RESUMO: As medidas constritivas atípicas, que podem ser extraídas do art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, visam a dar maior efetividade ao processo. Contudo, elas possuem caráter excepcional, somente podendo ser decretadas após preenchidos determinados requisitos. Este trabalho procura sustentar que não há óbices à aplicação das medidas constritivas atípicas à execução fiscal, a despeito de decisão do Superior Tribunal de Justiça em sentido contrário, fundamentada, entre outros fatores, na suposta existência de inúmeros privilégios processuais à Fazenda Pública. Compreende-se que esse entendimento não merece prosperar, pois: i) os indigitados privilégios constituem, em verdade, prerrogativas necessárias à observância do princípio da isonomia em sua vertente material; ii) tais prerrogativas encontram-se, atualmente, mitigadas; iii) o fim maior buscado na execução fiscal é o interesse público.
ABSTRACT: The atypical constrictive measures, which can be extracted from art. 139, item IV, of the Brazilian Code of Civil Procedure, aim to make the process more effective. However, they are exceptional and can only be enacted after certain requirements have been met. This paper seeks to argue that there are no obstacles to the application of atypical constraints to tax enforcement, despite a decision of the Superior Tribunal de Justiça to the contrary, based, among other factors, on the alleged existence of numerous procedural privileges to the Public Treasury. It is understood that this understanding does not deserve to prosper, since: i) the designated privileges are, in fact, prerogatives necessary for the observance of the principle of isonomy in its material aspect; ii) such prerogatives are currently mitigated; iii) the major end pursued in tax enforcement is the public interest.
SUMÁRIO: Introdução. Capítulo 1: Das medidas constritivas atípicas. 1.1 Origem e considerações a respeito das medidas constritivas atípicas. 1.2 Da excepcionalidade das medidas atípicas e dos requisitos de cabimento. Capítulo 2: Da aplicação das medidas cautelares atípicas na execução fiscal. 2.1 Resumo da decisão proferida pelo STJ no HC 453.870-PR. 2.2 Análise crítica da decisão proferida pelo STJ no HC 453.870-PR. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
No Código de Processo Civil de 1973, o juiz poderia, na ação de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, conceder a tutela específica ou adotar as providências que assegurassem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
Visando a dar mais efetividade ao processo e à execução, o Código de Processo Civil atual inovou ao prever expressamente o cabimento de meios constritivos atípicos, estabelecendo como um dos poderes do juiz o de determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária (art. 139, inciso IV).
Evidentemente, tais medidas executivas atípicas não podem ser determinadas de forma indiscriminada, devendo respeitar alguns requisitos recomendados pela doutrina. Com efeito, a decretação de medidas constritivas não nominadas pressupõe a devida fundamentação judicial, o respeito à legalidade, à imparcialidade e à proporcionalidade, o esgotamento das medidas típicas e a observância do contraditório.
O Capítulo 1 deste trabalho discorrerá acerca da origem das medidas constritivas atípicas e do alcance a elas conferido pelo Código de Processo Civil de 2015. Tratará, também, da sua excepcionalidade e dos requisitos de seu cabimento.
O Capítulo 2 ingressa no exame da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferida no Habeas Corpus 453.870-PR, que versa sobre a aplicação das medidas constritivas atípicas pessoais ao procedimento de execução fiscal. Na ocasião, a Primeira Turma do STJ decidiu que as medidas cautelares atípicas pessoais, especificamente a retenção da carteira nacional de habilitação e de passaporte e a inscrição do nome do devedor em cadastros de inadimplentes para forçá-lo a cumprir a sua obrigação, não podem ser aplicadas à execução fiscal, pois a Fazenda Pública já gozaria de superprivilégios – legislação e vara próprias, corpo de procuradores qualificados, necessidade de prévia garantia do juízo para recebimento dos embargos, preferência do crédito tributário em procedimento falimentar etc.
Contudo, buscar-se-á demonstrar que os supostos privilégios citados pela Primeira Turma são, em verdade, prerrogativas necessárias para a Fazenda Pública alcançar o interesse público. Ademais, algumas características da execução fiscal mencionadas na decisão, a exemplo da exigência da prévia garantia do juízo, encontram-se mitigadas na atualidade.
CAPÍTULO 1 – DAS MEDIDAS CONSTRITIVAS ATÍPICAS
1.1 Origem e considerações a respeito das medidas constritivas atípicas
As medidas constritivas atípicas podem ser conceituadas como o conjunto de possibilidades coercitivas, indutivas e mandamentais, não listadas expressamente na legislação, colocadas à disposição das partes e, especialmente, do juiz para garantir o cumprimento de obrigações.
O embrião dessas medidas já constava do Código de Processo Civil de 1973, pois o extinto diploma estabelecia que o juiz poderia determinar providências que assegurassem o resultado prático equivalente ao do adimplemento no âmbito das ações cujo objeto fosse o cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer, conforme se extraía do art. 461, caput e § 5°[1].
