Resumo: Este artigo tem por fim demonstrar a inconstitucionalidade de determinadas decisões do Supremo Tribunal Federal, apontando o risco institucional que representam em razão de seu caráter antidemocrático.
Palavras-chave: Ativismo judicial. Democracia. Reserva legal.
Abstract: This paper intends to demonstrate the unconstitutionality of certain decisions of the Brazilian Supreme Court and to point out the institutional risk they represent due to its antidemocratic nature.
Keywords: Judicial activism. Democracy. Strict legality.
Sumário: 1. Introdução. 2. STF – Legislador e Constituinte. 3. “Sentença penal incriminadora”; 3.1. Princípio da Legalidade e Estado Democrático de Direito; 3.2 Separação dos Poderes. 4. Soluções. 5. Conclusão.
1 Introdução
Na maior parte da História do Brasil, segundo Rodrigo Brandão[1], o Poder Legislativo teve precedência sobre o Judiciário. O autor afirma que, antes da Constituição de 1988, este se limitava a chancelar as deliberações do Legislativo por meio de sentenças e acórdãos que simplesmente cumpriam a lei. Após a nova Constituição, paulatinamente o Supremo Tribunal Federal foi assumindo postura mais ativista. Mais recentemente, porém, a Corte passou a ocupar o espaço do legislador, criando normas – como no caso do aborto de fetos anencéfalos, em que acrescentou uma hipótese de ilicitude inexistente no Código Penal (ADPF 54). Chegou até mesmo a decidir contra texto expresso da Constituição no caso em que “legalizou” a união estável e, consequentemente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo.[2] Como sói acontecer, um movimento pendular levou-nos de um extremo – supremacia do Legislativo – ao outro – supremacia do Judiciário. Houve uma hipercorreção, tendo o Poder Judiciário partido da omissão (ou, de outra perspectiva, da autocontenção) à usurpação da função legislativa. É preciso agora encontrar um meio-termo, um equilíbrio condizente com a Constituição.
2 STF – Legislador e Constituinte
Neste artigo, serão abordados três casos que chamam a atenção.
Em maio de 2011, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, o STF estabeleceu que os artigos do Código Civil que disciplinam a união estável devem incidir sobre a união de casais do mesmo sexo, em inegável contrariedade ao artigo 226 da Constituição, que restringe o instituto a casais heterossexuais, ao argumento de que a expressão “entre o homem e a mulher” é exemplificativa.
Pouco mais de cinco anos depois, em novembro de 2016, no Habeas Corpus 124.306/RS, a Primeira Turma do STF, liderada pelo Ministro Roberto Barroso, “revogou” os artigos 124 e 126 do Código Penal no que tange aos três primeiros meses de gestação, ao absolver os réus, acusados de aborto, calcando-se em princípios constitucionais.
Agora, em 2019, o ímpeto legiferante do Judiciário alcança o Direito Penal, com o STF avaliando a possibilidade de criar, ele próprio, um tipo penal ao decidir a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e o Mandado de Injunção (MI) 4733, sob o pretexto de suprir uma suposta omissão inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia.
No que diz respeito ao aborto, os artigos 126 e segs. do Código Penal refletem a opinião da larga maioria dos brasileiros[3], sem vilipendiar os direitos de nenhuma minoria, e não violam, de maneira inconteste, nenhum princípio ou norma constitucional. Se por um lado há argumentos jurídicos favoráveis à posição do Ministro Barroso, também os há em relação à posição contrária – por exemplo: parcela da doutrina civilista filia-se à teoria concepcionista, entendendo que, para o Direito Brasileiro, a personalidade jurídica é adquirida no momento da concepção.[4] Sendo assim, diante de duas interpretações igualmente defensáveis da Constituição, o Estado Democrático de Direito parece impor a adesão àquela que se alinha com o desejo da maioria e, mais importante, é secundum legem.
Os Ministros servem-se de princípios constitucionais, dos quais deduzem o consectário que lhes permita decidir em determinado sentido, ainda que a lei ou até mesmo a Constituição ofereça uma solução inequívoca ao caso. Esquecem-se de que, como esclarece Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “[...] a densificação dos princípios, numa democracia, cabe ao Poder Legislativo, não ao juiz. Este, quando o faz, cria norma ad hoc para o caso concreto, podendo resvalar para a arbitrariedade.”[5] E, ao julgarem com base num princípio um caso que encontraria solução numa regra, afastam-se da democracia.[6]
Mas por que os Ministros haveriam de refrear-se de legislar se o Tribunal Pleno já se arvorara em constituinte ao apreciar a ADI 4277 e a ADPF 132? Afinal, quem pode o mais pode o menos.
De fato, com essa decisão, os Ministros do Supremo fizeram tábula rasa não só do dispositivo que era parâmetro do controle de constitucionalidade nas ações em apreço, mas também daqueles que preveem o procedimento de emenda à Constituição. Esta, por ser rígida[7], não tolera alterações nem sequer pela maioria simples dos 594 membros do Congresso Nacional. Por que as admitiria pela caneta de onze ou seis indivíduos que sequer foram eleitos? Acrescente-se o fato de que um entendimento minoritário pode tornar-se majoritário com a mera substituição de um único Ministro, depositando-se enorme poder em uma só pessoa[8][9].
A própria Corte, no julgamento da ADI 815, rejeitara a possibilidade de declarar inconstitucionais dispositivos inseridos pelo Poder Constituinte originário (tese das normas constitucionais inconstitucionais de Otto Bachof), rechaçando a existência de hierarquia entre as normas constitucionais originárias. Com isso, assentara que as cláusulas pétreas não poderiam ensejar a inconstitucionalidade de normas constitucionais originárias porque aquelas serviriam de barreira apenas ao Poder Constituinte derivado. Não obstante, o entendimento exarado no julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132 tem o mesmo efeito prático de uma declaração de inconstitucionalidade do artigo 226, parágrafo 3º, que contém uma norma constitucional originária.
