RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo abordar a evolução das teorias atinentes à decisão concessiva do mandado de injunção adotadas pelo Supremo Tribunal Federal no decorrer dos anos. A Constituição de 1988 previu o remédio constitucional do mandado de injunção, cujo objeto se revela na tutela de direitos fundamentais e relacionados ao exercício da soberania, da cidadania e da nacionalidade. Durante os primeiros anos da Constituição de 1988 o Supremo Tribunal Federal aplicou, em relação aos efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção, a teoria não concretista, de modo que, constatada a inércia legislativa, a Corte Constitucional unicamente cientificava o Legislativo de sua mora. Todavia, diante do surgimento do novo plexo de necessidades individuais e coletivas e a partir da relativização do primado da separação dos poderes, a Suprema Corte passou a adotar a tese concretista, com o fito de implementar, concretamente, o direito fundamental reclamado pelo remédio constitucional. Apesar da louvável iniciativa, pairam dúvidas acerca do acertamento da aplicabilidade da citada teoria, visto que a efetivação dos direitos postulados, por intermédio do ativismo judicial, poderia resultar em infração ao postulado da tripartição dos poderes.
Palavras-chave: mandado de injunção, teoria concretista, Supremo Tribunal Federal, separação dos poderes.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. O MANDADO DE INJUNÇÃO E OS EFEITOS DA DECISÃO. 3. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 4. TEORIA CONCRETISTA E A INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCIPADO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
É cediço que a Constituição da República franqueou, entre os remédios constitucionais, a possibilidade da impetração do mandado de injunção, com o fito de suprir eventuais e indesejadas omissões legislativas em efetivar “o exercício de direitos e liberdades constitucionais e prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5º, LXXI).
Passados mais de trinta anos da promulgação do texto fundamental vigente, encontram-se inseridas no ordenamento jurídico diversas lacunas propiciadas pela abstenção do Poder Legislativo. Resultam da clarividente letargia e mora na sua função precípua de elaborar os preceitos normativos de regulamentar o exercício de direitos constitucionais, notadamente aqueles contidos em normas de eficácia limitada.
Há tempos a Corte Constitucional brasileira aplicava, no tocante aos efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção, a teoria não concretista, cujo resultado se traduzia no simples reconhecimento da mora normativa e na cientificação do Poder Legislativo na função precípua legiferante.
Todavia, em guinada jurisprudencial, a Suprema Corte adotou a teoria concretista geral no julgamento dos mandados de injunção ns. 670, 708 e 712, nos quais além reconhecer a mora legislativa em editar a lei que regulamente o direito de greve dos servidores públicos civis, também aplicou, na forma que coubesse, a lei geral de greve aos agentes públicos.
A partir de então se observou verdadeiro abandono do posicionamento não concretista de unicamente cientificar o Legislativo de sua mora na sua função típica legiferante.
Desse modo, almeja-se abordar se a posição que vem sendo acatada pelo Supremo Tribunal Federal em aplicar a teoria concretista, como regra geral nas decisões concessivas da injunção. Sob a perspectiva individual, seja geral ou intermediária, indaga-se se ao assegurar concretamente os direitos reclamados na injunção, não ocasionaria infração ao postulado máximo da separação dos Poderes da República.
O tema revela-se por demasiado atual e importante diante da cediça relativização do postulado da tripartição dos Poderes da República e da efetivação de direitos, garantias e liberdades fundamentais atrelados ao exercício dos direitos relacionados à soberania, à cidadania e à nacionalidade por meio do chamado ativismo judicial.
2. O MANDADO DE INJUNÇÃO E OS EFEITOS DA DECISÃO
Ao prever o remédio constitucional do mandado de injunção no texto do documento constitucional de 1988, o constituinte originário inovou na seara da tutela dos direitos fundamentais resguardados à pessoa humana, ao assegurar instrumento até então desconhecido pelo ordenamento pátrio como cláusula pétrea (art. 60, §4º, I, CF).
Aludido instrumento constitucional, a propósito, torna-se cabível “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5º, LXXI, CF).
Com efeito, o mandado de injunção “consiste em uma ação constitucional de caráter civil e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público” e “ao combate à síndrome de inefetividade das normas constitucionais”.
Verifica-se, desse modo, que dois são os requisitos para o manejo da ação constitucional, a saber: a) a omissão legislativa consistente na falta de norma regulamentadora de direito fundamental ou garantia reclamada inerente à soberania, à cidadania ou à nacionalidade; e b) o impedimento de exercer o direito reclamado por seu titular diante da omissão constatada.
