Monografia elaborada como exigência parcial à obtenção do grau de especialista em Direito Tributário, em conformidade com os normativos do MEC.
RESUMO: A presente pesquisa monográfica visa a analisar, sob o contexto da guerra fiscal existente entre as unidades federativas brasileiras, a viabilidade jurídica da instituição de um único imposto sobre valor agregado no ordenamento tributário nacional, como meio de uniformização fiscal e instrumento de justiça social, a beneficiar a sociedade brasileira como um todo, na medida em que poderia, apaziguando os conflitos tributários interpolíticos, impedir a malversação de recursos e fundos públicos, mitigar o desequilíbrio fiscal e econômico em âmbito local e regional, e ocasionar crescimento social e bem-estar nacional. Para isso, é imperativo revogar o atual sistema tributário incidente sobre operações de circulação de bens e serviços, composto por três impostos distintos, a saber, IPI, ICMS e ISS. É nesse sentido que este trabalho de conclusão de curso propõe uma averiguação atenta dos princípios regentes do federalismo brasileiro, notadamente a cooperação interfederativa, e do próprio sistema de controle de constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público, no fito de acarear a detrimentosa realidade política, econômica e social resultante da guerra fiscal com a vontade ideal apontada pela constituição federal e suas correspondentes diretrizes. Linha em que se faz necessário, então, contrapontuar a autonomia constitucional dos entes políticos para a instituição de seus tributos, e conseguinte possibilidade de desoneração, com o dever de cooperação aplicada ao desenvolvimento economico e social equilibrado, já que, inegavelmente, o fato da mudança domiciliar do contribuinte para território estadual, municipal ou distrital, distinto da origem, visando ao pagamento de alíquotas tributárias menores, gera grande e direta interferência na economia e prestação de atividades públicas essenciais ao cidadão. Este que, seja estando sujeito à jurisdição do ente prejudicado ou à daquele beneficiado com o ingresso de novos contribuintes, será, sempre, a parte mais lesada. Na primeira situação, porque sofredor do imediato desfalque financeiro obstador de melhorias nas prestações públicas destinadas à comunidade, e, na segunda, por força da grande insegurança jurídica causada pela sempre iminente possibilidade de retirada territorial de contribuintes em massa. Arrematando o estudo, a pesquisa focaliza um único imposto nacional sobre valores adicionados, em operações tributáveis em cadeias econômicas produtivas e circulatórias, como a medida que, compatível com o modelo federalista brasileiro, atuaria eficazmente na supressão dos conflitos fiscais e no abrandamento da desigualdade sócio-econômica brasileira, consolidando maior justiça fiscal no país.
Palavras-chave: Guerra. Fiscal. Federalismo. Imposto. Valor. Agregado. Pacificação.
ABSTRACT: The present monographic research aims at analyzing, under the context of the fiscal war between the brazilian federal units, the legal viability of establishing a single value-added tax in the national tributary system, as a way of fiscal uniformization and an instrument of social justice, to benefit brazilian society as a whole, insofar as it could, by appeasing inter-political tax conflicts, prevent the embezzlement of public resources and funds, mitigate the fiscal and economic imbalance at the local and regional level, and cause social growth and national well-being . In order to do so, it is imperative to repeal the current tax system on operations of circulation of goods and services, composed of three distinct taxes, namely IPI, ICMS and ISS. It is in this sense that this work of conclusion of course proposes an attentive investigation of the governing principles of the brazilian federalism, especially the interfederative cooperation, and of the own system of control of constitutionality of laws and normative acts of the public power, in order to deal with the detrimental reality political, fiscal, economic and social consequences of the fiscal war and the ideal will of the federal constitution and its corresponding guidelines. It is therefore necessary to counteract the constitutional autonomy of political entities for the institution of their taxes, and therefore the possibility of exemption, with the duty of cooperation applied to balanced economic and social development, since, undeniably, the fact that taxpayer's domicile change to state, municipal or district territory, different from the origin, aiming at the payment of lower tax rates, generates great and direct interference in the economy and provision of essential public activities to the citizen. Anyone who, is being under to the jurisdiction of the injured entity or to that of the beneficiary with the entry of new taxpayers, will always be the most injured party. In the first situation, because suffering from the immediate financial embezzlement of improvements in public benefits intended for the citizen, and in the second, due to the great legal uncertainty caused by the always imminent possibility of territorial withdrawal of taxpayers in mass. Finalizing to the study, the research focuses a single national tax on added values in taxable operations in productive and circulatory economic chains, as the measure, compatible with the brazilian federalist model, would effectively act in the suppression of fiscal conflicts and in the reduction of social inequality brazilian economy, consolidating greater fiscal justice in the country.
Key words: War. Tax. Federalism. Value. Added. Pacification.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. DO PRINCÍPIO FEDERATIVO NO PLANO INTERNACIONAL E NO BRASIL. 1.1 Do Surgimento Histórico do Federalismo, Do Conceito, classificação e características gerais da forma federativa de estado e Do federalismo brasileiro. 1.1.1. Do Surgimento Histórico do federalismo. 1.1.2 Do Conceito, Classificação e Características Gerais da Forma Federativa de Estado. 1.1.3 Do federalismo brasileiro. 2. DA INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO NA FALTA DE INTEGRAÇÃO LEGISLATIVA DO ARTIGO 23, PARÁGRAFO ÚNICO, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 2.1 Do Conceito, Eficácia e Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Das Normas Constitucionais Programáticas, Da Falta de Integração Legislativa da Norma Programática do artigo 23, parágrafo único, da CRFB/88. 2.1.1 Do Conceito, Eficácia e Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 2.1.2 Das Normas Constitucionais Programáticas. 2.1.3 Da Falta de Integração Legislativa da Norma Programática do artigo 23, parágrafo único, da CRFB/88. 3. DO IVA NACIONAL COMO A MELHOR MEDIDA DE PADRONIZAÇÃO FISCAL PARA O BRASIL. 3.1 Do Conceito de Imposto e Características do IPI, ICMS e ISS, Da Prejudicialidade Social Inerente Às Disputas e da Falibilidade das atuais medidas anti-guerra fiscal, Da Necessidade De Reforma Do Sistema Tributário Nacional Com A Instituição Do Imposto Sobre Valor Agregado – IVA Unificado. 3.1.1 Do Conceito de Imposto e Características do IPI, ICMS e ISS. 3.1.2 Da Prejudicialidade Social Inerente Às Disputas e da Falibilidade das atuais medidas anti-guerra fiscal. 3.1.3 Da Necessidade De Reforma Do Sistema Tributário Nacional Com A Instituição Do Imposto Sobre Valor Agregado – IVA Unificado. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
É de amplo conhecimento que a tributação brasileira incidente sobre a circulação de bens e prestação de serviços, duas das hipóteses de incidência tributária de maior arrecadação de receitas públicas derivadas, é formada por três impostos distintos correlatos às três esferas de governo existentes, no Brasil.
A nível federal, as operações de circulação de produtos industrializados recebem a incidência do Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI. Em âmbito estadual, a tributação das mercadorias e serviços abrangidos se dá pelo Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. E na esfera municipal, sobre a prestação de serviços não inclusos na competência do ICMS incide o Imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISSQN.
Pelo fato de, em tese, incidirem apenas sobre o valor agregado ou adicionado nas operações correspondentes, tais impostos compõem a sistemática do denominado imposto sobre valor agregado – IVA, compartilhada pelas três esferas federativas brasileiras, federal, estadual e municipal.
O que, em razão de serem impostos diferentes instituídos por entes politicos autônomos de esferas distintas, conquanto permeados na mesma sistemática de incidência sobre valor acrescido, abre margem para que os entes tributantes venham a fixar suas alíquotas como forma de granjear contribuintes para seus territórios, desonerando tais impostos.
Em tal contexto é que se revela a guerra fiscal, fenômeno consistente na disputa entre entes tributantes para trazer ao respectivo território o maior número de contribuintes possivel, mediante a fixação de baixas alíquotas ou concessão de outros benefícios fiscais ou financeiros.
Não resta dúvida de que muitos são os impactos à economia e ao desenvolvimento social resultantes da guerra fiscal, repercutindo superpositivamente para os entes que recebem os novos contribuintes e negativamente para os que os perdem, insurgindo um completo desequilibrio nas contas públicas e privadas de toda uma localidade ou região impactada.
Não há que se olvidar da legitimidade presente no exercício da, constitucionalmente garantida, autonomia federativa pelos entes tributantes que, obviamente, dispõem de ampla liberdade na instituição e regulação de seus tributos, desde que observados os comandos constitucionais e legais prioritários sobre a matéria.
O que, entretanto, merece controle de compatibilidade com as normas constitucionais é o eventual uso da autonomia tributária no cenário da guerra fiscal, nos casos em que há o fito de fruir consideráveis melhoras de arrecadação em face dos agravos gerados ao erário do ente prejudicado, em evidente abuso da prerrogativa constitucional.
No contexto da autonomia constitucional dos Entes Políticos tributantes, cumpre destacar que o Brasil adota a forma federativa de Estado, tutelado o princípio federativo, inclusive, na qualidade de cláusula pétrea expressamente do art. 60, § 4º, I, da Constituição da República. E consoante entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado, o federalismo brasileiro é concretizado na cooperação interfederativa, isto é, o Brasil perfilha o federalismo cooperativo ou por cooperação.
É o que evidencia o parágrafo único do art. 23, da Constituição Federal, que, ao trazer a competência material ou administrativa comum dos entes da federação, aduz que normas complementares dirigirão a cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, na busca do equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar em âmbito nacional.
Pela disposição constitucional acima, clarifica-se a finalidade maior da cooperação entre os entes em matéria administrativa de competência comum, a saber, o equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar em âmbito nacional. Ao que, indubitavelmente, se opõe a guerra fiscal, fenômeno que certamente implica desequilíbrio no desenvolvimento conjunto das unidades federativas, favorecendo a arrecadação tributária de uns entes em prejuízo de outros, impactando diretamente as respectivas economias e, indiretamente, toda a economia nacional.
E ainda que não expressamente fixado no rol do art. 23, da Carta Maior, o parágrafo único do citado artigo não deixa dúvida de que as pessoas políticas têm o dever de cooperar entre si no sentido de consolidar um crescimento social, econômico, financeiro e até político integrado, uniforme e equilibrado, restando implícito o encargo compartilhado de prevenir embates interfederativos, inclusive os de natureza tributária, que possam ir de encontro à determinação constitucional de desenvolvimento equilibrado.
Também não há como não destacar que os conflitos fiscais entre os sujeitos ativos tributários, em razão de toda a repercussão arrecadatória, econômica e conseguintemente social, ainda infringem o relevante objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de Reduzir As Desigualdades Sociais E Regionais posto no artigo 3°, III, da Carta Federal, escopo diretamente relacionado ao equilíbrio do desenvolvimento, aventado no correlativo artigo 23, parágrafo único.
Seguindo essa linha, fica claro que a guerra fiscal ainda viola a Redução das Desigualdades Sociais e Regionais enquanto princípio expresso da Ordem Econômica, sito no artigo 170, VII, da Constituição Federal, além de agredir a própria Ordem Social, consignada no art. 193, da mesma Carta, que tem como objetivo o bem-estar e a justiça sociais, haja vista, em ambos os casos, a intrínseca relação com o desenvolvimento e com a cooperação entre os entes tributantes.
Assim, sendo patente que a guerra fiscal, que em gira em torno dos impostos sobre circulação de bens e prestação de serviços, agride diretamente diversas diretrizes e princípios constitucionais, e tem uma repercussão financeira, econômica e social extremamente degradante, não há como não afirmar que a guerra fiscal é fenômeno que pode e deve ser combatido e suplantado.
Como possível medida de mitigação e até completa supressão das inconstitucionalidades verificadas na existência dos conflitos fiscais, está a instituição de um imposto unificado sobre valor agregado que, uma vez instituido e regulado sob diretriz única, inviabilizaria as disputas fiscais entre os sujeitos ativos tributários, ao passo em que, sem prejuízo de tudo já mencionado, também atenderia à isonomia fiscal, determinada pelo texto maior.
Com isso, o presente trabalho de conclusão de curso introduz o tema em discussão, passando-se à detalhada análise, nos capítulos que se seguem, das peculiaridades do federalismo, do conceito e desdobramentos do fenômeno da guerra fiscal interfederativa acerca dos impostos sobre operações de circulação de bens e prestação de serviços no território brasileiro e correspondentes inconstitucionalidades e, por fim, da averiguação e conclusão pela constitucionalidade da instituição de um IVA nacional unificado, na qualidade de melhor contramedida à disputa fiscal, viabilizador do cumprimento de todos os programas constitucionais de desenvolvimento da nação brasileira, relacionados ao tema da tributação.
Nos termos do art. 1º, da Constituição Federal, o Estado brasileiro, estabelecido na forma republicana de governo, é formado pela unisão indissolúvel de estados, municípios e distrito federal.
A partir do que se pode concluir que a República Federativa do Brasil adotou, por expressa determinação constitucional, a forma federativa de estado. Assim, é plenamente correto afirmar que o Estado brasileiro é formado por uma federação indissolúvel de entes políticos dotados de algumas das parcelas do atributo da soberania, como a autonomia e independência política, financeira e administrativa, sem, no entanto, gozarem do referido atributo em todos os seus termos, em benefício do Estado Federal.
Essa autonomia titularizada por entes integrantes de Federação, inclusive a que verificada na ordem pátria, em nada se confunde com a prerrogativa de estado nominada de soberania, tendo em vista que aquela se refere a uma gama endógena de competências, delimitada rígida e expressamente pela respectiva Constituição Federal (CUNHA JÚNIOR, 2017).
Prosseguindo, em apertada e meramente introdutória síntese histórica, é oportuno registrar que o Brasil, num momento inicial de sua existência enquanto estado independente, perfilhou a forma unitária de organização estatal, isso por ocasião da Constituição Imperial brasileira do ano de 1824.
Com o advento da proclamação da república, já em 15 de novembro de 1889, o Brasil deixou de ser um Estado Imperial Unitário para se tonar um Estado Republicano Federal, modelo mantido em praticamente todas as cartas constitucionais posteriores (à exceção das Constituições de 1937, Carta do Estado Novo, de 1967, inclusive, Emenda 1/69, com características marcadamente unitárias), incluindo-se a atual Constituição Republicana, o que, como demonstrado a seguir, repercute diretamente na discussão envolta ao tema em análise, guerra fiscal interfederativa[1].
Pela importância, cabe trazer o comentário de Pedro Lenza (2017, p. 456) a respeito da observação, feita entre parênteses, acima, no sentido de que, malgrado tenham as Constituições posteriores à 1891 repetido a adoção do princípio federativo, alguns doutrinadores constitucionalistas assinalam que havia, no Brasil, uma “Federação de fachada”, na vigência das Constituições de 1937, 1967 e Emenda 1/69.
Dada a importância e consectários jurídicos atrelados ao uso da forma federativa de estado, importa, no contexto do tema sob exame, destrinchar o surgimento, o conceito e a classificação do princípio federativo enquanto forma de organização estatal e, conseguintemente, as peculiaridades do modelo federativo adotado pelo Estado brasileiro, em indispensável análise prévia e correlata aos desdobramentos da guerra fiscal entre as unidades federativas pátrias.
1.1.1 Do Surgimento Histórico do Federalismo
Historicamente, o nascimento internacional do federalismo, enquanto forma de estado, é geralmente remetido à Magna Carta Norteamericana do ano de 1787, documento constitucional resultante das revoluções liberais ocorridas no final do século XVIII, em que pese haver indícios da existência de trabalhos postos no sentido da concretização de tal modelo de organização em períodos anteriores, porém com pouca repercussão prática (NOVELINO, 2013).
Como é de conhecimento público, as revoluções libertárias francesa e norte americana, dos anos finais do século XVIII, culminaram com a edição dos documentos constitucionais escritos e dogmáticos consistentes nas Constituições americana, de 1787 e francesa, de 1791, cartas carreadas de ideais de atuação negativa do estado e de limitação do poder dominante, nas respectivas nações, em prol da institucionalização das liberdades públicas, contexto histórico no qual, conforme acima afirmado, teve surgimento internacional a implementação do modelo federativo de organização de estados soberanos.
Complementando, interessa consignar que o contexto histórico marcado pelas revoluções liberais dos idos de 1776 (revolução americana) e de 1799 (revolução francesa) é o mesmo no qual também tem surgimento a fase moderna do constitucionalismo, importante movimento de cunho político e filosófico de verificação atrelada à evolução da institucionalização das garantias e direitos populares em limitação ao poder estatal.
De forma que, impulsionada pelas fontes materiais de pressão e revolução popular verificadas nas datas suprareferidas, e marcando o advento do constitucionalismo moderno no plano internacional, em 1787 foi editada a primeira Constituição Escrita do mundo, a Magna Carta da recém-inaugurada Federação dos Estados Unidos da América, fundamentada, assim como a Constituição francesa de 1791, em duas principais características, a saber, organização do estado e limitação do poder estatal (CUNHA JÚNIOR, 2017).
