RESUMO: Este trabalho analisa o instituto da intervenção no âmbito dos Municípios, apresentando o tema à luz da autonomia dos entes federativos. Discute-se, incialmente, a relação entre intervenção e autonomia municipal, na perspectiva da forma federativa de Estado; para, posteriormente, passar-se à descrição da competência, hipóteses de cabimento e aspectos procedimentais da intervenção nos Municípios. Como resultado, após pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, destacou-se o caráter excepcional da intervenção nos Municípios, bem como o importante papel que incumbe aos poderes Legislativo e Judiciário no seu controle.
Palavras-chave: Intervenção. Municípios. Federalismo. Autonomia.
ABSTRACT: This paper analyzes the institute of intervention within the Municipalities, presenting the theme in the perspective of the autonomy of the federative entities. Initially, the relationship between intervention and municipal autonomy is discussed, from the perspective of the federative form of state; later, the competence, assumptions of suitability and procedural aspects of intervention in the municipalities is described. As a result, after bibliographic and jurisprudential research, the exceptional character of intervention in the Municipalities was highlighted, as well as the important role of the Legislative and Judiciary branches in its control.
Keywords: Intervention. Municipalities. Federalism. Autonomy.
Sumário: 1. Introdução; 2. Intervenção e autonomia municipal na perspectiva da forma federativa de estado; 3. Competência, hipóteses de cabimento e aspectos procedimentais da intervenção nos Municípios; 4. Considerações finais; 5. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo busca analisar o instituto da intervenção no âmbito dos Municípios, apresentando o tema à luz da autonomia dos entes federativos, garantida pela Constituição de 1988. Com efeito, muito embora ainda haja divergências doutrinárias acerca da posição dos Municípios na estrutura da Federação brasileira, o fato é que a Constituição de 1988 garantiu aos entes locais autonomia em relação aos Estados-membros e à União. Ao mesmo tempo, a atual Carta Magna estabeleceu hipóteses em que a autonomia municipal pode ser restringida, viabilizando-se a intervenção dos Estados-membros nos municípios localizados em seu território; ou da União nas municipalidades estabelecidas em Territórios Federais.
A temática discutida no presente trabalho afigura-se relevante, em face dos frequentes conflitos entre os entes federados no Brasil, que podem levar, se não resolvidos nos marcos da Constituição, a uma supressão da autonomia dos entes locais diante dos Estados e da União. Como prova disso, consigne-se que mesmo após a Constituição de 1988, diversas Constituições Estaduais, em seus textos originários, alargaram as condições materiais ou formais da intervenção nos Municípios para além das previstas pela Constituição Federal, o que tem sido, entretanto, rechaçado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Para atingir o objetivo do trabalho, realizou-se pesquisa de caráter bibliográfico e jurisprudencial, discutindo-se, inicialmente, a relação entre intervenção e autonomia municipal, na perspectiva da forma federativa de Estado; para, posteriormente, passar-se à descrição da competência, hipóteses de cabimento e aspectos procedimentais da intervenção nos municípios, conforme a Constituição de 1988. Ao final, destacou-se o caráter excepcional da intervenção nos Municípios, bem como o importante papel que incumbe aos poderes Legislativo e Judiciário no controle das aludidas intervenções.
2 INTERVENÇÃO E AUTONOMIA MUNICIPAL NA PERSPECTIVA DA FORMA FEDERATIVA DE ESTADO
O federalismo surgiu nos Estados Unidos da América, com a Constituição de 1787 (SILVA, 2009, p. 99), e sua construção teórica sofreu profunda influência da obra de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, “O Federalista”, reunião de artigos que propunham um contraponto ao estabelecimento inicial daquele país como uma confederação, forma de Estado vista pelos proponentes do federalismo como fraca e incapaz de fazer cumprir as suas próprias normas (LIMONGI, 2002, p. 247). Com efeito, de acordo com Bonavides (1993, p. 207), o traço distintivo entre federações e confederações reside no fato de que, naqueles, há legislação unitária comum (federal), que obriga a todos os cidadãos dos diversos estados componentes da União, ao contrário do que se passa em Estados confederativos.
Conceitualmente, a Federação demanda a presença de alguns requisitos, tais como: autonomia dos Estados membros, concernente em competência constitucional própria dos entes subnacionais; participação dos Estados-membros no processo de reforma da Constituição; existência de uma instância judiciária superior, capaz de resolver os conflitos jurídicos eventualmente surgidos entre os entes federados. (BONAVIDES, 2007, p. 178).