Convém salientar, ainda, que a Constituição carrega as escolhas políticas feitas pelo povo, de quem todo o poder emana (artigo 2º). Ao STF não é dado substituir essas decisões pelas suas próprias, sob pena de usurpar o poder de seu legítimo detentor.[10] Ainda que a eventual vagareza do processo democrático possa significar que as mudanças desejadas serão postergadas, abandonar o debate, a persuasão, a negociação e a conciliação (compromise) em benefício de atalhos significa afastar-se da democracia – cujas falhas são inegáveis, mas que não possui substituto superior.
De resto, não há motivo para que os valores acolhidos pelos Ministros do STF sobreponham-se àqueles escolhidos pelo constituinte – representante designado pelos governados para tanto – há apenas 30 anos[11] São eles providos da superioridade moral dos guardiães de Platão? A propósito, cabe lembrar que os filósofos que afirmaram a existência de “juízos morais absolutos” e objetivos como proposições matemáticas “fracassaram de maneira patente em demonstrar a condição absoluta e objetiva de quaisquer juízos morais específicos.”[12] Claro que tampouco é satisfatória a ideia de que a moral é inteiramente subjetiva, mas, “entre os dois extremos, há uma série de alternativas que abrem espaço para o debate, baseado na razão e na experiência humanas.”[13] E esse debate deve dar-se na esfera pública e por meio da política. Se os valores aceitos pela maioria tiverem mudado, que o próprio povo explicite a mudança[14] por meio do instrumento adequado, a Emenda Constitucional, cujo procedimento visa justamente ensejar uma discussão ampla e profunda antes de uma alteração da Constituição. E tanto aqueles que são contrários quanto aqueles que são favoráveis ao reconhecimento do casamento entre homossexuais têm representantes eleitos para expor seus pontos de vista no Congresso Nacional. Além disso, até mesmo uma decisão cujo conteúdo é benéfico pode mostrar-se contraproducente se tomada precipitadamente – ou seja, sem que haja um consenso popular –, pois tende a gerar uma “polarização no debate político, já que os perdedores não se sentirão reconhecidos pelo projeto constitucional e tenderão a radicalizar seus discursos políticos.”[15]
Ignorar o flagrante desrespeito à Constituição no caso das uniões homoafetivas – e, o mais grave, por ninguém menos que o guardião da mesma –, em nome de um bem maior ou de um conceito de justiça, equivale a aceitar a premissa de que os fins justificam os meios.[16] E, conforme adverte Robert A. Dahl,
Levada às últimas consequências, a afirmação insistente de que os resultados substantivos têm precedência sobre os processos torna-se uma justificativa abertamente antidemocrática da guardiania e a democracia substantiva torna-se um rótulo enganoso para algo que é, na verdade, uma ditadura. (DAHL, 2012, p. 257).
O curioso é que muitos progressistas, que antes criticavam a previsão da “moral e dos bons costumes” como parâmetro decisório, agora louvam decisões judiciais antidemocráticas porque elevam à categoria de norma sua própria visão do que é moral no momento. “Assim, o Judiciário assume um papel de ‘tutor da política, um superpoder quase constituinte’, ‘guardião da moral e dos bons costumes, uma espécie de sucessor do Poder Moderador’”.[17] Aparentemente presumem que suas ideias sempre serão encampadas e, portanto, impostas se necessário, pelos que estão no poder, por meio de um “despotismo benevolente”[18].
O que ignoram é que, quando a composição do Tribunal se alterar, a concepção dos novos membros acerca do que é moralmente aceitável pode ser radicalmente diferente. A História da Suprema Corte dos Estados Unidos contém inúmeros exemplos do fato de que juízes de inclinação conservadora também podem incorrer em ativismo, demonstrando que “a supremacia judicial em si é oca”[19]. Um caso bem conhecido é o da lei do Estado de Nova Iorque que impunha limites de horas de trabalho e foi julgada inconstitucional pela Suprema Corte por violar a liberdade contratual[20]. A verdade é que todo juiz é propenso a enxergar na Constituição suas próprias preferências e a considerar que é deletério apenas o ativismo que impõe valores diversos dos seus.[21] Por isso, advertiu George Washington:
But let there be no change by usurpation; for though this, in one instance, may be the instrument of good, it is the customary weapon by which free governments are destroyed. The precedent must always greatly overbalance in permanent evil any partial or transient benefit which the use can at any time yield. (Transcript of President George Washington's Farewell Address).
No mesmo espírito é o alerta de Alex de Tocqueville, no famoso “Democracy in America”, sobre o que lhe pareceu um excessivo poder confiado à Suprema Corte americana:
“The President, who exercises a limited power, may err without causing great mischief in the State. Congress may decide amiss without destroying the Union, because the electoral body in which Congress originates may cause it to retract its decision by changing its members. But if the Supreme Court is ever composed of imprudent men or bad citizens, the Union may be plunged into anarchy or civil war.” (grifos nossos) (TOCQUEVILLE, posição 3401)
Se o STF pode desconsiderar uma norma constitucional originária para criar direitos que reputa justos, não há argumento jurídico capaz de obstar a adesão, por outra composição, por exemplo, da Análise Econômica do Direito (Law and Economics), que – numa descrição reducionista – vê no Direito um mero instrumento para o crescimento econômico[22]. Seria inútil alegar que essa perspectiva não está em consonância com o modelo adotado pela Constituição de 1988, tendo em vista o precedente do STF. E é perfeitamente possível imaginar argumentos favoráveis: por exemplo, a Constituição garante uma série de direitos sociais que o Poder Público somente poderá suprir se conseguir fazer a economia crescer, gerando emprego e aumentando arrecadação de tributos. E quem melhor para ditar o caminho do crescimento econômico do que as leis da Economia? Há divergências quanto à abordagem mais eficaz para alcançar esse fim? Certamente. Assim como há ideias conflitantes em relação aos temas citados nos parágrafos anteriores, ideias essas que foram solenemente ignoradas pelo STF.