O Código de Processo Civil de 2015 (CPC), no entanto, inova sobremaneira ao ampliar as incumbências do juiz, estatuindo como um dos seus poderes a cláusula geral processual executiva prevista no art. 139, inciso IV:
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
(...)
IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;
DIDIER JR, CUNHA, BRAGA e OLIVEIRA, ao tratarem sobre as cláusulas gerais processuais executivas, ressaltam a sua serventia para a realização da justiça, senão vejamos:
A existência de cláusulas gerais reforça o poder criativo da atividade jurisdicional. O órgão julgador é chamado a interferir mais ativamente na construção do ordenamento jurídico, a partir da solução de problemas concretos que lhe são submetidos. As cláusulas gerais servem para a realização da justiça do caso concreto.[2]
O Código novo estendeu, assim, a aplicação das medidas atípicas para qualquer atividade executiva, seja ela fundada em título executivo judicial (provisória ou definitiva) ou extrajudicial, bem como para efetivar prestação pecuniária, prestação de fazer, não fazer ou dar coisa diversa de dinheiro, além de superar o entendimento de que as astreintes não seriam cabíveis nas execuções de obrigação de pagar quantia certa.
A respeito da aplicação ampla do art. 139, inciso IV, do CPC, e da incidência do princípio da atipicidade dos meios executivos às execuções, são elucidativas as ponderações de NEVES:
Entendo que esse dispositivo claramente permite a aplicação ampla e irrestrita do princípio ora analisado a qualquer espécie de execução, independentemente da natureza da obrigação. E também que supera o entendimento de que as astreintes não sejam cabíveis nas execuções de obrigação de pagar quantia certa.
Seriam assim admitidas medidas executivas que nunca foram aplicadas na vigência do CPC/1973 e que não estão previstas expressamente no novo diploma legal. Interessantes exemplos são dados pela melhor doutrina: suspensão do direito do devedor de conduzir veículo automotor, inclusive com a apreensão física da CNH, em caso de não pagamento de dívida oriunda de multas de trânsito (incluo as indenizações por acidentes ocorridos no trânsito); vedação de contratação de novos funcionários por empresa devedora de verbas salariais; proibição de empréstimo ou de participação em licitações a devedor que não paga o débito relativo a financiamento bancário.[3]
Os enunciados 48 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) e 12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) também esclarecem o objetivo e o alcance das medidas atípicas:
Enunciado 48 da ENFAM. O art. 139, IV, do CPC/2015 traduz um poder geral de efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos extrajudiciais.
Enunciado 12 do FPPC. A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II.
Se, por um lado, a utilização de medidas constritivas atípicas privilegia o direito do credor e busca dar efetividade às decisões judiciais, por outro, interfere nas esferas patrimonial e pessoal do devedor e no seu direito de não ser privado dos seus bens sem o devido processo legal e de que a execução observe o princípio da menor onerosidade. Em virtude da necessidade de se buscar tal equilíbrio, as medidas executivas atípicas devem ser sempre utilizadas em caráter subsidiário e respeitar alguns limites, como adiante se demonstrará.
1.2 Da excepcionalidade das medidas atípicas e dos requisitos de cabimento
A liberdade conferida ao juiz pelo CPC em seu art. 139, inciso IV, não pode ser ilimitada, porquanto as medidas constritivas geram considerável interferência na vida do executado. Não por outra razão, a doutrina esclarece que as medidas atípicas somente podem ser determinadas após esgotadas as medidas típicas, e desde que sejam observados os princípios da proporcionalidade, do contraditório, da imparcialidade, da eficiência, da menor onerosidade da execução e da fundamentação da decisão judicial.
Segundo DIDIER JR, CUNHA, BRAGA e OLIVEIRA, a opção por se aplicar determinada medida constritiva atípica não é missão simples e deve observar determinados parâmetros. Em suas palavras:
A escolha da medida atípica a ser utilizada em cada caso concreto não é tarefa fácil. Um conjunto de postulados e princípios rege a atuação do órgão julgador, estabelecendo balizas para a eleição da medida executiva correta.
De modo geral, a escolha deve pautar-se nos postulados da proporcionalidade, da razoabilidade (art. 8º do CPC) e da proibição de excesso, bem como nos princípios da eficiência e da menor onerosidade da execução.[4]
a) Do esgotamento das medidas típicas
Em relação ao prévio esgotamento das medidas típicas, mister asseverar que o CPC prevê instrumentos próprios para o exequente satisfazer o seu crédito, a exemplo da penhora e do arresto. Sendo viável a utilização desses mecanismos, não há razão para o juiz determinar desde logo as medidas fundadas no art. 139, inciso IV.
