o imperialismo europeu gerou nessa formação de um ideal de natureza.
Além disso, é crucial que se entenda como o histórico dessas relações imperialistas continuam se perpetuam no cenário sociopolítico brasileiro, representado por elites que subalternizam, exploram, escravizam e abatem todos os dias tanto humanos como não-humanos.
Opta-se aqui então por não utilizar nenhuma palavra de conclusão, uma vez que o processo de compreensão dos dados levantados e dos argumentos elaborados ainda está em pleno desenvolvimento, representando esse artigo o processo inicial de discussão.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm> Acesso em: 30 mar. 2018.
[1]BRASIL. Lei 10.406/02, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em: 30 mar.2018.
BRASIL. Lei 5.197/67, de 3 de janeiro de 1967. Dispõe sobre a proteção à fauna e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 5 de janeiro de 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5197compilado.htm Acesso em: 30 mar.2018.
BRASIL. Lei 9.605/98, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 17 de fevereiro de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm . Acesso em: 30 mar.2018.
BRASIL. Portaria IBAMA nº 93, de 7 de julho de 1998. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 8 de julho de 1998. Disponível em: http://servicos.ibama.gov.br/ctf/manual/html/042200.htm . Acesso em: 30 mar. 2018.
BRASIL. Projeto de Lei nº 6268/2016. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=34A02A283F3771C187ABBEBB6150DA08.proposicoesWebExterno2?codteor=1497510&filename=PL+6268/2016 Acesso em: 16 abr. 2018.BRASIL. SÍNTESE DOS ÍNDICES DE VIOLÊNCIA, TRABALHO ESCRAVO E MORTALIDADE INFANTIL NO BRASIL. Disponível em: http://olma.org.br/wp-content/uploads/2016/12/BRASIL-s%C3%ADntese-das-viol%C3%AAncias-e-emergencias-sociambientais.pdf . Acesso em: 16 abr. 2018
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[1] Artigo apresentado ao Espaço de Discussão ED 4 (Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos socioambientais) do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27 a 30 de abril de 2018.
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 1: Parte Geral. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 288
[3] Celso Antônio Pachedo Fiorillo, autor de obras como o Curso de Direito Ambiental Brasileiro. Edna Cardoso Diaz, autora de obras como Direito Ambiental no Estado Democrático de Direito e Laerte Fernando Levai, autor de Direito dos Animais: O Direito Deles e o Nosso Direito sobre Eles.
[4]BRASIL. Lei 10.406/02, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm> Acesso em: 30 jun.2013.
[5] Entrevistado do programa Direto ao Ponto deste domingo, dia 31, o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) fez uma análise de alguns temas que dominaram o agronegócio em 2017 - Canal Rural - Leia mais no link http://www.canalrural.com.br/noticias/direto-ao-ponto/armamento-rural-esperanca-setor-2018-70961
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CHAVES, Luiza Alves. Os traços do colonialismo na significação das relações entre humanos e não-humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52586/os-tracos-do-colonialismo-na-significacao-das-relacoes-entre-humanos-e-nao-humanos. Acesso em: 22 nov 2024.
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