RESUMO: Este artigo, elaborado por meio de pesquisa bibliográfica, aborda o conceito do trabalho escravo desde a antiguidade até a idade contemporânea, fazendo um comparativo entre estes e breves referências sobre as relações de trabalho durante os períodos da história da humanidade, partindo da pré-história, passando pelas idades antiga, média, moderna, aportando nos dias atuais da idade contemporânea, com o intuito de explicitar a evolução das relações de trabalho, bem como do conceito de trabalho escravo durante o curso da história, objetivando mostrar que a força de trabalho sempre foi explorada, independentemente do motivo, e que essa força continua a sofrer abusos, mesmo com o avanço da legislação, como no caso do trabalho escravo contemporâneo, por exemplo; Que a cultura da escravidão ainda está arraigada no seio da sociedade, ainda que com mudanças no “modus operandi”. Assim, o mesmo trabalho que pode transformar a vida do indivíduo, tornando-a digna, pode, quando comandado por pessoas que não valorizam a existência e a humanidade e, não respeitam a lei, se transformar numa ferramenta de tortura, humilhação e destruição.
PALAVRAS-CHAVE: Escravidão. Trabalho. Evolução. Princípio Constitucional. Dignidade.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 O Trabalho Como Dimensão Social da Dignidade Humana. 2 Breve Histórico da Escravidão no Brasil: da colônia à república. 3 A Relação de Trabalho Enquanto Emprego: A Nova Configuração da Escravidão No Sistema de Capital. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Este artigo científico aborda a problemática da escravidão, desde a clássica até a mais atual, conhecida como contemporânea.
Decidiu-se por este tema, por ser um fenômeno marcante, degradante, presente e que acompanha a história da humanidade, podendo ser observado desde tempos longínquos até os dias de hoje.
Como é sabido, nos primórdios havia em algumas sociedades, a previsão legal para tal prática, dispondo o tratamento que devia ser dado ao cativo, bem como punições para os homens livres que atuassem fora do disposto, como por exemplo, de acordo com o que se extrai do Código de Hamurabi, sobre a questão da punição com pena de morte para quem recebesse um escravo fugitivo e não o apresentasse, quando sabendo tratar-se como de escravo em tal condição.
Com esse trabalho, busca-se estudar o conceito de escravidão, evidenciando as mudanças, bem como observar a evolução nas relações de trabalho no decurso da história humana.
No item 1, fez-se uma regressão na busca de encontrar entendimento sobre o trabalho, seu conceito e origem, bem como de entender o significado de dignidade humana, para, conhecendo ambos os conceitos, poder falar do trabalho como dimensão social, como instrumento indissociável da construção das sociedades, pois, entende-se, que não há construção social, ou desenvolvimento social, sem que haja o trabalho. Neste mesmo item, também se pode ter a noção de como a escravidão foi instituída e mantida no mundo, durante muito tempo, até o ponto de não ser mais permitida, por meio da via legal. Observa-se que de acordo com a forma de trabalho e de acordo com o modo de organização da economia de determinado lugar, pode-se ter noção de como era a sua vida política e social.
No item 2, realizou-se um breve histórico da escravidão no Brasil, mencionando o seu início com o uso da mão de obra local, ou seja, indígena, seguida da escravidão do negro africano (que durou quase quatrocentos anos), trazido pelos portugueses para trabalhar na recém descoberta colônia de exploração. Para concluir este tópico, menciona-se como se deu a abolição da escravatura (clássica) em terras brasileiras e as leis que corroboraram para que isso pudesse acontecer, contudo, alega-se a existência de uma outra modalidade de escravidão, com um funcionamento um pouco diverso da antiga e, sendo vedada pela legislação vigente.
No item derradeiro, buscou-se dar uma melhor noção das mudanças na concepção de trabalho na atualidade, promovendo um comparativo de como se via o trabalho antigamente e como ele é tratado nos dias contemporâneos. Também neste tópico, trabalha-se o conceito de trabalho análogo ao de escravo, ou escravidão contemporânea, explicitando os mecanismos legais de vedação a essa prática presentes no ordenamento jurídico brasileiro e em legislações internacionais, contudo, deixando claro que é possível ser escravo na atualidade, ainda que se tenha um contrato de trabalho, bastando para isso, que se encontrem presentes os requisitos dispostos no art. 149 do Código Penal Brasileiro. Finda-se este tópico, fazendo referência à tentativa do Governo Brasileiro, no ano de 2017, por meio de portaria ministerial, alterar o conceito de trabalho análogo ao de escravo (o que dificultaria a caracterização deste), mudando formas de fiscalização e dificultando a divulgação dos nomes dos empregadores flagrados e condenados como utilizadores da referida mão de obra, ato que foi rapidamente rechaçado pela sociedade e organismos internacionais, suspenso pelo Supremo Tribunal Federal e substituído por meio de outra portaria ministerial.
1 O TRABALHO COMO DIMENSÃO SOCIAL DA DIGNIDADE HUMANA
Em primeiro lugar é bom que se entenda o significado dos termos trabalho e dignidade da pessoa humana.
Segundo o dicionário Michaelis, significa:
1 Conjunto de atividades produtivas ou intelectuais exercidas pelo homem para gerar uma utilidade e alcançar determinado fim;
2 Atividade profissional, regular, remunerada ou assalariada, objeto de um contrato trabalhista.
Karl Marx define o trabalho como sendo a atividade sobre a qual o ser humano emprega sua força para produzir os meios para seu sustento.
Hannah Arendt, em sua obra “A Condição Humana”, 2007, p. 08, explica que:
O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho. [...] O trabalho assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie.