Em relação ao primeiro pressuposto, especialmente no atinente as normas constitucionais de eficácia limitada e programáticas, a dita norma regulamentadora é aquela que possui aplicabilidade mediata, indireta e não integral (reduzida). Raramente, a propósito, se verá o questionamento pela injunção de norma de eficácia plena ou contida, porquanto ambas, desde logo, já asseguram ao titular do direito a possibilidade de exercê-lo, sendo, no primeiro caso, de maneira imediata e integral e, no segundo também imediata, mas com a ressalva de eventual restrição ou condição por outra norma constitucional ou infraconstitucional.
Sobre o tema, cabe trazer à baila importante ensinamento de Moraes:
As normas constitucionais que permitem o ajuizamento do mandado de injunção assemelham-se às da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e não decorrem de todas as espécies de omissões do Poder Público, mas tão só em relação às normas constitucionais de eficácia limitada de princípio institutivo de caráter impositivo e das normas programáticas vinculadas ao princípio da legalidade, por dependerem de atuação normativa ulterior para garantir sua aplicabilidade. Assim, haverá a necessidade de lacunas na estrutura normativa, que necessitarem ser colmatadas por leis ou atos normativos [...].
O cabimento da injunção, portanto, opera-se nas hipóteses das lacunas normativas proporcionadas pela ausência de regulamentação das normas constitucionais de eficácia limitada, frequentemente causada pela letargia do Poder Legislativo.
Para se definir a competência para o julgamento do writ e a legitimidade passiva, infere-se do texto constitucional que quando a omissão normativa for imputável ao Presidente da República, ao Congresso Nacional, à Câmara dos Deputados, ao Senado Federal, a qualquer das Mesas das Casas Legislativas, ao Tribunal de Contas da União, a algum dos Tribunais Superiores ou do próprio Supremo Tribunal Federal, a Constituição da República, em seu artigo 102, inciso I, alínea q estabelece a competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar o mandado de injunção impetrado em face de qualquer dos acima mencionados. Cumpre mencionar, por oportuno, que há também a competência recursal da Suprema Corte (art. 102, II, a), bem como outras atribuições originárias reservadas ao Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, h) e aos Tribunais de Justiça dos Estados.
Destarte, por ser o Supremo Tribunal Federal a instância máxima de julgamento dos mandados de injunção no ordenamento jurídico pátrio, cabe analisar quais são os efeitos conferidos às decisões prolatadas por essa Corte Constitucional em relação à decisão concessiva do aludido remédio constitucional.
A denominada teoria não concretista – ou da subsidiariedade – assevera que a decisão concessiva da injunção deve se limitar a declarar a mora legislativa e cientificar o órgão omisso responsável pela norma, em observância ao princípio da tripartição dos poderes.
Aludida teoria por muitos anos foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal, “pois a Corte não poderia legislar, para suprir a mora do Congresso Nacional, sob pena de violar a cláusula da separação dos Poderes”, a exemplo do mandado de injunção n. 107/DF, de Relatoria do Ministro Moreira Alves que, em seu voto, destacou os efeitos da citada teoria:
[...] é ação que visa obter do Poder Judiciário a declaração e inconstitucionalidade dessa omissão se estiver caracterizada a mora regulamentar do Poder, órgão, entidade ou autoridade de que ela depende, com a finalidade de que se lhe dê ciência dessa declaração, para que adote as providencias necessárias [...]
A fundada crítica à teoria não concretista se resume na ineficácia prática do mero reconhecimento da mora legislativa, pois tão somente se constata e se cientifica a omissão ao detentor da iniciativa legislativa, em detrimento do direito fundamental reclamado pela impetração, que ficava a mercê da conveniência e oportunidade do Poder Legislativo em elaborar a norma que, muitas das vezes, depende de orquestrado jogo político para ser aprovada em ambas as casas do Congresso Nacional.
Ao rechaçar a teoria não concretista, Rodrigo Mazzei sustenta que:
[...] a presente teoria não absorve o espírito de garantia constitucional do writ, porquanto a declaração do estado de inércia – assim como mera cientificação desse estado – não é apta a satisfazer a pretensão do autor prejudicado pela omissão legislativa. É por isso que afirmamos: segundo a teoria da subsidiariedade, o mandado de injunção pouco tem de mandado – já que apenas cientifica – e menos ainda tem de injunção – pois, a declaração que deveria ser injuntiva (concedendo a integração normativa), se limita a certificar o estado de inércia do órgão responsável.