Desde o Código anterior, o juiz já poderia aplicar medidas típicas na ação de cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, a saber: imposição de multa, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva. O CPC atual manteve a previsão de tais medidas em seu art. 536, § 1º[5].
Assim, os meios típicos de cumprimento de uma ordem judicial devem inicialmente ser testados a fim de legitimar, no caso de insucesso, a utilização das medidas atípicas.
b) Da observância a determinados princípios
As medidas executivas atípicas pressupõem a observância do princípio da proporcionalidade, que, por sua vez, se divide em três elementos (ou subprincípios): adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
Pelo subprincípio da adequação, exige-se um exame acerca da funcionalidade dos mecanismos empregados, ou seja, deve-se investigar se as medidas interventivas são idôneas a atingir a finalidade almejada. Mas, evidentemente, não basta a adequação dos meios ao fim: deve-se buscar a alternativa menos lesiva, em observância ao elemento necessidade. Já pelo subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, há de predominar o valor de maior relevância, evitando-se a imposição de restrições desmedidas em cotejo com o objetivo visado.
Dessa forma, antes de autorizar a aplicação de determinado meio executivo inominado, o juiz deve observar a proporcionalidade, não podendo, por exemplo, determinar a apreensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) de executado que necessita de tal documento para o exercício profissional.
Outro princípio a ser observado para a aplicação das medidas atípicas consiste na eficiência (art. 37 da Constituição Federal e art. 8º do CPC). O órgão jurisdicional deve, assim, escolher meios que tenham o potencial de gerar algum resultado significativo, obtendo-se o máximo de proveito possível com o mínimo de recursos.
Podemos exemplificar a aplicação desse princípio com a hipótese em que o devedor não cumpre sua obrigação porque não tem, efetivamente, meios de fazê-lo. Nesse caso, será ineficiente e desnecessária a aplicação de medidas atípicas.
Confira-se o ensinamento de NEVES:
Por outro lado, não será cabível a adoção de tais medidas se elas não tiverem concreta capacidade de cumprir sua função, qual seja, a de pressionar psicologicamente o executado a cumprir sua obrigação. Conforme entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça, não cabe aplicação de astreintes para pressionar psicologicamente o executado a cumprir obrigação de impossível cumprimento porque nesse caso estar-se-á diante de sanção e não de medida executiva. O mesmo raciocínio deve ser utilizado para a aplicação das medidas executivas atípicas, de forma a ter seu cabimento condicionado à possibilidade de a obrigação de pagar quantia ser cumprida. Em outras palavras, é medida para ser aplicada no devedor que não paga porque não quer e que por ter blindado seu patrimônio torna ineficaz a forma típica de execução (penhora-expropriação). Não é, portanto, medida a ser aplicável ao devedor que não paga porque não tem meios para tanto.[6]
O juiz também não deve se descurar do princípio da menor onerosidade da execução, de modo que, “havendo duas opções igualmente eficazes para permitir alcançar o resultado pretendido (satisfação do crédito), deverá o órgão julgador valer-se daquela que menos onere a situação do executado”[7].
Já em relação ao princípio do contraditório, deve-se facultar ao executado a chance de manifestação sobre as medidas atípicas, ainda que de modo postergado em casos excepcionais e urgentes. Assim:
Considerando que a escolha da medida executiva atípica pressupõe a análise de enunciados normativos de conteúdo semântico aberto, bem como a consideração de distintos pontos de vista, é essencial a observância do contraditório (arts. 7º e 9º, CPC), ainda que diferido para momento posterior – a defesa na fase de cumprimento, o recurso cabível ou mesmo eventual pedido de reconsideração.[8]
No mesmo sentido:
Entendo que em respeito ao princípio do contraditório o juiz deve intimar o executado antes de decidir o requerimento do exequente para a adoção das medidas executivas atípicas. Somente em situações excepcionais, de extrema urgência, será admissível a adoção do contraditório diferido, nos termos do art. 9º, parágrafo único, I do Novo CPC. A decisão do juiz deve ser devidamente fundamentada, nos termos do art. 489, § 1°, do Novo CPC, sendo recorrível por agravo de instrumento (art. 1015, parágrafo único, do Novo CPC).[9]
c) Da necessidade de específica fundamentação da decisão judicial
Sem dúvida, um dos requisitos mais importantes para a autorização das medidas constritivas atípicas consiste na fundamentação específica da decisão judicial. Com efeito, sabe-se que toda decisão judicial deve ser devidamente motivada, por força do art. 93, inciso IX, da Constituição Federal[10] e, nos termos do art. 489, § 1°, incisos I e II, do CPC[11], a fundamentação não pode se limitar à mera indicação ou reprodução de ato normativo ou ao emprego de conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso.
Com maior razão, quando o édito determina a aplicação de medida constritiva atípica para forçar o cumprimento de determinada prestação, deve-se exigir o esclarecimento das razões de decidir do magistrado, em especial os fundamentos de ele ter optado por determinada medida em detrimento de outra.