Uma vez acatada a possibilidade de que o STF edite “lei” cujo conteúdo não se coaduna com dispositivo constitucional, não caberão protestos se porventura Ministros de matiz ideológico diverso fizerem o mesmo[23]. Como impedir que a Corte legisle quando discordamos de seus entendimentos se a deixamos livre para fazê-lo quando aprovamos o resultado? Os defensores da supremacia judicial talvez argumentem que o critério para distinguir o “legítimo” ativismo judicial do ilegítimo seria a defesa de direitos fundamentais: se a Corte não atuasse no sentido de promovê-los, estaria desrespeitando a própria razão da sua existência. Ocorre que a concepção de defesa de direitos fundamentais poucas vezes é unânime e geralmente revela uma visão de mundo. Além disso, a concessão de um direito a um indivíduo ou grupo pode acarretar a restrição ou mesmo violação do direito de outro. O Canadá oferece um exemplo emblemático disso[24]. A Suprema Corte daquele país, no caso O’Connor, decidiu que, em nome do direito à defesa, o réu acusado de abusos sexuais deveria ter acesso aos registros das sessões de terapia de suas vítimas. O direito à privacidade de vítimas de abuso sexual foi afastado em benefício do suposto agressor. A regra, porém, foi revertida pela população graças a um mecanismo que a legislação canadense possui. Resta claro, portanto, que a questão não é simples como querem alguns.
3 “Sentença penal incriminadora”
Muito mais graves, contudo, são as ações que visam fazer incidir a Lei 7.716/89, que prevê crimes de racismo, sobre condutas que não guardam nenhuma relação com “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (art. 1º), criando, na prática, um novo tipo penal. Quando menos, pretende-se aplicar analogicamente uma norma penal incriminadora. De qualquer forma, é algo absolutamente proscrito pelo princípio da reserva legal. E é importante ressaltar que, de todos os ramos do Direito, a seara penal, como qualquer graduando sabe, é a que exige maior reverência ao princípio da legalidade. “Em termos de Direito Penal, o Estado de Direito impõe a observância da estrita legalidade para a definição dos crimes e aplicação das penas.” Isso significa que “é função exclusiva da lei a elaboração da norma incriminadora.”[25] Ausente uma lei prévia, “Ainda que o fato seja imoral, anti-social ou danoso”, o autor não poderá ser penalizado criminalmente.[26] De outro ângulo: no Brasil, segundo Guilherme Nucci, adota-se a legalidade formal ao invés da material ou substancial; a primeira não permite considerar criminosa determinada conduta que seja “lesiva a interesse juridicamente tutelado, merecedora de pena, de acordo com a visão da sociedade, independentemente da existência de lei”[27].
O princípio da legalidade também implica o dever do magistrado – e Ministros do STF evidentemente não estão isentos – de “observar estritamente os critérios estabelecidos por lei para determinar e aplicar a pena ao condenado.”[28]
O art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição positiva esse princípio como garantia individual ao declarar que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Como corolário do conteúdo do art. 5º, inciso XXXIX, a Constituição veda a edição de Medidas Provisórias sobre matéria relativa a Direito Penal (62, §1º, I, d)[29] e a previsão de crimes ou penas por meio de lei delegada (art. 68, §1º)[30]. Ou seja, trata-se de reserva absoluta de lei (i. e., norma proveniente do Poder Legislativo) “para a definição dos crimes e cominação das sanções penais, o que afasta não só outras fontes do direito, como as regras jurídicas que não são lei em sentido estrito [...]”[31]. Ainda que o Legislativo quisesse confiar a outrem essa competência, não poderia porque o caráter absoluto da reserva legal obsta a delegação.[32]
Em última instância, tais regras remetem ao art. 1º, parágrafo único, no sentido de que, “Se todo o poder emana do povo, toda a atividade repressiva decorre da soberania popular. A garantia constitucional da reserva legal tem por conteúdo material a participação popular na elaboração do preceito punitivo.” Em outras palavras, o que justifica a atribuição unicamente ao Legislativo “do poder normativo em sede penal reside em sua legitimação democrática (representatividade popular – art. 1º, parágrafo único, CF), fazendo com que seu exercício não seja arbitrário.”[33] (grifos nossos)
Caso julgue procedentes as ações citadas, a Suprema Corte claramente ferirá uma das limitações ao poder punitivo[34] que, de acordo com a doutrina, decorrem do princípio ora em estudo: a vedação da fundamentação ou do agravamento da pena através da analogia, expressa no brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege stricta.[35] Ela proíbe a aplicação de “pena para fato não previsto como criminoso, mesmo que seja muito semelhante a outro, cuja previsão legal autorize a intervenção punitiva.”[36] (grifos nossos) É a chamada analogia in malam partem.[37] Não por acaso, admitiu-se analogia no Brasil durante a ditadura de Getúlio Vargas, no art. 5º, §3º, Decreto-lei nº 4.166, de 1942.[38] É que “A vinculação da atividade repressiva do Estado aos limites previamente estabelecidos por lei constitui verdadeiro instrumento de contenção da tirania e do despotismo.”[39] (grifos nossos).
Nada obstante, repentinamente, a Corte que sempre afirmou pautar-se pelo garantismo penal agora agride, de forma indubitável, a precípua garantia individual contra o arbítrio estatal, porque convém às suas predileções ideológicas. Com a decisão que está tomando forma, o STF dá razão àqueles que sustentam que a ideologia abraçada pelos juízes é o que carrega o maior peso na formação de sua convicção, e não as leis nem a doutrina[40], visto que esta é unânime – coisa rara no Direito – em repudiar analogia em malam partem. A instituição que tem por função impedir o arbítrio dos Poderes da República, compelindo-os a pautarem-se pela Constituição, corre o risco de degenerar-se no maior perpetrador de arbitrariedades.
