MARCIA KAZUME PEREIRA SATO
(Orientadora)
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo de discorrer acerca do direito de retificação de nome e gênero a que fazem jus as pessoas transexuais, tendo em vista que, nestes indivíduos há incongruência entre o gênero psíquico e biológico. Será feita uma breve abordagem sobre os conceitos de sexo, gênero e mais especificamente acerca de identidade de gênero, uma vez que o termo transgênero se refere a identidade de gênero, e não a orientação sexual. Por conseguinte, este trabalho dará enfoque aos direitos da personalidade à luz da transexualidade, sob a ótica civil constitucionalista. Serão demonstradas a discussão doutrinária sobre a questão e as dificuldades da retificação do prenome e sexo no registro civil dos transgeneros, pois há carência legislativa específica em relação ao tema, ocasionando, na prática, desproteção, preconceitos e consequentemente, exclusão destes cidadãos do convívio em sociedade. Por fim, será dado ênfase ao Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça, que regulamentou a alteração da certidão de nascimento sem a obrigatoriedade da comprovação da cirurgia de mudança de sexo nem de decisão judicial, entretanto, reflete-se que a plena concretização dos direitos e garantias fundamentais preconizados pela Constituição ainda está longe de ser alcançada.
Palavras-chave: Identidade de gênero; Retificação de nome e gênero; Direitos da personalidade.
ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the right of rectification of name and gender to which transsexual people are entitled, given that in these individuals there is an incongruity between the psychic and biological genres. A brief discussion will be given on the concepts of gender, gender and, more specifically, gender identity, since the term transgender refers to gender rather than sexual orientation. Therefore, this work will focus on the rights of the personality, from the standpoint of civil constitutionality, taking into account, in particular, the principle of the dignity of the human person. Next, the topic of rectification of the name and sex in the civil registry of the transgender people is addressed, and finally, emphasis will be given to the Provision 73 of the National Council of Justice, which regulated the change of the birth certificate without the obligatory verification of the surgery of change of sex nor of judicial decision, allowing that the subject happens to be standardized nationally, and transmit and legal security.
Keywords: Gender identity; Rectification of name and gender; personality rights.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO 1.1 Considerações acerca de sexo e gênero 2. IDENTIDADE DE GÊNERO E TRANSEXUALIDADE 3. DIREITOS DA PERSONALIDADE 4. A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL E O PROVIMENTO 73 DO CNJ 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 6. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A formação da identidade de gênero não origina-se apenas de determinismo biológico. Trata-se de uma experiência individual, que pode ou não corresponder ao sexo biológico.
Este artigo reflete acerca da divergência do estado psicológico do transexual em relação a seus documentos, e a dificuldade a pessoa transexual encontra ao garantir que seus direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente previstos, sejam efetivados.
Inicialmente, se faz necessário conceituar institutos importantes ao deslinde do tema, tais como sexo e gênero. Em seguida, adentra-se no conceito de identidade de gênero e transexualidade, direcionando a abordagem das peculiaridades da questão à uma análise jurídica.Além disso, será feita analise dos direitos da personalidade sob a ótica aos transgeneros, que são aplicados neste complexo cenário, haja vista que é dever do Estado tutelar pela saúde de todos, abrangendo bem-estar físico, mental e social.
O presente artigo será finalizado demonstrando-se a relevância do advento do Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça, que regulamentou, a nível nacional, a alteração de nome e gênero extrajudicialmente, refletindo-se que não há garantia de efetivação dos direitos da personalidade, bem como do princípio da dignidade humana, se não houve consonância entre nome, sexo e identidade psíquica do indivíduo.
1.1 Considerações acerca de sexo e gênero
Primeiramente, é imprescindível esclarecer os conceitos de sexo e gênero, e estabelecer suas principais diferenças.
O sexo corresponde às características biológicas que são os aparelhos reprodutores, seu funcionamento e às características decorrentes dos hormônios. O que determina as fêmeas é que estas têm vagina/vulva e os machos têm pênis, o que não determina a identidade de gênero, tampouco, a orientação afetiva sexual da pessoa.