Segundo o ensino de Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 467), paralelamente à conjuntura político-constitucional histórica marcada pelos ideais iluministas revolucionários do final do Século XVIII sobreditos, a implantação da forma federativa de estado na nação norte americana, pela promulgação da Magna Carta de 1787, é precedida e motivada por uma série de insucessos verificados na execução do modelo estatal confederativo, previamente adotado pelas treze ex-conlônias inglesas situadas no norte da américa, quando de sua independência.
Isso porque, após a proclamação da independência das referidas colônias, houve, com a celebração do tratado denominado “artigos de confederação”, firmado, no ano de 1781, entre os treze estados norteamericanos então descolonizados, a adoção de um vínculo interestatal baseado no modelo confederativo, onde todos os entes participantes permaneceram dotados de soberania.
Porém, dados os insuperáveis conflitos resultantes da execução dos intentos da confederação, inevitavelmente provocados pela inconciliável manutenção do atributo da soberania dos estados com os objetivos idealizados no pacto confederativo, com a Convenção de Filadélfia, datada de 1787, a partir da realização de diversos “trabalhos escritos” (CUNHA JÚNIOR, 2017), os estados em confederação escolheram inovar adotando, em substituição à confederação, uma Federação de estados autônomos, sob a proteção de uma Carta Constitucional regulatória, que foi justamente a Constituição norteamericana de 1787 acima referenciada.
No particular das motivações que impulsionam os estados a adotarem a forma federativa, em uma perspectiva mais genérica, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2016, p. 844) opinam no sentido de que a escolha tem por fundamento aspectos diversos, abrangendo desde razões geográficas e culturais até motivações de segurança democrática e de mitigação da centralização do poder, em seus termos:
Os Estados assumem a forma federal tendo em vista razões de geografia e de formação cultural da comunidade. Um território amplo é propenso a ostentar diferenças de desenvolvimento de cultura e de paisagem geográfica, recomendando, ao lado do governo que busca realizar anseios nacionais, um governo local atento às peculiaridades existentes.
O federalismo tende a permitir a convivência de grupos étnicos heterogêneos, muitas vezes com línguas próprias, como é o caso da Suíça e do Canadá. Atua como força contraposta a tendências centrífugas.
O federalismo, ainda, é uma resposta à necessidade de se ouvirem as bases de um território diferenciado quando da tomada de decisões que afetam o país como um todo. A fórmula opera para reduzir poderes excessivamente centrípetos.
Aponta‐se, por fim, um componente de segurança democrática presente no Estado federal. Nele, o poder é exercido segundo uma repartição não somente horizontal de funções – executiva, legislativa e judiciária –, mas também vertical, entre Estados‐membros e União, em benefício das liberdades públicas.
Portanto, no plano histórico internacional, assim se verificou o advento prático mais consistente da implementação da forma federativa de estado, num primeiro vislumbre da adoção do princípio federativo de organização estatal, valendo repetir, a partir da instauração do Estado Federal dos Estados Unidos da America, com a edição e promulgação da Constituição americana de 1787.
Nessa toada, uma vez que relevante à posterior apresentação do próprio conceito de federalismo, objeto central da análise reflexiva deste primeiro capítulo, interessa ressaltar que os estados soberanos, enquanto pessoas jurídicas de direito público externo, podem ser classificados, segundo a distribuição territorial interna do poder e competências políticas, em estados unitários (ou simples) e compostos.
Pelo que vale salientar quais sejam as características basilares do primeiro tipo de forma de estado acima referenciado, que é o tipo Estado Unitário. Primeiramente, cumpre esclarecer que o estado, organizado na forma unitária, se caracteriza substancialmente pela “centralização política e monismo de poder”, na literalidade do ensino de Marcelo Novelino (2013, p. 697).
Não obstante a existência de certos tipos de descentralizações de cunho político-administrativo no âmbito de alguns estados unitários, o centralismo do poder político, a ser uniformemente observado em todo o território do estado soberano, prevalece como a grande peculiaridade dessa modalidade de organização formal de estado.
Já o estado composto se estrutura na consolidação de mais de uma pessoa dotada de poder político (ainda que com atuação limitada à determinada circunscrição espacial) dentro de um único território. Pelo que se pode aduzir que, ao lado da federação propriamente dita, apenas uma das subespécies de forma composta de estado, estão mais outros três tipos distintos de estado composto.
Em que pese restar claro do sumário que o objeto de estudo, do presente capítulo, está centrado na análise conjuntural do princípio da federação, interessa, para fins elucidatórios, trazer os aspectos gerais, os conceitos e peculiaridades das três outras modalidades de estado composto, a saber, união pessoal, união real[2] e confederação.
A Confederação é subtipo de estado composto distinto da Federação em razão de que fundamentado nas seguintes balizas, a saber: os respectivos membros são detentores de soberania; os entes estão vinculados entre si mediante um tratado internacional; e, ainda, há direito de segregação outorgado aos confederados; dentre outros elementos cuja consignação se faz claramente dispensável, por agora.
Para além da classificação binária ou dual das formas de estado supra, majoritariamente aceita pela doutrina (estado unitário e estado composto), uma parcela da doutrina ainda tende a apontar a denominada “União Incorporada” como modalidade de organização estatal que, conquanto apresente alguns traços em comum, não se confunde efetivamente com o estado composto.
Isso, na medida em que a União Incorporada é forma de estado verificada através da absorção de antigos estados, para os fins da formação de um novo estado, resultado da referida incorporação. Sendo tida, assim, pela melhor doutrina, como sendo forma sui generis de Estado, constituído a partir de procedimento ímpar dentre aqueles verificados na formação de estados soberanos. Esse é o caso, exemplificando, do Reino Unido (NOVELINO, 2013).
1.1.2 Do Conceito, Classificação e Características Gerais da Forma Federativa de Estado
Conforme amplamente consignado na contextualização histórica do surgimento do movimento federalista, objeto do subtópico anterior, se pode afirmar que federação consiste numa das submodalidades de organização estatal composta, na qual os entes integrantes, detentores de personalidade jurídica de direito público interno, privados de soberania em favor da aliança interestatal, atuam de maneira autônoma e independente uns em relação aos outros, na configuração de um Estado Federal, pessoa jurídica de direito público externo.
E Estado Federal, assim constituído, é o estado no âmbito do qual impera a regra da descentralização e repartição de competências administrativas e poderes políticos na conformidade das parcelas de atuação espacial ou territorial respectivas a cada ente federado, previamente definidas num texto constitucional regulador.
Nas linhas de ensino de Marcelo Novelino (2013, p. 699 e 700), no que tange ao princípio federativo de organização estatal, vale transcrever os seguintes excertos, em seus exatos termos:
O termo federação (foedus, foederis) significa aliança, pacto, união.
O Estado Federal é formado pela união de entes políticos autônomos dotados de personalidade jurídica de direito público.
Entre as características essenciais de um Estado Federal está a descentralização político-administrativa fixada pela Constituição.
A simples repartição de competências legislativas, por si só, não é suficiente para caracterizar esta forma de Estado, pois a delegação às divisões territoriais, se atribuída por lei infraconstitucional, poderá ser retirada a qualquer momento pelo ente central. Por isso a necessidade de fixação pela Lei Maior.
Ainda segundo os ensinamentos do sobredito doutrinador, quanto à outorga constitucional de autorregulação, por meio da edição de Constituições próprias, aos entes participantes da federação, se tem que esta é imprescindível à própria caracterização da forma federativa de estado. Pela relevância, cabe a transcrição literal: “A capacidade de auto-organização dos Estados-membros por meio de Constituições próprias é também um requisito indispensável para caracterizar a forma federativa de Estado”.
O direto à autorregulação, atribuído aos integrantes de um pacto federativo, deve ser obrigatoriamente exercido, sob pena de ensejar algum tipo de subordinação hierárquica indevida ao ente central, (o que, em tese, já refoge às bases do federalismo, visto que nenhum deles detém soberania).
Exemplo de disfunção no exercício de competências federadas se dá em situações nas quais, havendo insuficiência de normatização no texto maior, referente a uma dada categoria de participante federado, incide sobre o ente central o dever de suprir unilateralmente as omissões referidas, ou mesmo em hipóteses nas quais resta simplesmente inviável o cumprimento efetivo das competências constitucionalmente fixadas a dado ente por força de inexistir previsão de mecanismos de resolução claramente definidos, ensejando, mais uma vez, a ingerência do ente de centro.
Em pergunta de caráter retórico, através do que se tornaria eficazmente viável o exercício efetivo da autodeterminação política e administrativa, conferida pelo documento constitucional, senão através do exercício de uma autonomia regulatória que permita ao estado-membro, observados os limites constitucionais, regulamentar aspectos temáticos e específicos de sua atuação, logicamente distantes da realidade do ente central?
Por isso, se entende clara a conformação do exercício da autorregulação na qualidade de poder-dever inafastável a qualquer integrante federativo na medida em que assim enquadrado por expressa previsão constitucional, vedadas quaisquer interferências politico-administrativas do ente central, como regra geral.
Saliente-se que essa capacidade de autorregulação[3], concretizada pela via da edição de constituições estaduais, conferida aos estados-membros pelas constituições federais, é exercida no contexto do doutrinariamente denominado Poder Constituinte Derivado Decorrente, subespécie do Poder Constituinte Derivado, este posto em paralelo ao Poder Constituinte Originário.
O Poder Constituinte Originário é definido por Pedro Lenza (2016, p. 219) como sendo o poder que “instaura uma nova ordem jurídica, rompendo por completo com a ordem jurídica precedente”, cujo objetivo fundamental “é criar um novo Estado, diverso do que vigorava em decorrência da manifestação do poder constituinte precedente”, ainda apontado como um poder de Fato, Político, Inicial, Autônomo, Ilimitado Juridiciamente, Incondicionado e Permanente.
Não obstante todos os atributos inerentes à caracterização do Poder Constituinte Originário, há, no plano internacional, uma interessante variação no que se refere ao marco de finalização e definitização da formação constitucional de um estado, verificado após os trabalhos realizados pela assembleia ou convenção designada para a elaboração dogmática do texto magno.
Em algumas federações, para além de todas as condicionantes políticas e oriundas do direito natural a serem atendidas quando da elaboração do documento magno pela Assembleia Constituinte, chamadas de condicionamentos pré-constituintes, foi posto, como requisito à oficialização da Constituição respectiva, a confirmação posterior, por parte da população ou até dos Estados-membros do texto editado pelo constituinte originário, via Referendo (um dos principais instrumentos de exercício direto da soberania popular, de fácil verificação em ordens constitucionais democráticas, no âmbito de países organizados na forma federativa), ratificação a que se refere Luís Roberto Barroso (2015, p.148) como sendo condicionamento pós-constituinte.
Nesse contexto, porque interessante à explanação e detalhamento histórico da ordem constitucional originária, vale colacionar o ensino do referido autor e ministro do Supremo Tribunal Federal acerca dos denominados condicionamentos pós-constituintes, que nada mais são do que requisitos vinculadores da produção dos efeitos jurídicos de uma Constituição Federal.
Nessa temática, Luís Roberto Barroso destaca o referendo postecipado, titularizado pela população em geral ou pelos Estados-membros, enquanto forma de ratificação do trabalho realizado pelo órgão constituinte, como o principal e mais decisivo condicionamento pós-constituinte, pelo fato de terminar influenciando, direta ou indiretamente, os trabalhos da assembleia ou convenção, dado que a própria eficácia da Constituição Federal dependeria da mencionada confirmação, no que ensina, assim:
O mais decisivo condicionamento pós-constituinte advém da necessidade de ratificação do texto aprovado pela assembleia ou convenção, circunstância que, por si só, já impõe aos delegados a preocupação de maior sintonia com o colégio eleitoral que será encarregado da deliberação final.
O fato de a ratificação se dar, por exemplo, pelos Estados membros da Federação ou pelo conjunto da população, pode ter impacto importante nas decisões a serem tomadas pelos constituintes.
Como já assinalado, esse modelo de referendo popular da Constituição não foi abrigado na teoria do poder constituinte de Sieyès.
Nela, a nação, entidade abstrata, manifestava sua vontade através de representantes, reunidos em assembleia, cabendo a esta a palavra final.
Nos Estados Unidos, ao contrário, desde as experiências constitucionais estaduais, sempre foi tradição o exercício da soberania popular por via direta, submetendo-se à ratificação popular o projeto aprovado em convenção pelos representantes indicados.
A Constituição Federal, cujo texto foi elaborado na Filadélfia, em 1787, teve no processo de ratificação pelos Estados sua etapa decisiva.
Como dito, em paralelo ao Poder Constituinte Originário, está o Poder Constituinte Derivado, também denominado “Instituído, Constiuído, Secundário, de 2º grau ou Remanescente”, nos termos da doutrina de Pedro Lenza (2016, p. 224), que obviamente não é, na perspectiva jurídica, ilimitado, incondicionado ou inicial, sob pena de usurpação das características do poder sob o qual atua o legislador constituinte originário.
Na realidade, o Poder Constituinte Derivado tem de observar, enquanto poder instituído pelo próprio Poder Originário, todos os paradigmas fixados pelo texto constitucional resultante dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, assim fatalmente identificado como um poder limitado e condicionado às restrições postas pela Carta Magna, em sua redação originária.
Vale assentar que o Poder Constituinte Derivado é subclassificado em Reformador e Decorrente. Tais poderes são os responsáveis, respectivamente, por permitir aos integrantes do Legislativo Federal modificar o texto aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte, através da edição de Emendas à Constituição Maior, observadas determinadas limitações arroladas no próprio texto magno, e por legitimar aos Estados-membros da Federação o poder de elaborar suas próprias Constituições Estaduais, no sentido de se autodeterminarem política e administrativamente, respeitados os condicionamentos da Constituição Federal, nas exatas palavras de Alexandre de Moraes (2017, p. 27):
O Poder Constituinte derivado reformador, denominado por parte da doutrina de competência reformadora, consiste na possibilidade de alterar-se o texto constitucional, respeitando-se a regulamentação especial prevista na própria Constituição Federal e será exercitado por determinados órgãos com caráter representativo. No Brasil, pelo Congresso Nacional.
[...]
A partir da EC nº 45/04, também há a manifestação do poder constituinte derivado reformador nas hipóteses do § 3º, do artigo 5º do texto constitucional, que permite a aprovação pelo Congresso Nacional de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos pelo mesmo procedimento das emendas constitucionais.
O Poder Constituinte derivado decorrente, por sua vez, consiste na possibilidade que os Estados-membros têm, em virtude de sua autonomia político-administrativa, de se auto-organizarem por meio de suas respectivas constituições estaduais, sempre respeitando as regras limitativas estabelecidas pela Constituição Federal. No capítulo sobre organização do Estado Federal, estudar-se-á mais detalhadamente esta matéria.
Em razão de sua substancialidade ao tema, considerando a classificação binária acima ventilada (poder constituinte originário e derivado), não é possível deixar de suscitar comentários de passagem, no contexto do ordenamento jurídico pátrio, acerca das normas jurídicas que, conquanto não resultem da atuação do poder constituinte derivado, detêm status hierárquico-normativo formal de norma constitucional derivada, a saber, os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, aprovados no rito especial previsto no artigo 5º, § 3º, da CRFB/88.
Na linha das lições de Valério Mazzuoli (2017, p. 227), os tratados ou convenções internacionais, que versem sobre direitos humanos (o que já lhes enseja a condição de normas materialmente constitucionais, em vista do art. 5º, §2º, da Constituição Federal) e sejam incorporados ao ordenamento jurídico pátrio no rito de aprovação das emendas constitucionais, terão status hierárquico-normativo formal de emenda à Constituição Federal.
Se internalizado sem atentar aos procedimentos de aprovação das emendas constitucionais, apenas alcançarão o grau hierárquico de normas supralegais, enquadradas em patamar intermediário à lei e à constituição.
E deterão a hierarquia normativa constitucional mesmo sem configurar produto da atuação do poder constituinte derivado, alargando-se o conceito de bloco de constitucionalidade[4] no ordenamento pátrio, enquanto paradigma normativo nacional da fiscalização de compatibilidade de leis e atos normativos com o texto constitucional, em fenômeno estranho às ordens constitucionais brasilieiras anteriores à CRFB/88, que terminou inovando nesse ponto.
Contexto em que interessa transliterar a lição do referido autor[5] internacionalista, pela clara relevância ao assunto da classificação hierárquica das normas jurídicas, literalmente:
Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional, em virtude do disposto no § 2.º do art. 5.º da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias expressos no texto constitucional “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, pois, na medida em que a Constituição não exclui os direitos humanos provenientes de tratados, é porque ela própria os inclui em seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu “bloco de constitucionalidade” e atribuindo-lhes hierarquia de norma constitucional, como assentamos anteriormente.