3.1 Princípio da Legalidade e Estado Democrático de Direito
José Afonso da Silva, ao dissertar sobre o art. 5º, inciso II, da Constituição (ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei), aponta nele duas dimensões: a primeira é o princípio da legalidade, garantia individual; a segunda é a da liberdade de ação em geral. O mestre esclarece que “Se se considerar a lei qualquer norma elaborada pelo Poder Público, independentemente da origem desse poder, então o princípio constitucional vale bem pouco.”[41] O que se deduz do dispositivo, contudo, é
a ideia de que a liberdade, em qualquer de suas formas, só pode sofrer restrições por normas jurídicas preceptivas (que impõem uma conduta positiva) ou proibitivas (que impõem uma abstenção), provenientes do Poder Legislativo e elaboradas segundo o procedimento estabelecido na Constituição. Quer dizer: a liberdade só pode ser condicionada por um sistema de legalidade legítima. (SILVA, 2008, p. 236)
O princípio da legalidade “é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá a identidade própria.” Significa dizer que, sem o princípio da legalidade, não há mais Estado de Direito. Nele “quer-se o governo das leis, e não dos homens; impera a rule of law, not of men.”[42] E é certo que o Poder Judiciário não paira acima dos demais, devendo também manter-se nos confins do Estado de Direito. Na verdade, juízes, por carecerem de legitimidade democrática, devem estar sujeitos a “maiores controles na sua atividade interpretativa, para que por meio dela não distorçam o conteúdo da lei ou até da Constituição.”[43]
Permitir aos Ministros do STF simplesmente selecionar as regras constitucionais (originárias, aliás) a que se submeterão, com base em opiniões pessoais, é substituir o império da lei pelo governo de homens, o que vai de encontro à razão primordial do constitucionalismo, qual seja: a limitação do poder político.[44] Tendo isso em vista, fica evidente que não pode o STF ser o único órgão cujo poder não se sujeita a nenhuma fronteira que não a própria vontade. É preciso atentar ao alerta: “Respect for the limits on power are the essence of a democratic society; without it the entire democratic structure is undermined and the way is paved from Weimar to Hitler.”[45]
Nesse tocante, Chief Justice Marshall, famoso por ter defendido a constitucionalidade da judicial review (controle de constitucionalidade), bem disse que é inteiramente inútil demarcar por escrito limites nos quais o poder deve ser exercido se aqueles que devem ser contidos puderem transpô-los quando bem entenderem[46]. A autoridade dos juízes e das Cortes provém da Constituição, não existe fora dos contornos dados por ela.[47] Se os ocupantes de cargos eletivos se sujeitam a esses limites, com muito mais razão devem subordinar-se a eles aqueles que não passam pelo crivo periódico do voto e cuja remoção é extremamente difícil.
A existência de regras preestabelecidas é, outrossim, um pressuposto da justiça, pela mesma razão por que não se admitem tribunais de exceção. Significa que as partes não serão submetidas a regras criadas especificamente para o seu caso, tendo determinado resultado em mente. É também uma expressão do princípio da igualdade[48], pois permite que todos os que se encontram em situação idêntica sejam julgados à luz do mesmo conjunto de normas, sem espaço para tratamentos preferenciais ou arbitrariamente prejudiciais. Ausente essa premissa, abre-se a via para o despotismo.[49]
Lenio Streck levanta a seguinte questão: “Se nem uma mínima entificação (semanticidade) funciona como limite, o que impede de o STF alterar ‘qualquer preceito constitucional’?”[50] O Tribunal adquirirá “poderes permanentes de alteração da Constituição”, tornando-se uma espécie de Poder Constituinte Derivado – ou Originário, se a decisão concernente à homofobia se confirmar, já que violará cláusula pétrea – e a Constituição não passará de um “pedaço de papel”[51]. Com efeito, se o Supremo, além de ter a última palavra sobre o sentido da Constituição, não estiver sujeito a nenhum tipo de controle, nem mesmo à letra da Carta, seus Ministros terão se tornado detentores de poder político semelhante ao dos reis absolutistas; a democracia terá dado lugar a uma corruptela da guardiania vislumbrada por Platão, muito embora seja questionável que os Ministros do STF atendam às expectativas do filósofo, vez que “as exigências que [a guardiania] impõe ao conhecimento e à virtude dos guardiães é quase impossível de satisfazer na prática.”[52] Há quem pense ser tal sistema superior à democracia, mas, ainda que fosse, os governados teriam que, antes, dar seu aval.[53] Caso contrário, em nada se distinguiria da ditadura, exceto pelo verniz intelectual. No Brasil, porém, a Constituição não admite nem mesmo a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 60, §4º, II), o que acaba por inserir a democracia no rol das cláusulas pétreas. Mas, se as escolhas ideológicas feitas pelos eleitores de nada valerem diante dos desígnios dos Ministros, a democracia será tão somente formal, pois “para termos um regime democrático é preciso que, simultaneamente, ocorram a liberdade das escolhas políticas e a representação dos interesses da maioria”.[54]
De todo modo, Robert A. Dahl, no magistral “A Democracia e Seus Críticos”, prova que o melhor regime é o democrático, a despeito do seu potencial para produzir injustiças, na medida em que seus adversários não foram capazes de apontar “um processo alternativo viável com maior probabilidade de gerar resultados justos”[55] Destarte, em vez de substituí-lo, a chave está em “melhorar o funcionamento do próprio processo democrático: torná-lo mais verdadeiramente democrático”[56], fazendo, por exemplo, com que os interesses de todos os cidadãos recebam igual consideração e que todos tenham acesso aos dados necessários para tomarem decisões informadas – trata-se da compreensão esclarecida, um dos critérios que, na teoria desenvolvida por Dahl, caso satisfeitos, indicam a natureza democrática de um sistema.[57] Tendo em vista que os índices de analfabetismo e extrema pobreza ainda são elevados no Brasil, resta evidente que estamos ainda muito distantes mesmo do patamar da poliarquia (democracia imperfeita, em contraste com a ideal, que – Dahl deixa claro – não existe e talvez nunca venha a existir).
Ademais, pode-se dizer que o Brasil se encaixa na hipótese descrita por Dahl[58] em que é desejável a presença de uma Suprema Corte. Considerando que, como a História fartamente comprova, o governo da maioria pode despir a minoria de seus direitos, o autor reconhece que é preciso instituir algum mecanismo de prevenção. Entre as soluções aventadas está aquilo que ele denomina quase guardiania, representada por um Judiciário incumbido de invalidar leis a fim de salvaguardar preceitos constitucionais.