Percebe-se que sexo é consubstanciado a partir de uma concepção biológica, remetendo-se ao conceito de gênero, feminino e masculino. Por outro lado, sexualidade ultrapassa o corpo físico, desenvolvendo-se através da cultura e história do homem. A Organização Mundial da Saúde assinala:
A sexualidade forma parte integral da personalidade de cada um. É uma necessidade básica e um aspecto do ser humano que não pode ser separado dos outros aspectos da vida. Sexualidade não é sinônimo de coito e não se limita à presença ou não do orgasmo. Sexualidade é muito mais do que isso, é a energia que motiva a encontrar o amor, o contato e a intimidade e se expressa na forma de sentir, na forma de as pessoas tocarem e serem tocadas. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e tanto a saúde física como a mental. Se a saúde é um direito humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada como um direito humano básico.
A definição sexo engloba diversos elementos: sexo cromossômico (XX ou XY), sexo gonodal (ovários ou testículos), sexo genital (vagina ou pênis), sexo morfológico (seios ou pelos no rosto), sexo psicológico (sentimento de identificação da pessoa), sexo social (influências externas das regras de comportamento socialmente definidas) e sexo jurídico (constante no Registro Civil, de acordo com aparência anatômica externa do recém-nascido
Em contrapartida, conceitua-se gênero como uma construção social na qual é atribuída inúmeras características para diferenciar homens e mulheres.
Imprescindível registrar trecho do livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.
Outrossim, é caracterizado por grande subjetividade, a julgar por sua essência é cultural e social. Influenciam na formação do gênero, ao longo de toda a vida, as instituições sociais como a família, a escola, a igreja, entre outros.
É notório na vivência em sociedade atualmente que transexuais são vítimas de preconceito e discriminação pois não se enquadram no gênero em que nasceram, e não são socialmente aceitos por possuírem uma característica física que lhes nega suas identidades: a genitália do oposto. Diante disso, Maria Berenice Dias conclui que vincular comportamento ao sexo, gênero à genitália, definindo o feminino pela presença da vagina e o masculino pelo pênis, remonta ao século XIX quando o sexo passou a conter a verdade última de nós mesmos
2. IDENTIDADE DE GÊNERO e TRANSEXUALIDADE
O fato de um indivíduo ter um conjunto de combinações cromossômicas, órgãos genitais e características reprodutivas e fisiológicas determinadas, não o define como sendo do gênero feminino ou masculino. Isso decorre de uma experiência individual, que pode ou não corresponder ao sexo biológico.
De acordo com cartilha divulgada pelo movimento Livres & Iguais da Organização das Nações Unidas (ONU), a identidade de gênero se baseia na experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero, na qual pode se apresentar como homem, mulher, ambos ou mesmo como nenhum dos dois gêneros a partir de uma distinção sociológica.
Identidade de gênero nada mais é que o sentimento interior de uma pessoa quanto ao gênero que lhe foi dado no registro de nascimento. Caso haja consonância desses fatores, denomina-se que o indivíduo é cisgênero. Pelo contrário, quando há contraste entre a identidade interior e a registral, encontrando-se a pessoa em desacordo com a conduta psicossocial que a sociedade espera de pessoas do seu sexo biológico, o indivíduo é chamado de transgênero, transexual ou pessoa “trans”.
Maria Berenice Dias explana que a pessoa trans é aquela que não se reconhece de forma correspondente ao seu sexo biológico, sendo o homem transexual aquele que nasceu com a genitália feminina, mas não se identifica com ela e a mulher transexual, aquela que nasceu com a genitália masculina, mas, igualmente, não se identifica com esta.
Maria Helena Diniz assim conceitua transexualidade:
“É a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama jurídico-existencial por haver uma cisão entre a identidade sexual física e psíquica. É a inversão da identidade psicossocial, que leva a uma neurose racional obsessivo compulsiva, manifestada pelo desejo de reversão sexual integral. Constitui, por fim, uma síndrome caracterizada pelo fato de uma pessoa que pertence, genotípica e fenotipicamente, a um determinado sexo ter consciência de pertencer ao oposto. O transexual é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a automutilação ou auto-extermínio. Sente que nasceu com o corpo errado”.
Os indivíduos transgêneros podem optar pela cirurgia de adequação sexual, tratamento hormonal, ou mesmo não ter recebido qualquer procedimento. Frisa-se que tais procedimentos não são necessários para caracterizar a transexualidade.
Importante destacar que a identidade de gênero difere da orientação sexual, visto que a última é a atração afetiva e/ou sexual que se sente por outros indivíduos. As orientações sexuais comuns são Homossexualidade, que é a atração emocional, afetiva ou sexual por pessoa do mesmo gênero; Heterosexualidade, por pessoas do gênero oposto; Bissexualidade, por indivíduos dos dois gêneros, e ainda assexualidade, quando há ausência de atração sexual por pessoas de ambos os gêneros.
