ANDRÉ P VIANA
(Orientador)
RESUMO: Através de revisão bibliográfica, consulta à Constituição Federal do Brasil e análise sobre as legislações da portaria do Ministério da Saúde nº 158 e da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 34 da ANVISA, objetivou-se identificar os pontos questionáveis acerca das restrições temporais impostas a homens homossexuais para a doação de sangue no Brasil, baseando-se em uma ação previamente protocolada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.543. Tal temática se faz necessária em um atual cenário de saúde pública, especificamente a realidade de hemocentros brasileiros em falta de bolsas de sangue, quadro que poderia ser revertido com uma melhora substancial pela supressão de dispositivos sanitários que restringem a doação por homens homossexuais baseados mais na orientação sexual do que em práticas de alto risco à contaminação por doenças transmissíveis pela transfusão de sangue. O pedido de revisão das normas supracitadas encontra argumentos no entendimento da infração aos princípios, da dignidade humana, igualdade e proporcionalidade, principalmente. O artigo busca compreender à luz do histórico da doação de sangue por homens homossexuais, o que motivou o Ministério da Saúde e a ANVISA a adotar tal restrição, pois, atualmente conhece-se muito sobre o HIV e a narrativa sustentada até o presente momento não se sustenta, já que o sangue de heterossexuais e homossexuais são analisados da mesma forma. O julgamento ainda não foi encerrado, portanto, não é possível afirmar sobre a decisão definitiva, porém, em vista dos votos e análises dos ministros, é possível perceber uma prévia de forma procedente à Ação.
Palavras-chave: Homossexualidade. Doação de sangue. Inconstitucionalidade. HIV. Ministério da Saúde. ANVISA.
ABSTRACT: Through a bibliographical review, the Federal Constitution of Brazil and an analysis of the legislations of the Ministerial Order of the Ministry of Health nº 158 and the Resolution of the Collegiate Board of Directors (RDC) nº 34 of ANVISA, were aimed at identifying the questionable points about the temporal restrictions imposed to homosexual men for the donation of blood in Brazil, based on an action previously filed by the Direct Action of Unconstitutionality (ADI) No. 5,543. Such a thematic is necessary in a current public health scenario, specifically the reality of Brazilian hemocentres in the absence of blood bags, a framework that could be reversed with a substantial improvement by the suppression of sanitary devices that restrict donation by homosexual men based more on sexual orientation than in high-risk practices for contamination by diseases transmissible by blood transfusion. The request for revision of the aforementioned norms finds arguments in the understanding of the violation of principles, human dignity, equality and proportionality, mainly. The article seeks to understand in the light of the history of the blood donation by homosexual men, which motivated the Ministry of Health and ANVISA to adopt such a restriction, since, at present, a great deal is known about HIV and the narrative sustained up to the present moment does not is sustained, since the blood of heterosexuals and homosexuals are analyzed in the same way. The judgment has not yet been terminated, therefore, it is not possible to assert on the final decision, however, in view of the votes and analyzes of the ministers, it is possible to perceive a procedural preview of the Action.
Keywords: Homosexuality. Blood donation. Unconstitutionality. HIV. Ministry of Health. ANVISA.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 RVISÃO DO CONTEXTO HISTÓRICO E NORMATIZAÇÃO DA DOAÇÃO DE SANGUE NO BRASIL. 2.1 Regulamentação relacionada a restrição da doação por homens homossexuais. 3 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE nº 5.543. 4 ARGUMENTAÇÃO DO MINISTÉRIO DA SAÚDE E DA ANVISA. 5 POSICIONAMENTO DOS MINISTROS E SITUAÇÃO ATUAL DO CASO. 5.1 Parcialidade do Ministro Alexandre de Moraes. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7 BIBLIOGRAFIA.
As garantias contidas nos direitos fundamentais, no que tange aos direitos humanos, asseguradas na Constituição Federal em seus artigos 5° e 6°, sendo elas: à vida, liberdade, cidadania, direitos sociais, por consequência, à dignidade da pessoa humana, logo em seu artigo 1º, possibilitam a discussão atrelada à temática da doação de sangue por homossexuais, embora ainda em debate dos argumentos legais e técnicos, a importância altruística do ato continua salvando vidas, mesmo com as restrições aos denominados “grupos de risco” (BRASIL, 1988).
