DIEGO PEREIRA
(Coautor)
RESUMO: Os sertões de Euclides da Cunha, ao descrever as amarguras do sertanejo, servia de denúncia contra as desigualdades do sertão que se distanciava no mar. O mar, como referência à abundância de água, é a mesma que invadiu a região sertaneja da Bahia, descrita por Euclides há mais de 100 ano. Este artigo, correlacionando literatura e violações de direitos, faz um panorama de uma pequena comunidade vítima de um rompimento de barragem no ano de 2019.
SUMÁRIO: 1. Dignidade da Pessoa Humana do Sertanejo. 2. Os Sertões de Euclides da Cunha e Rompimento de Barragem. 3. Conclusão.
1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DO SERTANEJO
Dignidade, palavra que possui origem etimológica do termo em latim dignitas, tendo significado ligado a ideia de autoridade, pessoa digna de respeito, e que está em uma classe elevada da sociedade. Tal significação dá uma ideia seletiva, onde essa qualidade somente está presente em algumas pessoas, enquanto outras, por não estarem incluídas em determinados grupos sociais, não são contempladas com a mesma.
Tratando-se do contexto jurídico-político-social pós II Guerra Mundial e as atrocidades decorrentes de tal evento, começou-se a dar um leque ainda maior para o significado do termo dignidade, dando origem ao princípio basilar do ordenamento jurídico, o Princípio da Dignidade Humana, tornando-se fundamento previsto na Constituição Federal Brasileira de 1988, no artigo 1°, inciso III.
Remetendo ao pensamento de Sarlet, a dignidade humana pode ser conceituada como “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade.”. Esse pensamento doutrinário visa a mudança da noção de dignidade, agora abraçando todas pessoas, independente de características físicas ou sociais, desligando-a da ideia de autoridade. (SARLET, 2002, p.62).
Mesmo com tanto cuidado com o tratamento da dignidade da pessoa humana em nossa legislação, ainda é real as desigualdades sociais que assolam determinadas regiões do nosso país, e a seletividade de núcleos de investimento do Estado. Isso acaba tornando uma utopia tal tratamento com a pessoa humana, que na práxis, luta com o descaso estatal.
2. OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA E ROMPIMENTO DE BARRAGEM.
Essa é a realidade dos sertanejos do Nordeste brasileiro, mais especificamente dos habitantes das Cidades de Coronel João Sá e Pedro Alexandre (cidades vizinhas), que no Dia 11 de Julho de 2019, foram assoladas por um mar de água advindo do rompimento da Barragem do Quati, a qual, abastecia ambas as cidades.
O rompimento foi causado em recorrência de fortes chuvas que caíram durante a semana na região, o que causou o sangramento de barragens particulares que se encontram nas propriedades rurais próximas a barragem, possuindo elas a função de reservatório hídrico para o abastecimento da propriedade nos períodos de seca.
Como consequência dessa evasão de água, todo o excedente foi deslocado para a Barragem do Quati, que, por não suportar tamanha quantidade, veio a ceder, levando a água para as cidades, causando destruição por todo trajeto, afetando diretamente a vida da população dessa região, esta, já tão sofrida historicamente pela seca, vive, em uma condição de contraste, a transmutação do sertão em mar.
O rompimento, de acordo com a Superintendência da Defesa Civil da Bahia (Sudec), deixou 470 desabrigados e 2.770 desalojados, em ambas as cidades, afetando diretamente a vida de 14,4 mil pessoas. Só em Coronel João Sá, cidade mais afetada pelo rompimento, foram 390 desabrigados e 2.010 desalojados, cerca de 14% da população local, que, de acordo com o IBGE, não passa de 17.000 habitantes.
Tal acontecimento não pode ser visto de maneira superficial, e nem tratado como um acaso. É necessário se adentrar nas raízes do semiárido brasileiro, como fez o jornalista Euclides da Cunha no início do século XX, no seu famoso ensaio jornalístico-literário “Os sertões”, e observar que o descaso com o sertão e a falta de tratamento digno com o sertanejo é cultura do poder nacional desde aquela época.
No ensaio, Euclides expõe todo o contexto que desencadeou a Guerra de Canudos, verificando a sonegação de Direito básicos, como alimentação e saúde, entre outros que o sertanejo sofria naquele período. Para fugir dessa bruta realidade, os habitantes de Canudos encontraram a fulga no divino, este, representado por um homem magro, velho e andarilho chamado Antônio Conselheiro, o profeta do sertão, na qual a devoção era tamanha, que fez os sertanejos levantarem as inchadas contra o Estado.