Em 2018, a Organização Mundial da Saúde retirou a transexualidade da lista de doenças ou distúrbios mentais. Entretanto, permanece na CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) como incongruência de gênero na categoria relativa à saúde sexual.
Em nota publicada no site oficial, a OMS entendeu:
A lógica é que, enquanto as evidências são claras de que (a transexualidade) não é um transtorno mental, de fato pode causar enorme estigma para as pessoas que são transexuais e, por isso, ainda existem necessidades significativas de cuidados de saúde que podem ser melhores se a condição for codificada sob a CID.
A ideia de que a transexualidade era patologia foi construída com base em discurso arcaico, limitador e opressor sobre a ideia de gênero. Percebe-se que infelizmente, a questão dos transgêneros ainda é deixada de lado, tendo poucos avanços para essa parte da população viver plenamente em sociedade.
Grande conquista alcançada na luta pelo reconhecimento dos direitos das pessoas transexuais, vulneráveis perante a sociedade, foi a designação do Dia da Visibilidade Trans, em data de 29 de janeiro.
Acerca do tema, Tatiana Lionço pondera:
A mudança de sexo vai além da vontade ou de um mero desejo de ser alguém do sexo oposto. O comportamento é originado da infância e a medicina está padronizando um comportamento, mas os sujeitos são diversos, pois a mesma condiciona a transexualidade ao desejo de fazer a cirurgia, mas nem sempre a transexualidade foi objeto do poder médico, e nem todos os transexuais encontram na cirurgia a resolução de todos os seus problemas, visto que cada indivíduo possui uma história diferente.
De acordo com informações divulgadas pelo IBGE em dezembro de 2016, a expectativa de vida da população transexual brasileira é de apenas 35 anos, metade da média geral da população. Mediante estudo realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), observou-se que cerca de 90% da população transexual estão na prostituição, 5% no mercado formal e as demais na informalidade, principalmente na rede de cuidados com a estética (salão de beleza, maquiadoras e etc) ou no comércio ambulante.
Na luta pela concretização de direitos e pela vivencia da plena cidadania, os trans são deixados de lado e esquecidos. Percebe-se que o transexual se vê diante de obstáculos que não estão ao alcance dos profissionais de saúde: a carência de legislação específica acerca dessa população minoria, e portanto, vulnerável. Diante disso, quando o indivíduo se depara com outra identidade de gênero, ou seja, diversa do sexo biológico constatado no registro de nascimento, faz-se imprescindível a adequação na qualificação jurídica desta pessoa.
3. DIREITOS DA PERSONALIDADE
Consoante entendimento de Limonge França, tratam-se de faculdade jurídicas cujos objetos são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito – caracteres físicos, psíquicos e morais – bem como seus prolongamentos e projeções.
O princípio da Dignidade da Pessoa Humana perfaz o principal fundamento jurídico para os direitos da personalidade, não podendo a dignidade humana não pode ser medida, dependendo, portanto, do mínimo existencial.
Atualmente, a Dignidade da Pessoa Humana é considerada um valor constitucional, o que demostra que as situações jurídicas presentes nas vidas das pessoas ampliam-se cada vez mais, o que se reflete, de forma mais aprofundada e sensível no reconhecimento dos direitos da personalidade.
O enunciado 274 da CJF/STJ estipulou que “os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da clausula geral de tutela da pessoa humana, consubstanciada no princípio da dignidade da pessoa humana, expresso no art. 1º, III, da Carta Magna. Caso haja conflito entre eles, como não pode haver prevalência de nenhum, deve ser aplicada a técnica da ponderação.
Podem ser classificados em adquiridos, em decorrência do status individual, e inatos, que sobrevalecem a qualquer condição legislativa. A título exemplificativo, o direito ao nome e a integridade moral.
Tartuce explana:
[...] os direitos da personalidade são qualidades que se agregam ao próprio ser humano, sendo, portanto, intransmissíveis, irrenunciáveis, extrapatrimoniais e vitalícios, cuja norma jurídica permite a defesa contra qualquer modo de ameaça.
O nome é um sinal indicador dentro da sociedade, sendo relevante não só ao seu titular, assim como ao reconhecimento de cada indivíduo dentro da sociedade em que vive.