O sangue humano é um material nobre e insubstituível, acessível à quem necessita, graças aos voluntários dispostos e com aptidão a sua doação. O Ministério da Saúde reconhece que há um déficit nos estoques d e diversos hemocentros, como mostram os dados, desde 2016: em um universo amostral de aproximadamente 3,4 milhões de doações anuais, apenas 1,6% da população total do país é doadora, embora dentro do estipulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) de, ao menos, 1% de doadores, o Ministério visa ampliar essa margem (BERALDO, 2018).
Em paralelo a este panorama de relativa escassez da doação de sangue no Brasil, existe uma parcela da população de homens, especificamente os homossexuais – de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 101 milhões de homens, 10,5 milhões é homo ou bissexual – poderiam ampliar o volume dos estoques de sangue nos hemocentros, não fosse a restrição sanitária a esse grupo social e, considerando que cada homem pode doar até 4 vezes, deixam de ser arrecadados aproximadamente 18,9 milhões de litros de sangue anualmente (CARBONARI, 2018).
A princípio, cabe esclarecimentos sobre interpretação da terminologia do fato analisado; não houve proibição a doação por homossexuais, e sim, há uma restrição temporal a este denominado “grupo de risco” como pode ser observado através da portaria do Ministério da Saúde nº 158, em seu artigo 64, respaldado pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 34 da ANVISA no seu artigo nº 25.
A abstinência sexual do “homem que faz sexo com homem” (HSH) – incluindo seus respectivos parceiros – por 1 ano, preconizada por ambas normas como pré-requisito de aptidão à doação de sangue, foi compreendida de modo inconstitucional e discriminatória pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.543; e, segundo o Ministro e Relator da ação, Edson Fachin:
"[...] os dispositivos em questão instituem um tratamento desigual e desrespeitoso com relação aos homossexuais [...] a conduta é que deve definir a inaptidão para a doação de sangue, e não a orientação sexual ou o gênero da pessoa com a qual se pratica tal conduta.” (apud SILVA DA CRUZ, 2017).
O foco da discussão reside no fato de haver um entendimento de natureza preconceituosa em torno das disposições da portaria do ministério da saúde e da resolução da ANVISA, no que diz respeito a temporariedade obrigatória aos homens homossexuais, fato reconhecido também pela Organização Mundial de Saúde (OMS) quanto da desatualização das medidas preventivas adotadas, haja vista de métodos modernos capazes de aferir a qualidade do sangue coletado, independente do gênero e opção sexual de seus doadores (MUNIZ, 2018).
O presente artigo busca compreender, à luz do direito, quais foram as inspirações e os motivos que levaram a tal decisão do ministério da saúde; busca também analisar o contexto à época em que tais ideias foram discutidas e decisões legais foram tomadas e, sobretudo, compreender melhor a dedução atual da interpretação da inconstitucionalidade das normas supracitadas, embora, ainda aguardando aprovação no Supremo Tribunal Federal (STF).
Os primeiros esforços em traçar um esboço da doação de sangue no Brasil encontra relatos que remontam à época de 1879, no Rio de Janeiro, meio a um questionamento, se a melhor transfusão sanguínea para humanos ocorreria a partir de sangue propriamente humano ou de animais; porém, somente no ano de 1940 surgiram os primeiros avanços técnicos da hemoterapia com seu consequente reconhecimento e destaque da importância de se estudar e aprimorar suas técnicas e métodos, corroborando, em 1950, na fundação da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH) (HAMERSCHLAK; JUNQUEIRA; ROSENBLIT, 2005).
Ainda, no ano de 1950, como uma inciativa do Banco de Sangue de Brasília, foi decretada a lei nº 1075, de 27 de março de 1950, dispondo sobre a doação voluntária de sangue; posteriormente, com necessidade crescente de legislar sobre e estabelecer regras sanitárias, criou-se em 1965, através da comissão nacional de hemoterapia, intermediado pelo Ministério da Saúde, a lei de obrigatoriedade dos testes sorológicos necessários para segurança em transfusões de sangue (HAMERSCHLAK; JUNQUEIRA; ROSENBLIT, 2005).