Em relação à dignidade da pessoa humana, tem-se como um dos princípios bases da Constituição da República federativa do Brasil de 1988, sendo um dos fundamentos desta (assim como “os valores sociais do trabalho”), conforme Artigo 1º, III, da Carta Magna brasileira, como segue:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Descrita pela doutrina como um dos mais importantes princípios do estado democrático de direito, tem, dentre outra tantas, a seguinte definição:
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (Moraes, 2003, p.41)
Posto isso, dando prosseguimento no estudo, sabe-se que de acordo com interpretações dos versículos 17 a 19, do capítulo 3, do livro de Genesis (trecho transcrito abaixo), o primeiro livro da Bíblia Sagrada Cristã, o trabalho, no início da criação da humanidade foi dado como castigo a Adão e Eva por terem descumprido determinações de Deus para que não comessem do fruto proibido.
17 - E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.
18 - Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo.
19 - No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás.
Apartando-se da ideia religiosa Cristã e, conforme se pode observar no estudo da história, os historiadores sugerem que o trabalho surge naturalmente como meio de satisfação das necessidades básicas dos seres humanos, tais como, alimentação e proteção, por exemplo.
Informam que para os humanos da pré-história (início dos tempos até 3.500 anos a.C) satisfazerem as referidas necessidades, tiveram que fabricar utensílios que facilitassem sua sobrevivência, usando o fogo, pedras, madeira, ossos e outros materiais extraídos da natureza.
Basicamente, o trabalho nesse período era dividido da seguinte maneira: homens eram responsáveis pela caça e defesa dos agrupamentos; mulheres eram responsáveis pela coleta, especialmente de frutos, tudo unicamente para a subsistência.
Na referida sociedade, não havia a sujeição do homem pelo homem, e todo trabalho realizado era em prol do bem estar comum. Essa boa relação viria a mudar mais adiante, quando as pessoas passaram a domesticar algumas plantas e animais, e tornaram a estocá-los, surgindo outros modelos de interação social.
Um pouco mais a frente no tempo, na idade antiga (3.500 a.C até 476 d.C), o trabalho humano (trabalho manual e/ou braçal) era usado como forma de punição. Esse tipo de trabalho era executado por escravos, prisioneiros de batalhas e pessoas que não podiam pagar os impostos. De acordo com a etimologia da palavra “trabalho”, esta deriva do latim “tripalium”, formada a partir da junção dos termos tri, que significa três, e palum, que significa madeira. O “Tripalium” era usado inicialmente para triturar grãos, e posteriormente, como instrumento de tortura a qual eram submetidos os personagens históricos citados no início do parágrafo. No mencionado período da história humana, o ócio, a contemplação e o trabalho intelectual cabiam apenas aos pensadores, filósofos e aos homens livres.
A prática da escravidão foi aceita durante milênios, por várias sociedades em todo o globo terrestre, possuindo diferentes características e funcionando de modos distintos.
No oriente médio, na região da Mesopotâmia, onde atualmente é o Iraque, teve-se o Código de Hamurabi, um conjunto de leis escrito no século XVIII a.C (por volta do ano 1772 a.C), e descoberto por arqueólogos no início do século XX, considerado a mais antiga legislação da história. Nele, além de várias outras previsões, estava previsto o tipo de tratamento que deveria ser dispensado aos escravos e a quem lhes dessem guarida.
Segundo a historiadora e consultora em ciências humanas, Marta Iansen, em publicação em seu blog[1] datada de 25 de maio de 2017, se um escravo dissesse ao senhor que este não era de fato o seu senhor, e o escravo fosse considerado culpado, este poderia ter uma orelha cortada pelo seu senhor.
Segue explicando que havia previsão de punição com pena de morte a quem recebesse um escravo fugitivo em sua casa, fosse ele propriedade da corte ou de um homem livre, e que, depois de divulgado o aviso de fuga não o apresentasse.
O Código de Hamurabi era alicerçado na “Lei de Talião”. Referida lei, conhecida pelo jargão “Olho por olho; Dente Por dente”, previa que quem causasse um dano a alguém deveria pagar recebendo o mesmo dano, contudo, isso não estava em voga quando uma das partes era um escravo. Se um homem livre ferisse um escravo, ele deveria pagar um valor, que chegava a metade do valor deste ao seu senhor. O escravo a nada teria direito.
Porém, afirma referida historiadora que se podia enxergar algum traço de humanidade no Código em epígrafe, quando este previa algumas regras que daria algum benefício aos escravos, quais sejam: um escravo filho de um homem livre com uma escrava de sua propriedade poderia vir a herdar seus bens se, o senhor reconhecesse o filho da escrava como sendo seu. Se assim não o fizesse, o filho nada herdaria, contudo, seriam imediatamente postos em liberdade, após a morte do senhor (filho e mãe). Se nascidos livres, por ocasião da impossibilidade de quitar dívidas, precisassem vender a si ou membros de sua família, para executarem trabalhos forçados, estes seriam postos em liberdade no quarto ano, segundo afirma, Marta Iansen.
Em relação às Leis de Manu (1.300 a 800 a.C), essas são tidas como a primeira organização geral da sociedade sob a forte motivação religiosa e política. [...] Ele está entre os mais importantes livros sagrados para os indianos, dividindo-se em religião, moral e leis civis (Costa, Ribeiro e Brasil, 2014, p.89).