Nessa toada, Bulos assinala:
O mandado de injunção, nos primeiros vinte anos de vigência da Carta de 1988, cumpriu, de modo inglório, o seu papel. Não conseguiu limitar a arrogância discricionária dos órgãos normativos, muito menos minorou o cancro das lacunas e das pressões político-jurídicas, que fulminam direitos fundamentais.
Não se olvide, todavia, que em certas ocasiões a Suprema Corte adotou, durante o sucesso da teoria não concretista, a tese concretista intermediária, ao fundamento de que “se o Congresso Nacional não fizer a lei, em certo prazo que se estabeleça na decisão, o Supremo Tribunal Federal pode tomar conhecimento de reclamação da parte, [....] e, a seguir, dispor a respeito do direito in concreto”.
Assim sendo, vislumbra-se que a Corte Constitucional “aceitou a possibilidade de uma regulação provisória pelo próprio Judiciário, uma espécie de sentença aditiva, se se utilizar a denominação do direito italiano”, de modo a implementar, após o esgotamento do prazo assinalado pelo órgão jurisdicional, a garantia não regulamentada pelo legislador.
Em razão dos fortes posicionamentos doutrinários contrários à efetividade do remédio constitucional e, outrossim, diante da natural oxigenação da composição da Suprema Corte, dentre os anos de 2006 e 2007 o Supremo Tribunal Federal começou a esboçar os primeiros indicativos de verdadeira guinada jurisprudencial, considerando a até então ineficácia do remédio constitucional previsto originariamente na Constituição da República de 1988:
É tempo de se refletir sobre a timidez inicial do Supremo quanto ao alcance do mandado de injunção, ao excesso de zelo, tendo em vista a separação e a harmonia entre os Poderes. É tempo de se perceber a frustração gerada pela postura inicial, transformando o mandado de injunção em ação simplesmente declaratória do ato omissivo, resultando em algo que não interessa, em si, no tocante à prestação jurisdicional, tal como consta no inciso LXXI do art. 5º da Constituição Federal, ao cidadão. Impetra-se mandado de injunção não para lograr-se de certidão de omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais, a prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Busca-se o Judiciário na crença de lograr a supremacia da Lei Fundamental, a prestação jurisdicional que afaste as nefastas consequências da inércia do legislador. Conclamo, por isso, o Supremo, na composição atual, a rever a óptica inicialmente formalizada, entendendo que, mesmo assim, ficará aquém da atuação dos Tribunais do Trabalho, no que, nos dissídios coletivos, a eles a Carta reserva, até mesmo, a atuação legiferante, desde que consoante prevê o § 2º do artigo 114 da constituição Federal, sejam respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho.
Desse modo, ao julgar conjuntamente os mandados de injunção ns. 670 e 708, os quais cuidavam da ausência de regulamentação do direito de greve dos servidores públicos civis – norma anteriormente declarada como de eficácia limitada pelo Supremo Tribunal Federal –, a Corte Constitucional passou a adotar a teoria concretista geral – também conhecida como teoria da independência jurisdicional –, conferindo efeitos erga omnes a todas as injunções e aos titulares de direitos que estivessem em similitude de situação.
Colhe-se do voto do Ministro Gilmar Mendes que fundamentou a importante decisão:
Por essa razão, não estou aqui a defender a assunção do papel de legislador positivo do Supremo Tribunal Federal.
Pelo contrário, enfatizo tão somente que, tendo em vista as imperiosas balizas jurídico-políticas que demandam a concretização do direito de greve a todos os trabalhadores, o STF não pode se abster de reconhecer que, assim como o controle judicial deve incidir sobre a atividade do legislador, é possível que a Corte Constitucional atue também nos casos de inatividade ou omissão do Legislativo. [...] Diante da singularidade do debate constitucional do direito de greve [...], devem-se fixar também os parâmetros institucionais e constitucionais de definição de competência, provisória ou ampliativa, para a apreciação de dissídios de greve instaurados entre o Poder Público e os servidores públicos civil [...]. Nessa extensão do deferimento do mandado de injunção, aplicação da Lei nº 7.701/1988, no que tange à competência para apreciar e julgar eventuais conflitos judiciais referentes à greve de servidores públicos que sejam suscitados até o momento de colmatação legislativa específica da lacuna ora declarada, nos termos do inciso VII do art. 37 da CF, [...].