Apesar de todos os esforços para se estabelecer uma política eficaz de hemoterapia nacional do ano de 1964 até 1979, além de aparato normativo suficiente à época, havia clara necessidade de reformulação do sistema hemoterápico no Brasil em vista de problemas sanitários e éticos:
“O sistema era desorganizado, com serviços públicos e privados de altíssimo nível técnico e científico convivendo com outros de péssima qualidade, alguns com interesses prioritariamente comerciais. As indústrias de hemoderivados, em geral, estimulavam a obtenção de matéria prima através de doadores remunerados e da prática da plasmaférese. Nem sempre os cuidados com a saúde dos doadores eram prioritários. Em alguns bancos de sangue, de ética questionável, indivíduos das camadas mais pobres da população, que muitas vezes não tinham reais condições físicas e mesmo nutricionais, eram estimulados a doar sangue.” (HAMERSCHLAK; JUNQUEIRA; ROSENBLIT, 2005, p. 205).
Vistas à problemática, em 1980 criou-se o Programa Nacional de Sangue (Pró-Sangue) que ordenaria o sistema hemoterápico até então estabelecido, como forma de dirimir divergências legais – tais como a doação remunerada – sanitárias e, padronizar o ato da doação sanguínea voluntária, ampliando a rede de hemocentros em todo o país; posteriormente, as competências deste programa não pertenceria mais ao Ministério da Saúde, e sim, à ANVISA (HAMERSCHLAK; JUNQUEIRA; ROSENBLIT, 2005).
Com o advento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS) ainda na década de 80, houve a necessidade de novos procedimentos de transfusão e coleta, reforçado pelo reconhecimento mundial de que as transfusões sanguíneas poderiam desencadear uma epidemia de contaminação, no Brasil, aproximadamente 2% dos casos de AIDS seriam transmitidos por transfusão e mais de 50% dos hemofílicos permaneciam infectados pelo vírus da imunodeficiência humana HIV (HAMERSCHLAK; JUNQUEIRA; ROSENBLIT, 2005, p. 206).
À época, autoridades de saúde buscavam compreender o fenômeno, designar quais eram as populações contaminantes, para tanto, em 1982 após tomar ciência do primeiro caso de contaminação por transfusão de sangue, o Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos da América, por meio de uma estimativa probabilística de risco, classificou em quatro grupos de risco essa parcela da população, a saber: hemofílicos, haitianos, usuários de heroína e homossexuais; este quarteto seria submetido a um “isolamento sanitário”, por vezes social, difundido pela mídia do mundo todo e pelo preconceito (AYRES, et al., 2009).
Durante muito tempo os homossexuais sofreram repressões, discriminações e privações, afinal, a prática homossexual era percebida pela sociedade como um ente patológico, porém, a partir de 1974, a Associação Americana de Psiquiatria aboliu a terminologia homossexualismo, removendo-a da Classificação Internacional de Doenças, sendo assim, apenas em 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adotou a terminologia homossexualidade referente a um comportamento inerente à sexualidade humana (VECCHIATTI , 2008, p. 52).
Conforme surgiam os primeiros casos confirmados da contaminação através de transfusão de sangue, caracterizando o início da epidemia, houve enorme demanda por métodos eficazes de análise do material coletado, principalmente da inativação viral objetivando diminuir novos contágios, portanto, as restrições iniciais pautavam-se em estudos probabilísticos e, em relação às transfusões, o enfoque maior era dado aos estágios iniciais da doença, ou janela imunológica, assintomática e transmissível:
“[...] O período de identificação do contágio pelo vírus depende do tipo de exame (quanto à sensibilidade e especificidade) e da reação do organismo do indivíduo. Na maioria dos casos, a sorologia positiva é constatada de 30 a 60 dias após a exposição ao HIV. Porém, existem casos em que esse tempo é maior: o teste realizado 120 dias após a relação de risco serve apenas para detectar os casos raros de soroconversão – quando há mudança no resultado. Se um teste de HIV é feito durante o período da janela imunológica, há a possibilidade de apresentar um falso resultado negativo. Portanto, recomenda-se esperar mais 30 dias e fazer o teste novamente.” (BRASIL. MINISTERIO DA SAÚDE, s.d.)
Visando adotar maiores medidas protetivas aos bancos de sangue, o arcabouço normativo brasileiro respondeu rapidamente no sentido de avocar competências através do Ministério da Saúde, que possibilitassem interferir mais em busca de soluções para a epidemia, ao passo que novos estudos e resultados científicos do HIV eram elucidados.