Voltando ao que se refere ao Poder Constiuinte Derivado Decorrente, é correto afirmar que a autorregulação política, administrativa e financeira, por parte dos Estados membros de uma federação, fundamento configurador da forma federativa de estado, importa colacionar as convenientes lições da doutrina de Pedro Lenza (2016, p. 226), para quem:
O poder constituinte derivado decorrente, assim como o reformador, por ser derivado do originário e por ele criado, é também jurídico e encontra os seus parâmetros de manifestação nas regras estabelecidas pelo originário.
Sua missão é estruturar a Constituição dos Estados-Membros ou, em momento seguinte, havendo necessidade de adequação e reformulação, modificá-la.
Tal competência decorre da capacidade de auto-organização estabelecida pelo poder constituinte originário.
Como veremos ao tratar dos Estados-Membros, no tópico Federação (item 7.5), a eles foi atribuída autonomia, manifestada pela capacidade de auto-organização (art. 25, caput); autogoverno (arts. 27, 28 e 125, que estabelecem regras para a estruturação dos “Poderes” Legislativo: Assembleia Legislativa; Executivo: governador do Estado; e Judiciário: Tribunais e juízes) e autoadministração (arts. 18 e 25 a 28 — regras de competência legislativas e não legislativas, que serão oportunamente estudadas).
Em se valendo do até aqui exposto e importando-o à realidade constitucional brasileira, interessa depreender do ordenamento constitucional pátrio, notadamente do artigo 25 da Constituição Republicana, de 1988, que aos Estados-membros da federação brasileira é outorgado o poder de se auto-organizar mediante a edição de Constituições e Leis próprias, na derrogação daquilo que for contrário ao previsto na Carta Maior, pela importância, valendo carrear: “Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”.
Explicitando essa questão do Poder Constituinte Derivado Decorrente, essencial à compreensão dos instrumentos por meio dos quais os integrantes periféricos da federação exercitam o poder, outorgado pelo ente central, de se autorregularem, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2016, p. 853) assinalam o seguinte, ao explanar comentários sobre o que eles denominam “poder constituinte dos estados-membros” de uma federação:
O poder constituinte originário, ao adotar a opção federalista, confere aos Estados‐ ‐membros o poder de auto‐organização das unidades federadas.
Estas, assim, exercem um poder constituinte, que não se iguala, entretanto, ao poder constituinte originário, já que é criatura deste e se acha sujeito a limitações de conteúdo e de forma.
O poder constituinte do Estado‐membro é, como o de revisão, derivado, por reti‐ rar a sua força da Constituição Federal, e não de si próprio. A sua fonte de legitimidade é a Constituição Federal.
No caso da Constituição Federal em vigor, a previsão do poder constituinte dos Estados acha‐se no art. 25 (“os Estados organizam‐se e regem‐se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”) e no art. 11 do ADCT.
Pelo que se assevera que o exercício da autonomia de regulação (funcionando como via de efetivação da indepedência administrativa e política dos entes federados), por parte dos Estados-membros, é quesito indispensável à efetivação do princípio federativo de organização do estado.
A autonomia de regulação se materializa exatamente na elaboração de Consituições e Leis próprias, o que é feito na delimitação do que se entende por Poder Constituinte Derivado Decorrente, isso significando que todos os dispositivos constitucionais e legais, do ordenamento estadual, no âmbito de um pacto federativo, devem respeitar as delimitações expressa e implicitamente consignadas na Constituição Federal, inclusive aquelas de cunho principiológico, sob pena de vício de inconstitucionalidade.
Vistos o conceito e características gerais da forma federativa de estado composto, interessa arrolar a classificação doutrinária do federalismo. O federalismo pode ser reconhecido em, pelo menos, cinco espécies distintas, em conformidade ao critério de classificação respectivo. Quanto à origem, o federalismo pode ser classificado em federalismo por agregação e por desagregação (ou segregação), e, no que se refere à repartição de competências, o federalismo pode ser cooperativo, dualista (ou dual) e de integração (NOVELINO, 2013).
O federalismo por agregação é resultante de um movimento centrípeto, adotado por estados soberanos que, dispondo de parcela de sua soberania, se reúnem sob a forma de federação, como foi o caso da Federação Estadunidense, instituída a partir do Documento de 1787, responsável por agrupar as treze ex-colônias inglesas na condição de entes políticos autônomos, conforme exata lição do multicitado constitucionalista (2013, p. 702):
O Estado resultante da extinção de Estados soberanos agregados como entes autônomos também é denominado Estado perfeito ou por associação ou por aglutinação.
Podem ser mencionados, como exemplo de federalismo centrípeto, os modelos norte-americano, alemão e suíço, cujo nome oficial (Confederação Helvética) ilustra bem a origem de seu federalismo.
Já o federalismo por segregação se verifica quando, numa movimentação centrífuga, um Estado Unitário se descentraliza, subdividindo-se em diversas unidades políticas federativas, originando, também segundo Marcelo Novelino, no mesmo ano e página do parágrafo anterior: “Estados denominados de imperfeitos ou por dissociação, como no caso do Estado brasileiro, do Estado belga e do Estado austríaco”.
E com base na forma de compartilhamento de competências entre as unidades federativas, como dito, é possível que uma federação seja dual ou dualista, esta fundamentada numa relação coordenativa firmada entre o ente central e os demais entes, caracterizando-se pelo compartilhamento nivelado de atribuições entre União e Estados-membros (NOVELINO, 2013).
Ainda segundo o último critério mencionado, é possível verificar o federalismo de integração quando há, efetivamente, uma relação de subordinação hierárquica entre União e Estados-membros, na qual estes restam claramente sujeitos àquela. Pela grande conveniência, merece colação literal o comentário do suprarreferenciado professor de direito constitucional (2013, p. 703): “ Embora nominalmente federação, este modelo em muito se aproxima do Estado Unitário descentralizado, na medida em que existe essa relação de dependência e de subordinação dos entes regionais em face da União”.
Por derradeiro, também quanto à forma de distribuição interfederativa de competências, o federalismo pode ser de cooperação ou cooperativo que, diferentemente do dualista, onde o Documento Constitucional reparte as competências de maneira horizontal, é marcado pela fixação de áreas em que haja atuação comum e concorrente entre o ente central e os entes ao seu redor, outrossim com base nas lições, aqui praticamente esgotadas nesse tema, de Marcelo Novelino[6].
Sem prejuízo das classificações anteriores, a doutrina de Guilherme Peña de Moraes (2017, p. 431) traz a categorização do Estado Federal, ainda, em simétrico e assimétrico, cetrífugo e centrípeto, de primeira geração e de terceira geração, de dois níveis e de quatro níveis, assim conceituando cada espécie:
Federalismo simétrico e federalismo assimétrico, dado que a simetria é traduzida pela “uniformidade nas relações dos Estados-membros com o sistema como um todo, com a autoridade federal e com os outros Estados-membros”.
Federalismo centrífugo e federalismo centrípeto, já que aquele é distanciado do centro de governo, originado da segregação de Estado unitário, ao passo que este é dirigido ao centro de governo, oriundo da agregação em Estado composto.
Federalismo de primeira geração, influenciado pelo modelo norte-americano do século XIX, federalismo de segunda geração, inspirado pelo modelo europeu-continental do início do século XX, e federalismo de terceira geração, no qual Estados unitários transformaram-se em Estados federais durante o final do século XX, como, por exemplo, se sucedeu no Reino da Bélgica.
Federalismo de dois níveis e federalismo de quatro níveis, posto que um é o em que a autonomia política é evidenciada, unicamente, na União e nos Estados, enquanto o outro é o em que a autonomia política é estendida, também, ao Distrito Federal e aos Municípios.
Dadas a caracterização e as mais relevantes classificações doutrinárias do federalismo enquanto forma de delimitação e organização do estado, impende, no subtópico a seguir, explorar quais sejam as predominâncias e marcas do princípio federalista adotado no estado brasileiro, relacionando-o como um dos pilares constitucionais postos ao combate da guerra fiscal interfederativa, objeto maior da análise suscitada nesta monografia.
1.1.3 Do Federalismo Brasileiro
Conforme amplamente consignado no desenvolvimento de todo este capítulo, o Brasil, com a promulgação da primeira Constituição Republicana, em 1891, abandonando a forma unitária de estado adotada sob a égida da Carta de 1824 (Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um conselho de estado e outorgada pelo imperador Dom Pedro I, em 25 de março de 1824), perfilhou a organização estatal federativa, com a conversão das antigas províncias imperiais em estados-membros.
Pretendendo se ater às características da federação brasileira instituídas sob à vigência da atual Constituição Federal, a presente pesquisa invoca, nesta oportunidade, os dispositivos constitucionais notadamente carreados do ideal federalista, como é o caso dos artigos 1º, 19, 23, 24, e 25, do texto maior.
Pelo artigo 1º do Documento pátrio, a República do Brasil é organizada na forma federativa e formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal. De antemão, cumpre relembrar que a primeira Carta Constitucional responsável por alçar os Municípios à condição de ente federativo foi a de 1988, que equiparou a autonomia municipal àquela conferida à União e aos Estados (NOVELINO, 2013).
E ao versar sobre a organização político-administrativa do estado federal brasileiro, a vigente Constituição Federal, em seu artigo 19, impôs três vedações aos Entes Políticos, em clara limitação da autonomia a eles conferida, nos seguintes termos:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
II - recusar fé aos documentos públicos;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.
O já colacionado artigo 25 do Documento, ao aduzir que os Estados podem se auto-organizar e reger por Constituição estaduais, no exercício do Poder Constituinte Derivado Decorrente, expressa a outorga magna da autorregulação política e administrativa estatal, viabilizando a execução do pacto federativo entre entes federados, sem a ingerência indevida do ente central.
Os artigos 23 e 24, da Constituição Nacional, vêm revelar a principal característica do princípio federativo brasileiro, na visão deste trabalho, que é o dever de existir cooperação ou cooperatividade entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nas suas respectivas e distintas esferas de atuação, visando ao bem comum da nação brasileira, notadamente, à concretização dos objetivos e princípios fundamentais da República, arrolados nos artigos 1º e 3º, da CFRB/88.
Dito isso, interessa relacionar os caracteres doutrinários básicos do pacto federativo brasileiro. Ora, pelo que evidenciam a história constitucional e os dispositivos sobreditos, o federalismo brasileiro pode ser claramente classificado como Federalisamo por Desagregação ou Segregação, porque resultante de descentralização política efetuada no âmbito do Estado Imperial Unitário de 1824, e como Federalismo Cooperativo ou de Cooperação, em vista do teor inerente aos artigos 23, 24 e 25, da CRFB/88.
A cooperação interfederativa resta notória da própria repartição constitucional de competências administrativas ou materiais comuns, entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e legislativas concorrentes, entre União, Estados e Distrito Federal.
O parágrafo único do suprareferido artigo 23, que instaura o rol de competências materias comuns entre todos os entes politicos, é expresso em afirmar que Leis Complementares Nacionais deverão fixar “normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.
Assim, certo que a cooperatividade interpolítica é marca inequívoca da Federação brasileira, devendo, inclusive, ser objeto de regulação via lei complementar nacional, por imposição constitucional direta e não mera faculdade, e tendo por fim expresso o equilíbrio do próprio desenvolvimento e bem-estar nacionais, não restam dúvidas de que o legislador infraconstitucional tem faltado no dever de regulamentar a norma do artigo 23, parágrafo único, CRFB/88.
Isso porque, até onde se tem notícia, a Lei Complementar Nacional 140/2011, cujo espectro se limita à atuação comum dos Entes Políticos em matéria de proteção e preservação ambiental, é o único documento legal imediatamente resultante da imposição do ventilado parágrafo único, inexistindo[7], até o presente momento, qualquer legislação infraconstitucional, de caráter tributário, baseada diretamente nesse comando constitucional, visando a obstar os entraves interfederativos no contexto da guerra fiscal, especificamente.
De sorte que a realidade da guerra fiscal, à revelia de qualquer atuação do legislador infraconstitucional para o fim da extirpação do fenômeno e suas detrimentosas repercussões sociais e econômicas, tem lugar exatamente em razão da clara omissão do legislativo federal, responsável por inviabilizar a concretização do programa constitucional de promoção do equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar em âmbito nacional.
Diante da referida inconstitucionalidade existencial dos conflitos fiscais entre Entes Políticos, dado o expresso dever interestatal de cooperatividade próprio do federalismo brasileiro, determinado pelo Constiuinte Originário, a presente pesquisa passará à analise do caráter programático do artigo 23, parágrafo único, da Constituição Federal, e das repercussões jurídicas de seu desrespeito, à luz dos postulados constitucionais imanentes.
Conforme suficientemente explanado no transcorrer do capítulo anterior, a norma do artigo 23, parágrafo único, da Constituição Federal, traz um comando dirigido ao legislador infraconstitucional posto no sentido de lhe imputar o encargo de editar leis complementares nacionais que venham a regular a cooperação interfederativa, com vistas ao equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar em âmbito nacional, notadamente no que se refere ao exercício de competências materiais comuns.
Não sendo bastante para o fim do exaurimento da regulação cooperativa entre os Entes Políticos, intentada no citado dispositivo constitucional, visto que extremamente abrangente e não delimitadora de campos jurídicos especificados, a atuação do legislador infraconstitucional, diretamente baseada em tal dispositivo, atualmente se resume à edição da Lei Complementar Nacional 140/2011.
O que é claramente insuficiente, porquanto a necessidade de disciplina legal da matéria não se restringe, por óbvio, à esfera ambiental, mormente quando considerada a inegável existência fática de um fenômeno detrimentoso como o da guerra fiscal, que provoca sérios desequilíbrio e descompensação no desenvolvimento e bem-estar, não somente a nível regional e local, mas também em âmbito nacional.
Tendo em mente o caráter eminentemente programático da norma do artigo 23, parágrafo único, da Constituição Federal, considerada por esta pesquisa, em específico, norma de eficácia limitada de princípio programático, dependente de atuação legislativa infraconstitucional pronta a concretizar no mundo jurídico o programa ou linha de atuação posto pelo Constituinte Originário, mediante a imposição legal aos dirigentes políticos de um conjunto de deveres e obrigações a ser paulatinamente implementado, o presente capítulo se presta a examinar a omissão do legislador nacional complementar, consistente na inação legiferante frente à ocorrência dos conflitos fiscais interfederativos.
Em razão do que não é preciso esgotar argumentos na linha de que ao sistema legislativo tributário brasileiro se impõe uma modificação estrutural na tributação incidente sobre as operações de circulação de bens e serviços com valor agregado, de forma a garantir a inocorrência do enfraquecimento do pacto federativo causado pela guerra fiscal, e a alcançar o pleno implemento das políticas do programa de ação interfederativa conjunta posto para a promoção gradativa do equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar em âmbito nacional.
O que, na visão desta pesquisa, somente pode se concretizar de modo efetivo a partir da adoção de uma sistemática de tributação fundada na incidência de um único imposto sobre o valor adicionado em cada operação integrante de uma mesma cadeia produtiva ou circulatória, através de uma reforma legislativa tributária.
Isso sob pena de, mantendo-se inerte o legislador quanto a esse ponto, perdurarem os prejuízos incidentes sobre a acordo federativo interpolítico e outros malefícios de cunho econômico, político-fiscal, financeiro e social, decorrentes da guerra fical, diretamente resultantes da omissão imputada ao legislador nacional complementar, verificada exatamente pela falta de regulação do sobredito artigo 23, parágrafo único, do Texto da Constituição Federal.
2.1.1 Conceito, Eficácia e Aplicabilidade das Normas Constitucionais
A norma, naturalmente distinguida do próprio dispositivo escrito revelador do seu conteúdo, em termos amplamente genéricos, pode ser compreendida como sendo o comando a partir do qual se emite um mandamento, regulação ou ordenança dirigida a uma difusão de pessoas, posta no sentido de disciplinar as relações travadas em determinado segmento social, delimitando os limites dos direitos e deveres inerentes a cada parte atuante em tais relações.
E será jurídica aquela norma apta a produzir os seus efeitos e a vincular, todos os que a ela sujeitos, de modo relevante para o direito, isto é, com desdobramentos que lhe atribuam mecanismos de segurança e de garantia de cumprimento, em caso de eventual inobservância, consistindo a norma jurídica num “imperativo autorizante”, nas exatas palavras de Goffredo Telles Jr. (2003, p. 263). Não havendo, assim, como deixar de reconhecer que a norma jurídica por excelência, afora daquilo especificamente referente às normas inseridas em documentos constitucionais, é a norma estampada em documento legal, a norma legal.