Como é de conhecimento mundial, na Índia existe ainda hoje, em alguns lugares, a divisão social pelo sistema de castas, no qual uma está subordinada a outra e todas subordinadas à casta mais superior, ou seja, a dos Brâmanes (a casta mais pura). Nesse sistema não é permitida a ascensão social. No entendimento do povo indiano, aquele que nasce em determinada casta, deve permanecer até o dia de sua morte, casando-se e tendo várias outras relações com os membros da casta a qual é pertencente e, dependendo do seu desempenho na encarnação atual, poderá subir ou descer no nível social numa possível próxima encarnação, conforme se pode observar em um dos artigos do Código de Manu, transcrito a seguir:
Art. 751º Um Sudra, puro de espírito e de corpo, submetido às vontades das classes superiores, doce em sua linguagem, isento de arrogância e se ligando principalmente aos Brâmanes, obtém um nascimento mais elevado.
Para os Hindus, a religião era o Vedismo, que vem de Veda e significa “a soma de todo conhecimento”, apoiava-se na crença na reencarnação e, através desta, os Hindus puderam basear e firmar sua estrutura social e sua legislação. Para eles, o reencarnar em uma situação boa ou ruim na próxima vida dependia intimamente de ser bom ou não na vida presente. (CASTRO, 2010, P.46, Apud COSTA, RIBEIRO e BRASIL, 2014, p.91).
De acordo com estudiosos, o sistema existente na Índia, pelo fato de não permitir a evolução social, isola e dá azo às desigualdades, vez que condena pessoas, muitas das vezes, a serem mantidas em vidas miseráveis somente por respeito ao sistema que se acreditam criado pelo Pai da Humanidade, Manu, o filho de Brahma.
Já no continente africano, na sociedade egípcia antiga (3.200 a 715 a.C), por exemplo, mesmo homens livres eram obrigados a trabalhar para o Estado por um período de tempo, sem que fossem remunerados pelo serviço prestado.
Na Roma Antiga (Século VIII a.C), a maioria das atividades era imposta aos escravos, inclusive no que diz respeito ao entretenimento, quando estes eram obrigados entrar na arena e lutar até a morte como gladiadores, muitas vezes tendo embates com animais ferozes, que quando não os matavam, deixavam-nos mutilados.
“Em Roma, como em outros lugares, o escravo é um ser privado de direito. Do ponto de vista jurídico é uma coisa ou, se prefere, um animal” (Lévy-Bruhl, 1934, p. 16-17, Apud VASCONCELOS, 2012, Revista UFG).
No mesmo sentido, José Carlos de Matos Peixoto (1955, p. 255, Apud VASCONCELOS, 2012) explica que:
A condição jurídica do escravo é dominada pelo princípio de que o escravo é uma coisa (res), um animal de que o proprietário pode dispor à vontade, tendo sobre ele o poder de vida e morte (vitae necisque potestas). Sendo apenas uma coisa, um animal, o escravo não tem personalidade: servus nullum caput habet (Gaius I 1, 16, de capitis minutione, 4). Em consequência, o escravo não podia ter família e a união entre escravos ou de escravo ou escrava com pessoa livre de outro sexo era fato puramente material (contubérnio). Não podia tampouco possuir patrimônio, não lhe sendo, pois, lícito ser proprietário, credor ou devedor, nem deixar herança. Não podia igualmente ser parte em juízo, porque o processo somente era acessível aos homens livres. Se alguém causava ao escravo uma lesão corpórea, ele não tinha o direito de queixar-se à autoridade: este direito competia ao senhor, como se tratasse de um animal ferido ou de um objeto danificado. Como as outras coisas, o escravo podia ser objeto de propriedade exclusiva ou de copropriedade; e, se era abandonado, nem por isso ficava livre: tornava-se então uma coisa sem dono (servus sine domino), de que qualquer um podia se apropriar.
Os escravos na Roma Antiga estavam sujeitos a serem submetidos a qualquer sorte de trabalho, a depender da vontade do seu proprietário, podendo incluir até vantagens de cunho sexual.
Na Grécia, outro berço da escravidão mundial, o famoso filósofo Aristóteles dizia que o escravo era um instrumento. Lá, a escravidão, assim como nos outros locais mencionados anteriormente, era considerada natural e necessária.
Em seguida, no início da idade média (476 d.C a 1.453), o trabalho passou a ter também um caráter religioso e, consequentemente, restando intimamente ligado com a Igreja (Católica), no mundo ocidental, que detinha grande influencia na formação das sociedades da época, visto que contava com vasto poder e riqueza. Nesse período, o trabalho já não possuía tanto um caráter punitivo na perspectiva senhor x escravo, mas, em caráter penitencial. O trabalho então era tido como mais uma ferramenta para expurgar os pecados e evoluir espiritualmente; um modo de vencer as necessidades físicas e materiais, tornando o indivíduo manso e nobre de espirito. É também na idade média que o mundo vê o surgimento do feudalismo e, como consequência, das vilas e cidades.
Era nos feudos que as relações sociais se desenvolviam quase que em sua totalidade, pois neles, o senhor feudal exercia seu poder e os colonos (servos) desenvolviam seu trabalho, do qual dispunham apenas de pequena parte para seu sustento, visto que a maior, era entregue aos senhores.
Os feudos eram organizados basicamente de duas formas: “comitatus” e “colonato”. No primeiro modelo, havia a união dos senhores de terras, unidos pelo que se conhece como vassalagem. Por esse sistema, firmavam compromisso de fidelidade e honra entre os envolvidos. No segundo, de origem romana, havia um acordo de proteção e trabalho entre os colonos e os senhores das terras. Os senhores cediam as terras para que os colono as cultivassem e, em contrapartida, os colonos se obrigavam a deixar grande parte da produção nas mãos dos seus senhores.