Com base nesse panorama, em 1988 foi promulgada a Lei nº 7.649 que estabeleceu a obrigatoriedade do cadastramento de doadores, assim como a realização dos exames essenciais de todo sangue coletado, com o intuito de evitar a propagação das doenças em alta à época, como a AIDS, Hepatite B, Sífilis, Malária e Doença de Chagas (BRASIL, 1988).
Através dessa lei, coube ao Ministério da Saúde editar portarias que versasse sobre as técnicas para os testes de sangue, assim como adicionar testes comprobatórios para reforçar a análise dos materiais, visando garantir a inviolabilidade à saúde dos doadores e receptores. Ainda no ano de 1988, era editado o Decreto nº 95.721 que regulamentaria a Lei nº 7.649, de 25 de janeiro de 1988. (BRASIL, 1988).
Seguindo a cronologia, em 1989, a portaria nº 721, editada pelo Ministério da Saúde, durante o surto epidêmico da AIDS, estabeleceu a triagem sorológica em todas as unidades de coleta de sangue, através de exames laboratoriais sensíveis, discriminando então as primeiras formas de exclusão, como pode ser notado:
“São excluídos, definitivamente, os indivíduos que já apresentaram, em alguma fase de suas vidas, as seguintes doenças: Chagas, hepatite, SIDA/AIDS. São excluídos, por 6 (seis) meses, os indivíduos que tiveram contato sexual com portadores da hepatite “B”. São excluídos, por 10 (dez) anos, os parceiras sexuais de indivíduos expostos a fatores de risco para SIDA/AIDS.” (BRASIL, 1989).
No entanto, em 1993 a Portaria nº 1.376, que alterava a lei nº 721 retoma o conceito de exclusão de pessoas não comprovadamente contaminadas com HIV, expondo uma temporariedade de 10 anos como pré requisito para a doação, estendendo-se também aos que já tivessem pertencido ou pertencessem aos grupos considerados de risco quanto a AIDS; como os parceiros sexuais de indivíduos que pertenciam a qualquer grupo de risco (BRASIL, 1993).
Continuando com as alterações, em 2002, a Anvisa editou a Resolução nº 343, relativizando a exclusão prevista na lei nº 1.376, como pode ser percebido no corpo do texto na seção de “situações de risco acrescido”; alínea d:
“Serão inabilitados por um ano, como doadores de sangue ou hemocomponentes, os candidatos que nos 12 meses precedentes tenham sido expostos a uma das situações abaixo: [...] Homens que tiveram relações sexuais com outros homens e as parceiras sexuais destes [...]” (BRASIL, 2002).
A partir do entendimento de ambas instituições, Anvisa e do do Ministério da Saúde, de que homens que realizavam sexo com outros homens deveriam ser classificados como um grupo de risco e, assim, uma medida sanitária de se garantir a qualidade do sangue doado e recebido, consolidava-se o regulamento de caráter técnico dos procedimentos hemoterárpicos no Brasil.
Houve mudanças no cenário epidemiológico ao longo dos anos, acompanhado do progresso na normatização e regulação das doações de sangue no mundo todo. Como pode ser observado, no Brasil, há restrições baseadas na opção sexual dos doadores, quanto a este fato, afirma-se que não houve atualização à luz do direito.
Sucessivamente, as alterações mantiveram a temporariedade que inviabilizaria a doação por homossexuais com o passar dos anos e, atualmente, versa sobre a temática e dá respaldo à ANVISA, a portaria do Ministério da Saúde nº 158 de 4 de fevereiro de 2016, no seu artigo nº 64, inciso IV:
“Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo: [...] IV - homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes [...]” (BRASIL,2016)
É interessante notar a fixação da restrição por 1 ano em uma lei que foi recentemente revisada para adição de novas medidas protetivas aos receptores, porém, sem mencionar e levar em consideração estudos recentes da janela imunológica, o que revela excessiva restrição temporal e, possivelmente, uma justificação da decisão parcial e do pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, discutida posteriormente no presente artigo; como pode ser percebido na Resolução da Diretoria Colegiada nº 34 da ANVISA no seu artigo nº 25:
“Art. 25. O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de doadores estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, visando tanto à proteção do doador quanto a do receptor, bem como para a qualidade dos produtos, baseados nos seguintes requisitos: [...] XXX - os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses após a prática sexual de risco, incluindo-se: [...] d) indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes [...]” (BRASIL, 2014)
Observa-se em ambos excertos normativos supracitados, os resquícios – quando não, o corpo inalterado do texto das matérias – das primeiras medidas sanitárias que versavam sobre o surto epidemiológico do vírus da imunodeficiência adquirida na década de oitenta, que relegou homossexuais à condição de supressão de direitos, à época, justificável pela carência de estudos e conhecimento efetivo acerca da doença; no entanto, tais alegações preventivas, tanto morais quanto sanitárias, não satisfazem atual da realidade de amplo estudo científico e de consolidação de liberdades individuais, culminando na necessidade de revisão perante a corte suprema do Brasil.