No Brasil, a forma federativa de Estado foi adotada com a proclamação da República, em 1889, tendo sido mantida em todas as Constituições seguintes (SILVA, 2009, p. 99). Cabe ressaltar, todavia, que em determinadas Constituições brasileiras, o federalismo foi apenas nominal, dado o elevado nível de centralização do poder político e administrativo. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a Constituição do Estado Novo, de 1937, que, embora tenha formalmente adotado o federalismo em seu art. 3º, na prática instituiu um Estado unitário, tendo os Estados assumido o papel de meras subdivisões administrativas do Estado nacional (LOEWENSTEIN, 1942, p. 52). Situação semelhante se deu com a Constituição de 1967, e sua Emenda nº 1, de 1969 (SILVA, 2009, p. 99).
A posição dos Municípios na organização do Estado é tema que tem passado por transformações na história constitucional brasileira. Com efeito, a Constituição de 1891, a primeira a estabelecer a forma federativa de Estado, proclamou o princípio da autonomia municipal nos assuntos de seu “peculiar interesse”, de forma genérica e sem a previsão de instrumentos de defesa e efetivação concreta dessa autonomia. Nesse período não se entendia que os Municípios compusessem a estrutura da Federação, percebida, em uma concepção ortodoxa, como a união dos Estados-membros, estes sim realmente autônomos. Nesse diapasão, conferiu-se aos Estados-membros a organização dos Municípios, fato esse que levou à submissão dos governos locais ao controle hierárquico dos Estados durante a Primeira República. Entretanto, pouco a pouco se passou a entender a autonomia municipal como um princípio constitucional da União, o que restou cristalizado com a reforma constitucional de 1926, que, positivando esse princípio, dotou-o de importante ferramenta concretizadora, consistente no mecanismo da intervenção federal no Estado-membro em caso de violação à autonomia dos Municípios. Nos textos constitucionais seguintes, muito embora se vislumbre alternância entre períodos de maior autonomia e centralização, conforme o momento político assim o exigisse, manteve-se a tendência de uma presença crescente dos Municípios nas Constituições Federais. (HORTA, 1982)
Chega-se, então, à Constituição de 1988. Remanesce ainda certa divergência doutrinária quanto à posição dos Municípios na Federação brasileira, em face da vigente ordem constitucional. É certo que a atual Carta Magna proclama, em seus arts. 1º e 18, que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sendo todos estes entes autônomos (BRASIL, 1988). Nessa ordem de ideias, uma abordagem meramente dogmática e literal da questão levaria à conclusão inexorável no sentido da participação dos entes locais na Federação brasileira. Contudo, há autores, como José Afonso da Silva (2009, p. 474-475), que não reconhecem os Municípios como entidade federativa autônoma, entendendo que se tratam apenas de divisões dos Estados. Mendes, Coelho e Branco (2009, p. 865), por seu turno, afirmam que, embora seja predominante a posição de que os Municípios tornaram-se integrantes da Federação a partir da Constituição de 1988, existem fortes argumentos em contrário, na medida em que a) os Municípios não participam da formação da vontade federal, o que se dá no Senado; b) os Municípios não possuem Poder Judiciário próprio; c) a intervenção nos Municípios ficou a cargo dos Estados, e não da União. Paulo Bonavides (2009, p. 344), de outra banda, entende que, a partir da Constituição de 1988, a posição do Município é “indissociável da essência do próprio sistema federativo”.
Nada obstante as referidas discussões doutrinárias, que poderiam levar à caracterização do Município como um ente federativo sui generis, como sói acontecer nos casos em que doutrina e jurisprudência não conseguem chegar a uma conclusão acerca da natureza jurídica de determinada instituição, o fato é que a Constituição Cidadã estabeleceu os municípios como entes autônomos em relação aos Estados e à União, seguindo e aprofundando a tradição estabelecida na história constitucional republicana do Brasil.
Nas palavras de José Afonso da Silva (2005, p. 640), a autonomia de que trata a Constituição “significa capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”. O mesmo autor (2005, p. 641) aduz que a autonomia municipal assenta-se em certas características, quais sejam: a) capacidade de auto-organização, que consiste na elaboração de lei orgânica própria; b) capacidade de autogoverno, ou seja, eleição de seus próprios mandatários e representantes legislativos; c) capacidade normativa própria, que é a aptidão para elaborar leis próprias, sobre matérias de sua competência; d) capacidade de autoadministração, significando a existência de uma administração própria, executando serviços de sua competência.