Como se observa, no período feudal, o trabalho era caracterizado pela sua forma servil e quase todo o seu fruto era revertido em benefício do senhor da terra. Ao trabalhador, restava uma pequena porção para prover sua subsistência e, um espaço de terra para construir sua moradia.
A servidão difere-se da escravidão (clássica) em alguns termos, principalmente no quesito liberdade. Os servos possuíam certa liberdade, ou seja, poderia deixar as terras dos senhores e ir trabalhar em outras terras e para outros senhores, desde que nada devessem ao primeiro. No caso dos escravos, a liberdade não fazia parte de suas vidas, uma vez que eram propriedades dos senhores escravagistas e como propriedade, estavam ligados a estes enquanto fossem seus proprietários.
Na época medieval já existia, mas, apesar de ainda bastante incipiente, alguma atividade mercantil baseada predominantemente, mas não exclusivamente, na troca. Além da mencionada atividade, viam-se grupos de artesãos, pedreiros, carpinteiros, dentre outros, se formarem por todos os cantos, o que viria mais tarde, com a queda do regime feudal, dar origem às corporações de ofício.
Avançando um pouco na história da humanidade e, consequentemente, na história do trabalho, chega-se à Idade Moderna (1453 a 1789), período de inúmeras invenções e descobertas; período das grandes navegações, nas quais os europeus saíram em busca de novas terras a serem exploradas e, novos mercados para negociarem os frutos das explorações. Esse é o período compreendido entre a idade média e a idade contemporânea, que tem como ponto inicial a queda do Império Bizantino e a tomada de Constantinopla, no ano de 1453 e seu termo, com o início da Revolução Francesa, datado de 1789.
Em que pese o fato de a idade média ter sido considerada a intermediária entre a escravidão e o trabalho livre, importante ressaltar que durante quase toda a idade moderna utilizaram-se da mão de obra escrava parte do mundo, principalmente nas novas colônias descobertas pelos europeus nas Américas e na África.
A Idade Moderna (foi palco de memoráveis revoluções, das quais, além da Revolução Francesa (cujos personagens centrais foram os burgueses e camponeses, que se levantaram contra os privilégios e contra a tirania dos poderes absolutistas - monarcas e clero -, carregando consigo os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, surgidos durante o Iluminismo, e que culminou com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma das primeiras cartas a versar sobre o que mais tarde viria a ser entendido como Direitos Humanos (ou direitos e garantias fundamentais, quando inseridos nos textos constitucionais) e, que viria a servir de base para a criação de diversas Constituições dos países do mundo ocidental, incluindo a do Brasil), pode-se citar também a Revolução Inglesa, ocorrida antes da Francesa, e que foi uma também uma revolução burguesa, considerada a primeira manifestação de crise do Absolutismo, que teve início com a Revolução Puritana, de 1640 e terminou com a com a Revolução Gloriosa, em 1688, culminando na elaboração da Bill Of Rights – Declaração de Direitos-, em 1689, fazendo nascer a monarquia parlamentarista no Reino Unido.
Nesse meio tempo o capitalismo dava seus primeiros passos e, mais tarde, surgiria a Revolução Industrial, que historicamente foi dividida em duas etapas. A primeira, ocorrida entre os anos de 1760 e 1860, ficou limitada às terras inglesas, período em que se desenvolveram as indústrias do algodão com o advento do tear mecânico. A segunda etapa, ocorrida entre os idos de 1860 1900, bem mais abrangente que a primeira, incluiu países como Itália, França e Alemanha. Aí, passou-se empregar com maior efetividade o aço, a energia elétrica, a locomotiva a vapor, bem como os combustíveis de origem fóssil.
Tem-se, com a Revolução Industrial, o aparecimento das máquinas e inúmeras mudanças ocorreram no mercado de trabalho, dentre as quais, e apenas a título de exemplo, pode-se citar que antes o trabalhador participava de toda a concepção do produto, o que acabava por tornar este, parte daquele. Com o advento das máquinas, os trabalhadores passaram a ficar encarregados por parte da fabricação, sem vislumbrar, em alguns casos, o resultado ou fruto do seu empenho, do seu trabalho. Marx diz que essa é uma das diferenças entre o modo de produção pré-capitalista e o capitalista, a impessoalidade inserida neste. Marx segue explanando que, pelo fato de o trabalhador não possuir os meios de produção e, por conta disso, não ter como produzir para sanar suas necessidades, acaba sendo obrigado a vender o único produto que detém, qual seja, a sua força de trabalho.
Com a Revolução Francesa, tem-se o “start” da Idade Contemporânea (1789 aos dias atuais) e, nela, o capitalismo ultrapassa os primeiros passos e se consolida e se expande como modelo econômico. As relações mercantis, uma das bases desse modelo econômico, passam a se desenvolver, ganhar novos ares e se tornar mais complexas.
Como efeito das mencionadas revoluções e de muitos outros movimentos sociais e políticos que vieram a surgir, nascia uma nova mentalidade, e pessoas começam a deixar de serem tratadas como coisas, como objeto de propriedade das outras, para serem tratadas um pouco mais como seres humanos, dotados de alma e de sentimentos. Atitudes que visavam resgatar, ainda que minimamente a dignidade, o respeito e a fraternidade. Países passaram a abolir a escravatura e recusaram-se a manter relações comerciais com que ainda se servia desse sistema.