Por oportuno, vale trazer à presente colação os comentários de Flávio Tartuce (2016, p. 9) acerca das características básicas da norma legal, verificadas em seu manual de direito civil, a saber:
A lei, como fonte primária do Direito Brasileiro, tem as seguintes características básicas:
a)Generalidade – a norma jurídica dirige-se a todos os cidadãos, sem qualquer distinção, tendo eficácia erga omnes.
b)Imperatividade – a norma jurídica é um imperativo, impondo deveres e condutas para os membros da coletividade.
c)Permanência – a lei perdura até que seja revogada por outra ou perca a eficácia.
d)Competência – a norma, para valer contra todos, deve emanar de autoridade competente, com o respeito ao processo de elaboração.
e)Autorizante – o conceito contemporâneo de norma jurídica traz a ideia de um autorizamento (a norma autoriza ou não autoriza determinada conduta), estando superada a tese de que não há norma sem sanção (Hans Kelsen).
A partir do que se pode afirmar que um sistema jurídico nada mais é do que um arcabouço normativo basicamente composto por um conjunto de normas de caráter jurídico, que vinculam e obrigam com repercussões diretas ou indiretas na esfera jurídica de cada atingido, indivíduo ou coletividade, que, assim, poderá vir a ser demandado ao cumprimento, voluntário ou não, de cada comando normativo presente no referido sistema.
Ainda conforme se depreende da doutrina de Flávio Tartuce (2016, p. 2), o sistema jurídico adotado no Brasil é aquele cuja fonte maior é a lei, sistema esse oriundo da escola jurídica da Civil Law, de origem romano-germânica, valendo transcrever: “O Direito Brasileiro sempre foi filiado à escola da Civil Law, de origem romano-germânica, pela qual a lei é a fonte primária do sistema jurídico”.
Ainda segundo o referido civilista, em que pese haver uma tendência de se chegar a um termo intermediário entre o sistema fundado na Civil Law, acima caracterizado, e aquele baseado na escola da Common Law (isso em razão da crescente valorização da articulação jurídica fixada pelos precedentes judiciais no Brasil, o que se comprova principalmente com a institucionalização da súmula vinculante a partir da emenda constitucional nº 45/2004), se pode afirmar que, ainda hoje, a lei é o fundamento primário do sistema jurídico brasileiro, prevalecendo o regime da Civil Law, o que se vislumbra, inclusive, a partir da diretriz trazida pelo princípio da legalidade, expresso do artigo 5º, II, da Constituição Federal[8] (TARTUCE, 2016).
De passagem e complementando a explanação acima, ainda nos termos da doutrina supra colacionada, não se pode deixar de comentar acerca das bases do sistema jurídico arvorado na escola da Common Law. Esse é o sistema cuja fonte principal, diferentemente do primeiro caso, são os precedentes jurisdicionais, que prevalecem como padrão normativo social ante à sucintez da Carta Constitucional e da legislação em geral respectivas, incumbindo ao julgador atuar, na concreção dos casos, na posição de verdadeiro legislador positivo. É sistema no âmbito do qual os tribunais têm “amplo poder de criação e adaptação do direito” (BARROSO, 2015).
Assim, demonstrada a importância da norma jurídica para o próprio ordenamento brasileiro, este que continua fulcrado nas bases jurídicas da Civil Law, conforme mencionado, vale, agora, passar ao exame do conceito e características das normas eminentemente constitucionais, daquelas que, em ordens jurídicas fundamentadas em documentos constitucionais rígidos, detêm status hierárquico normatico superior ao das demais normas jurídicas, pelo só fato de se encontrarem expressas no texto constitucional.
Propondo conceituar as normas de natureza constitucional, Guilherme Peña de Moraes (2017, p. 99) atrela a esse tipo de norma a seguinte definição: “As normas constitucionais são conceituadas como significações extraídas de enunciados jurídicos, caracterizadas pela superioridade hierárquica, natureza da linguagem, conteúdo específico e caráter político, com diferentes tipologias”.
Linha de análise em que vale apresentar, também, as lições de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2017, p. 65), que acerca das principais características das normas alçadas em sede de documentos constitucionais, asseveram, nesses termos:
Já foi visto que as normas integradas na Constituição formal distinguem‐se das demais expressões do direito por sua posição hierárquica superior. O predicado da pri‐ mazia de que se revestem “é pressuposto da função como ordem jurídica fundamental da comunidade”2. Elas não têm a sua validade aferida pela sua compatibilidade com uma outra norma jurídica que lhe esteja acima em uma escala hierárquica, como acon‐ tece com o restante das normas dos demais ramos do Direito3.
Ante ao conceito de norma constitucional, cabe esclarecer a existência de diversos e distintos “planos normativos” no âmbito dos quais se pode analisar a norma. São os planos da existência, vigência, validade (obrigatoriedade), eficácia e efetividade da norma. O fato de uma norma existir numa ordem jurídica é denominado vigência, de modo que uma norma é vigente se “existente e não revogada”, conforme outra importante lição da doutrina de Marcelo Novelino (2013, p. 103).
Conquanto haja, no âmbito doutrinário, certa confusão entre os termos vigência e vigor, com base nas referências apresentadas pelo vaticinado autor, se trata de termos inconciliavelmente distintos, significando, respectivamente, existência e imperatividade ou força vinculante.
Acerca do plano de validade, se afirma que configura a própria relação verificada entre a norma menor e a hierarquicamente superior, traduzindo o que se entende por fundamento de validade de uma norma. De forma que, a exemplo do que ocorre na relação existente entre o decreto executivo e a lei por ele regulada, e entre as leis em sentido estrito e a Constituição Federal, determinada norma será válida se obedecer ao rito procedimental de criação e for materialmente compatível com o ato normativo maior (NOVELINO, 2013).
Explicitando os conceitos dos planos de eficácia e efetividade, Antonio Fernando Pires (2016, p. 36) encerra que a eficácia de uma norma pode ser jurídica e também social, ao analisar uma norma legal. Para ele, “As leis podem ter eficácia jurídica (ex.: uma lei revoga outra ou uma lei é produzida pelo processo de elaboração correto) e eficácia social (ex.: lei aceita e cumprida por todos) ”, conceituação pela qual o plano da efetividade, acima sucsitado, se confunde com o da eficácia social da norma, e significa o efetivo cumprimento do respectivo comando normativo pelos seus destinatários.
Prosseguindo, é comum na doutrina constitucionalista em geral a subclassificação, das normas inseridas em dispositivos constitucionais, em normas materialmente constitucionais ou apenas formalmente constitucionais, sem prejuízo da possibilidade de o comando normativo respectivo incorporar ambas as características concomitantemente.
Ora, as normas materialmente constitucionais são assim classificadas pelo fato de, em seu conteúdo, disciplinarem os aspectos básicos da estrutura substancial de um estado constitucional, como os relativos à organização do poder e aos direitos fundamentais, conforme leciona Dirley da Cunha Júnior (2017, p.132), a exemplo das normas insertas nos títulos I, II e III, da CRFB/88[9], e assim podem ser categorizadas como normas constitucionais materiais e formais.
Ao passo em que a norma apenas formalmente constitucional, também seguindo a linha doutrinária acima, estará configurada em razão de, a despeito de seu próprio conteúdo, restar inserida em um dispositivo constitucional, integrando o texto expresso da Constituição, sem exprimir comandos ou verificações correlatas à estrutura basilar do estado, como é o caso do art. 242, §2º, da CRFB/88[10], que não acarreta qualquer repercussão sobre a disciplina da estrutura do Estado Federal Brasileiro.
As lições de Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 133) ainda indicam uma interessante inovação trazida pela vigente Constituição Republicana brasileira, consubstanciada no fato haver, na atual ordem jurídica, com total ineditismo relativamente às anteriores, normas materialmente constitucionais e formalmente não constitucionais, porque não integrantes do corpo textual do documento, a partir do que propõe a autorização do artigo 5º, §§ 2º e 3º, da CRFB/88[11], naquilo que se refere aos tratados internacionais sobre direitos humanos devidamente incorporados ao ordenamento interno.
Apesar da usualidade do tratamento doutrinário dispensado à classificação vaticinada, o mesmo constitucionalista suso referido aponta para a sua inutilidade prática, amparando tal compreensão no fato de que tanto a norma material e formalmente constitucional quanto a norma apenas material (exclusivamente no caso dos tratados internacionais vaticinados) ou formalmente constitucional gozarão do mesmo status hierárquico normativo, estando todas elas sujeitas ao mesmo procedimento de modificação delineado no texto constitucional, conforme a respectiva rigidez.
Pelo que, sobre a dispensabilidade prática da categorização supramencionada, arremata Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 133), literalmente:
Todas as normas constitucionais – sejam elas formais-materiais, formais ou materiais -, portanto, têm estrutura e natureza jurídica, ou seja, são normas providas de juridicidade, que encerram um imperativo, vale dizer, uma obrigatoriedade de um comportamento. São, portanto, verdadeiras normas jurídicas.
Para além disso, em razão de sua clara pertinência ao tema ora tratado, cumpre trazer à baila a classificação das normas constitucionais segundo a sua respectiva finalidade, contexto em que se destacam três tipos distintos de normas constitucionais, a saber, as de organização, definidoras de direitos e as normas constitucionais programáticas, nos termos das exemplares lições de Guilherme Peña de Moraes (2017, p. 101):
As normas constitucionais de organização têm por objeto imediato a organização do exercício do poder político, correlatas à parte orgânica da Constituição, eis que são destinadas precipuamente à estruturação e funcionamento das entidades e órgãos públicos, sem embargo da repercussão na esfera jurídica de particulares, com o desiderato de legitimar o poder transferido pela sociedade ao Estado, tal como as normas inseridas nos arts. 44, 76 e 92, bem assim nos arts. 49, 84, 96 e 103, inc. III, todos da CRFB.
[...]
As normas constitucionais definidoras de direitos têm por objeto imediato a definição de direitos fundamentais, correlativas à parte dogmática da Constituição, já que são dirigidas primordialmente às relações entre entidades ou órgãos públicos e particulares, como também às relações entre particulares reciprocamente considerados, com o escopo de limitar o poder do Estado perante a sociedade, tal como as normas insertadas nos arts. 5º, 7º, 12 e 14, todos da CRFB.
[...]
As normas constitucionais programáticas são as cujo objeto imediato é o estabelecimento de fins públicos a serem alcançados pelo Estado e sociedade, sem a especificação dos meios para a obtenção das finalidades colimadas, tal como as normas inscritas nos arts. 170, incs. III e VII, 193, 215, 217, 218 e 226, todos da CRFB.
O programa inserido num comando normativo constitucional revela o caráter dirigente da respectiva Carta, que, assim, impõe às autoridades públicas, e até aos administrados em geral, determinadas finalidades sociais a serem perseguidas e atingidas gradualmente. A maneira gradual de concretização dos objetivos delineados pela Constituição se justifica em face da grande complexidade social posta como cenário de atuação do Estado na consecução dos referidos fins. Complexidade que, em geral, apresenta diversos entraves de natureza econômica, política e de possibilidade prática de execução das correlativas medidas.
Considerando as inúmeras variáveis negativas e cerceadoras da melhor atuação estatal no sentido de atingir os escopos do programa constitucional, é que, justificadamente, o constituinte originário não delimita as correspondentes medidas de execução, tarefa que fica a cargo da regulação infraconstitucional, considerando o maior potencial de avaliação de adequação das medidas frente às alterações sociais evolutivas, de que é dotado o legislador ordinário, cuja atuação é livre no tempo e não se exaure nos trabalhos pontuais de estruturação de uma Constituição, como é o caso do constituinte originário.
Na realidade, não raro a atuação legislativa infraconstitucional está além do mero suplemento normativo. Isto é, facilmente se pode compreender a edição de normas legais no sentido de prever meios de concretização de programas, diretrizes e linhas de ação fixados constitucionalmente, por meio do estabelecimento de medidas objetivas a serem adotadas pelas frentes governantes dos Entes Políticos, como a própria condição para a produção de efeitos da norma constitucional programática, então, com eficácia limitada, embora, muitas vezes, dotada de aplicabilidade imediata.
Tendo em mente o contexto inerente à formulação de normas programáticas, cumpre avançar à classificação doutrinária baseada nos aspectos de eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, tema geralmente referenciado, sem prejuízo de outras categorizações doutrinárias notadamente relevantes, à classificação tripartida apresentada pelo ilustre constitucionalista José Afonso da Silva, segundo quem a norma de natureza constitucional poderá ser assim subdividida, conforme ratifica Guilherme Peña de Moraes (2017, p. 106):
As normas constitucionais de eficácia plena dispõem de aplicabilidade direta, imediata e integral, eis que não carecem de regulamentação para tornarem-se aplicáveis (aplicabilidade direta), são suscetíveis de aplicação sem solução de continuidade (aplicabilidade imediata) e não podem ter o seu alcance contido pela legislação infraconstitucional (aplicabilidade integral), como, por exemplo, as veiculadas pelos arts. 1º e 2º da CRFB.
As normas constitucionais de eficácia contida não são dotadas de aplicabilidade integral, já que há a possibilidade do alcance do preceito ser reduzido pela legislação ordinária, de forma que a norma infraconstitucional logra restringir os efeitos da norma constitucional regulamentada, como, por exemplo, as inscritas nos arts. 5º, inc. XIII, e 93, inc. IX, da CRFB.
As normas constitucionais de eficácia limitada não são providas de aplicabilidade direta e imediata, vez que carecem de regulamentação para tornarem-se aplicáveis, de modo que a norma infraconstitucional torna aplicável a constitucional no momento em que for produzida, sendo subdivididas em declaratórias de princípio institutivo ou organizatório (determinantes de criação e instituição de órgãos públicos, como, por exemplo, a inserida no art. 134 da CRFB, até o advento da Lei Complementar nº 80/94) e declaratórias de princípio programático (estabelecedoras de programa governamental, como, por exemplo, a insertada no art. 201, § 7º, da CRFB, até a edição da Lei nº 8.212/91).
Considerando sua grande pertinência à discussão iniciada neste segundo capítulo, interessa concentrar atenção sobre as peculiaridades das normas da constituição federal consagradoras de programas a serem regulados pelo legislador infraconstitucional e executados pelo administrador público. Isso porque, conforme já anunciado em palavras anteriores, a linha desta pesquisa é no sentido que o artigo 23, parágrafo único, CRFB/88, revela uma norma constitucional de eficácia limitada enunciativa de princípio programático, conceituada acima e elucidada abaixo.
2.1.2 Das Normas Constitucionais Programáticas
No tema das normas constitucionais de eficácia limitada declaratórias de princípio programático, a atuação do poder constituinte é no sentido de fixar princípios elucidadores das finalidades e do escopo do poder público, não trazendo a delimitação direta da questão, que fica submetida a posterior regulação. É o caso de norma constitucional que fixa uma “finalidade a ser cumprida”, que impõe uma“obrigação de resultado” a ser cumprida pelo poder público em ampla acepção, nos termos da sempre citada doutrina de Marcelo Novelino (2013, p. 108).
Por interessante, importa apresentar o contexto histórico-constitucional, tanto no plano interno quanto em âmbito internacional, em que as normas de caráter programático tiveram o seu advento prático nas ordens constitucionais dos estados soberanos, isto é, sob que conjuntura político-constitucional os documentos constitucionais ganharam feição notadamente social, dirigente, intervencionista, pronta a demandar a inserção de normas carreadas de princípios programáticos, conseguintemente dependentes da integração infraconstitucional para a plena produção de seus efeitos.
Indo além daquilo já explanado sobre o constitucionalismo[12], nas primeiras linhas do subtópico 1.1.1, desta pesquisa, se pode afirmar que a marcha final da fase modernista do movimento constitucional, marcada pelo pós-primeira guerra mundial, é que foi o cenário histórico que serviu de palco para a transição do modelo de estado até então vigente.
Isto é, os Estados dotados de documento constitucional delineavam-se, até a eclosão da primeira guerra mundial, num padrão predominantemente garantista, instaurado sob uma ordem pública liberal e não-intervencionista, em prol da consolidação dos direitos civis e políticos até então conquistados pelos governados, das liberdades individuais e coletivas[13] estampadas na respectiva constituição, como resultado dos reclames libertários do final século XVIII.
Porém, ante às consequências catastróficas da primeira grande guerra entre nações, travada no decorrer dos anos de 1914 e 1918 entre diversos países combatentes, as Constituições passaram a inaugurar um outro modelo de estado, fundado no intervencionismo provisional, onde o centro da atuação estatal se encontrava na realização de prestações positivas de bem-estar social, abandonando-se o caráter passivo e eminentemente liberal em que pautada a conduta do poder público (CUNHA JÚNIOR, 2017).
Contexto em que, nas literais palavras de Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 34), se verifica a transição para o modelo de estado “social e intervencionista, conferindo-lhe tarefas, diretivas, programas e fins a serem executados através de prestações positivas oferecidas à sociedade”.