Sucintamente, observando o entendimento pelo requerente, quanto a inocuidade dos artigos supracitados, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) protocolou a Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI nº 5.543, com pedido de liminar perante ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra o Ministério da Saúde e a ANVISA, alegando, basicamente, a característica discriminatória da restrição temporal a homens homossexuais e seus parceiros de doarem sangue, respeitados 12 meses de abstinência sexual, que é preconizado pela norma vigente, impedindo a doação permanente por essa minoria.
O Partido alega no pedido que as normas em questão violam preceitos constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o direito à igualdade, e princípio da proporcionalidade, como pode ser notado no excerto a seguir:
“Quanto as normas e princípios constitucionais, o requerente demonstra o que está sendo violado: (I) Princípio fundamental da dignidade humana, presente no art. 1º, III, da Constituição Federal; (II) o objetivo fundamental da República, que consiste em promover o bem de todos sem preconceitos ou formas de discriminação, conforme art. 3º, IV, da CF; (IV) o princípio da igualdade, previsto no art. 5º da Carta Magna e; os requisitos necessários ao atendimento do princípio constitucional da proporcionalidade.” (BRASIL, 2016).
A dignidade da pessoa humana, neste contexto, diz respeito ao direito de autodeterminação, o fato de não se reconhecer a um indivíduo a possibilidade de viver sua orientação sexual em todos os seus desdobramentos é, na realidade, privá-lo de uma das dimensões que dão sentido a sua existência; ainda, de acordo com Barroso (2007), a homossexualidade é apenas um fato da vida, um fenômeno que ocorre naturalmente na vida de diversos indivíduos ao longo de sua existência, assim sendo, as relações homoafetivas constituem fatos lícitos e relativos apenas à esfera privada de cada um, por si só, incapaz de afetar a vida de terceiros (BARROSO, 2007).
O princípio da igualdade no direito brasileiro é interpretado sob uma dupla dimensão, formal (igualdade perante a lei) e material (igualdade na lei); o que significa dentro do panorama da homossexualidade que cada um dos indivíduos deve ser obrigado e autorizado pelas normalizações do direito posto, de forma igualitária, sem exceções, sendo vedado às autoridades estatais deixar de aplicar o direito existente em favor ou à custa de determinadas pessoas, muito menos por suas escolhas de vida (RIOS, 2001).
Quanto a consideração material, diz respeito à proibição de tratamentos desiguais em casos de situações idênticas ou análogas, mesmo que tal diferenciação arbitrária esteja instituída por lei ou norma aparentemente válida, embora a homossexualidade e a bissexualidade sejam fenômenos que se insiram no âmbito da sexualidade e da afetividade humana, da mesma forma que a heterossexualidade (VECCHIATTI, 2012, p.216).
Almeja-se pela restrição temporal o direito fundamental à saúde dos possíveis receptores de sangue, ao protegê-los de possíveis doenças infecciosas transmissíveis. Todavia, ao interpretar a prática sexual entre HSH como situação de risco, é o mesmo que enquadrá-los no conceito de grupo de risco, já abolido pela comunidade científica, caracterizando uma forma de discriminação arbitrária, pois consiste em diferenciação de tratamento entre homens que fazem sexo com homens de homens que fazem sexo com mulheres.
Na fase inicial, durante a triagem clínica, especificamente durante a entrevista individual é questionado ao voluntário sobre a prática de risco e, baseando-se na afirmativa ou negativa, o doador pode ser considerado apto ou inapto temporário sem que tenha o seu sangue previamente analisado e sem ser questionado sobre o uso de métodos seguros, como preservativos.