A propósito da importância da fundamentação da decisão decretadora de medidas atípicas, confira-se lição de STRECK e NUNES:
Em face do novo CPC, parece-nos evidente que esta cláusula geral de efetivação implicará um ônus argumentativo diferenciado para o juiz ao fundamentar e se valer da medida, especialmente pela determinação do artigo 489, §1º, II, por se tratar de um conceito jurídico indeterminado, mitigando a possibilidade de arbitrariedades.[12]
CAPÍTULO 2 – DA APLICAÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES ATÍPICAS NA EXECUÇÃO FISCAL
Observados os requisitos contidos no tópico anterior, discute-se a aplicação das medidas constritivas atípicas às execuções fiscais, dadas as suas peculiaridades.
Em verdade, apesar das características específicas das execuções fiscais, que alguns enxergam como privilégios da Fazenda Pública, não há nenhum óbice à incidência das medidas atípicas no rito em questão, pois as prerrogativas do Poder Público são estritamente necessárias para o resguardo do interesse público. É o que se passa a demonstrar, examinando, para tanto, a decisão do STJ proferida no bojo do Habeas Corpus (HC) 453.870-PR.
2.1 Resumo da decisão proferida pelo STJ no HC 453.870-PR
A Primeira Turma do STJ foi instada a se manifestar sobre a possibilidade de apreensão de passaporte, suspensão de CNH e inscrição do nome do devedor em cadastros de inadimplentes em procedimento de execução fiscal.
Durante a execução, já havia sido decretada a penhora de 30% do salário percebido pelo executado. No segundo grau de jurisdição, foi deferido pedido do exequente para inscrever o réu em cadastro de inadimplentes, bem como suspender seu passaporte e sua CNH como forma de coagi-lo ao pagamento da dívida.
Não conformado, o executado impetrou Habeas Corpus perante o STJ, aduzindo a desproporcionalidade da apreensão do seu passaporte e da sua CNH, considerando que 30% do seu salário já estaria sendo retido. A ordem foi concedida, com base em dois principais fundamentos: o excesso das medidas constritivas e a existência de suficientes privilégios processuais concedidos à Fazenda Pública.
O acórdão, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, restou assim ementado:
CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. DIREITO DE LOCOMOÇÃO, CUJA PROTEÇÃO É DEMANDADA NO PRESENTE HABEAS CORPUS, COM PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR. ACÓRDÃO DO TC/PR CONDENATÓRIO AO ORA PACIENTE À PENALIDADE DE REPARAÇÃO DE DANO AO ERÁRIO, SUBMETIDO À EXECUÇÃO FISCAL PROMOVIDA PELA FAZENDA DO MUNICÍPIO DE FOZ DO IGUAÇU/PR, NO VALOR DE R$ 24 MIL. MEDIDAS CONSTRICTIVAS DETERMINADAS PELA CORTE ARAUCARIANA PARA GARANTIR O DÉBITO, EM ORDEM A INSCREVER O NOME DO DEVEDOR EM CADASTRO DE MAUS PAGADORES, APREENDER PASSAPORTE E SUSPENDER CARTEIRA DE HABILITAÇÃO. CONTEXTO ECONÔMICO QUE PRESTIGIA USOS E COSTUMES DE MERCADO NAS EXECUÇÕES COMUNS, NORTEANDO A SATISFAÇÃO DE CRÉDITOS COM ALTO RISCO DE INADIMPLEMENTO. RECONHECIMENTO DE QUE NÃO SE APLICA ÀS EXECUÇÕES FISCAIS A LÓGICA DE MERCADO, SOBRETUDO PORQUE O PODER PÚBLICO JÁ É DOTADO, PELA LEI 6.830/1980, DE ALTÍSSIMOS PRIVILÉGIOS PROCESSUAIS, QUE NÃO JUSTIFICAM O EMPREGO DE ADICIONAIS MEDIDAS AFLITIVAS FRENTE À PESSOA DO EXECUTADO. ADEMAIS, CONSTATA-SE A DESPROPORÇÃO DO ATO APONTADO COMO COATOR, POIS O EXECUTIVO FISCAL JÁ CONTA COM A PENHORA DE 30% DOS VENCIMENTOS DO RÉU. PARECER DO MPF PELA CONCESSÃO DA ORDEM. HABEAS CORPUS CONCEDIDO, DE MODO A DETERMINAR, COMO FORMA DE PRESERVAR O DIREITO FUNDAMENTAL DE IR E VIR DO PACIENTE, A EXCLUSÃO DAS MEDIDAS ATÍPICAS CONSTANTES DO ARESTO DO TJ/PR, APONTADO COMO COATOR, QUAIS SEJAM, (I) A SUSPENSÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO, (II) A APREENSÃO DO PASSAPORTE, CONFIRMANDO-SE A LIMINAR DEFERIDA.