Durante sua jornada, Euclides observou também as dificuldades geográficas do bioma caatinga, presente nessa região, sendo caracterizado pelo:
[...] aspecto doloso: árvores sem folhas, de galhos extorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rigidamente no espaço ou esterando-se flexuoso pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante. (CUNHA, 1967, p. 38)
Mesmo se passando mais de 100 anos, o mesmo sertanejo de Canudos ainda luta contra os mesmos vilões, a falta de assistência estatal e a seca. Sendo a descrição de Euclides, mesmo se passando tanto tempo, perfeita para os moradores das cidades afetadas pelo rompimento da Barragem do Quati, pois as cidades Coronel João Sá e Pedro Alexandre se distanciam de Canudos por menos de 200 km.
Dona de uma riqueza histórica, a cidade de Coronel João Sá foi emancipada em 28 de julho de 1962, mas sua história começa bem antes, quando ainda se chamava Arraial Bebedouro. De início o Arraial fez parte da capitania hereditária de Pernambuco, depois foi inserida na sesmaria de Garcia D’Ávila, homem muito conhecido por desbravar o interior nordestino. Outro acontecimento relevante eram as aparições do Rei do Cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, em vários capítulos de sua vida. (Coronel João Sá, 2017)
Em contraste com a riqueza cultural do antigo Arraial Bebedouro, encontramos a pobreza do desenvolvimento humano nas cidades de Coronel João Sá e Pedro Alexandre em pleno 2019, onde a maioria das pessoas vivem uma vida semelhante a que a população de Canudos viveu nas palavras de Euclides da cunha no início do século XX, uma vida de Direitos suprimidos, mesmo na vigência da atual Constituição cidadã.
De acordo com o IBGE, a cidade possui um IDH muito abaixo da média nacional, sendo ela de 0,562, enquanto a nacional 0,699 (o IDH de Pedro Alexandre, cidade afetada com menor intensidade, é ainda menor, 0,513). Outro dado alarmante é o assustador percentual de esgotamento sanitário de apenas 29,5% no município, mostrando o desnivelamento comparada com outras regiões do Brasil.
Esses dados comprovam a não efetivação do artigo 3°, inciso III da Constituição Federal de 1988, que, apesar de ter mais de 30 anos de vigência, ainda não procurou “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” de uma região, que nas palavras de Euclides da Cunha sofre pelo “cautério das secas”.
Apesar de ser uma região marcada por longos períodos de estiagem e com o baixo índice pluviométrico anual, de acordo com o Departamento de Ecologia IB-USP, é característico do bioma caatinga (bioma das cidades citadas) as chuvas pesadas após grandes períodos de seca, isso devido as irregularidades de chuvas decorrentes no ano. Foi em uma dessas chuvas pesadas que a barragem do Quati rompeu, chovendo, de acordo com o G1, 100 mm em menos de 24 horas, sendo que a estimativa era de 54 mm para todo mês.
Esse fenômeno natural é descrito muito bem na música “Súplica Cearense”, música do baiano Gordurinha, eternizada na voz de Luís Gonzaga na década de 60, que aborda o relato de um sertanejo apegado com a religião, clamando para o fim da seca, mas é pego de surpresa pela tempestade destruidora:
Oh! Deus, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar.
Oh! Deus, será que o Senhor se zangou
E só por isso o sol se arretiou
Fazendo cair toda chuva que há.
(Gordurinha, 1967)
De acordo com o site Clemate-data, a média anual de chuva nessas cidades é de apenas 531 mm, mas, na semana do rompimento da barragem, choveu 180 mm, o que corresponde, aproximadamente, 34% das chuvas do ano. Relatos de moradores mostram lugares onde a água chegou a subir 1,5 metros de altura nas casas que ficam na parte baixa da cidade, (G1, 2019).