Destarte, com o objetivo de colmatar as lacunas indesejadas e até mesmo negligentes proporcionadas pelo Poder Legislativo, a adoção da teoria concretista, seja geral, individual ou intermediária pela Suprema Corte, além de reconhecer e cientificar o Legislativo de sua mora, também propiciou o imediato exercício de direitos e garantias impregnados no texto constitucional em normas de eficácia limitada.
Por seu turno, a decisão concessiva sob a ótima da teoria concretista individual “só produzirá efeitos para o autor do mandado de injunção, que poderá exercer plenamente o direito, liberdade ou prerrogativa prevista na norma constitucional”.
Exemplo da adoção da supracitada teoria deu-se no julgamento da injunção n. 721/DF, na qual o Supremo Tribunal Federal assentou que ao Judiciário cabe “não apenas emitir certidão de omissão do Poder incumbido de regulamentar o direito a liberdades constitucionais [...], mas viabilizar, no caso concreto, o exercício desse direito, afastando as consequências da inércia do legislador”.
Diferencia-se a teoria geral da individual no tocante aos alcances da decisão, pois a essa produz efeitos inter partes, enquanto doutrina geral assegura eficácia erga omnes.
Não obstante a aludida divisão, oportuno mencionar que a teoria concretista individual desdobra-se em duas subteorias. A concretista individual direta, por seu turno, é aquela já abordada com a adoção dos efeitos concretos entre as partes na hipótese da decisão concessiva. De outro lado, a individual intermediária incorpora-se no caso de procedência da injunção, quando o Judiciário não implementa, desde logo, o direito ou garantia postulado ao titular da ação, mas cientifica o órgão, entidade ou autoridade omissos para que, em prazo a ser fixado de acordo com a situação, expeça a norma regulamentadora ausente. Se após o esgotamento do lapso temporal persistir a mora legislativa, cabe, aí sim, ao Poder Judiciário estabelecer as condições e termos necessários ao exercício do direito titularizado pela parte autora do writ.
Visto isso, impende adentrar ao exame do principado da separação dos poderes e, a seguir, averiguar se o abrigamento da teoria concretista fere, ou não, o postulado máximo dos freios e contrapeses previsto pelo constituinte originário.
3. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
Com o fito de impedir indesejados arbítrios cometidos pelo detentor do poder estatal, o constituinte de 1988 estabeleceu como máxima fundamental do texto constitucional o principado da separação dos poderes da República, os quais são independentes e harmônicos entre si, de modo a repartir as atribuições inerentes ao exercício da soberania, bem como criar mecanismos de controle recíprocos.
Moraes nos ensina que, sob o critério funcional, a divisão dos poderes se fundamenta na segregação das três funções estatais - legislar, administrar e julgar - que devem ser reservadas para órgãos distintos e autônomos entre si, sendo traçada, inicialmente, por Aristóteles, na obra “Política” e, após, detalhada e aperfeiçoada por John Locke e Monstesquieu.
Com efeito, diante da complexidade das relações sociais vivenciadas em sociedade, “Hoje, o princípio não configura mais aquela rigidez de outrora”. José Afonso da Silva explica que “A ampliação de atividades do Estado contemporâneo impôs nova visão da teoria da separação dos poderes e novas formas de relacionamento entre os órgãos legislativo e executivo e deste com o judiciário, [,,,]”.
Nesse norte, a doutrina clássica ensinada por Aristóteles, Locke e Montesquieu não mais deve ser interpretada com o caráter absoluto previsto outrora. Em verdade, o ordenamento jurídico pátrio há de ser analisada com certas ressalvas e sob o enfoque da relatividade, de modo a “reavaliar o critério tradicional que propõe separar, in extremis, as atividades legislativa, executiva e jurisdicional”.