1. O presente Habeas Corpus tem, como moto primitivo, Execução Fiscal adveniente de acórdão do Tribunal de Contas do Estado do Paraná que responsabilizou o Município de Foz do Iguaçu/PR a arcar com débitos trabalhistas decorrentes de terceirização ilícita de mão de obra. Como forma de regresso, o Município emitiu Certidão de Dívida Ativa, com a consequente inicialização de Execução Fiscal. À época da distribuição da Execução (dezembro/2013), o valor do débito era de R$ 24.645,53.
2. Para além das diligências deferidas tendentes à garantia do juízo, tais como as consultas Bacenjud, Renajud, pesquisa on-line de bens imóveis, disponibilização de Declaração de Imposto de Renda, o Magistrado determinou a penhora de 30% do salário auferido pelo Paciente na Companhia de Saneamento do Paraná-SANEPAR, com retenção imediata em folha de pagamento.
3. O Magistrado de Primeiro Grau indeferiu, porém, o pedido de expedição de ofício aos órgãos de proteção ao crédito e suspensão de passaporte e de Carteira Nacional de Habilitação. Mas a Corte Araucariana deu provimento a recurso de Agravo de Instrumento interposto pela Fazenda de Foz do Iguaçu/PR, para deferir as medidas atípicas requeridas pela Municipalidade exequente, consistentes em suspensão de Carteira Nacional de Habilitação e apreensão de passaporte.
4. A discussão lançada na espécie cinge-se à aplicação, no Executivo Fiscal, de medidas atípicas que obriguem o réu a efetuar o pagamento de dívida, tendo-se, como referência analítica, direitos e garantias fundamentais do cidadão, especialmente o de direito de ir e vir.
5. Inicialmente, não se duvida que incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. É a dicção do art. 139, IV do Código Fux.
6. No afã de cumprir essa diretriz, são pródigas as notícias que dão conta da determinação praticada por Magistrados do País que optaram, no curso de processos de execução, por limitar o uso de passaporte, suspender a Carteira de Habilitação para dirigir e inscrever o nome do devedor no cadastro de inadimplentes. Tudo isso é feito para estimular o executado a efetuar o pagamento, por intermédio do constrangimento de certos direitos do devedor.
7. Não há dúvida de que, em muitos casos, as providências são assim tomadas não apenas para garantir a satisfação do direito creditício do exequente, mas também para salvaguardar o prestígio do Poder Judiciário enquanto autoridade estatal; afinal, decisão não cumprida é um ato atentatório à dignidade da Justiça.
(...)
10. Noutras palavras, em virtude da falta de garantias de adimplemento, por ocasião da obtenção do crédito, são contrapostas as formas aflitivas pessoais de satisfação do débito em âmbito endoprocessual. Essa modalidade de condução da lide, que ressalta a efetividade, é válida mundivisão acerca do que é o processo judicial e o seu objetivo, embora ela [a visão de mundo] não seja única, não se podendo dizer paradigmática.
11. Porém, essa almejada efetividade da pretensão executiva não está alheia ao controle de legalidade, especialmente por esta Corte Superior, consoante se verifica dos seguintes arestos: o habeas corpus é instrumento de previsão constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses em que se vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões judiciais. O acautelamento de passaporte é medida que limita a liberdade de locomoção, que pode, no caso concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via processual adequada para essa análise (RHC 97.876/SP, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe 9.8.2018; AgInt no AREsp. 1.233.016/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, DJe 17.4.2018).
12. Tratando-se de Execução Fiscal, o raciocínio toma outros rumos quando medidas aflitivas pessoais atípicas são colocadas em vigência nesse procedimento de satisfação de créditos fiscais. Inegavelmente, o Executivo Fiscal é destinado a saldar créditos que são titularizados pela coletividade, mas que contam com a representação da autoridade do Estado, a quem incumbe a promoção das ações conducentes à obtenção do crédito.
13. Para tanto, o Poder Público se reveste da Execução Fiscal, de modo que já se tornou lugar comum afirmar que o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor. Dispõe de varas comumente especializadas para condução de seus feitos, um corpo de Procuradores altamente devotado a essas causas, e possui lei própria regedora do procedimento (Lei 6.830/1980), com privilégios processuais irredarguíveis. Para se ter uma ideia do que o Poder Público já possui privilégios ex ante, a execução só é embargável mediante a plena garantia do juízo (art. 16, § 1° da LEF), o que não encontra correspondente na execução que se pode dizer comum. Como se percebe, o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental.