Para o cientista político, porém, somente faz sentido substituir a democracia pela quase guardiania (e isso ocorre, a rigor, toda vez que um colegiado de juízes invalida uma lei aprovada pelos representantes do povo, exceto para preservar direitos “intrínsecos ao processo democrático” ou “comprovadamente necessários a ele”[59]), se demonstrado que: 1) nem todos tiveram seus interesses igualmente considerados; 2) os guardiães corrigirão isso; e 3) “o dano causado ao direito à igual consideração supera o dano causado ao direito de um povo de autogovernar-se”. Parece ser esse o caso do Brasil. Portanto, propostas como o constitucionalismo popular (que tem em Larry Kramer e Mark Tushnet seus expoentes) ou a de Jeremy Waldron – para quem o controle de constitucionalidade “padeceria inevitavelmente de um vício de ilegitimidade democrática”[60] –, que redundam na extinção do controle de constitucionalidade pelo Judiciário, mostram-se inadequadas para o nosso País.
Não se contende, portanto, que é necessário haver um órgão incumbido de impedir que maiorias eventuais aprovem leis contrárias à Constituição. No entanto, é forçoso fazer duas ressalvas. Primeira: a Corte não pode, a pretexto de exercer o seu papel contramajoritário, degenerar-se num órgão autoritário, que se insurge contra a vontade dos cidadãos – expressa por intermédio de seus representantes eleitos – mesmo quando esta encontra amparo nos princípios constitucionais. Quando uma interpretação adotada pelo Legislativo ou uma norma por ele produzida em consonância com a vontade da maioria não afrontam a Constituição, mantendo-se no âmbito de um “desacordo razoável”[61], o princípio democrático sugere – ou, antes, ordena – que o Poder Judiciário as aceite. O juiz não pode esquecer-se de que “a outra face da independência judicial é a vinculação da decisão do magistrado à ordem jurídica, e, por conseguinte, à vontade do povo.”[62] A menção à função contramajoritária por vezes encobre um desprezo elitista pela opinião pública, algo incompatível com a democracia.[63]
Segunda: o Supremo Tribunal Federal não é, nem pode ser, o único baluarte contra impulsos tirânicos e violações de direitos fundamentais, haja vista que, em várias ocasiões, tribunais semelhantes falharam nessa missão. Por exemplo, nos Estados Unidos, país com sólida tradição democrática e republicana, 70.000 japoneses foram levados para campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, por ordem de Franklin Delano Roosevelt – possivelmente o presidente americano mais enaltecido por progressistas – e com anuência da Suprema Corte.[64] Há poucos anos, a Venezuela nos deu mais uma amostra da fragilidade do Judiciário, enquanto garantia de respeito à democracia e aos direitos humanos. O então presidente, Hugo Chávez, para assegurar sua manutenção no cargo, fez o que Roosevelt ameaçou fazer em 1937 diante da insistência da Suprema Corte americana em invalidar as leis por ele propostas: aumentou o número de integrantes do Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela e ocupou as vagas adicionais com prosélitos seus, praticamente eliminando a possibilidade de efetivo controle de constitucionalidade de seus atos.[65] E, no Brasil mesmo, quando os militares tomaram o poder, o STF nada pôde fazer.
Não é por outra razão que Robert Dahl afirma que, antes de tudo, uma cultura política de apreço pelos valores democráticos é o verdadeiro garantidor da manutenção da democracia, especialmente no longo prazo.[66] Os Estados Unidos, quando ainda eram um país agrário (carecendo, portanto, das condições que Dahl detecta como favoráveis ao surgimento da poliarquia – nome dado pelo autor às democracias imperfeitas), já possuíam instituições democráticas sólidas, justamente porque “promovia[m] vigorosamente as convicções democráticas”, além de produzir “uma ampla dispersão do poder”.[67] Se o valor da democracia não estiver enraizado na cultura de um povo, ela está fadada a não durar.[68] Afinal, como diz Dahl, na voz do personagem Defensor: “Certamente você não espera que eu creia que uma corte suprema com autoridade para impor direitos substantivos teria evitado a derrocada da democracia pelas forças da ditadura na Itália em 1923, na Alemanha em 1933, no Chile e no Uruguai em 1973 e assim por diante!”[69]
Como é sabido, lei que contrarie a Constituição deve ser, mediante provocação de algum dos legitimados, declarada inconstitucional pela Corte Suprema e, por conseguinte, deixar de produzir efeitos[70]. Assim sendo, afronta o Direito – e a lógica – a ideia de que este mesmo tribunal possa emitir decisum claramente contrário à Carta. Ao fazê-lo, o STF coloca-se em patamar superior ao do Legislativo e do Executivo, uma vez que qualquer norma proveniente desses Poderes que violasse a Constituição seria repelida, ao passo que a “norma” produzida pelo Tribunal pode feri-la livremente. Ao agir assim, a Corte desrespeita o art. 2º da Lei Maior, que institui a independência e a harmonia entre os Poderes da República, visto que o princípio da harmonia
não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que, aliás, integra o mecanismo), para evitar distorções e desmandos. A desarmonia, porém, se dá sempre que se acrescem atribuições, faculdades e prerrogativas de um em detrimento do outro. (SILVA, 2008, p. 111) (grifos nossos).
A separação dos Poderes, que é cláusula pétrea na Constituição de 1988 (art. 60, §4º, III), e se caracteriza não só pela divisão de funções, mas também pela presença de mecanismos de checagem mútua, é um imprescindível entrave ao despotismo de qualquer ramo do governo, inclusive do Judiciário. Nicola Matteucci ensina que
Mais que a teoria da clara distinção das funções do Estado, Montesquieu apresenta a teoria de um Governo balançado, em que os diversos órgãos, num sistema de pesos e contrapesos, realizam um equilíbrio constitucional capaz de obstar à consolidação de um poder absoluto. (BOBBIO et al., 1998, p. 249)
A atitude da Corte infringe também “o princípio elementar de justiça segundo o qual as leis não podem ser legitimamente impostas aos outros por pessoas que não são, elas próprias, obrigadas a obedecer a essas leis.”[71] E é essa a mensagem subjacente a algumas de suas decisões: a Constituição é cogente para indivíduos, Legislativo, Executivo e demais órgãos do Judiciário, mas não para o STF quando seus Ministros dela dissentem.