Contudo, a Constituição Federal também determina que tal autonomia deve ser exercida nos termos da própria Carta Magna. Nessa trilha, a Lei Maior traz algumas situações excepcionais em que haverá uma intervenção de certos entes em outros, afetando assim (de forma temporária, é certo) suas autonomias, o que também ocorre no caso dos Municípios.
3 COMPETÊNCIA, HIPÓTESES DE CABIMENTO E ASPECTOS PROCEDIMENTAIS DA INTERVENÇÃO NOS MUNICÍPIOS
No que concerne aos Municípios, o texto constitucional prevê que estes somente podem sofrer intervenção por parte dos Estados nos quais se achem inseridos. É dizer, não é possível que haja intervenção federal em Municípios situados dentro da circunscrição de um Estado-membro. Existe, contudo, uma hipótese em que seria possível intervenção federal no âmbito dos Municípios, qual seja, quando estes estejam situados em Territórios Federais. Vale ressaltar, entretanto, que atualmente a figura dos Territórios Federais – e, por conseguinte, a intervenção federal em municípios neles localizados - possui importância meramente histórica e doutrinária, tendo em vista que, com a Constituição de 1988, os territórios antes existentes (Roraima, Amapá e Fernando de Noronha) foram extintos. (PORTO, 2000)
Consigne-se que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se pronunciar sobre a matéria acima exposta no julgamento de Questão de Ordem na Intervenção Federal n. 590-2/CE, em que foi relator o Min. Celso de Mello. No referido caso, o Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (Ceará) solicitou ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) providências no sentido da decretação de intervenção federal no Município de Ibiapina, localizado no Estado do Ceará, em virtude da não inclusão no orçamento anual da municipalidade de verba necessária ao adimplemento de precatório expedido pelo aludido Tribunal Regional. O TST, então, encaminhou a proposta de intervenção ao Supremo Tribunal Federal, o qual, contudo, não conheceu do pedido, reconhecendo a impossibilidade de decretação de intervenção federal em Município localizado em Estado-membro, nos seguintes termos:
Impossibilidade de decretação de intervenção federal em Município localizado em Estado-membro. Os Municípios situados no âmbito dos Estados-membros não se expõem à possibilidade constitucional de sofrerem intervenção decretada pela União Federal, eis que, relativamente a esses entes municipais, a única pessoa política ativamente legitimada a neles intervir é o Estado-membro. Magistério da doutrina. Por isso mesmo, no sistema constitucional brasileiro, falece legitimidade ativa à União Federal para intervir em quaisquer Municípios, ressalvados, unicamente, os Municípios ‘localizados em Território Federal...’ (CF, art. 35, caput). (BRASIL, 1998)
No que concerne às hipóteses em que resta viabilizada a intervenção em Município, estas constam do art. 35 da Constituição da República, que possui a seguinte redação:
Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em Território Federal, exceto quando:
I - deixar de ser paga, sem motivo de força maior, por dois anos consecutivos, a dívida fundada;
II - não forem prestadas contas devidas, na forma da lei;
III - não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde;
IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial. (BRASIL, 1988)
Por ser a intervenção uma medida extrema, que importa em grave ataque à autonomia de um ente federado, as situações que a ensejam são taxativas, de forma que não cabe à Constituição Estadual criar novas hipóteses de intervenção. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal esposa esse entendimento, conforme decidido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 336/SE, em que foi relator o Min. Eros Grau. No referido aresto, em que se apreciou ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Governador do Estado de Sergipe em face de dispositivos da Constituição do referido Estado-membro que, dentre outros vícios, permitiam a intervenção estadual em Municípios em casos não previstos no art. 35 da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as disposições do art. 35 da Constituição de 1988 consubstanciam preceitos de observância obrigatória pelos Estados-membros, sendo inconstitucionais quaisquer ampliações ou restrições às hipóteses de intervenção. Colaciona-se, a propósito, excerto da ementa do mencionado julgado:
"Ação direta julgada procedente em relação aos seguintes preceitos da Constituição sergipana: (...) Art. 23, V e VI: dispõem sobre os casos de intervenção do Estado no Município. O art. 35 da Constituição do Brasil prevê as hipóteses de intervenção dos Estados nos Municípios. A Constituição sergipana acrescentou outras hipóteses." (BRASIL, 2010)