E a instrumentalização da referida transição se deu a partir da adoção de um modelo de constituição “social, dirigente, programática ou constitutiva”. Ou seja, através da criação de normas de princípio programático, a nível constitucional, que instituíssem linhas de ação, planos de execução de políticas públicas protraídos no tempo, dirigidos ao poder público, para o fim da concretização do estado de bem-estar social almejado no referido momento histórico (CUNHA JÚNIOR, 2017).
Ainda sobre o caráter social-intervencionista da atuação dos estados, adotado no contexto da etapa final do constitucionalismo moderno e perfilhado pelo estado brasileiro a partir da Constituição Federal de 1934, (e mantido até a presente Carta) sob o influxo da Constituição alemã de Weimar, de 1919, leciona Dirley da Cunha Júnior, literalmente:
Pois bem, a Constituição de 1988 ordena e sistematiza a atuação estatal interventiva para conformar a ordem socioeconômica. É o arbítrio conformador, a que se refere Forsthoff, pelo qual o Estado, dentro de certos limites estabelecidos pela ordem jurídica, exerce uma ação modificadora de direitos e relações jurídicas dirigidas à totalidade, ou a uma parte considerável da ordem social.
Assim, verificado o contexto e a própria razão do advento de constituições sociais ou dirigentes, como é o caso da Constituição Federal brasileira de 1988, e da consequente previsão de normas constitucionais de natureza programática, e a importância destas para a consecução do próprio estado de bem-estar social desejado pelo Brasil, se passa à análise da norma do artigo 23, parágrafo único, da CRFB/88, na condição de norma constitucional de eficácia limitada consagradora de princípio programático.
No ponto referente às normas constitucionais de eficácia limitada declaratórias de princípio programático, Pedro Lenza (2017, p. 226) aponta diversos exemplos esparsos desse tipo de norma no texto magno brasileiro, nos seguintes termos:
Já as normas de eficácia limitada, declaratórias de princípios programáticos, veiculam programas a serem implementados pelo Estado, visando à realização de fins sociais (arts. 6.o — direito à alimentação; 196 — direito à saúde; 205 — direito à educação; 215 — cultura; 218, caput — ciência, tecnologia e inovação (EC n. 85/2015); 227 — proteção da criança...).
Todavia, indo além dos exemplos referenciados pela doutrina, vale reafirmar que a base de análise da presente pesquisa está no sentido de que a norma pluricitada é notadamente programática. Isso porque determina ao legislador infraconstitucional o dever de fixar normas, pela via da lei complementar, de cooperação interpolítica para viabilizar a promoção do equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Ora, é desnecessário exaurir argumentos no sentido de que a construção do desenvolvimento e bem-estar sociais, no seio da sociedade brasileira, objeto do comando constitucional aventado, somente se faz possível a partir da execução de um plano de metas previa e especificamente definido, de um programa de ação especialmente tracejado, pelo legislador infraconstitucional, para a execução administrativa, em cooperação, de todos os Entes Políticos, com a correspondente formulação de políticas públicas inerentes e eficazes, vindo a resultar de um processo gradativo de implementação de medidas de cunho jurídico e político-administrativo.
O dispositivo que traz as diretivas de promoção de um desenvolvimento equilibrado e do alcance do bem-estar em âmbito nacional, a ser observado por União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no campo de suas competências materiais ou administrativas comuns, cuja eficácia é notadamente limitada, depende, para que possa produzir seus regulares efeitos, da atuação legiferante do Congresso Nacional em processo legislativo especial (edição de leis complementares).
Contextualizando a explicação ao tema da guerra fiscal em direito constitucional tributário, é juridicamente possível afirmar que, em vista da inexistência de leis complementares fixadoras de normas nacionais de cooperação interfederativa, próprias da matéria fiscal e econômico-tributária, aptas a contribuir de maneira efetiva com a promoção do equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar nacional, permitindo-se a ocorrência dos conflitos fiscais entre Entes tributantes, há patente omissão inconstitucional por parte do legislador federal complementar.
Com efeito, o que se pretende demonstrar neste subtópico é que, para que haja atribuição de eficácia plena à regra do artigo 23, parágrafo único, da CRFB/88, no que se refere ao campo do direito tributário e suas repercussões econômico-sociais, tema indissociavelmente afeto aos fins de desenvolvimento previstos na norma constitucional, é necessário que o Congresso Nacional fixe normas gerais diretoras da atuação material conjunta de União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em tema de tributação sobre operações com valor agregado no território brasileiro, supressivas dos conflitos fiscais, em sede de lei complementar nacional, consolidando a justiça fiscal como elemento de desenvolvimento equilibrado.
Normas nacionais estas que devem ser postas especificamente no sentido de prever a implantação de medidas administrativas, de competência comum a todos os Entes Políticos, inibitórias e repressoras das disputas pela maior tributação, enquanto acontecimento agressor do crescimento nacional, a serem executadas dentro de um programa ou linha de ação no tempo, concretizando a diretriz constitucionalmente fixada (a exemplo do que ocorrido com a edição da lei complementar 140/2011, em tema de direito ambiental), sem o que perdurará a inequívoca e correspondente inconstitucionalidade por omissão legislativa.
Na visão desta pesquisa, tal atuação congressual é plenamente imprescindível, primeiramente, para o fim de dar concretude, isto é, eficácia jurídica ao comando constitucional programático supra, tendo em vista seu caráter de norma constitucional de eficácia limitada declaratória de princípio programático, dependente de colmatação legislativa para a produção dos respectivos efeitos normativos, e, secundariamente, em razão da insuficiência das medidas pontualmente adotadas por ocasião dos diplomas legais regentes da tributação por ICMS estadual e ISS municipal, a serem detalhadas por ocasião do capítulo final desta pesquisa.
2.1.3 Da Falta de Integração Legislativa da Norma Programática Do Artigo 23, parágrafo único, Da Constituição Federal
Seguindo a linha do subtópico anterior, vale ratificar que o só fato da ausência de norma complementar nacional reguladora do programa de equilíbrio do desenvolvimento e bem-estar no campo fiscal-tributrário, a ser concretizado pela atuação conjunta dos Entes federativos, lacuna permissiva das repercussões sociais e econômicas da guerra fiscal, é suficiente, na perspectiva desta pesquisa, para caracterizar a inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional, em violação ao artigo 23, parágro único, CRFB/88.
Porque relevante ao ponto sensível deste subtópico, a inconstitucionalidade omissiva do legislativo federal em desobediência à norma fundamento do programa constitucional pluricitado, na linha especificamente tributária, cabe elucidar alguns tipos de inconstitucionalidade apontados pela melhor doutrina, enfatizando a inconstitucionalidade por omissão.
Acerca da temática da inconstitucionalidade de leis e atos normativos do poder público, Clever Vasconcelos (2013, p. 281) conceitua a inconstitucionalidade, enquanto defeito de incompatibilidade com as diretrizes constitucionais, como sendo o “vício que macula a norma que contraria o texto da Constituição Federal”.
Para o autor, o vício de incompatibilidade com o texto fundamental pode ser material ou formal. Se formal, se subdivide em vício de inconstitucionalidade objetiva e inconstitucionalidade subjetiva. A doutrina de Pedro Lenza (2017, p. 252) adota as denominadas inconstitucionalidade nomoestática e inconstitucionalidade nomodinâmica para se referir, respectivamente, à incompatibilidade material e formal com o texto constitucional, subdividindo esta em inconstitucionalidade formal orgânica, formal propriamente dita e formal por violação a pressupostos objetivos do ato, valendo a transcrição literal de suas palavras:
A inconstitucionalidade formal orgânica decorre da inobservância da compe- tência legislativa para a elaboração do ato.
[…]
Por sua vez, a inconstitucionalidade formal propriamente dita decorre da inobservância do devido processo legislativo.
[…]
Exemplificando, o autor lembra o art. 229, 2.o, da Constituição portuguesa, que determina a audiência obrigatória, pelos órgãos de soberania, dos órgãos do governo regional, quanto a questões relativas às regiões autônomas, sob pena de faltar um pres- suposto para o exercício da competência e, assim, caracterizar-se irregularidade do ato.
Nesse caso, a audiência e participação obrigatórias “... são elementos externos ao procedimento de formação das leis...”, e a sua falta gera a inconstitucionalidade formal, já que os pressupostos do ato legislativo devem ser entendidos como “ele- mentos vinculados do ato legislativo”
A inadequação ao texto maior pode, ainda, ser baseada em comportamento legislativo comissivo, mediante ação legiferante incompatível com o teor, material ou formal, das normas magnas, ou se configurar através da inexistência, total ou parcial, da integração legislativa correspondente e necessária à produção dos efeitos do comando normativo fundamental. O professor Clever Vasconcelos, no mesmo ano e página acima referidos, conceitua as inconstitucionalidades por ação e por omissão, nestes termos:
Inconstitucionalidade por ação
É a mais usual forma de inconstitucionalidade, que se dá sempre que são editadas leis ou emendas constitucionais que de alguma forma não se ajustem aos ditames estabelecidos na Constituição Federal, ou que não foram produzidas em consonância ao proce- dimento constitucionalmente estabelecido.
Inconstitucionalidade por omissão
Este tipo de inconstitucionalidade ocorre em razão da inércia, da não atuação dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, quando, incumbidos pela própria Consti- tuição do dever de editar leis ou atos normativos que deem efetividade às normas consti- tucionais de eficácia limitada, não o fazem, violando negativamente o texto constitucio- nal em razão de sua desídia, do descumprimento negativo de seu dever legiferante.
Relativamente à omissão inconstitucional, Antonio Fernando Pires (2016, p. 100) ensina que o poder público se encontrará omisso, em comportamento inconstitucional por inação, quando o respectivo legislativo ou executivo estiver em mora na produção de ato administrativo ou no exercício de função legiferante, necessários à concretização dos direitos, garantias e fins públicos fixados na disposição fundamental, quando trata do objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO, instrumento processual da jurisdição constitucional objetiva, baseado no art. 103, §2º, da Carta Federal[14]. Em valorização às suas palavras, colaciona-se o seguinte:
A ADIN por omissão (art. 103, § 2.º, CF) objetiva suprir a mora do Poder Legislativo ou Executivo em legislar ou produzir o ato administrativo, respectivamente. Quando o Congresso Nacional (Poder Legislativo) não legisla para complementar a Constituição, diz-se que está em mora. Está omisso. A ADIN por Omissão, por isso mesmo, tem sentido fiscalizatório.
Linha em cabe destacar que quando o poder público deixa de produzir o ato normativo cuja edição se impõe por expressa determinação constitucional, há um claro desfalque da própria unidade e inteireza do texto maior, ocasionando o fenômeno denominado por Marcelo Novelino (2013, p. 230) de “erosão da consciência constitucional”.
O ministro decano do Supremo Tribunal Federal – STF, Celso de Mello, por ocasião de sua relatoria no julgamento de ação mandamental de injunção[15], em sede de controle concreto de inconstitucionalidade por omissão, na via de exceção, adotou a seguinte posição:
A omissão do Estado qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.
De modo que, evidenciado o caráter programático da norma constitucional de eficácia limitada insculpida no artigo 23, parágrafo único, da CRFB/88, o que nos cumpre consignar é a irremediável necessidade de promulgação de norma complementar nacional fixadora de proibições genéricas e ações concretas, destinadas às autoridades executivas, visando, em especial, a extirpar a possibilidade de oferecimento, pelos Entes tributantes, de benefícios de ordem fiscal com o fim específico de atrair contribuintes, dado o considerável impacto gerado nas contas dos respectivos governos.
Considerando a elucidação doutrinária acima sobre a atuação inconstitucional do poder público, notadamente do poder legislativo integrador das normas constitucionais, fica evidente que a falta de colmatação dos fins de desenvolvimento equilibrado e bem-estar nacional, com a fixação legal de determinações, administrativas e políticas, impositivas à ação comum das pessoas de direito público tributantes, no escopo de eliminação dos mecanismos e brechas à guerra fiscal, perfaz insdiscutível inconstitucionalidade por omissão.
A inexistência de regulação congressual aliada à ininterrupta disputa pela atração territorial de contribuintes, elastece a dimensão dos danos sociais e econômicos surgidos à população direta ou indiretamente interessada nas operações de tributação e arrecadação de recursos públicos, que, então, fica refém de importante instabilidade sócio-econômica, tudo resultado de um inequívoco déficit de efetividade constitucional.
Sob o prisma da hermenêutica constitucional, pelo princípio da máxima efetividade[16], as normas de uma constituição devem ser compreendidas na acepção que lhes atribua a maior efetividade possível, dela se obtendo todo o alcance normativo desejado pelo constituinte. Ora, certamente, não se tem extraído dos dispositivos constitucionais plurimencionados o seu inteiro potencial normativo, do contrário, a ordem jurídica brasileira já estaria dotada de bons mecanismos rígidos e eficazes no enfrentamento da guerra fiscal, o que não ocorre na presente realidade.
Livres de contramedidas jurídicas eficientes, os grandes Estados da federação, no âmbito do ICMS, livremente granjeiam apoios políticos públicos e privados, das grandes corporações, em troca de outros favores (muitas vezes, configuradores de crime) nas deliberações fazendárias, para concederem irresistíveis benesses fiscais, robustecendo suas receitas orçamentárias e empoderando ainda mais sua máquina pública e seu potencial financeiro.
Como resultado dessa atuação antijurídica, promovem o superaquecimento de sua econômica regional ou local, à medida em que o volume da prestação de serviços remunerados e da circulação de mercadorias e bens, por compra e venda, aumenta consideravelmente com a chegada de novos empreendimentos empresariais.
Tal fenômeno, descontextualizado da guerra fiscal, decorrente do implemento de um sério e comprometido programa de políticas públicas sociais e econômicas, seria extremamente sadio à economia e às contas governamentais, contributivo ao desenvolvimento do país, na perspectiva nacional, regional e local.
Entretanto, é resultado de um processo artificial, forçado, impuro, propriciado às custas da redução da arrecadação fiscal do Ente desfavorecido, prejudicando, em contrapartida, toda uma outra esfera econômica regional, estadual ou municipal, tudo a partir de escusas combinações capitaneadas pelas próprias autoridades públicas que, a preço da causação de todos os prejuízos aventados, utilizam todas as brechas constitucionais e legislativas em seu favor, disponibilizadas pela própria sistemática de tributação repartida nas operações de valor somado.
É exatamente nessa perspectiva o posicionamento de Ricardo Varsano[17], que em seu artigo científico assevera:
O fato é que a guerra fiscal continua, embora a lei exista há mais de vinte anos. A lei é inobservada e ninguém toma a iniciativa de exigir a imposição das sanções previstas, a despeito da expressão guerra fiscal ser sempre utilizada com conotação negativa, como malefício. O desrespeito à lei pelos próprios governantes é certamente uma perda para a nação.
Desta feita, caso o Congresso Nacional permaneça inerte ante a esse cenário, não atuando para estancar os prejuízos decorrentes da guerra tributária, de ocorrência facilitada pela ausência de providências legislativas e administrativas resultantes de obrigação constitucional, a inércia parlamentar estará desobedecendo preceito mandamental expresso da Constituição Federal, privando os governados brasileiros de fruir do direito ao desenvolvimento social, econômico, fiscal e financeiro equilibrado, e, conseguintemente, do direito ao bem-estar nacional.
Sendo forçoso arrematar que tal falta de complementação legal, estritamente voltada ao aspecto tributário da guerra fiscal entre entes políticos, matéria em relação à qual a atuação do poder público interfere diretamente na qualidade do desenvolvimento e do bem-estar da sociedade brasileira como um todo, programa consagrado em norma expressa da Carta Federal, configura inafastável omissão parlamentar inconstitucional, plenamente incompatível com o caráter impositivo da garantia constitucional programática de crescimento social igualitário, justo e solidário.
No ordenamento tributário nacional, as operações econômicas encadeadas em escala de produção e fabricação de insumos, bens, mercadorias e produtos finais, e aquelas referentes à prestação de serviços, se sujeitam a uma sistemática de tributação bastante própria, notadamente em razão da incidência de algumas técnicas de arrecadação fiscal imanentes a essa especificadade.
Considerando a regra pela qual a decorrência imediata da realização de tais operações é a ampliação material da esfera jurídica do adquirente do bem de valor econômico, seja para o fim da incorporação patrimonial ou de comercialização e revenda, se conclui comparecer no mundo dos fatos a hipótese de incidência genérica da tributação por impostos, a saber, manifestação genérica de riqueza[18] por parte do devedor da relação fiscal. Daí o fato da corriqueira tributação pela via dos impostos no âmbito das cadeias econômicas produtivas.
No que se refere às modalidades de tributo próprias do sistema fiscal brasileiro, vale dizer que, em que pese divergência doutrinária acerca do assunto, prevalece na doutrina e jurisprudência a classificação pentapartida ou quinquipartida das espécies tributárias, que reconhece como tipo de tributo existente, na ordem brasileira, imposto, taxa, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e contribuição social, conforme ensina Leandro Paulsen (2017, p. 50), em suas palavras: “São cinco as espécies tributárias estabelecidas pela Constituição: imposto, taxa, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e a contribuição especial”.