Sobre a virtual irreversibilidade das interpretações da Suprema Corte – que, segundo certa corrente, vinculariam todas as ações futuras dos demais Poderes, a menos que o próprio Tribunal ou emenda constitucional as alterasse –, Rodrigo Brandão, ao analisar os escritos de Robert Justin Lipkin, afirma: “Uma proteção tão abrangente da independência judicial não promove o equilíbrio entre independência e responsividade judicial , transformando a Suprema Corte em instituição soberana (legibus solutus), que, por definição, não se limita pelo direito constitucional, antes o produz.” Ele acrescenta que
“insular autoridade pública de qualquer mecanismo de accountability representa forte estímulo à adoção de posturas idiossincráticas, à confusão entre o sentido a ser atribuído a normas prévias (sobretudo quando elas forem abertas, como os princípios constitucionais) e a particular cosmovisão ou concepção de direito do tomador de decisões.” (p. 266)
Na verdade, no Brasil, há um agravante: nem mesmo Emenda à Constituição pode divergir de interpretação do Supremo Tribunal Federal se, na visão deste, desrespeitar cláusula pétrea.
Brandão entende que, diante dos fatores descritos acima, somados à judicialização das questões públicas relevantes e à adesão cada vez menor do STF aos textos normativos há uma “potencial supremacia do Judiciário – e, em particular, do STF – em relação aos demais Poderes (supremacia judicial em sentido amplo).”[72] No entanto, ante o mais recente e despudorado desrespeito à legalidade e à própria Constituição (ADO 26), parece patente que a potencialidade já ficou para trás.
4 Soluções
Várias soluções ao problema dos excessos do Judiciário já foram aventadas.[73] Há, por exemplo, propostas de retorno à primazia da interpretação dada pelo Legislativo. Seus apoiadores se fundam na ideia de que esse Poder teria melhores condições de “conciliar interesses de forma a acomodá-los e a evitar o aprofundamento de antagonismos” devido ao fato de que a diversidade de visões existentes na sociedade reproduz-se na composição do parlamento e que seus membros prestam contas de suas posições aos eleitores, no mínimo a cada ciclo eleitoral. Além disso, tais propostas partem de um ceticismo em relação à suposta impermeabilidade do Judiciário às pressões políticas e acreditam que juízes, na verdade, ao formarem sua convicção, norteiam-se pelas próprias preferências ideológicas, em vez de pelo direito.[74]
Rodrigo Brandão argui contra a prevalência do Legislativo sobre o Judiciário que, em algumas ocasiões, este, e não aquele, está em sintonia com os anseios da população. O autor cita como exemplo a decisão referente ao nepotismo.[75] De fato, o Legislativo frequentemente atua em causa própria, em detrimento do eleitorado. Entretanto, a jurisprudência do STF está repleta de decisões que descartam a vontade popular manifestada por meio de leis que não são incontestavelmente incompatíveis com a Constituição. A lei de crimes hediondos (nº 8.072/90), por exemplo, que nasceu de uma demanda clara da sociedade por um regime mais severo para determinados crimes, foi esvaziada em decorrência de uma interpretação constitucional cuja natureza controversa é atestada pela ausência de unanimidade no julgamento (HC nº 43.938). Ademais, o argumento de que o Judiciário seria melhor fórum para a busca do interesse público do que o Legislativo porque os políticos perseguem primeiro os próprios interesses perde força quando os Ministros do STF, alheios à crise econômica vivida pelo País, decidem, por exemplo, reajustar os próprios subsídios[76] e autorizam licitação para fornecimento de itens de luxo[77]. Isso, somado à percepção generalizada de que o Tribunal mostra leniência com criminosos – seja essa percepção real ou não –, mina a sua credibilidade, reduzindo o seu “apoio difuso”, o que pode incrementar o risco de se usarem mecanismos de reação política como o impeachment[78][79]
Outro caminho é o modelo da democracia deliberativa[80], cujos pilares, em apertadíssima síntese, são os seguintes: os cidadãos e seus representantes são obrigados a justificar suas decisões com base em princípios consensualmente reconhecidos; a tomada de decisão deve ser pública e as razões devem ser públicas – no sentido aduzido por John Rawls, de “verdades claras, hoje amplamente aceitas pelos cidadãos em geral, ou acessíveis a eles”[81]; e os resultados das deliberações podem ser revertidos.
A teoria dos diálogos constitucionais, por sua vez, reconhecendo que nenhum procedimento é capaz de assegurar resultados justos e que tanto o Legislativo quanto o Judiciário erram, propõe que a interpretação constitucional seja derivada de “uma complexa dinâmica de interação entre os Poderes Públicos, e entre eles e a sociedade civil.”[82] Para tanto, enseja a possibilidade de que decisões da Suprema Corte sejam revertidas pelo legislador. Logo, a aplicação dessa teoria dependeria da anuência do STF, abstendo-se de declará-la inconstitucional novamente.
Como demonstra Brandão, tanto os patronos da supremacia do Legislativo quanto os da supremacia do Judiciário têm uma visão romantizada do Poder que defendem e excessivamente cínica do Poder do qual desconfiam. Ambos olvidam que, conforme ressalta Dahl, todos os sistemas são passíveis de abusos, razão pela qual é imprescindível um efetivo sistema de freios e contrapesos, de modo que nenhum subjugue os demais.