Nada obstante, como mostra da fragilidade que a autonomia municipal ainda enfrenta no panorama jurídico-político nacional, mesmo após a Constituição de 1988, cita-se o fato de que diversas Constituições Estaduais, em seus textos originários, trouxeram condições materiais ou formais diversas das previstas pela Constituição Federal para a intervenção estadual nos municípios[1]. Demais disso, mesmo após essas Constituições locais terem dispositivos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal no que diz respeito ao alargamento das hipóteses de intervenção nos Municípios, na linha da jurisprudência supramencionada, em alguns Estados continua-se a intervir nos entes locais de forma indevida, sendo exemplo disso a intervenção mediante atuação do Tribunal de Contas, não prevista no modelo constitucional federal. (GALANTE; PEDRA, 2016)
Cabe frisar que qualquer cidadão pode representar para que seja providenciada a intervenção em Município, caso esteja ocorrendo alguma das irregularidades previstas na Constituição. Entretanto, a praxe é a solicitação por parte do presidente da Câmara Municipal, no caso dos incisos I, II e III do artigo 35 da Constituição Federal, ou do Chefe do Ministério Público Estadual, na hipótese do inciso IV do mesmo dispositivo constitucional; sem prejuízo da atuação de ofício do Governador do Estado, caso venha a tomar conhecimento das irregularidades ensejadoras da intervenção estadual nos Municípios. (PEREIRA, 2012) Em todo caso, tratando-se de ato de natureza política, independentemente de quem venha a requerê-la, a intervenção apenas pode ser decretada pelo Governador do Estado, ressalvando-se que na hipótese do art. 35, IV, faz-se necessário que o Tribunal de Justiça julgue procedente a representação interventiva. Incumbe ainda ao Governador do Estado especificar a amplitude, o prazo e as condições para o ato interventivo a ser executado. (BULOS, 2018)
Decretada a intervenção, em alguns casos será necessária a nomeação de um interventor para o Município, com a incumbência de administrá-lo, em substituição ao Prefeito. Ressalte-se, contudo, que nem sempre será necessária a nomeação de um interventor. Há que se analisar, em cada caso concreto, tal necessidade, haja vista que, em certas situações, bastará a sustação do ato que ensejou a intervenção. Por isso mesmo, proclama a Constituição Federal, em seu art. 36, §1º, que o decreto de intervenção trará, “se couber”, a nomeação de interventor:
§1º - O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas (grifo adicionado) (BRASIL, 1988 – grifou-se)
O interventor prestará contas de sua atuação ao Governador, ou ao Presidente da República, conforme o Município objeto de intervenção situe-se em Estado ou Território Federal, tendo sua administração financeira fiscalizada pelo Tribunal de Contas do Estado ou da União, respectivamente. No exercício de suas atribuições, o interventor é agente público, tendo suas funções demarcadas pelo ato que decreta a intervenção. Depois de cessadas as causas que levaram à intervenção no Município, as autoridades afastadas retornarão, em regra, às suas funções, sem prejuízo da apuração de suas responsabilidades nas instâncias cabíveis (administrativa, cível e criminal). (SILVA, 2005, p. 491)
O dispositivo constitucional acima mencionado trata, igualmente, da apreciação do decreto de intervenção pela Assembleia Legislativa do Estado. Cabe salientar que o texto da Carta Magna fala em apreciação, de sorte que o Legislativo não se limitará, é certo, a ser informado sobre o ato de intervenção; deve, sim, verdadeiramente fazer um “julgamento de aprovação e de rejeição, como, aliás, está expressamente estabelecido no art. 49, IV, que lhe dá competência exclusiva para aprovar ou suspender a intervenção” (SILVA, 2005, p. 488). E nem poderia ser diferente, tendo em vista que os Poderes são harmônicos e independentes entre si, não havendo nenhuma subordinação entre eles, conforme dispõe a Constituição em seu art. 2º.
Todavia, nem sempre será necessária a apreciação do ato pelo Poder Legislativo. O art. 36, §3º da Constituição Federal prevê uma exceção a essa regra: a hipótese de intervenção no âmbito dos Municípios que dispensa a apreciação pelo Legislativo é a que ocorrerá quando o Tribunal de Justiça der provimento a representação para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução de lei, de ordem ou de decisão judicial (CF, art. 35, IV).