A respeito do direito ao nome, à luz da identidade, Vitor Almeida entende:
Depreende-se, portanto, que não é de hoje que a proteção ao nome da pessoa convive, de um lado, com o interesse social, em que surge a obrigação de uso do nome como instrumento de identificação no meio social e familiar, e de outro, sua afirmação enquanto direito, que se desdobra nas faculdades de uso, defesa e reivindicação. Diante desse contexto, é que se afirma que o nome é um misto de direito e obrigação.
Para Pontes de Miranda, a função identificadora do nome não é, por si só, justificativa para considera-lo inalterável, porque nenhum princípio jurídico determina a imutabilidade de prenome e sobrenome, cabendo a cada sistema jurídico adotar, por tradição, a regra da proibição da modificação do prenome
O Pacto San José da Costa Rica estabelece, no art. 18, que todos têm direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes, devendo a lei regular a forma de assegurar a todos esses direitos, mediante nomes fictícios, se for necessário.
O nome possui ainda aspectos primordiais à natureza personalíssima, tais como inalienabilidade, imprescritibilidade, exclusividade e indisponibilidade.
O prenome apenas pode ser alterado excepcionalmente, haja vista representar a identidade e identificação das pessoas no meio social, com fundamento no artigos 56 a 58 da Lei de Registros Públicos: “Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos e notórios”.
No que diz respeito à imutabilidade do nome, trata-se de direito relativo, e não absoluto, isto porque a Lei de Registros Públicos, em seu artigo 56, admite pedido de alteração de nome no primeiro ano depois de completada a maioridade civil. Em regra, a referida lei permite ainda, excepcionalmente, alteração posterior do nome, desde que motivada e autorizada por decisão judicial. A respeito da inalterabilidade do nome de pessoas trans.
Roxana Borges assinala:
[…] a ratio que fundamenta a regra da imutabilidade do nome não está, historicamente, ligada à proteção dos direitos da personalidade, mas à proteção de interesses (legítimos) de terceiros, o que, estranhamente, não se coaduna com os fundamentos, nem com as finalidades dos direitos de personalidade. […] Mais do que ser um elemento que integra o estado da pessoa, o direito ao nome é um direito de personalidade, e, assim considerado, volta-se mais aos interesses da própria pessoa titular do nome do que aos interesses de terceiros. Aí reside a possibilidade de exercício de certa autonomia jurídica sobre o direito ao nome.
O princípio da imutabilidade do nome deve ser relativizado quando for inequívoco o interesse individual e, inclusive, o benefício social da modificação, considerando-se que a verdade do registro civil originário já não é mais a verdade da vivência pessoal, nem da social da pessoa trans.
4. A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL E O PROVIMENTO 73 DO CNJ
São incontáveis as situações vexatórias que um transexual, mesmo se identificando e sendo identificado como mulher, passa ao ter se identificar perante à sociedade com o nome constante em seu registro de nascimento, gerando graves consequências nas nas mais diversas relações sociais do cotidiano, inclusive, obrigando-o a abandonar os estudos e a exclusão do mercado de trabalho formal.
Infelizmente, a burocracia jurídica e as dificuldades do acesso à justiça impossibilitam a efetivação dos preceitos constitucionais.
Todavia, um passo importante na mudança desse cenário de repleto de adversidades e preconceitos foi dado através de memorável decisão do Supremo Tribunal Federal, que, em agosto de 2018, no julgamento da ADI n. 4.275, entendeu ser cabível a retificação de registro civil de pessoa transgênero diretamente pela via administrativa sem a necessidade de prévia autorização judicial, e independentemente de realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Trata-se de avanço histórico, porque anteriormente à essa decisão, somente era permitido alterar o prenome e sexo constantes do registro de nascimento os transexuais que se submetessem a cirurgia de redesignação sexual e buscassem a via judicial para obterem a devida alteração no assento de nascimento.
Consiste a cirurgia de redesignação sexual ou de transgenitalização nos procedimentos cirúrgicos denominados neocolpovulvoplastia e neofaloplastia, permitindo a mudança do aparelho sexual, ocasionando tão somente em alterações estéticas, e não genéticas.
Trata-se de grave violação ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e aos direitos da personalidade obrigar uma pessoa a possuir um nome que não condiz com seu gênero, mas tão somente ao seu sexo, e também a realizar a cirurgia de redesignação sexual, tendo em vista que esta cirurgia não é essencial para que a pessoa seja considerada transexual.
A partir do julgamento do STF, foi editada pelo Conselho Nacional de Justiça o Provimento 73, que não possui força de lei, porém surgiu no ordenamento jurídico para preencher a lacuna legislativa existente sobre a questão.