A proporcionalidade é, justamente, percebida levando se em consideração as finalidades da restrição serem completamente inadequadas, já que não consegue solucionar o problema de forma justa, sem convergir direitos fundamentais, e desnecessária, pois já existem mecanismos menos restritivos que tem a capacidade de atingir o objetivo pretendido, e que não contribuem com a manutenção de estigmas sociais de grupos historicamente discriminados, como o caso dos homossexuais.
Pautado nessas justificativas, o documento da Ação de Inconstitucionalidade inicia apresentando a revisão do contexto histórico da restrição a doação de sangue por homens homossexuais, elenca que o HIV, foi identificado nos primórdios dos anos de 1977 e 1978 no Haiti, compreendendo a América Central, África Central, e nos Estados Unidos, multiplicando-se de forma descontrolada nos anos subsequentes.
À época, em razão do medo e desconhecimento técnico e científico acerca da AIDS, foram restringidas as doações sanguíneas advindas de determinados grupos sociais que representam maior contingente de infectados pelo HIV, dentre eles, os homens homossexuais. E, seguindo este padrão mundial de isolamento e restrição sanitária que o Ministério da Saúde do Brasil editou a Portaria n° 1.366, em 1993, desta forma, proibindo pela primeira vez a doação de sangue por homens homossexuais no Brasil (BRASIL, 2016).
Desde o ano de 2000, a temática da qual trata o presente artigo, o tornou-se bastante debatida em diversos países com configurações socioeconômicas substancialmente diferenciadas, especialmente em função dos avanços no controle da epidemia do HIV, aprimoramentos medicinais e tecnológicos, além da mudança de paradigmas e comportamento nas relações homoafetivas, mas, apesar de todo o reconhecimento mundial destas elucidações, o aparato normativo brasileiro continuou dissonante quanto as demais interpretações do cenário internacional, adquirindo uma feição antiquada, equivocada e, por fim, preconceituosa (BRASIL, 2016).
O PSB traz a luz da discussão que, embora o fato de a Anvisa ter alterado a proibição definitiva e permanente da doação de sangue pelos homens homossexuais para uma restrição temporária de um ano, aparenta, à primeira vista, como um relativo progresso normativo, porém, continuou impedindo a livre doação destes homossexuais, ainda que tenham o mínimo envolvimento em atividade sexual (BRASIL, 2016).
Ainda, o PSB pediu liminar para suspender imediatamente os efeitos da portaria do Ministério da Saúde e da resolução da Anvisa e, no mérito, que tais normas sejam consideradas inconstitucionais. O Partido reitera que a legislação brasileira já exclui a doação de sangue por pessoas que se declarem dentro do entendimento dos formulários ou das entrevistas que precedem o ato da doação com algum sentido de promiscuidade, quer sejam pessoas heterossexuais ou homossexuais (BRASIL, 2016).
Ainda, a matéria traz consigo dados de 2015 do Boletim Epidemiológico da AIDS no Brasil, indicando que heterossexuais correspondem atualmente a cerca de 50% dos casos conhecidos de AIDS, superior aos 45,9% de homossexuais e bissexuais juntos, com a doença, portanto, não se sustentaria a restrição temporal à doação de sangue ao grupo homossexual apenas pela orientação sexual (BRASIL, 2016).
Há de se notar um reconhecimento do próprio Ministério da Saúde quanto a supressão de orientação sexual como critério para selecionar os voluntários através da portaria nº 1.353 de 2011 e, ainda, no art. 2º, § 3º, da Portaria nº158 de 2016, onde preconiza que os serviços de hemoterapia devem isentar-se de quaisquer discriminação de orientação sexual, dessa forma, há a contradição à medida em que se posicionam contra aos homens que se relacionam sexualmente com outros homens (BRASIL, 2016).
Ambas instituições, Anvisa e Ministério da Saúde afirmam que a temporariedade do impedimento de doação é evidenciado por pesquisas epidemiológicas que apontariam risco acrescido de infecção por agentes sexualmente transmissíveis de HSH, portanto, essa medida foi tomada visando o interesse coletivo e assegurando a eficácia de um dos mecanismos protetivos do direito fundamental à saúde, na garantia máxima de qualidade e segurança da transfusão de sangue para o receptor.