Assim, configurado o fato gerador em concreto relativo à circulação de bens dotados de conteúdo econômico, desde a matéria-prima até o produto final, no âmbito de uma cadeia econômica, se tributará por imposto.
Cumpre registrar que o imposto sobrevindo nessa hipótese, vislumbrada num corpo concatenado de transmissões materiais tributáveis distintas e autônomas entre si, debitará a quantia correspondente à exação devida em cada operação componente da mesma cadeia, incidindo exclusivamente sobre o valor que for adicionado à correspondente transferência. Nisso consiste o denominado sitema do imposto sobre valor agregado ou adicionado – IVA, pertinente a esse tipo de tributação em cadeia.
Exatamente sobre esse ponto repousa a maior discussão inerente ao tema da guerra fiscal, tendo em vista que, no Brasil, o sistema do IVA foi tripartido entre União, Estados e Municípios, competentes para instituir e cobrar, respectivamente, o Imposto Sobre Produtos Industrializados – IPI, o Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior – ICMS, e o Imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISSQN.
Dada a grande relevância para a arrecadação fiscal das tributações sobre o valor acrescido em operações econômicas sequenciais, e considerando que não concentrada a competência relativa ao IVA sobre um único Ente, com posterior distribuição de receitas, mas, que repartida entre os integrantes da federação, surge o mais adequado cenário para as disputas pela maior arrecadação veiculada em políticas fiscais mais benéficas atrativas de contribuintes, caracterizando a guerra fiscal interfederativa.
3.1 Do Conceito de Imposto e Características do IPI, ICMS e ISS, Da Prejudicialidade Social Inerente Às Disputas e da Falibilidade das atuais medidas anti-guerra fiscal, Da Necessidade De Reforma Do Sistema Tributário Nacional Com A Instituição Do Imposto Sobre Valor Agregado – IVA Unificado
Entendendo a seriedade dos entraves econômicos, fiscais e sociais gerados pelos desdobramentos do fenômeno da guerra fiscal, urge a realização de uma reformulação das diretrizes regentes da tributação sobre as manifestações de riqueza verificadas em operações que envolvam produtos industrializados, a circulação de mercadorias e a prestação de serviços, porque inseridos em âmbitos de competência tributária distintos, favorecendo os conflitos territoriais e políticos por contribuintes.
Na compreensão adotada por esta pesquisa, a mais eficaz solução consistirá em reforma constitucional, sem prejuízo da necessária atuação complementar do legislador infraconstitucional a concretizar a atuação material cooperativa entre Entes na esfera tributária, que cancele o compartilhamento interfederativo do imposto sobre as operações com valor adicionado, para instituir um único imposto sobre valor agregado – IVA, atribuído à competência tributária da União Federal, ente central da federação brasileira, nos termos da elucidação a seguir.
3.1.1 Do Conceito de Imposto e Características do IPI, ICMS e ISS
O poder de tributar do Estado é um dos institutos mais antigos da história evolutiva dos povos organizados em comunidade. Conforme se pode verificar dos mais diversos relatos e registros históricos e comprovações de ordem arqueológica e paleontológica, o detentor do poder político mantinha como praxe, basicamente como meio de impor dominação, cobrar, em caráter coercitivo, encargos tributários de súditos, povos submissos ou estrangeiros sem cidadania local, com o que ainda angariava condições de estruturação e manutenção de um estado politicamente organizado, em geral, sob as formas monárquicas ou imperiais, notadamente nos períodos antigo, medieval e moderno-absolutista da história da humanidade.
Dentro do ilustrado período, o tributo assumia-se como um dos principais símbolos da tirania governamental, funcionando como verdadeiro dispositivo de subserviência daqueles que subjugados pelo poder totalitário correlato, diminuindo a evidência do caráter arrecadatório da obrigação de natureza tributária. Nessa linha, vale colacionar as palavras do Jurista Thiago Thomaz de Oliveira Souza[19], que agregam exemplos às suas explicações sobre o tema, assim:
Muitos povos das civilizações do mundo antigo (egípcios, assírios e os persas) já usavam, mediante a imposição de suas vontades aos povos submissos, o tributo como instrumento de servidão simplesmente pela dominação em si, impondo às pessoas diversos encargos.
Na Grécia também predominava a cobrança de tributos pela relação entre os povos – dominante e dominado – sendo que o cidadão grego, no entanto, era completamente isento desse encargo. Também se cobravam tributos dos povos de áreas vizinhas às Cidades-Estado ou polis, simplesmente para não terem seus territórios invadidos, bem como aos imigrantes, estrangeiros e forasteiros, simplesmente por estarem em território grego.
Em Roma, o sistema não era muito distinto: o tributo também era cobrado de todos aqueles que não detinham a cidadania romana, mas nunca de seus pares
Avançando para a pós-modernidade, período em que a maior parte dos Estados organizados ganha uma feição sobremodo social-liberal e econômico-capitalista, é possível enxergar os tributos em geral numa função marcadamente arrecadatória, agora postos, principalmente, como instrumentos de estruturação e equipação da máquina pública. Isso porque sob o contexto econômico do laissez-faire e por força do advento do modelo estatal denominado welfare state, no qual predominam posturas estatais intervencionistas voltadas substancialmente ao controle das atividades econômicas e ao suprimento das necessidades sociais.
Com a transição para o modelo de Estado de Bem-estar Social, os poderes estatais passaram a concentrar suas medidas e políticas de atuação na prestação de utilidades à sociedade, no oferecimento de comodidades que ampliassem os direitos e garantias até então consolidados aos cidadãos instalados em comunidades fundadas no regime democrático, como, por exemplo, a prestação dos serviços de segurança pública ostensiva, de saneamento básico e até de fiscalização de atividades privadas visando à estabilização jurídica e à concretização do bem comum, o que ocorre com a atividade de polícia administrativa.
Nessa conjuntura, em que o estado se pauta numa atuação de caráter dual ou dualista, porque ativo em duas frentes distintas, a garantista e a dirigente, não raro os poderes públicos passaram a instituir tributos também em razão da própria prestação da utilidade pública disponibilizada em prol do bem-estar social, em exações cujos respectivos fatos geradores consistiam em prévia e específica atividade estatal desenvolvida em favor da coletividade, fosse ampliando sua esfera patrimonial ou conferindo maior segurança, inclusive jurídica, no exercício das atividades particulares.
É nesse contexto, relativo à existência de tributos instituídos e cobrados em correspondência a prestações estatais direcionadas ao desenvolvimento ou fortalecimento jurídico das relações privadas, onde a doutrina tributarista subdivide as espécies tributárias em dois grandes grupos, o que agrega as modalidades que independem de prévia atividade estatal especificamente voltada ao contribuinte, e o que compreende os tributos com fatos geradores desvinculados de qualquer utilidade ou comodidade prestada em caráter antecipado ao cidadão, conforme a lição de Ricardo Alexandre (2015, p. 22):
Como dito anteriormente, os tributos podem ser vinculados ou não vinculados, dependendo da necessidade ou não de o Estado realizar alguma atividade específica relativa ao contribuinte para legitimar a cobrança. Quando o tributo é vinculado, o ente tributante competente para instituí-lo é justamente aquele que realiza a respectiva atividade estatal.
No âmbito desses agrupamentos, de um lado, como tributos vinculados, estão as Taxas e as Contribuições de Melhoria, e de outro, enquanto exações não vinculadas, todas as espécies tributárias remanescentes, dentre as quais se destacam os impostos, cabíveis em razão da tão só revelação de acréscimo patrimonial do contribuinte. Daí se falar no caráter retributivo ou contraprestacional das Taxas e Contribuições de Melhoria e na feição eminentemente contributiva dos impostos (ALEXANDRE, 2015).
Contextualizando a explicação com o direito tributário positivado, cumpre transcrever o artigo 77, do Código Tributário Nacional – CTN, fundamento legal dos tributos vinculados à atividade pública dirigida ao bem-estar do contribuinte, bem como o artigo 16, da mesma lei tributária de 1966, base legislativa dos impostos, tributos não vinculados por excelência, assim:
Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.
Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.
Interessa registrar, ainda, que a Contribuição de Melhoria, modalidade tributária reconhecida pela doutrina da classificação pentapartida, também pode ser vislumbrada como tipo de tributo vinculado, à medida em que é cabível face à valorização imobiliária ordinária, decorrente de prévia realização de obra pública nas adjacências geográficas do imóvel do contribuinte (ALEXANDRE, 2015).
No Brasil, estado de cunho liberal e social-intervencionista já desde meados do ano de 1934, a cobrança das Taxas, pelo exercício do poder de polícia ou prestação de serviços públicos dotados de referibilidade[20], e das Contribuições de Melhoria, pela valorização imobiliária ordinária gerada por obra pública, se dá basicamente para o fim de remunerar a correspondente atividade estatal prévia e especificamente voltada ao contribuinte, enquanto utilidade prestada pelo poder público no objetivo de assegurar o bem-estar da sociedade brasileira.
Diferentemente, consoante explanação vaticinada, o imposto, tipo tributário em vigor nas relações jurídico-tributárias firmadas desde o Brasil Imperial de 1824[21] (aqui, instituídos e cobrados com o intuito único de robustecer as riquezas próprias do imperador), é aquele desvinculado de qualquer atividade pública previamente prestada pelo estado a bem do cidadão, incidindo sobre qualquer revelação de riqueza que importe efetiva ampliação patrimonial.
Se podendo afirmar que, sob a vigente Constituição Republicana, a arrecadação de impostos tem por fim maior subsidiar os cofres estatais para a manutenção de serviços públicos em geral, não dotados de referibilidade, prestados uti universi ao contribuinte, também na qualidade de comodidade disponibilizada ao cidadão, porém oferecida ad quem e sob uma perspectiva mais generalizada.
Dessa forma, como se pode inferir da presente elucidação, a tributação verificada no Brasil social-intervencionista, estado republicano de direito, visa, predominantemente, à formação de patrimônio público voltado à manutenção e melhoramento de uma atuação estatal positiva, seja a prévia e especificamente direcionada ao contribuinte ou a realizada postecipadamente em caráter geral, dirigida à provisão de anseios sociais, nas mais diversas áreas de interesse da coletividade, como segurança pública, saúde, ensino e previdência social, entre outras essencialmente tuteladas.
Considerando toda a lógica de tributação acima exposta, bem como o próprio contexto político-constitucional de exercício das competências sociais do estado brasileiro, é que se afirma o pleno cabimento dos impostos, modalidade não vinculada e de arrecadação também desvinculada, para a tributação exclusiva do valor agregado às operações de circulação jurídica de bens nas cadeias econômicas, sobremaneira as que envolvem mercadorias, produtos industrializados e a prestação de serviços.
Exatamente nesse contexto é que tem lugar o sistema IVA de tributação, em que impostos incidem exclusivamente sobre a parcela valorativa acrescida à correlata operação de transferência do bem, como forma de não bitributar tais operações e, assim, não prejudicar os adquirentes do objeto tributado em favorecimento descabido do seu alienante, o que possibilitado pela adoção da não-cumulatividade[22], técnica de tributação consistente na compensação do que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, nos termos do artigos 153, § 3º, e 155, § 2º, da CRFB/88, e 49, do CTN.
Explicitando a sistemática de tributação da não-cumulatividade no âmbito do IPI, Leandro Paulsen (2016, p. 119 e 121) afirma categoricamente que:
A não cumulatividade constitui técnica de tributação que visa a impedir que as incidências sucessivas nas diversas operações da cadeia econômica de um produto impliquem um ônus tributário muito elevado, decorrente da múltipla tributação, ora como matéria-prima, produto intermediário ou material de embalagem, ora como produto final.
O texto constitucional se refere à não-cumulatividade, portanto, como instrumento que enseja a compensação entre montante devido a título de IPI e o montante já suportado quando da incidência do IPI nas operações anteriores, mediante o sistema de creditamentos.
Conforme já mencionado, a competência tributária relativa ao IVA, no Brasil, foi dividida entre União, Estados e Municípios, instituidores do IPI, incidente sobre operações abrangentes de produtos industrializados, ICMS, cabível em transferências de mercadorias e prestação de serviços de transporte intermunicipal, interestadual e de comunicação, e ISSQN, pertinente às prestações de serviços de qualquer natureza, correlativamente.
Paulo Caliendo (2017, p. 898) se refere aos tributos fundados no sistema IVA, acima referidos, como sendo “impostos sobre o consumo”, dizendo: “No Brasil, os tributos sobre o consumo se dividem em espécies distintas, tais como: o IPI, ICMS, ISS”.
O IPI é imposto da competência da União, previsto no art. 153, IV, da CRFB/88, em cujo regimento constitucional estão as técnicas da seletividade, em função da essencialidade do produto, da não-cumulatividade, de desoneração para fins de exportação e de redução do seu impacto sobre a aquisição de bens de capital. Pelas lições de Ricardo Alexandre (2015, p. 590), é tido como imposto de caráter predominantemente extrafiscal, considerando a forte utilização política no fomento ou desestímulo das atividades de produção e circulação de produtos industrializados, em função do quadro econômico momentaneamente experimentado.
O ICMS, imposto instituído e cobrado pelos Estados federados, com fundamento constitucional no artigo 156, II, CRFB/88, também agrega em seu regime jurídico, entre outras, o uso obrigatório da técnica da não-cumulatividade e facultativo do sistema da seletividade, sendo imposto com função marcantemente fiscal ou arrecadatória (ALEXANDRE, 2015). Na linha de Paulo Caliendo, mesmo ano e página suprareferidos, o ICMS é “tributo que incide sobre a cadeia econômica que inicia na produção e vai até o consumo de bens e serviços em mercado”, assim, tecnicamente inserido no regimento do IVA.
Em relação ao ICMS, vale salientar a norma do artigo 155, § 2º, XII, “g”[23], da Constituição Federal que, entre outras disposições de mesmo objetivo, como a que determina a fixação de alíquotas de ICMS por Resolução do Senado nas operações interesestaduais e de exportação (art. 155, § 2º, IV, CF/88), prevê a necessidade de edição de lei complementar regulamentando a realização de prévia deliberação interestadual regulatória como condição à concessão ou revogação de isenções, incentivos, benefícios fiscais em sede de ICMS.
Não restam dúvidas de que a norma do artigo 155, § 2º, XII, “g” acima suscitada é a determinação constitucional mais efetiva em termos de tentativa de uniformização fiscal em ICMS. Em obediência a esse disposto, foi promulgada a Lei Complementar 160/17, cuja regulação recai sobre o convênio interestadual para concessão e revogação de benefícios fiscais respectivos, trazendo em seu artigo 2º, por exemplo, regra sobre o quórum de deliberação do convênio, cabendo a transcrição: “Art. 2o O convênio a que se refere o art. 1o desta Lei Complementar poderá ser aprovado e ratificado com o voto favorável de, no mínimo: I - 2/3 (dois terços) das unidades federadas; e II - 1/3 (um terço) das unidades federadas integrantes de cada uma das 5 (cinco) regiões do País”.
E o ISSQN, de cunho inequivocamente fiscal (ALEXANDRE, 2015), inserto na competência constitucional dos Municípios, de cuja hipótese de incidência restam excluídos os serviços de transporte intermunicipal, interestadual e de comunicação, é regido pelo artigo 156, §3º, I e III, da CRFB/88, dispositivos pelos quais caberá à lei complementar nacional fixar suas alíquotas máximas e mínimas, desonerar as exportações de serviços para o exterior e regulamentar a forma como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Nesse passo, foi editada a lei complementar 116/03, reguladora, no âmbito infraconstitucional, dos pontos mais sensíveis à pacificação fiscal em torno do ISSQN, indicados pelo constituinte. De modo que, pelos seus artigos 8º e 8º-A, as alíquotas máximas e mínima do imposto fixaram-se, respectivamente, em 5% (cinco por cento) e 2% (dois por cento).
Contexto em que cabe colacionar o §2º, do artigo 8º-A, da referida lei, dispositivo cujo teor revela a compulsoriedade do cumprimento uniforme, em todo o território nacional, da alíquota mínima do imposto municipal, enquanto mais influente medida mitigadora de guerra fiscal em ISSQN: “É nula a lei ou o ato do Município ou do Distrito Federal que não respeite as disposições relativas à alíquota mínima previstas neste artigo no caso de serviço prestado a tomador ou intermediário localizado em Município diverso daquele onde está localizado o prestador do serviço”.