Qualquer que seja a resposta correta ou mais apropriada ao cenário brasileiro, ela necessariamente passa por instar ao Poder Judiciário, em especial ao STF, uma postura de maior deferência à lei. Afinal, como ensina Lenio Streck, hoje vivemos sob a égide do Estado Democrático de Direito, no qual, à diferença do que ocorria no “positivismo primitivo”, a moral não é excluída, mas é cooriginária com o direito. Por isso, “Obedecer ‘à risca o texto da lei democraticamente construída’” [...][83] “significa sim, nos marcos de um regime democrático como o nosso, um avanço considerável.”[84]
5 Conclusão
A procedência das ações que pretendem criminalizar a homofobia (que já conta com seis votos favoráveis[85]) constituirá a culminação de um processo de crescente menosprezo pela lei e, consequentemente, pela soberania popular, o que resulta numa erosão do processo democrático. É verdade que a democracia é falha; por exemplo, ocasionalmente parte dos cidadãos não tem “oportunidades iguais e adequadas de participar das decisões” em decorrência de analfabetismo e pobreza, fato que debilita o próprio caráter democrático do processo.[86] No entanto, nenhuma das alternativas factíveis tem maiores chances de retificar tais defeitos.[87]
Com respaldo na doutrina, unânime no que tange à analogia in malam partem, não é demais concluir que se trata de uma verdadeira heresia jurídica. Diante disso, urge que os doutrinadores brasileiros protestem veementemente, sob pena de fazerem-se supérfluos os cursos de Direito e a própria doutrina, pois o “direito [será] aquilo que o judiciário diz que é”[88]. Aqueles que detêm poder raramente estão dispostos a ceder alguma parcela dele. Na verdade, costumam buscar ampliá-lo[89], de sorte que é de se esperar que os Ministros das cortes superiores aprovem a supremacia judicial.[90] Por isso, recai sobre os demais juristas o dever de expor o erro da Corte, tornando conhecida do público a informação de que ela tem ultrapassado os limites constitucionais de suas competências.[91]
REFERÊNCIAS
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[1] BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: A quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 111 e ss.
[2] Não se quer aqui questionar o mérito das causas ou mesmo a correção das ideias expostas nos acórdãos, mas sim apontar o comportamento legiferante da Corte.
[3] FORMENTI, Lígia. Só 1 em cada 4 defende direito a aborto no País, diz pesquisa. 4 dez 2017. Disponível em <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,so-1-em-cada-4-defende-direito-a-aborto-no-pais-diz-pesquisa,70002106745> Acesso em: 20 abr 2019.
[4] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 11ª ed. rev., ampl. e atual., Juspodium, 2013, p. 315
[5] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 250, p. 151-167, jan. 2009. ISSN 2238-5177. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/karting/view/4141/2923>. Acesso em: 07 Abr. 2019.
[6] Ibid.
[7] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 42.
[8] Nessa linha, Raoul berger observa que “an ‘outcome’ that is stubbornly resisted by a dominant majority of the Court is quickly adopted upon the retirement of one or more Justices when their replacements transform the dissenting minority into a new majority. […] Should what is ‘socially desirable’ for a nation of 200 million people turn on such accidents?” BERGER, Raoul. Government by Judiciary: The Transformation of the Fourteenth Amendment. 2 ed. Indianapolis: Liberty Fund, Inc., 1997; edição do Kindle: 2013, posição 4997.
[9] A referência a autores norte-americanos é pertinente devido à crescente aproximação entre os sistemas e à longa tradição dos Estados Unidos em controle de constitucionalidade e ativismo judicial.
[10] Ibid., posição 4605.
[11] Ibid., posições 4548, 4651
[12] DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Tradução de Patrícia de Freitas Ribeiro. 1 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 102.
[13] Ibid., p. 103
[14] A orientação de George Washington nesse sentido é perfeiamente aplicável ao nosso contexto: “If, in the opinion of the people, the distribution or modification of the constitutional powers be in any particular wrong, let it be corrected by an amendment in the way which the Constitution designates.” . Transcript of President George Washington's Farewell Address (1796). Disponível em < https://www.ourdocuments.gov/doc.php?flash=false&doc=15&page=transcript > Acesso em: 5 jun. 2019.
[15] BRANDÃO, op. cit., p. 227-228
[16] Essa é a conclusão do professor de Harvard Raoul Berger, para quem: “the complacent assumption that constitutional limitations must yield to beneficial results, a result-oriented jurisprudence that is a euphemism for the notion that the end justifies the means.” BERGER, op. cit., posição 437
[17] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: Limites da Atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Edição do kindle, posição 2725
[18] “The recognition of this power and duty to shape the law in conformity with the customary morality is something far removed from the destruction of all rules and the substitution in every instance of the individual sense of justice, the arbitrium boni viri. That might result in a benevolent despotism if the judges were benevolent men. It would put an end to the reign of law.” CARDOZO, Benjamin N. The Nature of the Judicial Process. Edição do Kindle, posição 841-847.
[19] BRANDÃO, op. cit., p. 19.
[20] BERGER, op. cit., posição 4279 e ss.
[21] “[…] the cry for self-restraint is directed to the other fellow, to decry identification of his predilections with constitutional mandates. Each Justice has a blind spot for the identification of his own predilections with constitutional dogma.” Ibid., posição 4234. O autor chegou a essa conclusão depois de analisar embate entre os Justices Black e Frankfurter, que se criticaram mutuamente, cada um insatisfeito com o ativismo do outro porque se chocava com o próprio entendimento.
[22] É como Alexandre Morais da Rosa entende o movimento. ROSA, Alexandre Morais da; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law and Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 56. Apud TASSINARI, op. cit., posição 2832.
[23] Isso ocorreu durante o governo Nixon nos EUA e, como era previsível, seus adversários ideológicos denunciaram o ativismo dos membros nomeados pelo Presidente Republicano: “Already there are anguished outcries that the Burger Court is acting ‘against the law.’” But the name of the game is ‘Two Can Play’; once the legitimacy of judicial policymaking is recognized, new appointees may properly carry out the policies which they were appointed to effectuate. What the ‘national conscience’ is at any given moment depends on shifting personnel and the nature of the appointees.” Berger, op. cit., posição 5083-5091.
[24] BRANDÃO, op. cit., p. 301-302.
[25] GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 132
[26] MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal, v. 1, 20. Ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 55
[27] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial, 6ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 95
[28] GALVÃO, op. cit., 132.
[29] O próprio STF já se manifestou, no RHC 117.566/SP, 2013, no sentido de que Medida Provisória pode versar sobre matéria de Direito Penal, mas desde que beneficie o réu. Obviamente não é o caso das ações em julgamento.
[30] GALVÃO, op. cit., p. 133.
[31] MIRABETE, op. cit., p. 55.
[32] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral – arts. 1º a 120. 10. Ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 141
[33] Ibid., p. 141.
[34] Rogério Greco denomina de funções do princípio da legalidade. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 5 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 100.
[35] MIRABETE, op. cit., p. 56
[36] GALVÃO, op. cit., p. 134.
[37] PRADO, op., cit., p. 142.