É importante ressaltar que, segundo a Súmula nº 637 do Supremo Tribunal Federal, “Não cabe recurso extraordinário contra acórdão de Tribunal de Justiça que defere pedido de intervenção estadual em Município” (BRASIL, 2003). É que, ainda conforme o entendimento prevalente na Corte Suprema, “a decisão de Tribunal de Justiça que determina a intervenção estadual em Município tem natureza político-administrativa, não ensejando, assim, o cabimento do recurso extraordinário” (BRASIL, 2008).
Desse modo, tratando-se a intervenção de um ato político-administrativo, entende-se que não cabe ao Poder Judiciário imiscuir-se no mérito da decisão política adotada, aspecto que deve ser discutido pelo Poder Legislativo, a quem cabe o controle político do ato interventivo, como antes mencionado. Todavia, é certo que existe a possibilidade de controle judicial caso seja violado algum direito ou garantia fundamental, bem como na hipótese de intervenção decretada sem observância mínima dos pressupostos constitucionais (i.e., intervenção com base em situação alheia às elencadas na Constituição Federal), na medida em que a vigente ordem constitucional adotou o princípio da inafastabilidade da jurisdição em seu art. 5º, inciso XXXV, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Deriva igualmente da natureza político-administrativa da intervenção a conclusão de que o afastamento do Prefeito, em virtude do ato interventivo, não configura julgamento de sua condução dos negócios públicos, nem mesmo penalidade relacionada a eventuais irregularidades que tenha cometido. Nesse sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, conforme julgado no Recurso Extraordinário nº 94.252-1/PB, Relator Min. Leitão de Abreu. (BRASIL, 1981) Disso não decorre, entretanto, que devam ser afastadas as garantias do contraditório e da ampla defesa ao mandatário eventualmente afastado em virtude da intervenção. Ao revés, a jurisprudência do STF entendeu que esse afastamento, embora provisório, deve ser precedido da garantia de defesa ao Prefeito, acusado de irregularidades, consoante decidido no Recurso Extraordinário nº 106293/PE, Relator Min. Néri da Silveira. (BRASIL, 1989)
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, nada obstante as divergências doutrinárias acerca da posição dos Municípios na estrutura federativa brasileira, é certo que tais entes, no vigente panorama constitucional, possuem autonomia, consistente nas capacidades de auto-organização, de autogoverno, normativa e de autoadministração. Contudo, embora a autonomia dos entes federativos – e dos Municípios, em particular -, seja protegida pela Constituição Federal, não pode ser encarada de forma absoluta, porquanto existem hipóteses excepcionais em que a própria Constituição entende que, para preservar o equilíbrio federativo e outros interesses constitucionalmente relevantes, torna-se necessária uma ingerência de alguns entes nos negócios de outros.
Entretanto, por configurar uma restrição na esfera de desenvolvimento autônomo das municipalidades garantida pela Constituição, a intervenção nesses entes deve ser encarada como medida excepcional, não podendo ser banalizada. Entende-se, assim, em primeiro lugar, ser primordial o preenchimento dos requisitos constantes na Constituição Federal, não havendo que se falar na ampliação de hipóteses de intervenção para além das constantes da Carta Magna, conforme entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Demais disso, destaca-se o importante papel que cabe ao Legislativo no que concerne às intervenções nos Municípios, pois a esse Poder, legítimo representante da vontade popular, incumbe a apreciação e o julgamento sobre a real necessidade da decretação de medida tão drástica. Por fim, muito embora não lhe caiba se imiscuir no mérito do ato interventivo, ao Poder Judiciário também se reserva a defesa dos direitos e garantias fundamentais, bem como o controle de legalidade e constitucionalidade da intervenção, com fulcro no princípio da inafastabilidade da jurisdição.
5 REFERÊNCIAS
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[1] De acordo com Galante e Pedra (2016): “Constata-se que 22 textos constitutivos originários dos Estados federados modificaram as condições materiais ou formais para o processo de intervenção estadual previsto nos artigos 35 e 36 da Constituição Federal. Os Estados do Acre, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e Sergipe previram outras condições materiais e, junto com os Estados de Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Piauí, Santa Catarina e Tocantins, ampliaram o rol de competentes para instaurar o processo de intervenção estadual”.
Advogado da União. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Samuel Cunha de. Uma análise da intervenção nos municípios à luz da autonomia dos entes federativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2019, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53266/uma-anlise-da-interveno-nos-municpios-luz-da-autonomia-dos-entes-federativos. Acesso em: 22 nov 2024.
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