14. Não se esqueça, ademais, que, muito embora cuide o presente caso de direito regressivo exercido pela Municipalidade em Execução Fiscal (caráter não tributário da dívida), sempre é útil registrar que o crédito tributário é privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional), podendo, se o caso, atingir até mesmo bens gravados como impenhoráveis, por serem considerados bem de família (art. 3°, IV da Lei 8.009/1990). Além disso, o crédito tributário tem altíssima preferência para satisfação em procedimento falimentar (art. 83, III da Lei de Falências e Recuperações Judiciais - 11.101/2005). Bens do devedor podem ser declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do Código Tributário Nacional). São providências que não encontram paralelo nas execuções comuns.
15. Nesse raciocínio, é de imediata conclusão que medidas atípicas aflitivas pessoais, tais como a suspensão de passaporte e da licença para dirigir, não se firmam placidamente no Executivo Fiscal. A aplicação delas, nesse contexto, resulta em excessos.
16. Excessos por parte da investida fiscal já foram objeto de severo controle pelo Poder Judiciário, tendo a Corte Suprema registrado em Súmula que é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos (Súmula 323/STF).
(...)
20. Submeteu-se o réu à notória restrição constitucional do direito de ir e vir num contexto de Execução Fiscal já razoavelmente assegurada, pelo que se dessume da espécie.
21. Assinale-se como de altíssima nomeada para o caso o art. 22 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao estabelecer, nos seus itens 1 e 2, que toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado tem direito de circular nele e de nele residir conformidade com as disposições legais, bem como toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio.
22. Frequentemente, tem-se visto a rejeição à ordem de Habeas Corpus sob o argumento de que a limitação de CNH não obstaria o direito de locomoção, por existir outros meios de transporte de que o indivíduo pode se valer. É em virtude dessa linha de pensamento que a referência ao Pacto de São José da Costa Rica se mostra crucial, na medida em que a existência de diversos meios de deslocamento não retira o fato de que deve ser amplamente garantido ao cidadão exercer o direito de circulação pela forma que melhor lhe aprouver, pois assim se efetiva o núcleo essencial das liberdades individuais, tal como é o direito e ir e vir.
23. Cumpre registrar que a opinião do douto parecer do Ministério Público Federal é por conceder-se o remédio constitucional, sob a premissa de que, apresentada a questão com tais contornos, estritamente atrelada ao arcabouço probatório encartado nos autos, não há outra possibilidade senão reconhecer que, não sendo a medida restritiva adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação da legítima Execução Fiscal promovida originariamente, a sua efetivação tornou-se contrária à ordem jurídica, porquanto adentrou demasiadamente na esfera pessoal, e não patrimonial, do executado/impetrante, configurando, certamente, ato punitivo, não constritivo, atentando, portanto, contra a sua liberdade de ir e vir (fls. 262/264). O Paciente está a merecer, em confirmação da medida liminar, a tutela da liberdade de ir a vir pelo remédio de Habeas Corpus.
24. Parecer do MPF pela concessão da medida. Habeas Corpus concedido em favor do Paciente, confirmando-se a medida liminar anteriormente concedida, apta a determinar sejam excluídas as medidas atípicas constantes do aresto do TJ/PR apontado como coator (suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, apreensão do passaporte).
(HC 453.870/PR, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/06/2019, DJe 15/08/2019. Grifou-se).
Em relação ao segundo fundamento mencionado, a Primeira Turma explicitou como privilégios processuais da Fazenda Pública a existência de legislação própria (Lei 6.830/1980) e de vara exclusiva para a tramitação das execuções fiscais, o corpo de procuradores qualificados e a exigência de prévia garantia do juízo para o conhecimento da defesa do executado.
Afirmou-se, também, que o crédito tributário seria privilegiado (art. 184 do Código Tributário Nacional – CTN[13]), podendo até atingir bens gravados de impenhorabilidade, além de possuir preferência em procedimento falimentar (art. 83 da Lei 11.101/2005[14]). Destacou-se, ainda, que os bens do devedor podem ser declarados indisponíveis para assegurar o adimplemento da dívida (art. 185-A do CTN[15]).
Segundo o STJ, diante desse cenário, a Fazenda Pública já possuiria mecanismos suficientes para perseguir o seu crédito, de modo que não se justificaria a aplicação de outras medidas constritivas pessoais não previstas expressamente em lei.
Contudo, como se pretende demonstrar no tópico seguinte, a Fazenda Pública possui, em verdade, prerrogativas estritamente necessárias para assegurar o interesse público. Além disso, algumas características da execução fiscal mencionadas no acórdão do STJ não mais configuram verdade absoluta, a exemplo da exigência de prévia garantia do juízo para o conhecimento dos embargos.
2.2 Análise crítica da decisão proferida pelo STJ no HC 453.870-PR
Desde logo, esclarece-se que a análise crítica da decisão do STJ não se refere à conclusão do julgado em si, mas, antes, à razão de decidir consistente na alegação de existência de privilégios processuais exacerbados da Fazenda Pública.