A Procuradoria-Geral da República sustenta que o Estado de Direito não pode impor restrições à autodeterminação da pessoa, sob pena de afastar-se de seu centro de identidade. Assim, no tocante ao impedimento de doação de sangue de homens que tiveram relações sexuais com outros homens, configura-se medida discriminatória, uma vez que se pauta exclusivamente na orientação sexual do indivíduo. (JANOT, 2016)
Entende-se, portanto, de acordo com o procurador Rodrigo Janot, um viés discriminatório em relação a Portaria nº 158 de 2016 do Ministério da Saúde e a Resolução 64 de 2014 da ANVISA, estas normas utilizaram o conceito de grupo de risco, o qual remonta ao início da epidemia da AIDS, revelando uma defasagem conceitual e prática, devendo ser substituído pela noção de comportamento de risco, pautado no uso de preservativo e de outros comportamentos protetivos.
O procurador também defende que houve, com o passar dos anos, uma redução da janela imunológica da detecção do vírus HIV no sangue, sendo que o período de 12 meses de impedimento, em suas palavras, ofenderia o princípio da proporcionalidade, já que um prazo de 1 ou 2 meses ultrapassaria a janela imunológica para identificação de doenças sexualmente transmissíveis (JANOT, 2016).
Votaram quanto a procedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade, até o momento, os ministros: Edson Fachin, relator do caso, Ministro Luiz Fux, Ministro Luís Roberto Barroso, Ministra Rosa Weber e o Ministro Alexandre de Moraes; porém, reconhecendo a inconstitucionalidade das normas e procedente a ação, apenas os quatro primeiros, enquanto o Ministro Alexandre de Morares julgou parcialmente procedente o requerimento (BRASIL, 2017).
Em seu entendimento, o Ministro Alexandre de Moraes alegou que não houve um questionamento acerca da legislação de 2001 que trata da política nacional de sangue, componentes e derivados no país (Lei 10.205 e Decreto 3.990), a qual traz maior necessidade protetiva ao doador, ao receptor e aos profissionais envolvidos, o que pode ter dado margem a uma interpretação descontextualizada, favorecendo tais interpretações discriminatórias (BRASIL, 2017).
Adendo à posição de Fachin a respeito da Ação, ele menciona que a comunidade LGBT sofre grande e diária violência física e simbólica, impossível de ser ignorada e que, ainda, “muito sangue tem sido derramado em nome de preconceitos que não se sustentam.” Em seu entendimento, uma exclusão dessa magnitude demanda atenção redobrada, pois, facilmente infringiria fundamentos constitucionais, como o princípio da dignidade humana (BRASIL, 2017).
O Ministro observa que o estabelecimento de grupos de risco não deveria ser acatado para legislar sobre o tema, e sim as condutas de risco, o que evidencia, através do discurso, sua posição favorável a requisição da Ação, já que heterossexuais e homossexuais possuem distintas orientações sexuais porém ambos são potenciais transmissores de doenças (BRASIL,2017).
Ainda, destaca que houve uma violação ao princípio da Igualdade, disposto no art. 5º, da Constituição Federal, pois as normas do Ministério da Saúde e da Anvisa propõe uma distinção entre os doadores de sangue, pautando-se apenas na orientação sexual e o gênero do possível doador.
Em um consenso, os três Ministros, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux, concordaram com a interpretação do Ministro Relator Edson Fachin, julgando inconstitucionais e discriminatórios os dispositivos questionados por não levarem em conta as condutas de risco – como a negligencia aos preservativos – bem como restringir ou não a quantidade de parceiros sexuais, atentando de forma desproporcional e excessiva mediante a temporariedade de abstinência sexual de 12 meses (BRASIL, 2017).
Fux, ainda, corrobora o posicionamento favorável ao requerente de que a janela imunológica abrangeria um tempo menor, entre 10 a 15 dias, o que não é compatível com o prazo preconizado de 12 meses, portanto, interpreta ambas normas tratadas no presente artigo como inconstitucionais; Gilmar Mendes pediu vistas do caso para elaborar um melhor entendimento (BRASIL, 2017).