O trabalho que, anteriormente, no decorrer de boa parte da história da humanidade, era utilizado como forma de exploração, de submissão do homem pelo homem; que era utilizado para punir, para causar dor e, mais que isso, para separar os livres e nobres de qualquer outra casta subalterna, passa a revestir de outra roupagem, agora um pouco menos humilhante e menos desprotegida. O trabalho que, em outros tempos, era unicamente uma ferramenta de supressão da dignidade humana, passa a listar como um dos componentes essenciais para que ela seja preservada, passando a obter suporte nas constituições e nas legislações infraconstitucionais, mundo afora, suporte este que, a partir do século XIX principalmente, passou a resguardar direitos e benefícios aos trabalhadores, tais como seguridade social, férias, décimo terceiro salário, licenças remuneradas, fgts e até uma justiça especializada, como é o caso da Justiça do Trabalho (tem-se o Brasil como referência para as referidas informações). Apesar disso, muitos Estados ainda engatinham na elaboração de instrumentos de proteção do trabalho, do trabalhador e do ser humano em geral.
O Brasil (cujo histórico será adequadamente abordado no próximo tópico), “descoberto” em 22 de abril de 1500, sendo colonizado mais intensamente apenas a partir do ano de 1530, somente em 13 de maio de 1888 teve abolida a escravatura (após quase quatro séculos de duração) por força da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel. Três anos depois, no ano de 1891, viria a ser promulgada a segunda Constituição brasileira. A primeira, de 1824, não trazia regras de proteção de direitos trabalhistas. A segunda, ainda que de forma bem discreta, garantiria o exercício de qualquer profissão e permitiria a livre associação. Somente a partir da Constituição, a de 1934, o Estado brasileiro passaria a proteger o trabalhador, como por exemplo, no artigo 113, n. 34 que trazia em seu texto o que segue:
“A todos cabe o direito de prover à própria subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto. O Poder Público deve amparar, na forma da lei, os que estejam em indigência.”
Movimentos migratórios de caráter mundial eram registrados. Motivado pelo fim do período escravagista, o Brasil passa a receber imigrantes de várias partes do globo, em especial, italianos e posteriormente alemães, japoneses, árabes, turcos dentre vários outros, passando a desenvolver cada vez mais a atividade agrícola, pecuária, extrativista e, abrindo espaço para o surgimento de pequenas indústrias têxteis, e comunidades agropecuárias, por exemplo.
Por conta de duas grandes guerras mundiais ocorridas no inicio do Século XX e por conta da violência dos conflitos, bem como dos resultados desastrosos e penosos, o mundo passa a investir cada vez mais intensamente em instrumentos de proteção de pessoas e Estados; passa a investir em educação, saúde, segurança e no trabalho. Organizações com intuito de promover o desenvolvimento comum e a paz mundial, dentre outras providencias, são criadas, como por exemplo, a Organização das Nações Unidas – ONU e a Organização Internacional do Trabalho - OIT.
Como se observa, o trabalho sempre foi elemento central na formação e desenvolvimento das sociedades. De acordo com as formas existentes de trabalho, de acordo com os modelos de relações trabalhistas e suas peculiaridades, pode-se ter noção de como era a sociedade de determinada época. Se o trabalho era forçado e sem se reverter em benefícios reais aos trabalhadores, tinham-se sociedades absolutistas, totalitárias. À medida que se observam melhorias e contrapartidas realmente vantajosas para o trabalhador na relação trabalho x beneficio, tem-se sociedades mais livres, mais humanas e democráticas, com raras exceções.
2 BREVE HISTÓRICO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL: DA COLÔNIA À REPÚBLICA
Nas palavras de Jaime Pinsky (2010, p. 06), a escravidão em terras brasileiras decorreu da descoberta do país pelos portugueses. Na mencionada publicação o autor afirma não existirem registros de relações escravistas de produção nas sociedades indígenas, apenas casos esporádicos de cativos feitos após lutas entre tribos, que não afetavam a estrutura econômica nem as relações de produção do grupo vencedor.
No caso da escravidão do negro africano, esta, segundo Boris Fausto, começou a ser incentivada no Brasil a partir da década de 1570, motivada pelas dificuldades em se escravizar os indígenas, que resistiam aos desmandos impostos pelos brancos europeus e por conta do alto índice de mortalidade dos nativos, vitimados pelas doenças adquiridas quando do contato com os colonizadores.
O processo de abolição da escravatura no Brasil se deu de forma gradual. Em 1758 a Coroa determinou a libertação dos índios, apesar de que, nesse período, esse tipo de mão de obra se via muito pouco empregado. Em relação ao negro, teve início com a Lei Eusébio de Queirós, que foi promulgada em 04 de Setembro de 1850, tendo como objetivo, proibir o tráfico negreiro em terras brasileiras. Em seguida, cerca de pouco mais de vinte anos, veio a Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871, que dispunha que a partir daquela data os filhos nascidos de escravas seriam livres. Essa lei foi seguida pela Lei dos Sexagenários, promulgada em 28 de setembro de 1885, que libertava os escravos com 60 anos ou mais. O processo foi finalizado pela Lei Áurea (Lei nº 3.353), sancionada pela Princesa Isabel no ano de 1888. A mencionada lei libertou todos os escravos que ainda restavam no Brasil.
Apesar de todas as leis acima mencionadas e apesar de a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 elencar um rol de direitos e garantias fundamentais, entendidos também por direitos humanos (quando fora do texto constitucional) e, mesmo com o surgimento de uma série de mecanismos de proteção à pessoa humana, é bastante comum verificarem-se casos de trabalho análogo ao trabalho de escravo no País, principalmente no campo e em indústrias têxteis, nas quais seres humanos são submetidos a toda sorte de maus tratos e de supressão de direitos, desde os trabalhistas até os mais básicos, como os que deveriam garantir a dignidade humana.