Sobre o tema, elucida Moraes que inexiste “qualquer dúvida da estreita interligação constitucional entre a defesa da separação dos poderes e dos direitos fundamentais como requisito sine qua non para a existência de um Estado democrático de direito”. Arremata o doutrinador:
Em conclusão, o Direito Constitucional contemporâneo, apesar de permanecer na tradicional linha da ideia de Tripartição de Poderes, já entende que esta fórmula, se interpretada com rigidez, tornou-se inadequada para um Estado que assumiu a missão de fornecer a todo o seu povo o bem-estar, devendo, pois, separar as funções estatais, dentre de um mecanismos de controle recíprocos, denominado “freios e contrapesos” (checks and balances)
Resta-nos analisar, a partir desta relativização do postulado da separação dos poderes soberanos, se a tese concretista acolhida pelo Supremo Tribunal Federal de, por intermédio de o próprio Poder Judiciário implementar direitos e prerrogativas lesados afronta, ou não, configura ingerência de um poder em outro, de modo a afrontar o princípio estrutural máximo da tripartição dos poderes.
4. TEORIA CONCRETISTA E A INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCIPADO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
A questão que originou fundados debates no âmbito acadêmico versa sobre a eventual infração ao princípio da separação dos poderes da República pela adoção do ativismo judicial pelo Supremo Tribunal Federal em relação aos efeitos concretistas da decisão concessiva da injunção.
Moraes defende ser “plenamente conciliável” o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal pela aplicabilidade da teoria concretista nos efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção, porquanto, considerando o princípio da inafastabilidade da jurisdição, o “Poder Judiciário, no exercício da atividade jurisdicional, deverá evitar a ameaça ou a lesão a direitos, liberdades ou prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”, principalmente aquelas “decorrentes da omissão do Poder competente, declarando a existência da omissão e permitindo que o prejudicado usufrua da norma constitucional, nos moldes previstos na decisão, enquanto não for colmatada a lacuna legislativa ou administrativa”. Prossegue o autor asseverando que:
Assim agindo, não estará o Judiciário regulamentando abstratamente a Constituição Federal, com efeitos erga omnes, pois não é sua função; mas ao mesmo tempo, não estará deixando de exercer de suas funções precípuas, o resguardo dos direitos e garantias fundamentais. Como destaca Carlos Augusto Alcântara Machado, “não se trata de pretensa usurpação da função legislativa pelo Poder Judiciário e, sim, de exercício de uma atribuição conferida constitucionalmente” (MACHADO, Carlos Augusto... Mandado de Injunção. São Paulo: Atlas, 2000.).
Em consonância, Mazzei refuta a possibilidade de qualquer infringência ao principado:
Não vinga, a nosso sentir, a alegação purista de que a teoria da resolutividade estaria por violar o princípio da separação dos poderes. Ora, se o Poder Legislativo exerce função legislativa, então podemos afirmar que o referido órgão possui o dever de legislar. Contudo, só existe dever jurídico quando se identifica uma sanção inibindo determinado comportamento reprovável pelo direito, e, por isso, fazendo a seguinte pergunta: qual seria a sanção relativa à inércia do Poder Legislativo? Nenhuma.
[...] A inexistência de sanção inibitória macula de certa forma a aplicação do conceito de função à atividade legiferante exercida pelo Poder Legislativo; lembrando que há sanção para o não exercício das outras duas funções estatais, a administrativa e a jurisdicional. A situação de intangibilidade direta do estado de inércia do Poder Legislativo é fruto de uma imensa influência do princípio da separação e independência entre os poderes no nosso ordenamento jurídico.
Entretanto, essa agressão ao conceito de função de Estado – principalmente de um Estado de Direito – quando tratamos da atividade legislativa, pode ser abrandada se assumirmos a possibilidade de o Poder Judiciário desempenhar um papel de assegurar a efetivação dos direitos constitucionais através de instrumento processuais adequados. Fixe-se, desde logo, que trata-se de postura puramente residual, em que não se ocuparia definitivamente o espaço do legislador, pois, tão logo editada a norma, a superfície ocupada pela decisão judicial perderia sua eficácia.
Admitir que o Poder Judiciário esteja autorizado a solucionar conflitos, integrando normas que não fixem os limites de certos direitos subjetivos, não implica uma agressão ao princípio da separação dos poderes, pois o que está em jogo é a produção de uma norma concreta (atividade jurisdicional) e não de norma abstrata (atividade legiferante).
Logo, uma vez ultrapassado o prazo razoável para que o poder detentor da função precípua de legislar regulamente os mandamentos a si atribuídos pelo texto constitucional, notadamente os direitos integrantes de normas de eficácia limitada, cabe ao Poder Judiciário agir, mediante provocação do instrumento previsto para tanto, já que há mais de 30 anos a Constituição da República foi promulgada, para que em uma postura ativista, supra a omissão e concretize o direito fundamental reclamado.