O Ministro alega que não houve um questionamento acerca da política nacional de sangue, e, de acordo com sua interpretação, conduziria o julgamento do caso sob um contexto errôneo dos fatos analisados, dando a entender claro viés discriminatório contra homens homossexuais.
Em uma análise comparativa, demonstra que em alguns países, a doação de sangue de homens que mantiveram relações sexuais é proibida, por diferentes períodos. Para reforçar seu posicionamento, Moraes trouxe informações do Hemocentro de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, no qual consta que 15,4% de doações realizadas por HSH apresentaram o vírus HIV, índice superior aos 0,03% das demais doações, incluindo outros grupos (BRASIL, 2017).
Diante deste cenário estatístico, Alexandre entende que os dispositivos questionados não visa a discriminação de HSH, mas sim, garantir a proteção à saúde e dignidade humana de pessoas que receberão o sangue. Ao votar, defende que é possível garantir o direito de homossexual doar sangue, mesmo com a restrição.
Portanto, a principal alegação contrária a aprovação da ADI, em análise, é a necessidade de maior questionamento à luz da Constituição, respeitando testes sorológicos de acordo com o interstício da janela imunológica previamente definido pelo Ministério da Saúde, compreendendo o período de cerca de 30 dias.
Devido ao pedido de vista dos autos pelo Ministro Gilmar Mendes, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543 encontra-se suspensa desde o dia 25 de outubro de 2017. Portanto, não houve atualização referente a decisões, divulgada no site do Supremo Tribunal Federal, assim, é indeterminada a data de retorno dos trabalhos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A restrição temporária a doação de sangue por homens homossexuais revelou ser um tema bastante polêmico no tocante a desatualização conceitual acerca dos objetos, razão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5543; tais dispositivos carecem de uma interpretação mais abrangente dentro da Constituição brasileira, não desvinculando o contexto histórico – marginalização, discriminação e repressão, durante a ascensão da AIDS na década de 80 – e atual do público homossexual.
Apesar de ser compreendido pelos Ministros do STF o prazo de 12 meses de abstinência sexual, um avanço normativo muito maior do que o preconizado pela Portaria 1.376 de 1993, que proibia definitivamente homossexuais à doação de sangue, a questão carece de revisão sob a ótica da tecnologia já existente para a determinação sorológica do HIV em uma janela imunológica de tempo muito menor ao previsto na lei vigente, visando assegurar o direito dos receptores à saúde, respeitando o princípio da proporcionalidade.
O quadro atual de defasagem dos estoques em hemocentros espalhados pelo país, mostra um outro motivo para rever a situação do público homossexual na contribuição do quantitativo de bolsas de sangue disponíveis, uma vez que os testes sorológicos, que discriminam contaminações nos sangues de homens heterossexuais, homossexuais e bissexuais, são os mesmos.
Impor uma restrição no ato da entrevista, pautando-se na orientação sexual como pré-requisito e, não em um comportamento de risco, como relações sexuais desprotegidas, é discriminatório, desrespeita os princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana, na medida em que as nuances da sexualidade humana se revelam inerentes e obrigatórias a cada um e, ao passo que é possível omitir as informações no ato da entrevista que precede a doação, o que revela certa inocuidade de tais métodos.
Apesar da suspensão da Ação pelo STF, é possível, mediante ao entendimento dos Ministros que se pronunciaram em votação, traçar uma tendência dos votos restantes que margeiam a adoção de critérios de condutas de risco e situação da saúde do candidato a doação, não de orientação sexual dos mesmos, convergindo com uma posição favorável ao requerente.
A demora no julgamento da ADI revela o cenário atual da falta de celeridade que acomete as instituições públicas no país, tornando questionável a capacidade de tomada de decisões dos poderes públicos e, ainda, possibilita um questionamento acerca de posturas conservadoras presentes no Legislativo e no Executivo e o interesse de editar normas de interesse de grupos sociais e minorias do Brasil.
7 BIBLIOGRAFIA
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Bacharelanda do curso de Direito da Universidade Brasil - Fernandópolis - SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENEZES, Maria Helena de. Restrição à doação de sangue por homens homossexuais: uma revisão da ADI nº 5.543 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 maio 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52935/restricao-a-doacao-de-sangue-por-homens-homossexuais-uma-revisao-da-adi-no-5-543. Acesso em: 22 nov 2024.
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