Em verdade, o próprio termo “privilégio” é inadequado, pois o Poder Público possui prerrogativas justificáveis em face da posição que ocupa na defesa dos interesses da coletividade. Assim, valendo-se do princípio da isonomia sob a ótica material, não é razoável sustentar que o tratamento processual conferido ao Poder Público deva ser idêntico ao conferido aos particulares, dada a ausência de igualdade entre um e outros.
A propósito da diferença de terminologia, confira-se o ensinamento de CUNHA:
Para que a Fazenda Pública possa, contudo, atuar da melhor e mais ampla maneira possível, é preciso que se lhe confiram condições necessárias e suficientes a tanto. Dentre as condições oferecidas, avultam as prerrogativas processuais, identificadas, por alguns, como privilégios. Não se trata, a bem da verdade, de privilégios. Estes – os privilégios – consistem em vantagens sem fundamento, criando-se uma discriminação, com situação de desvantagens. As “vantagens” processuais conferidas à Fazenda Pública revestem o matiz de prerrogativas, pois contêm fundamento razoável, atendendo, efetivamente, ao princípio da igualdade, no sentido aristotélico de tratar iguais de forma igual e desiguais de forma desigual.[16]
a) Da inexistência de superprivilégios
As peculiaridades do procedimento de execução fiscal mencionadas no acórdão sub examine possuem razão de ser.
Com efeito, a tramitação de execuções fiscais em varas exclusivas atende ao interesse do próprio Poder Judiciário, pois, em virtude do grande volume de feitos dessa natureza, a sua junção, em uma mesma vara, com outras demandas poderia prejudicar a celeridade, violando, assim, o comando constitucional da razoável duração do processo. Já a existência de lei própria, cuja vantagem é reconhecida de forma praticamente unânime há bastante tempo, justifica-se no fato de o ente público tutelar, inequivocamente, o interesse da coletividade.
Em relação ao corpo de procuradores, embora se deva reconhecer sua alta qualificação, mister asseverar que o número elevado de execuções fiscais atualmente existentes constitui grande desafio para os advogados públicos. O número reduzido de membros e a deficiência da carreira de apoio não são condizentes com o volume e a complexidade das demandas.
Já a exigência da prévia garantia do juízo como condição para o recebimento dos embargos não é mais regra em toda e qualquer execução fiscal. Os tribunais têm flexibilizado o requisito da garantia do juízo nos casos de curadoria especial, pois se entende que a exigência do requisito inviabilizaria o exercício do contraditório e da ampla defesa. A propósito, confira-se o entendimento exarado pelo STJ em sede de recurso especial repetitivo:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. REVELIA. NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL. DEFENSORIA PÚBLICA. GARANTIA DO JUÍZO, NOS TERMOS DO REVOGADO ART. 737, INCISO I, DO CPC. INEXIBILIDADE.
(...)
3. É dispensado o curador especial de oferecer garantia ao Juízo para opor embargos à execução. Com efeito, seria um contra-senso admitir a legitimidade do curador especial para a oposição de embargos, mas exigir que, por iniciativa própria, garantisse o juízo em nome do réu revel, mormente em se tratando de defensoria pública, na medida em que consubstanciaria desproporcional embaraço ao exercício do que se constitui um munus publico, com nítido propósito de se garantir o direito ao contraditório e à ampla defesa.
4. Recurso especial provido. Observância do disposto no art. 543-C, § 7.º, do Código de Processo Civil, c.c. os arts. 5.º, inciso II, e 6.º, da Resolução 08/2008.
(REsp 1110548/PB, Rel. Ministra LAURITA VAZ, CORTE ESPECIAL, julgado em 25/02/2010, DJe 26/04/2010)
Também é possível a dispensa da garantia do juízo nos casos em que a parte executada é inequivocamente hipossuficiente e não possui patrimônio para garantia do crédito exequendo, conforme decidiu o mesmo STJ no julgamento do REsp 1487772-SE[17].
Dessa forma, ao contrário do que entendeu a Primeira Turma do STJ, as prerrogativas da Fazenda Pública, algumas atualmente flexibilizadas, nem sempre são suficientes para assegurar a efetividade na busca do crédito público, sendo demasiada a assertiva, contida no julgado, de que “o crédito fiscal é altamente blindado dos riscos de inadimplemento, por sua própria conformação jusprocedimental”. Se assim fosse, não seria tão comum a extinção de execuções fiscais pela prescrição intercorrente, diante da não localização de bens penhoráveis do devedor.
b) Da prevalência do interesse público
As prerrogativas processuais da Fazenda Pública são necessárias para que ela possa melhor proteger os interesses da coletividade e, consequentemente, o bem comum. Uma vez constatada a presença do interesse público, ele deve prevalecer sobre o particular.