3.1.2 Da Prejudicialidade Social Inerente Às Disputas e da Falibilidade das atuais medidas anti-guerra fiscal
É clara a intenção do legislador constituinte ao consignar tais previsões em sede de ICMS e ISSQN, postas exatamente no sentido de impedir a ocorrência de disputas interestaduais e intermunicipais motivadas pela possibilidade de aumento das receitas de impostos, o que viabilizado através da concessão de atrativos e, em alguns casos, desleais beneficiamentos, gerando grande concorrência política para o angario do maior número de contribuintes possível, fato impensável e intragável, no contexto político projetado para qualquer Estado Federal.
Corroborando a legitimidade da intenção do constituinte, Hugo de Brito Segundo (2017, p. 303) assinala, sobre a determinação constitucional de elaboração de lei complementar nacional para a fixação de alíquotas máximas e mínimas em tema de ISSQN, do que resultou a sobredita Lei Complementar 116/03, em suas palavras: “O propósito era o de evitar que Municípios concedessem benefícios, isenções ou outras espécies de desoneração tributária para assim atrair contribuintes para o seu território, replicando, no plano municipal, a “guerra fiscal” verificada no âmbito estadual relativamente ao ICMS”.
No mesmo sentido do comentário acima, mas no que toca ao ICMS, Ricardo Alexandre[24] (2015, p. 609, 667 e 668) assevera, literalmente:
Também dentro dessa linha de raciocínio, a Constituição Federal delegou à regulação, mediante lei complementar nacional, grande parte dos pontos mais polêmicos do ICMS (155, § 2º, XII); previu a celebração de convênios entre os entes federados como ato-condição para a concessão e revogação de incentivos e benefícios fiscais (155, § 2º, XII, g); delegou ao Senado importantes competências na fixação do regime de alíquotas do tributo, entre outras medidas de uniformização e pacificação fiscal.
Porém, no entendimento deste trabalho, a tripartição da estrutura do imposto sobre valor adicionado no Brasil, em IPI, ICMS e ISS, por si só, já tem o condão de criar séria insegurança jurídica nos aspectos ligados à guerra fiscal, porque, ainda que não projetadas pelo constituinte, permite a abertura de brechas à configuração do cenário das disputas.
Isso somado à ineficácia prática das medidas constitucionais de repressão às políticas fiscais de incentivo ao deslocamento territorial de contribuintes, notadamente em matéria de ICMS e ISS, verificadas nos artigos 155, § 2º, XII, “g”, e 156, §3º, I e III, da CRFB/88, a problemática da guerra fiscal ganha grande espaço para imperar e, então, violar diversos postulados de nível constitucional, acarretando inúmeros malefícios à federação brasileira enquanto entidade una.
Ao tratar do ICMS em seu curso de direito tributário, Paulo Caliendo (2017, p. 899) tece severas críticas ao sistema brasileiro de tributação das operações com valor acrescido em cadeias econômicas produtivas, exercido de forma partilhada, e não concentrado na figura de um único ente tributante, padrão não adotado por nenhum outro país desenvolvido, ressalta, nos seguintes termos:
O modelo brasileiro difere daquele adotado em outros países, em que ocorreu a unificação dos tributos sobre o consumo em apenas uma espécie tributária: Imposto sobre Valor Agregado (IVA). No Brasil, houve uma cisão do imposto nas três esferas federativas (União, estados-membros, Distrito Federal e municípios), algo que não ocorreu em nenhum outro país desenvolvido. Esta separação resultou em um grave aprofundamento da complexidade do ICMS, visto que o imposto passa a ser regulamentado por 26 legislações estaduais e mais o Distrito Federal, o que resulta em uma potencial distorção de mercado para as empresas de atuação nacional.
Leandro Paulsen (2017, p. 21) realça a essência ameaçadora da ordem e estabilidade política brasileira presente no conflito interfederativo fiscal, compreendendo-o como um dos fenômenos, de natureza tributária, mais prejudiciais à estabilidade federativa, descrevendo algumas das repercussões socialmente indesejadas dele decorrentes, literalmente:
Atualmente, não temos movimentos ativos ameaçando nossa unidade política. Mas a tributação continua a ser elemento de conflito entre os entes federados, tanto em razão da concentração demasiada de recursos nas burras da União como no que se tem nomeado de Guerra Fiscal. Os Estados-Membros e também os Municípios utilizam-se da concessão de benefícios fiscais (isenções, créditos presumidos, etc.) ou de alíquotas reduzidas para obterem vantagens competitivas perante os demais. Ainda que com a finalidade louvável de aumentar o desenvolvimento local através da atração de novos investimentos e da consequente geração de empregos, certo é que, muitas vezes, isso dá ensejo à simples migração de unidades produtivas de um Estado para outro ou de um Município para outro dentro de um mesmo Estado, maculando essas políticas com um caráter fratricida.
Arrematando os comentários acerca das inequívocas e desastrosas consequências políticas, sociais e econômicas das disputas fiscais, a doutrina de Ricardo Alexandre (2015, p. 667), ao citar como exemplo de guerra fiscal o fato de municípios da região metropolitana de São Paulo terem reduzido as respectivas alíquotas de ISS para 0,5% (cinco décimos por cento), o equivalente a 1/10 (um décimo) do que cobrado na Capital do Estado, assevera que a maior prejudicada, sem esquecer dos próprios entes integrantes do conflito, que ficam reféns de uma completa instabilidade e insegurança financeira, é a população direta e indiretamente envolvida, sempre dependente dos recursos e serviços públicos prestados pelos entes em guerra, assim:
No final das contas, todos os Municípios acabavam perdendo, pois quem tem um aparente ganho, sujeita-se a perdas futuras, uma vez que os demais Municípios entrarão em guerra. Há de se recordar, também, que a população dos Municípios menos estruturados utiliza os serviços dos Municípios maiores, de forma que a diminuição na qualidade de tais serviços também acaba por repercutir negativamente para a população daqueles entes que tiveram algum ganho momentâneo na batalha.
Ora, a concessão de incentivos fiscais pelos entes regionais ou locais, para que não padeça de qualquer vício de inconstitucionalidade ou ilegalidade, deve ser analisada não somente sob a ótica das regras formais, previstas no texto maior, em leis específicas, e reguladas em convênios fazendários, devendo o próprio ânimo da autoridade pública ao praticar o ato também ser verificado.
De modo que oferecer um benefício fiscal, no contexto da guerra fiscal, desprezando todas repercussões detrimentosas inerentes, desmerece o postulado constitucional da Isonomia, e respectivo corolário tributário, Capacidade Contributiva, na medida em que o imposto é desonerado não em função da menor possibilidade de contribuição, mas exclusivamente para fins de atração de grandes investimentos privados, violando-se o caráter pessoal dos impostos, um dos princípios gerais do sistema tributário nacional, fixados na Constituição[25].
No mesmo passo, o fomento fiscal ilegítimo vai de encontro, ainda, ao princípio constitucional geral da segurança jurídica, inclusive em sua acepção subjetiva, o subprincípio da confiança. É nessa linha o entendimento da jurista Juliana Gilioli, segundo quem:
Para que um benefício fiscal seja considerado inconstitucional, deve-se analisar não somente como foi concedido (aspectos formais), mas o porquê, por quem, para que e por quanto tempo. A análise não deve ser simplista e apenas centrar em aspectos formais da norma: se o benefício não for concedido por convênio, então não há efeitos a serem protegidos. Trata-se de violação ao princípio da segurança jurídica e seu efeito reflexivo da proteção da confiança.
Desse modo, sendo inequívoco que a subsistência de disputas entre entes tributantes, baseadas na competição pela mais atrativa concessão forçada de incentivos fiscais, acarreta inúmeras descompensações financeiras e econômicas incidentes sobre as contas das pessoas públicas competidoras, atingindo, conseguintemente, a qualidade da prestação de serviços públicos essenciais e da realização de obras públicas para o melhoramento dos bens de uso comum do povo, prejudicando toda a população imediata e mediatamente relacionada, não há outra que não a conclusão pela urgente necessidade de reformulação da própria sistemática de tributação por impostos, especificamente, IPI, ICMS e ISSQN, presente no sistema tributário brasileiro.
Isso porque, enquanto vigorar tal modelo, sobre operações com valoração adicionada, sempre poderá haver margem para as mais hábeis manobras políticas dos entes tributantes maiores, que livremente poderão utilizar a escusa via dos conchaves, negociatas e barganhas informais, para direcionar os posicionamentos e decisões fimardos tanto no âmbito legislativo como na sede administrativa dos convênios fazendários interestaduais, isso, mesmo que a situação fiscal dos entes envolvidos esteja amplamente dificitária, indo de prejuízo a prejuízo, irradiando repercussões negativas sobre todo o país.
À presente linha se amoldam os comentários de Ricardo Varsano[26] acerca dos conflitos fiscais em torno do ICMS, valendo o rigor da transcrição:
O déficit fiscal atualmente existente no Brasil deve-se, em grande parte, ao desequilíbrio das contas públicas estaduais. Em diversos estados, a arrecadação é quase que insuficiente para cobrir exclusivamente os gastos com pessoal. Mesmo entre estes, há os que insistem em participar de verdadeiros leilões promovidos por empresas que já decidiram instalar novos estabelecimentos no país. Em alguns casos, até mesmo o estado de localização já foi escolhido, e o leilão nada mais é que um instrumento para forçar a unidade a conceder vantagens adicionais.
Obviamente, um programa de ajuste fiscal requer, entre muitas outras medidas, que o governo central adote uma posição frontalmente contrária à guerra fiscal entre estados, buscando coibi-la por todos os meios que estiverem ao seu alcance.
Assim, demonstrada a completa impertinência fiscal, financeira e social dos atritos interpolíticos pela maior tributação à federação brasilera, urge consignar que o fenômeno ainda fragiliza o próprio pacto federativo, princípio-base da Constituição Federal protegido na condição de cláusula pétrea expressa, uma vez que gera instabilidade entre os entes. Também ofende o princípio tributário da vedação à distinção em razão da procedência ou destino, insculpido no artigo 152, da CRFB/88, pelo qual: “É vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino”.
Nesse sentido é a posição de Silvio Aparecido Crepaldi e Guilherme Simões Crepaldi (2011, p. 83), que afirmam, sobre o citado princípio, o pacto federativo e o cenário de ininterrupta guerra fiscal: “O princípio pretende afastar os mecanismos fiscais protetivos e discriminatórios num ambiente de verdadeira “guerra fiscal”. Assim, não podem prosperar as políticas fiscais ofensivas ao pacto federativo e ao mercado de âmbito nacional”.
Os embates por arrecadação, sem prejuízo de todo o já registrado, outrossim afrontam a cooperação federativa explicitadamente determinada pelo texto maior, fixada não como faculdade, mas como modelo de atuação conjunta obrigatório na persecução da concretização de todos os princípios fundamentais da federação brasileira, tanto no plano interno, quanto em âmbito internacional, conforme os artigos 1º e 4º, da CRFB/88, respectivamente, sob pena de frustradas todos as normas programáticas constitucionais correlatas.
Valendo consignar, ainda, que esses agravos[27] também contrariam, para não dizer todos, alguns dos mais substanciais objetivos da República, também previstos como programas ou fins de inescusável persecução pública, como é o caso dos arrolados nos incisos I, II, e III, do artigo 3º, da Carta Federal, dispositivos pelos quais: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Pelo que, sem aprofundar análise sobre o seu conteúdo, nem mesmo a edição da Lei Complementar Nacional 160/17, mais novo ato normativo tendente ao abrandamento da guerra fiscal em ICMS, pode se propor a resolver a contento a problemática em questão, senão conduzindo-a à mera mitigação, assim como ocorre com todas as demais medidas de mesmo objetivo atualmente existentes.
Isso porque o que, efetivamente, tem o poder de impulsionar as disputas é a ampliação do poder financeiro e político em busca do qual, constantemente, estão os membros da federação, em prejuízo dos outros, seja para fins lícitos, de investimento no desenvolvimento social local e regional, por exemplo, ou, dada a realidade do mal da corrupção estatal instalado na sociedade brasileira, para a subtração ilícita de fundos públicos.
De modo que, fundado em questão de natureza eminentemente política, diretamente ligada aos interesses individuais de Estados e Municípios, enquanto pessoas jurídicas, na consecução e aumento de poder econômico, o problema em voga somente poderá desaparecer sem reminiscências, em benefício de todo o país, quando superado o presente padrão de tributação das operações econômicas em cadeia, extirpando-se o IVA fracionado, com a nacionalização do Imposto, pela via da Emenda Constitucional, a ser instituído e cobrado pela União, com receitas redistribuídas entre os entes remanescentes, tudo com base em mecanismos de controle e fiscalização adquados.
3.1.3 Da Necessidade De Reforma Do Sistema Tributário Nacional Com A Instituição Do Imposto Sobre Valor Agregado – IVA Unificado
Como exaustivamente demonstrado, a manutenção da repartição constitucional do IVA ofende a própria existência da federação brasileira, e revela com clareza a falência do atual regime tributário das operações com valor agregado. Isso, por ser o sistema de tributação que dá lugar à competição interestadual e intermunicipal, significando a própria inércia legislativa do Congresso Nacional, omisso acerca da regulação infraconstitucional da cooperação interfederativa no alcance de diretivas e programas constitucionais fundamentais.
O critério material de repartição das competências constitucionais, na órbita dos impostos incidentes sobre as manifestações que importam ampliação da esfera jurídica patrimonial, que permitiu, por exemplo, o enquadramento da circulação de mercadorias como fato gerador de ICMS estadual, até evitou, em tese, alguns embates interpolíticos, não tendo conseguido, porém, impedir a guerra fiscal (CREPALDI, 2011).
Nesse sentido, com o inegável colapso do regime instaurado pela fixação do IPI, ICMS e ISS, e os incessantes atritos entre as administrações tributárias dos Estados e Municípios, o que se desvela aos olhos da sociedade brasileira, além dos concretos prejuízos da guerra fiscal, é uma verdadeira ausência de efetividade funcional das instituições brasileiras.
Isso porque, em paralelo à inconstitucional omissão do legislador complementar, à ausência de manifestação da competência reformadora do Congresso para a reformulação do sistema IVA via Emenda Constitucional, e à imparável guerra fiscal entre os poderes executivos de Estados e Municípios, o próprio Senado Federal, representante e intermediário dos interesses estaduais no legislativo federal, tem faltado ao exercício de uma de suas competências materiais privativas mais relevantes em tema tributário, a verificada no artigo 52, XV, CRFB/88, consistente em: “avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios”.
Se os entraves entre entes continuam, não se verificando qualquer modificação na legislação infraconstitucional complementar e, tampouco, no texto constitucional fixador do regime de tributação por IVA, também fica clara a inconstitucionalidade da omissão administrativa do Senado Federal que, dado esse panorama, obviamente não tem cumprido com o múnus da avaliação periódica do funcionamento do sistema tributário nacional, falido no ponto relativo à permissividade da guerra fiscal.
Conforme as lições de Paulo Caliendo, consignadas no subtópico 3.1.2, o IVA dividido não é vislumbrado em nenhuma ordem tributária de países desenvolvidos, tendo estes, notadamente os inseridos nos regimentos comunitários da União Européia, perfilhado o IVA único como mais adequada medida de fortalecimento das relações insterinstitucionais, evitando conflitos que impactem forte e negativamente sobre a forma de estado respectiva, sobremaneira no que se refere às federações socialmente melhor desenvolvidas.
Nesse sentido, vale repetir que, ao lado da integração legislativa das normas de cooperação interpolítica, necessária por ocasião do multicitado artigo 23, parágrafo único, da CRFB/88, urge a reformulação constitucional do microssistema tributário em Impostos sobre Valor Agregado, com a instauração do IVA nacional, instituído, administrado e cobrado pela União, em competência privativa, com a posterior e constitucionalmente delimitada repartição de receitas derivadas da tributação, como única solução viável à completa pacificação fiscal no Brasil.
Com o IVA nacional, em tese, não seria possível nem mesmo vislumbrar a formação de conclaves políticos, encabeçados pelos Estados mais poderosos, visando a ingerir nas deliberações fazendárias interestaduais para seu próprio beneficiamento, visto que a formação de conselhos administrativos de política fazendária seria completamente inútil ao novo sistema unificado, não tendo qualquer razão fática ou jurídica para existir.
Na mesma sorte, ficaria juridicamente mais difícil de serem feitas investidas, pautadas em interesses socialmente ilegítimos de Estados, no âmbito legislativo do Congresso Nacional, para a aprovação de leis que lhes favoreçam, exatamente por conta da quase absoluta ausência de lacunas no regime do IVA nacional[28], que, nesse novo parâmetro, seria normatizado, gerido, cobrado e executado pelo ente central da federação.
União que, assim, estaria limitada no exercício de tais competências pelas previsões constitucionais de controle externo e interno, e sujeita ao compulsório repasse do produto de toda a arrecadação, a ser protegido por institutos eficazes, a exemplo da cláusula pétrea, sob cominação de desestabilização do pacto federativo.