São homens, mulheres e crianças abandonados à própria sorte. Vítimas da corrupção desenfreada e absurda que assola o país, desde as grandes metrópoles até os mais longínquos distritos e vilarejos; em todos os setores e em todas as esferas de governo. Vítimas da ambição que lhes suprime o direito de acesso à educação e ao conhecimento. Vítimas de um sistema que não lhes permite ter a menor noção dos seus direitos enquanto cidadãos, para que não os conhecendo, não os possam reclamar.
3 A RELAÇÃO DE TRABALHO ENQUANTO EMPREGO: A NOVA CONFIGURAÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO SISTEMA DE CAPITAL
De acordo com o que se extrai de todo o exposto, observa-se que com o passar do tempo e com a dinâmica da vida em sociedade, o trabalho foi sofrendo várias mudanças, inclusive no que tange a sua utilização. O que a princípio era motivo de vergonha e humilhação, passou a ser uma das mais importantes ferramentas para se alcançar a dignidade humana, fazendo com que as pessoas passassem a ter prazer em desenvolver a atividade laboral.
Se nas sociedades de outrora (com exceção da pré-história) as pessoas eram obrigadas a trabalhar para outras, sob as mais cruéis e degradantes condições e sem que houvesse qualquer retorno por conta do referido exercício, na atualidade, muitas vezes as pessoas se obrigam a trabalhar, e quem está fora do mercado de trabalho é, muitas vezes, julgado por seus pares e recebe manifestações de desprezo e desdém, além de incontáveis adjetivos pejorativos.
Como se vê, é por meio do trabalho e, consequentemente, da remuneração financeira que ele gera que as pessoas da atualidade conseguem formar seu patrimônio, conseguem se alimentar, vestir, custear despesas com saúde, educação, segurança, moradia, laser, enfim, é por meio dos frutos do trabalho que as pessoas conseguem ter uma vida digna. O trabalho na contemporaneidade é também, para alguns, motivo de “status”, orgulho e de posição social e faz com que se gastem vultosas somas com cursos preparatórios na busca de se alcançar a estabilidade econômica e o bem-estar.
Porém, há sempre dois lados. Em virtude do processo de globalização, as multinacionais passaram a atuar de forma mais efetiva em outros países, especialmente nos mais pobres, nos quais os salários são inferiores, bem como os encargos trabalhistas. Se por um lado há oferta de trabalho e emprego, por outro, os operários são exigidos ao extremo. Empregadores exigem cada vez mais capacidade técnica, conhecimentos inter e multidisciplinares, exigem cada vez um leque maior de formações e de títulos, mas não são capazes, em regra, de remunerar à altura da bagagem intelectual e de experiência de seus funcionários.
A dedicação excessiva e, nalgumas vezes, obsessiva, ao trabalho, as grandes distâncias percorridas (nas metrópoles principalmente) e o trânsito caótico, estão deixando os dias cada vez mais curtos e o tempo mais escasso, mesmo com todas as facilidades tecnológicas. As relações humanas, familiares e sociais estão desastrosamente abaladas. A saúde da população está mais fragilizada, pela ausência do tempo necessário ao descanso, ao lazer e ao ócio. Os seres humanos, anteriormente escravizados por outros seres humanos, hoje, são escravos do trabalho, do capital e do consumo e, muitas vezes, são tratadas como mercadorias, que podem ser substituídas ou segregadas ao menor sinal de defeito ou diminuição de produtividade, sem que se enxergue nas pessoas, seres humanos com necessidades e sentimentos.
O trabalhador da atualidade é livre (em sua maioria), mesmo que o tempo não lhe sobre para gozar da sua liberdade; é remunerado e possuidor de alguns benefícios sociais, ainda que muitas vezes sejam insuficientes para prover uma qualidade de vida realmente satisfatória; o trabalhador atual passa a vida toda vivendo para trabalhar, perdendo vida, convívio e saúde, e passa tempos usando os frutos desse mesmo trabalho, tentando recuperar tudo o que perdeu tentando ganhar.
Esse está atrelado a uma rede invisível que o envolve e o consome, porém, não é o tipo de escravo objeto deste trabalho. Para cá, o que interessa é aquele trabalhador que os Estados não conseguiram proteger, aquele que mesmo a despeito de tudo que se tem de legislação no mundo civilizado, continua a sofrer o arbítrio de quem detém o poder econômico e se sente intocável por conta da impunidade e da morosidade, aliadas à falta de fiscalização e empenho dos órgãos que deveriam fazê-la, em todas as esferas de poder.
A despeito dos avanços e melhorias nas relações trabalhistas e na elaboração de normas que protejam o trabalhador e o trabalho, ainda se está longe da perfeição. Ainda hoje são descobertos casos e mais casos de violação de direitos básicos, de violação de direitos fundamentais do cidadão. Tem-se descoberto inúmeros casos de trabalho análogo ao de escravo, casos de remunerações abaixo do estabelecido em lei, casos de trabalho insalubre e perigoso, sem que sejam tomados os cuidados necessários para a preservação da saúde e da integridade física e psicológica dos colaboradores, ou seja, sem que se busque minimizar os efeitos danosos na grande máquina do trabalho: o corpo humano.
O trabalho escravo contemporâneo está tipificado no art. 149 do Código Penal Brasileiro, abaixo transcrito.