[38] MIRABETE, op. cit., p. 56, nota de rodapé nº 5.
[39] GALVÃO, op. cit., p. 132.
[40] Ver BRANDÃO, op. cit., p. 278.
[41] SILVA, op. cit., p. 235.
[42] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 99-100.
[43] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - decido conforme minha consciência? 6 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 37.
[44] É o que escreve Nicola Matteucci: "o Constitucionalismo representa o Governo das leis e não dos homens, da racionalidade do direito e não do mero poder”. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C, Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11 ed. 1998, p 249.
[45] Respeito pelos limites ao poder são a essência de uma sociedade democrática. Sem isso, toda a estrutura democrática é minada e o caminho de Weimer a Hitler é pavimentado. BERGER, op. cit., posição 6528.
[46] “To what purpose are powers limited, and to what purpose is that limitation committed to writing; if these limits may at any time, be passed by those intended to be restrained?” Marbury v. Madison, 5 U.S. (1 Cranch) 137, 176 (1803) apud ibid., posição 4498.
[47] “For judges are creatures of the Constitution and have only such authority as it confers.” Ibid., posição 5573.
[48] “[...] esse princípio fundamental da Constituição inglesa [rule of law] supõe a exclusão de todo poder discricionário ou arbitrário, implicando, por isso, a igualdade dos cidadãos com o Governo perante os tribunais ordinários” BOBBIO, op. cit., p 252.
[49] “[…] we are all to be governed by the same preestablished rules and not by the whim of those charged with executing those rules. […] The difference between rule by law and rule by fiat or discretion is largely what distinguishes the democracies of the West from the governments of most of the rest of the world.” KURLAND, Philip B. Curia Regis: Some Comments on the Divine Right of Kings and Courts to Say What the Law Is. 1981. Disponível em < https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=11807&context=journal_articles> Acesso em: 2 mai 20119, p. 3
[50] STRECK, Lenio Luiz; BARRETTO, Vicente de Paulo; TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. Ulisses e o canto das sereias: sobre ativismos judiciais e os perigos da instauração de um “terceiro turno da constituinte”. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), São Leopoldo, v. 1, n. 2, p. 75-83. jul./dez. 2009.
[51] “On this view the Constitution itself is a superfluous, even obstructive, ‘scrap of paper.’” BERGER, op. cit., posição 4554
[52] DAHL, op. cit., p. 100.
[53] “If government by judiciary is necessary to preserve the spirit of our democracy, let it be submitted in plainspoken fashion to the people—the ultimate sovereign—for their approval.” BERGER, op. cit., posição 6611.
[54] CADEMARTORI, Daniela Mesquista Leutchuk de. O diálogo democrático: Alain Touraine, Noberto Bobbio e Robert Dahl. Curitiba: Juruá, 2006, p. 293.
[55] DAHL, op. cit., p. 259.
[56] Ibid., p. 275.
[57] Ibid., p. 175.
[58] Ibid., p 306.
[59] Ibid., p. 303-304.
[60] BRANDÃO, op. cit., p. 231.
[61] Ibid., p. 30.
[62] Ibid., 221.
[63] DAHL, op. cit., p 120.
[64] BERGER, op. cit., posição 5074.
[65] Chávez aumenta número de juízes na Corte Suprema venezuelana. 25 out 2003. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2510200317.htm> Acesso em: 20 abr 2019.
[66] DAHL, op. cit., p. 272, 282.
[67] Ibid., p. 399.
[68] Ibid., 272.
[69] Ibid., p. 273.
[70] A controvérsia quanto à natureza do ato inconstitucional não é relevante para os fins deste artigo.
[71] DAHL, op. cit., p. 169.
[72] BRANDÃO, op. cit., p. 222-223.
[73] Para uma análise compreensiva e detalhada, ver Brandão, op. cit., p. 234 e ss.
[74] Ibid., p. 253-254.
[75] Ibid., p. 309.
[76] TUROLLO Jr., Reynaldo. Maioria do STF aprova proposta de reajuste de 16,38% para magistrados. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/08/maioria-do-stf-aprova-proposta-de-reajuste-de-1638-para-magistrados.shtml. Acesso em: 4 jun 2019.
[77] Supremo banquete. Disponível em: <https://istoe.com.br/supremo-banquete/> Acesso em: 30 abr 2019.
[78] BRANDÃO, op.cit., p. 318.
[79] Outro fator que pode solapar esse apoio difuso é a disseminação da informação de que o STF tem extravasado suas competências constitucionais. Nas palavras de Raoul Berger, “How long can public respect for the Court, on which its power ultimately depends, survive if the people become aware that the tribunal which condemns the acts of others as unconstitutional is itself acting unconstitutionally?” BERGER, op. cit., posição 6528
[80] BRANDÃO, op. cit., p. 261 e ss.
[81] Ibid., p. 262.
[82] Ibid., p. 256.
[83] STRECK, Lenio Luiz. Lições de Crítica Hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. Edição do kindle, posição 3340.
[84] Ibid., 3345.
[85] STF retomará em junho julgamento de ações sobre criminalização da homofobia. Disponível em<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=411995&caixaBusca=N> Acesso em 25 mai 2019.
[86] DAHL, op. cit., p. 278.
[87] Ibid., p. 279.
[88] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - decido conforme minha consciência? 6 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 91.
[89] “It is axiomatic that all wielders of power, judges included, ever thirst for more.” É axiomático que detentores do poder, incluindo juízes, estão sempre sedentos por mais (tradução nossa) Berger, op. cit., posição 4101.
[90] “It would be not surprising to find judges supporting judicial supremacy; it makes their jobs more important and interesting”. TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton: Princeton University Press, 1999. Edição do Kindle, Locais do Kindle 123-124.
[91] “A prime task of scholarship, therefore, is to heighten public awareness that the Court has been overleaping its bounds.” BERGER op. cit., posição 6581.
Advogada graduada pela PUC-Rio.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Alice Pessoa Aires. Supremo Tribunal Federal e ativismo judicial: considerações acerca do processo democrático Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jun 2019, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53081/supremo-tribunal-federal-e-ativismo-judicial-consideracoes-acerca-do-processo-democratico. Acesso em: 22 nov 2024.
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