De acordo com o Provimento 73, são legitimados a requerer mudança do nome e do gênero, qualquer pessoa maior de 18 anos completos, habilitada à prática de todos os atos da vida civil. Ressalta-se que a referida retificação também pode compreender a inserção ou a retirada de agnomes caracterizador de gênero ou descendência. Além disso, sobrenomes não podem ser excluídos.
O requerimento pode ser realizado propriamente no ofício do Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN) em que o registro de nascimento foi feito ou em cartório diverso, e, neste caso, conforme disposto no art. 3º, parágrafo único, deverá o registrador encaminhar o procedimento ao oficial competente, às expensas da pessoa requerente, para a averbação pela Central de Informações do Registro Civil (CRC).
O art. 4º, caput, deixa claro que a referida alteração será realizada com base na autonomia da pessoa requerente, devendo a pessoa, neste ato, declarar a inexistência de processo judicial que tenha por objeto a alteração pretendida. Poderá ser desconstituída na via administrativa, mediante autorização do juiz corregedor permanente, ou na via judicial.
De suma importância o disposto no art. 4º, §1º:
“O atendimento do pedido apresentado ao registrador independe de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico.”
O art. 4º, §3º do Provimento estipula uma enorme lista de apresentação dos documentos, contando com 17 incisos. Maria Berenice Dias critica a exigência de tantos documentos, e ressalta que quando em casos similares, como quando a mulher adere o apelido de família do marido após o casamento, nenhum documento é exigido.
Merece destaque o art. 4º §7º, que lista os documentos facultativos:
§7º: Além dos documentos listados no parágrafo anterior, é facultado à pessoa requerente juntar ao requerimento, para instrução do procedimento previsto no presente provimento, os seguintes documentos:
I – laudo médico que ateste a transexualidade/travestilidade;
II – parecer psicológico que ateste a transexualidade/travestilidade;
III – laudo médico que ateste a realização de cirurgia de redesignação de sexo.
O procedimento previsto pelo Provimento 73 possui natureza sigilosa, sendo assim, é vedado constar no registro a alteração. São exceções a essa regra, a solicitação da pessoa requerente ou por determinação judicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo registral.
Havendo dúvida no tocante ao desejo real da pessoa requerente, o registrador poderá recusar o pedido, em decisão fundamentada, encaminhando-o ao juiz corregedor permanente.
Por fim, ressalta-se que o procedimento de retificação do registro ocorrerá às expensas da pessoa requerente, sendo posteriormente comunicado, mediante ao oficial, os órgãos do RG, ICN, CPF e passaporte, assim como ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE).
O art. 7º, §2º e seguintes, faz menção a alteração no registro dos descendentes e cônjuge da pessoa trans:
§2º: A subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente dependerá da anuência deles quando relativamente capazes ou maiores, bem como da de ambos os pais.
§3º: A subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de casamento dependerá da anuência do cônjuge.
§4º: Havendo discordância dos pais ou do cônjuge quanto à averbação mencionada nos parágrafos anteriores, o consentimento deverá ser suprido judicialmente
Dessa maneira, independente de realização de cirurgia, o indivíduo transgênero busca forma de viver sua própria vida com dignidade e em busca de seu bem estar, não devendo a transexualidade ser tratada como doença, sendo legítima o uso do nome e gênero a que se identificam.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há como garantir a dignidade humana e a concretização dos direitos da personalidade, se uma pessoa têm socialmente um nome e um sexo que estão em completa dissonância com sua identidade de gênero, de como reconhece a si mesmo, tornando-se imperiosa a adequação do registro civil.
A retificação de prenome e gênero do assento civil consubstancia passaporte para os transgêneros se inserirem na sociedade conforme o sentimento que possuem de si mesmas.
Como discorrido ao longo do trabalho, o julgamento do STF e a posterior edição do Provimento 73 do CNJ não são os meios ideais para garantirem efetivamente os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos transgêneros, sendo necessário a edição de lei específica para preencher a lacuna existente sobre o tema.
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Bacharelanda do curso de Direito pela Universidade Brasil Campus Fernandópolis.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Bárbara da Cruz. Identidade de gênero e o direito à retificação de nome e gênero no registro civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 maio 2019, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/52957/identidade-de-genero-e-o-direito-a-retificacao-de-nome-e-genero-no-registro-civil. Acesso em: 22 nov 2024.
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