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
O referido Diploma tipifica em cinco outros artigos, condutas envolvendo o trabalho forçado, ou que suprimam direitos dos trabalhadores ou que os prejudique de alguma forma, quais sejam:
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual
(...)
Art. 197 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça:
I - a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias:
Art. 198 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar contrato de trabalho, ou a não fornecer a outrem ou não adquirir de outrem matéria-prima ou produto industrial ou agrícola:
(...)
Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho.
Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional:
§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem.
Outras vedações a essa prática encontram-se dispostas no art. 6º da Convenção Americana de Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, e na Convenção Número 29 da Organização Internacional do trabalho - OIT, conforme seguem respectivamente:
1. Ninguém pode ser submetido à escravidão ou à servidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. [...].
Convenção Número 29 da OIT.
Art. 1(OIT) — 1. Todos os Membros da Organização Internacional do Trabalho que ratificam a presente convenção se obrigam a suprimir o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo possível.
Quando se pensa em escravidão logo se tem a mente tomada por aquelas imagens dos negros submetidos à força e aos desmandos do branco europeu, amarrados ao pelourinho, tendo o corpo e alma dilacerados pelos açoites usados como castigo e como meio de intimidação dos demais escravos. Contudo, como se nota, a escravidão também “evoluiu” e teve seus métodos modificados. Se antes se tinha o ser humano como propriedade de outro ser humano, que era o seu senhor, hoje, por força das leis modificadas em todo o mundo, não se permite mais a propriedade de pessoas, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, momento em que se passou a exigir e lutar por mais respeito e zelo pela dignidade da pessoa humana, pelos direitos e garantias fundamentais inseridos em várias Constituições por todo o mundo, ou seja, pelos direitos humanos.
Atualmente, diz-se que o sujeito está em situação análoga à de escravo pelo simples fato de a legislação vedar referida prática, não podendo assim, existirem escravos. Contudo, eles existem. Numa versão contemporânea, não mais como propriedade de alguém, mas ainda assim submetidos aos desmandos, humilhações, caprichos e torturas de toda a sorte, inclusive psicológicas, podendo existir ou não, restrições quanto a sua locomoção.
Para que se possa entender melhor a escravidão contemporânea, José Cláudio Monteiro de Brito Filho, apud GONÇALVES[2], explica com clareza:
“podemos definir trabalho em condições análogas à condição de escravo como o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador. Repetimos, de forma mais clara, ainda: é a dignidade da pessoa humana que é violada, principalmente, quando da redução do trabalhador à condição análoga à de escravo. Tanto no trabalho forçado, como no trabalho em condições degradantes, o que se faz é negar ao homem direitos básicos que o distinguem dos demais seres vivos; o que se faz é coisificá-lo; dar-lhe preço, e o menor possível”.
Bentes, apud MIRAGLIA (2008, p. 153), ensina que:
[...] o trabalho escravo não é caracterizado pela falta de carteira assinada. “São determinadas características, como as condições de trabalho, o confinamento, a falta de equipamentos de trabalho, a vigilância armada, a impossibilidade de retorno à cidade de origem e a retenção de pagamentos e documentos que confirmam o regime de escravidão”.
No mesmo sentido, Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé ensina que (Apud MIRAGLIA, 2008):
[...] trabalho escravo é aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar a sua atividade laboral, submetendo-o, em geral, a constrangimento físico e moral, que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender, tudo motivado pelo interesse mesquinho de ampliar os lucros à custa da exploração do trabalhador.
Arrematando os entendimentos supracitados, José Cláudio Monteiro de Brito Filho (Apud DOS REIS, 2014) expõe que:
De todas as formas de superexploração do trabalho, com certeza o trabalho escravo, é a mais grave. Propor a sua análise é, com certeza, enveredar por seara onde a dignidade, a igualdade, a liberdade e a legalidade são princípios ignorados, esquecidos. Mas, é tratar do mais alto grau de exploração da miséria e das necessidades do ser humano.
O trabalho escravo talvez seja uma das formas mais covardes, cruéis e absurdas de violação dos direitos humanos, e precisa ser extirpado a todo custo dos seios de todas as nações.
A Organização das Nações Unidas – ONU aponta que
“este ainda é um fenômeno real e frequente, que afeta mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo, e que um quarto desse total são crianças, lembrando que esse cenário permanece apesar da entrada em vigor em 2016 do protocolo de combate ao trabalho forçado. Que atualmente a maior parcela do trabalho infantil existente é para exploração econômica, contrário à Convenção sobre os Direitos da Criança, que reconhece o direito da criança de estar protegida contra a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou que seja nocivo para sua saúde o para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social”.
Segundo a referida Organização, os direitos humanos são “garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana”.
O que hoje se entende por direitos humanos representam, talvez, o mais importante conjunto de direitos garantidores de uma vida digna e menos injusta, pois são eles que irão impor limites ao poder do Estado e aos desmandos de particulares que abusam de certos direitos, usurpando direitos de outrem e obrigando a seus pares, seres humanos como eles, a viverem na mais absoluta penúria.
No ano de 2018, mais de 1.700 trabalhadores foram encontrados em situação de escravidão no Brasil, de acordo com Observatório digital do Trabalho Escravo no Brasil. Conforme esse Instituto, os estados de Minas Gerais, Goiás e Pará foram os estados onde se teve o maior numero de trabalhadores resgatados respectivamente. De acordo com dados do CNJ, em 23 anos, mais de 500 trabalhadores foram resgatados de situação de escravidão no estado do Amazonas.