Cabe mencionar que tal posicionamento “Não se incentiva um Judiciário a funcionar como legislador positivo no caso da existência de lei, mas, havendo falta de lei e sendo a inércia desarrazoada, negligente e desidiosa, dentro dos limites das técnicas de controle das omissões, busca-se a efetivação dos direitos fundamentais [...]”.
Dito isso, considerando de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV, CF), impende ressaltar que cumpre ao poder jurisdicional o papel de impedir ou assegurar que o titular do direito não seja ameaçado ou lesionado e, ao agir de forma ativa “ao formular supletivamente a norma regulamentadora o Judiciário está exercendo função normativa e não legislativa”,.
Nessa linha de entendimento, a propósito, traduz a vontade do legislador nacional, o qual promulgou a Lei n. 13.300, em 23 de junho de 2016, normatizando a garantia fundamental do mandado de injunção – o qual até o momento carecia de regulamentação, empregando-se, por analogia, os ditames da Lei do Mandado de Segurança.
Referida norma estabeleceu, como regra geral, a aplicação da teoria concretista individual intermediária, devendo-se, em primeiro, assinalar prazo para que o legislativo supra a mora legislativa constatada no caso concreto – e individual – para, somente após e no caso de persistência da letargia, o Poder Judiciário estabelecer as condições em que se exercerá o direito fundamental reclamado no remédio constitucional (art. 8º).
Isso posto, não há que se falar em eventual e odiosa inobservância ao principado da separação dos poderes da República por ter o Supremo Tribunal Federal se filiado a corrente progressista e concretizadora dos direitos fundamentais assegurados pelo texto constitucional.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer dos primeiros anos de vigência da atual Carta Magna verificou-se que o mandado de injunção se tornou verdadeiro instrumento inócuo, uma vez que sua utilidade prática se reduzia a mera notificação do legislativo de sua mora em positivar direitos e garantias inerentes à soberania, à nacionalidade e à cidadania, diante da inadequada teoria não concretista empregada.
Com o intuito de conferir maior efetividade ao remédio constitucional inserido pelo constituinte originário na Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal abandou a tese anterior e começou a aplicar, in totum, a teoria concretista nos efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção, revelando-se, a partir de então, fundamental instrumento de efetivação de direitos e garantias impregnados no texto constitucional.
Como visto, a aplicabilidade da tese concretista não chega a permear ao ponto de violar, nem ao menos em tese, o cláusula constitucional da separação dos poderes, porquanto o Judiciário age justamente em função da configurada ofensa aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Não obstante tal assertiva defendida no presente estudo, cabe mencionar que a teoria que melhor se encaixa ao ordenamento jurídico pátrio é intermediária – inclusive adotada na Lei n. 13.300/2016 –, pois, inicialmente, reconhece-se e cientifica do Legislativo de sua mora, assinalando prazo para a regulamentação da garantia violada pela inércia. Caso persista a letargia, cumpre ao Supremo Tribunal Federal implementar o direito reclamado pelo remédio constitucional. Bulos afirma que tal tese “é a melhor solução”, pois “Ao mesmo tempo que mantém intacto o princípio da separação dos poderes” também permite “que os cidadãos exerçam a plenitude de seus direitos constitucionais, obstaculizados pela inércia institucional do Legislativo”.
Destarte, infere-se verdadeiro overruling da teoria não concretista preambularmente utilizada pela Suprema Corte e abrigo da tese concretista, a fim de que seja privilegiado os direitos previstos na Carta Maior, sem qualquer violação ao principado da separação dos poderes, visto que a contemporânea realidade fático-jurídica demanda maior atenção do poder público, especialmente no tocante ao exercício de garantias individuais e coletivas.
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Pós-Graduado em Direito Ambiental – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Constitucional – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduação em Direito Penal – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito do Idoso – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Civil – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito da Criança e do Adolescente – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Constitucional – Anhanguera Uniderp. Bacharel em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ADRIANO, Daniel Dal Pont. A adoção da teoria concretista em relação aos efeitos da decisão concessiva do mandado de injunção e o princípio da separação dos poderes da república Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52615/a-adocao-da-teoria-concretista-em-relacao-aos-efeitos-da-decisao-concessiva-do-mandado-de-injuncao-e-o-principio-da-separacao-dos-poderes-da-republica. Acesso em: 22 nov 2024.
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