De acordo com a Superintendência de proteção e Defesa Civil da Bahia, o rompimento da barragem do Quati, barragem construída nos anos 2000 pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), aconteceu em decorrência das fortes chuvas inesperadas que vinheram a romper alguns açudes menores na região, levando excesso de água para barragem, que não aguentou o acúmulo excessivo e cedeu, causando todo o estrago. (G1, 2019)
Já a ANA, Agência Nacional de Águas, responsável pelas barragens brasileiras, em nota, informou que não é sua atribuição a fiscalização pela referida barragem, e sim atribuição do Governo estadual. Neste mesmo pronunciamento feito ao G1, ela também revelou a existência de mais de 24 mil barragens para os mais diversos usos no país, sendo que o percentual das cadastradas na referida agência é de apenas 5.085.
Em contrapartida, o Governo do Estado, responsável pela barragem do Quati, segundo a ANA, afirmou que tal barragem, por ser de pequeno porte, não se enquadra na lei de segurança de barragens, e, portanto, não seria de sua competência fiscalizá-la. (G1, 2019)
Enquanto surgem debates entre as autoridades competentes sobre quem seria o real responsável pelo rompimento da barragem, fica nítido a supressão de direitos básicos com uma população, que apesar de já ser sofrida pela seca, agora ainda tem que lhe dar com as consequências advindas da inundação.
3. CONCLUSÃO
Nesse debate não se encontram culpados, mesmo a ANA admitindo a falta de regularização em quase de 20.000 barragens em todo Brasil, e ainda, sendo previsível esse tipo de chuva devido à instabilidade do bioma caatinga. Esses dados escacaram a falta de políticas públicas de segurança de barragens, a quais poderiam evitar a tragédia, ou melhor, mostra a não aplicação das leis de regulamentação e a falta de organização da administração pública.
O impacto causado pela água advinda do rompimento trouxe diversas consequências nas vidas das pessoas atingidas, sofrendo elas: danos ambientais, violações de direitos culturais, rompimentos de laços de afetividades, direito básico à alimentação e água potável, por mero descaso, recurso que em determinadas épocas do ano se tornam demasiadamente escasso.
Em uma terra regida pelo Estado Democrático de Direito, onde o Princípio Jurídico mais importante é a Dignidade da Pessoa Humana, as autoridades se fazem surdas ao grito do sertão, antes feito por Euclides em 1901, agora com som mais alto feito pela explosão da barragem, um grito de dignidade e atenção do povo nordestino cansado, rico em cultura mas desprezado de assistência, que é antes e apesar de tudo, remetendo a voz de Euclides da Cunha, um forte!
REFERÊNCIAS
DICIO. Significado de Dignidade. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/dignidade//>. Acesso em: 12 de Agosto de 2019.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 2° ed.rev.amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: A campanha de Canudos. Edições de Ouro (Coleção Clássicos Brasileiros). Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967.
G1 BA. O que se sabe sobre a inundação provocada pelo rompimento da barragem do quati na Bahia. Disponível em: <https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/07/18/o-que-se-sabe-sobre-a-inundacao-provocada-pelo-rompimento-da-barragem-do-quati-na-bahia.ghtml/>.Acesso em: 12 de Agosto de 2019.
DEPARTAMENTO ECOLOGIA IB-USP. Caatinga. Disponível em:<http://ecologia.ib.usp.br/index.php/8-noticias/10-caatingas/>. Acesso em: 12 de Agosto de 2019.
Coronel João Sá. História do Município. Disponível em: <http://www.coroneljoaosa.ba.gov.br/historia-do-municipio//>. Acesso em: 10 de Agosto de 2019.
CLIMATE-DATA. Clima Coronel João Sá. Disponível em: <https://pt.climate-data.org/america-do-sul/brasil/bahia/coronel-joao-sa-42943//>. Acesso em: 11 de Agosto de 2019.
IBGE. Coronel João Sá. Disponível em:< https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ba/coronel-joao-sa.html/>. Acesso em 12 de Agosto de 2019.
IBGE. Pedro Alexandre. Disponível em:< https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/ba/pedro-alexandre.html />. Acesso em 12 de Agosto de 2019.
NAÇÕES UNIDAS. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em:<https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf/> Acesso em: 12 de Agosto de 2019.
Aluno do 4 período do Curso de Direito do Centro Universitário São Francisco de Barreiras
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: QUEIROZ, Tauan Rodrigues. Rompimento da barragem do Quati, um grito pela dignidade dos sertões Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 out 2019, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53639/rompimento-da-barragem-do-quati-um-grito-pela-dignidade-dos-sertes. Acesso em: 26 nov 2024.
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