Um ano antes, no ano de 2017, uma portaria (Portaria MTB nº 1.129) do Governo Federal (liderado à época pelo então Presidente Michel Temer) muito criticada no meio jurídico, pela sociedade civil e por várias entidades ligadas ao trabalho, repercutiu de forma negativa internacionalmente, a ponto de a Organização Internacional do Trabalho - OIT se mostrar contrária à mencionada, pois, dentre as principais mudanças, previa a necessidade de autorização do ministro do trabalho para a divulgação das empresas condenadas por submeterem trabalhadores à condição análoga à de escravos na chamada “lista suja”, uma lista onde são relacionadas as empresas flagradas e condenadas por tal prática; também, previa a mudança do conceito de trabalho análogo ao de escravo, que só restaria caracterizado, se de fato os trabalhadores tivessem violado o direito constitucional de ir e vir, fosse por ameaça física ou psicológica, fosse que força do uso de armas, por questão de dívidas ou qualquer outro motivo, destoando do conceito contemporâneo que não exige a comprovação de privação do direito de ir e vir, mas vários outros requisitos, como por exemplo, a jornada exaustiva. Previa ainda mudanças na forma da fiscalização realizada pelo Ministério.
A portaria foi suspensa pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal e, substituída em seguida pela Portaria MTB nº 1.293.
A Ministra Weber, quando de sua decisão na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 489, que concedeu liminar suspendendo a portaria supracitada, observou com primor, o seguinte:
"[...] ao restringir indevidamente o conceito de "redução à condição análoga a escravo", vulnera princípios basilares da Constituição, sonega proteção adequada e suficiente a direitos fundamentais nela assegurados e promove desalinho em relação a compromissos internacionais de caráter supralegal assumidos pelo Brasil e que moldaram o conteúdo desses direitos." (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 489 Distrito Federal. Relator: WEBER, Rosa.).
CONCLUSÃO
Observa-se que os trabalhadores são explorados desde os primórdios, com exceção da pré-história, e que a partir da idade média, pessoas vêm experimentando toda sorte de abusos. Que desde a mencionada fase histórica, pessoas são forçadas a trabalhar, seja como forma de punição, seja por motivo religioso (como no Código de Manu, por exemplo), seja como forma de auferir lucros e movimentar a economia.
O que se tem convicção é que apesar de os números serem menores do que os apresentados durante todo o curso da história, nos dias contemporâneos eles continuam. Mas eles não são apenas números, cada número representa um ser humano que a ineficiência dos Estados e a inexistência de políticas públicas sérias (voltadas à instrução e educação da população, bem como as voltadas para a erradicação dessa triste realidade), não puderam proteger. Representam também o poder do capital sobre as instituições que deveriam zelar pelo seu povo e a supervalorização do capital em detrimento do ser humano.
Nota-se que, pelo menos em relação ao conceito e aos procedimentos adotados pelos escravagistas, pouca coisa mudou de fato. Anteriormente os exploradores detinham a propriedade dos indivíduos escravizados, hoje não mais, por força da lei. Antes, as agressões físicas eram públicas e livres; hoje elas são veladas e camufladas. Antigamente os escravos não tinham salários; atualmente, eles até possuem, contudo, são incondizentes com o preconizado pela legislação. Não bastasse a ínfima remuneração, aliada à ausência de um contrato de trabalho válido e justo, os trabalhadores em situação análoga à de escravos têm seus direitos trabalhistas violados, bem como suas vidas, suas histórias e seus sonhos.
Conclui-se, apoiado neste estudo, que as leis nada fazem sozinhas. Que há uma necessidade gritante e urgente de que se invista em educação, em disseminação de conhecimentos, inclusive os relativos à Constituição Federal e aos direitos fundamentais do indivíduo, para que, conhecendo-os, possam-nos fazer valer; Que o trabalho escravo ainda que transmutado, ainda que encoberto pelas vestes da contemporaneidade, está longe de ser extirpado do globo terrestre; e que a escravidão, apenas não é mais permitida pela legislação, como fora em outrora, mas insiste em permanecer e com quase todos os requintes de crueldade dos tempos idos. Percebe-se que é necessário um maior envolvimento, ou uma maior participação popular, na busca pela erradicação dessa chaga. É imprescindível que haja uma fiscalização mais efetiva, um acompanhamento mais eficiente e uma punição mais rigorosa, para quem ainda insiste em tratar pessoas como coisas. Conclui-se ainda que, o trabalho que sustenta e que liberta é o mesmo que encarcera, humilha e mata e que, as pessoas no afã de alcançarem a dignidade por meio de sua força de trabalho, acabam relativizando-a ou sendo obrigadas a tal, para conseguirem um meio de sobrevivência, ainda que indigno.
REFERÊNCIAS
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FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 46.
GONÇALVES, Ismaela Freire. Trabalho em condições análogas à de escravo contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5561, 22 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65768. Acesso em: 25 nov. 2019.
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MORAES, Alexandre de Direito constitucional / Alexandre de Moraes. – 13ª. ed. - São Paulo: Atlas, 2003.
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https://martaiansen.blogspot.com/2017/05/escravidao-no-codigo-de-hamurabi.html
[2] https://jus.com.br/artigos/65768
Graduando do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREIRE, Eric Vinícius Campos. O trabalho escravo – uma análise do conceito jurídico da antiguidade até a contemporaneidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 dez 2019, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53911/o-trabalho-escravo-uma-anlise-do-conceito-jurdico-da-antiguidade-at-a-contemporaneidade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: FELIPE GARDIN RECHE DE FARIAS
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