Ao estudar a relação entre a Fazenda Pública e o interesse público, CUNHA tece as seguintes ponderações:
A Fazenda Pública revela-se como fautriz do interesse público, devendo atender à finalidade da lei de consecução do bem comum. Não que a Fazenda Pública seja titular do interesse público, mas se apresenta como o ente destinado a preservá-lo. Diferentemente das pessoas jurídicas de direito privado, a Fazenda Pública não consiste num mero aglomerado de pessoas, com personalidade jurídica própria; é algo a mais do que isso, tendo a difícil incumbência de bem administrar a coisa pública. Daí ter se tornado jargão próprio a afirmativa de que o Estado são todos, e não um ente destacado com vida própria.[18]
Assim, considerando que a execução fiscal é destinada a saldar débitos titularizados pela própria coletividade e que a Fazenda Pública deve preservar o interesse de todos e administrar corretamente a coisa pública, a vedação absoluta à aplicação de medidas executivas atípicas no executório fiscal não deve prevalecer.
Em nossa visão, portanto, não há excesso na incidência de medidas aflitivas pessoais atípicas em favor dos entes públicos, desde que observado seu caráter excepcional e, respeitados os princípios processuais, decorra de decisão judicial devidamente fundamentada.
CONCLUSÃO
O art. 139, inciso IV, do CPC inovou ao prever como incumbência do juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.
O aludido dispositivo consagrou as medidas executivas atípicas, sendo que, baseado nele, diversos magistrados estão determinando a apreensão de CNH e passaporte ou a inscrição do nome do devedor nos cadastros de proteção ao crédito como forma de compeli-lo a cumprir a sua obrigação.
A cláusula geral executiva insere-se no contexto de ampliar a efetividade do processo e da execução, mas, evidentemente, não é ilimitada. Conforme se procurou demonstrar neste trabalho, a incidência das medidas atípicas pressupõe o cumprimento de alguns requisitos, a saber, o esgotamento dos meios típicos, a devida fundamentação judicial e a observância a princípios.
Por outro lado, investigou-se acerca da possibilidade de aplicação das medidas atípicas à execução fiscal. Nesse contexto, o trabalho, sem a pretensão de esgotar o tema, analisou a decisão proferida pelo STJ no HC 453.870-PR, esclarecendo as suas principais razões de decidir para, em seguida, tecer algumas considerações a seu respeito.
Compreende-se que os privilégios processuais da Fazenda Pública invocados pelo STJ encontram-se mitigados na atualidade e não podem representar óbice intransponível à incidência de medidas executivas atípicas, desde que, no caso concreto, seja recomendável a sua aplicação e o juiz fundamente de modo adequado a sua decisão.
Ademais, considerando que a Fazenda Pública nunca se encontra em posição idêntica à do particular e que ela deve figurar sempre como guardiã do interesse de todos, restam devidamente justificadas a existência das suas prerrogativas processuais e, eventualmente, a decretação de medidas constritivas atípicas em sede de execução fiscal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em Juízo. 5ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol. 5. 7ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Editora Brasília Jurídica, 2002.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 10ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.
STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o art. 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio. Acesso em: 08/12/2019.
[1] “Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
(...)
§ 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial”.
[2] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol. 5. 7ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p.102.
[3] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 10ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 1075.
[4] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol. 5. 7ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p.111.
[5] “Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
§ 1º Para atender ao disposto no caput , o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.
(...)”.
[6] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 10ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 1075 e 1076.
[7] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol. 5. 7ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p. 113.
[8] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol. 5. 7ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2017, p. 117.
[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 10ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 1076.
[10] “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
(...)
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (...)”.
[11] “Art. 489 (...)
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (...)”.
[12] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o art. 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio. Acesso em: 08/12/2019.
[13] “Art. 184. Sem prejuízo dos privilégios especiais sobre determinados bens, que sejam previstos em lei, responde pelo pagamento do crédito tributário a totalidade dos bens e das rendas, de qualquer origem ou natureza, do sujeito passivo, seu espólio ou sua massa falida, inclusive os gravados por ônus real ou cláusula de inalienabilidade ou impenhorabilidade, seja qual for a data da constituição do ônus ou da cláusula, excetuados unicamente os bens e rendas que a lei declare absolutamente impenhoráveis”.
[14] “Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:
I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;
II - créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado;
III – créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias; (...)”.
[15] “Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial”.
[16] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 33.
[17] Relatoria do Ministro GURGEL DE FARIA, Primeira Turma, julgado em 28/05/2019, DJe 12/06/2019.
[18] CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 32.
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Murilo Santos. Da aplicabilidade das medidas constritivas atípicas na execução fiscal: uma análise à luz da decisão proferida pelo STJ no HC 453.870-PR Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 dez 2019, 04:59. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53998/da-aplicabilidade-das-medidas-constritivas-atpicas-na-execuo-fiscal-uma-anlise-luz-da-deciso-proferida-pelo-stj-no-hc-453-870-pr. Acesso em: 22 nov 2024.
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