E tudo isso sem faltar legitimidade democrática, visto estarem os interesses dos Estados representados no Congresso Nacional pelos respectivos Senadores, nem legitimidade popular em geral, considerando a atuação dos Deputados Federais, no contexto da reestrutação constitucional do sistema tributário brasileiro, com a fixação do IVA nacional pela manifestação do poder constituinte derivado refomardor.
Com isso, restaria claramente preservado o princípio federativo e garantida a separação dos poderes da República no processo, sem as indesejadas e escusas interferências diretas dos poderes executivos estaduais e municipais, baseadas em interesse próprio.
Ora, até mesmo sob a perspectiva da evolução tecnológica que globalmente atinge a maior parte das negociações privadas no mundo, se pode vislumbrar a necessidade e a conveniência da instituição de um IVA unificado, cobrado na sistemática da não-cumulatividade, conforme assinala o advogado Daniel Corrêa Szelbracikowisk, em artigo jurídico de sua autoria:
Frisamos que a atual repartição constitucional de competências tributárias combinada com a revolução tecnológica experimentada pela sociedade possibilita a ausência de sujeição de determinadas utilidades ao ISS e ICMS, simultaneamente. Isso revelaria a necessidade de reforma do cinquentenário sistema tributário para substituir o ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins, tributos que gravam o consumo, por um IVA Nacional, não-cumulativo. Isso facilitaria a cobrança de tributo sobre todo e qualquer processo de agregação econômica de valor.
Por fim, ainda cabe consignar alguns significativos trechos das lições de Ricardo Alexandre (2015, p. 609) sobre a imprescindibilidade do estabelecimento constitucional do IVA nacional para o efetivo combate à guerra arrecadatória, firmemente amparado no direito tributário comparado, enquanto modelo ideal à uniformização fiscal do país, em seus termos:
Em boa parte dos sistemas tributários de outros países, o ICMS se encontra inserido no imposto sobre o valor agregado (ou adicionado) – IVA, sempre nacional.
[...]
O IVA nacional já está testado e aprovado em boa parte do mundo.
[...]
Entretanto nas parcelas não nacionais do IVA, a possibilidade de guerra fiscal surge com toda sua força, principalmente no que se refere ao ICMS, o grande arrecadador nacional.
[...]
Por óbivo, a criação de um IVA federal, com a extinção do ICMS, IPI e do ISS resolveria todos esses problemas.
Arrematando este último subtópico e toda a linha de trabalho desta pesquisa, cumpre, em fim, reiterar a atual e premente necessidade de reforma constitucional tributária disposta a revogar a tributação fracionada em IPI, ICMS e ISSQN, conquanto haja perda de poder de barganha para atração de investimentos econômicos por parte de Estados e Municípios, constituindo-se um novo regime fiscal protagonizado pelo IVA nacional unificado, figura predominante nas mais organizadas ordens tributárias do mundo, em benefício do melhor exercício e gozo dos direitos e prerrogativas outorgadas à sociedade brasileira como um todo, e da própria unidade e indissolubilidade política dos Entes integrantes da República Federativa do Brasil.
CONCLUSÃO
A análise jurídica dos desdobramentos sociais, econômicos e políticos do fenômeno da guerra fiscal, sob a perspectiva do direito constitucional triburário, remonta, primeiramente, às lições depreendidas do próprio direito fiscal comparado, com base no qual se pode apontar a completa incompatibilidade do regime de tributação de operações econômicas utilizado no Brasil com os anseios de desenvolvimento social e econômico de qualquer país em ascensão, notadamente aqueles organizados em forma de federação.
Conforme amplamente elucidado pela doutrina exposta nos capítulos da pesquisa, nenhum país considerado economicamente desenvolvido perfilha o molde tributário repartido entre entes federativos, como ocorre no Brasil, referentemente às competências de instituição e cobrança de IPI, ICMS e ISS, pela União, Estados e Municípios, respectivamente, no denominado sistema de imposto sobre valor agregado – IVA tripartido.
Antes, as nações mudialmente mais bem-sucedidas em termos fiscais e econômicos, todas elas, têm regimento tributário no qual a tributação sobre operações em cadeias de produção e circulação se resume a um único imposto, incidente sobre o valor agregado destacado em cada transmissão de bens dotados de importância econômica.
Como deveria ser óbvio às autoridades nacionais, isso ocorre porque o sistema fiscal de tributação compartilhada é extremamente vulnerável a investidas políticas próprias do fenômeno da guerra fiscal. O que significa uma constante iminência de tensão e de eclosão de grave instabilidade política entre as unidades federativas, visto que possibilita aos entes subnacionais organizar meios de competirem entre si na corrida por uma maior arrecadação tributária de ICMS e ISS, através da confecção de políticas de incentivo e beneficiamento fiscal, com fito exclusivo de atrair investimentos empresariais lucrativos a seus territórios.
Assim, os atos administrativos e normativos praticados pelos por Estados e Municípios na guerra fiscal, de caráter individualista e desprovidos de legitimidade social, contrariam o próprio princípio federativo, na medida em que os respectivos governantes e autoridades atuam visando unicamente o desenvolvimento e bem-estar regional ou local, em detrimento dos demais, violando a cooperação interfederativa, determinada pela Constituição Federal, em prol do desenvolvimento e bem-estar de âmbito nacional, geral e coletivo, este em privilégio da República brasileira enquanto ente uno e indissolúvel, como clara decorrência do federalismo por cooperação brasileiro.
Ademais, a instabilidade gerada ainda viola o postulado da Isonomia tributária, o respectivo corolário do caráter pessoal dos impostos, e o princípio constitucional geral da segurança jurídica, revelando a clara inoperância funcional, no âmbito especialmente fiscal-tributário, mas de cunho notadamente social e econômico, de órgãos públicos essenciais ao bom desempenho das competências republicanas.
É o que acontece com o Congresso Nacional, omisso em seu dever de complementar a Constituição Federal no sentido de normatizar a atuação coordenada e conjunta dos entes federados para a concretização do programa de desenvolvimento equilibrado e alcance do bem-estar nacional, fim contrário aos efeitos produzidos pela guerra fiscal, como o desperdício de recursos públicos, malversação do patrimônio estatal para a consecução de acordos em conselhos fazendários, desfalques nas burras estatais gerados pela migração de contribuintes e conseguinte redução da qualidade na prestação dos serviços públicos oferecidos pelo ente prejudicado, dentre inúmeros outros.
O próprio Senado Federal, na qualidade de casa legislativa representatitva dos interesses estaduais, tem faltado à sua competência material privativa de avaliar a funcionalidade do sistema tributário nacional relativamente a seus componentes e estrutura, apontando a necessidade de reformas legislativas e, até, constitucionais correspondentes.
Na perspectiva deste trabalho, não à toa se vislumbra tal omissão administrativa, vale dizer, claramente inconstitucional. Certamente, a reestruturação fiscal não ocorre, no sentido de promover a queda definitiva das disputas arrecadatórias de imposto, porque inexiste o interesse dos chefes de executivo em perder o poder de barganha, com outros entes subnacionais, nas negociações pela instalação territorial de grandes empreendimentos privados, pela mudança domiciliar dos contribuintes superlativos ou daqueles de médio porte em ingresso massivo, o que é sinônimo de grande arrecadação de impostos.
De maneira que, dado todo o exposto, a conclusão mais sensata a ser proferida é no sentido da total falibilidade da sistemática de tributação por IVA tripartido, urgindo reforma constitucional para instituição do IVA nacionalmente unificado, criado, cobrado e administrado pela União federal, sob o respectivo controle interno e externo dos demais entes e seus poderes, redistribuída a parcela do produto da arrecadação cabível a cada pessoa federada, a título de melhor medida de uniformização e pacificação fiscal para o Brasil, sob pena de subsistentes todos os insustentáveis efeitos da guerra tributária interfederativa.
REFERÊNCIAS
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[1] Pablo Ibañes, em sua dissertação de mestrado, comenta acerca do contexto político-social geral em que se desenvolveu o fenômeno objeto deste estudo, a guerra fiscal, dizendo: “Ao longo da década de 90, algumas transformações marcaram o Brasil. Entre elas, se destacam: o ingresso do país no processo de globalização, o aumento dos fluxos internacionais de investimento, a maior descentralização político-administrativa promovida pela Constituição de 1988 e, ainda, a diminuição das políticas de desenvolvimento regional do governo federal. Nesse contexto, os governos subnacionais intensificaram a prática de políticas individuais e competitivas para atrair investimentos, evento que foi denominado de guerra fiscal.
[2] Nas exatas e distintivas palavras de Marcelo Novelino, Manual de Direito Constitucional (2013, p. 697 e 698), fixadoras dos paralelos diferenciadores e pontos comuns entre união pessoal e união real, se tem que: “A união pessoal e a união real têm como características comuns a forma monárquica de governo e a convergência da linha dinástica de dois ou mais Estados soberanos em uma só pessoa. A distinção seminal entre elas reside na intensidade do vínculo formado entre os Estados soberanos. Na união pessoal os Estados conservam sua soberania no plano interno e no plano internacional. O que os une, a rigor, é a ligação física com a pessoa do soberano. Na união real os vínculos entre os Estados são mais intensos e definitivos. Em razão disso, verifica-se a existência de apenas uma pessoa jurídica de direito público internacional, na qual cada um dos Estados preserva sua autonomia administrativa”.
[3] Sendo a capacidade de autorregulação estadual considerada, por alguns doutrinadores, como substancial à própria caracterização do modelo federativo de estado composto.
[4] Rodrigo Padilha, Direito Constitucional, ensina que no Brasil, o bloco de constitucionalidade pode ser entendido como o conjunto de regras, princípios, valores constitucionais, dispositivos dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), Emendas Constitucionais e tratados internacionais com hierarquia constitucional (art. 5.º, § 3.º, CRFB), que servem como parâmetro para controle de constitucionalidade.
O bloco de constitucionalidade possui origem francesa, tendo como leading case a decisão do seu Conselho Constitucional, que, em 16 de julho de 1971, reconheceu o valor jurídico do preâmbulo constitucional da atual Constituição francesa de 1958, assim como das normas a que este faz referência, que são a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e o preâmbulo da Constituição de 1946, entendidos como incorporados ao texto da Constituição de 1958.
[5] Continua Valério Mazzuoli, dizendo: “Aliás, o § 3.º do art. 5.º em nenhum momento atribui status de lei ordinária (ou que seja de norma supralegal, como pensa atualmente a maioria dos Ministros do STF) aos tratados não aprovados pela maioria qualificada por ele estabelecida. Dizer que os tratados de direitos humanos aprovados por esse procedimento especial passam a ser “equivalentes às emendas constitucionais” não significa obrigatoriamente que os demais tratados terão valor de lei ordinária, ou de norma supralegal, ou do que quer que seja. O que se deve entender é que o quorum que o § 3.º do art. 5.º estabelece serve tão somente para atribuir eficácia constitucional formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do § 2.º do art. 5.º da Constituição”.
[6] Autor, segundo quem, em seu Manual de Direito Constitucional (2013, p. 703): “A atitude absenteísta, típica do Estado Liberal, cede passagem para uma atuação intervencionista, característica do Estado de Bem-Estar Social ou Estado Providência.
Neste novo paradigma, o Estado passa a atuar em áreas que até então não lhe competiam, como legislar sobre relações de trabalho, sobre o domínio econômico e social etc.
Como consequência, e ante a complexidade das novas atribuições estatais, o federalismo de cooperação estabelece áreas de atuações comuns e concorrentes entre as suas entidades, de modo a concretizá-las, ao menos idealmente, de maneira satisfatória. Consagrado na Alemanha, este modelo passou a ser adotado nos Estados Unidos após a crise da bolsa de Nova York (1929). É também o modelo adotado pela Constituição brasileira de 1988 (CF, art. 24, entre outros)”.
[7] Isso, sem incluir a legislação complementar, tendente à mera redução de conflitos fiscais, posta no contexto do ICMS e ISS, que tem fundamento em outros dispositivos constitucionais, e não neste acima mencionado.
[8] Nos termos do artigo 5º, II, da Constituição Federal de 1988, que consagra o princípio da legalidade, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
[9] Título I: Dos Princípios Fundamentais; Título II: Dos Direitos e Garantias Fundamentais; Título III: Da Organização do Estado.
[10] Norma apenas formalmente constitucional, que versa sobre o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, dizendo que será mantido na órbita federal.
[11] Pelo artigo 5º, § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que signatário o Brasil, e pelo § 3º, do mesmo artigo, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados no rito especial das emendas constitucionais serão equivalentes às emendas constitucionais.
[12] Segundo Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, a origem formal do constitucionalismo está ligada às Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em 1787, após a Independência das 13 Colônias, e da França, em 1791, a partir da Revolução Francesa.
[13] Pedro Lenza, Direito Constitucional Esquematizado, assevera que os direitos humanos da 1.a dimensão marcam a passagem de um Estado auto- ritário para um Estado de Direito e, nesse contexto, o respeito às liberdades indivi- duais, em uma verdadeira perspectiva de absenteísmo estatal.
[14] Apesar de o artigo 103, § 2º, da Constituição Federal, é o fundamento constitucional da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO, manejada em processos objetos, instaurados pela via de ação, de controle abstrato de constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público quando constatada omissão.
[15] Mandado de Injunção nº 542/SP, rel. Min. Celso de Mello; DJ 28.06.2002.
[16] “O princípio da máxima efetividade, também denominado de princípio da interpretação efetiva, orienta o intérprete a atribuir às normas constitucionais o sentido que maior efetividade lhê dê, visando otimizar ou maximizar a norma para dela extrair todas as suas potencialidades”, consoante ensiona Dirley da Cunha Júnior, em sua obra Curso de Direito Constitucional.
[17] Coordenador geral de estudos setoriais da diretoria de pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA.
[18] Ricardo Alexandre, Direito Tributário Esquematizado, afima que “impostos são, por definição, tributos não vinculados que incidem sobre manifestações de riqueza do sujeito passivo. Justamente por isso, o imposto se sustenta sobre a idea da solidariedade social”.
[19] “O período denominado de Idade Média, caracterizado pelo sistema feudal de produção, tinha suas bases de sustentação nos inúmeros tributos que eram cobrados pelos senhores aos servos tais como a corvéia (trabalho gratuito nos mansos senhoriais alguns dias da semana), o censo, a talha (obrigação de oferecer uma porcentagem da produção) e as banalidades (pelo uso de moinho, do forno e de outras instalações do feudo)”.
“Na época da Idade Moderna, a relação de poder manteve-se altamente impositiva, atingindo, principalmente, os setores mercantil e agrícola, sendo que o fundamento dessa imposição residia nas normas das Constituições dos Estados Absolutistas”.
[20] Segundo Ricardo Alexandre, Direito Tributário Esquematizado, serviço público munido de referibilidade é aquele específico e divisível, prestado uti singuli ao contribuinte, sendo serviço em relação ao qual se faz possível identificar quem dele usufrui e o quanto dele é utilizado.
[21] Pelo artigo 36, I, da Constituição Imperial brasileira, de 1824, era da competência privativa da Câmara a Iniciativa sobre Impostos.
[22] José Eduardo Soares de Melo, Importação e Exportação no Direito Tributário, acerca da não-cumulatividade arremata: “constituindo-se num sistema operacional destinado a minimizar o impacto do tributo sobre os preços dos bens, sua eliminação geraria um custo artificialmente indesejável ao preço dos produtos. Caso fosse eliminada, a cumulatividade oneraria o custo de vida da população, e encareceria o processo produtivo e comercial, reduzindo os investimentos empresariais...”
[23] cabe à lei complementar: [...] g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados
[24] Salienta o indicado doutrinador que: “Na parte não federal do IVA (ICMS estadual e ISS municipal) a tendência à guerra fiscal fez com que o legislador constituinte optasse por por submeter algumas matérias à regulamentação nacional. Daí a detalhada disciplina constitucional dada ao ICMS e a previsão de lei complementar tratar de relevantes aspectos concernente ao tributo.
[25] Artigo 145, § 1º, CRFB/88: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
[26] Continua Ricardo Varsano: “Esta significa uma sangria de recursos públicos, a qual, desde a ótica nacional, é inaceitável em face da sua insuficiência e, na maioria das vezes, inútil.
A guerra fiscal é, além disso, fator de atrito entre as unidades da Federação. Os estados dela reclamam, mas não tomam qualquer atitude concreta para coibi-la, ou porque são participantes, ou por vislumbrarem a possibilidade de vir a sê-lo. Conclui-se, portanto, que o país perde com a guerra fiscal”.
[27] Inesgotáveis os comentários acerca dos prejuízos causados pela ausência de Paz Fiscal, Zelmo Denari, Curso de Direito Tributário, 9ª Edição, afirma acerca dos conflitos em torno do ICMS, que: “Do contrário, estaremos estimulando a guerra fiscal que se abateu sobre os governos estaduais, de uns tempos a esta data, na área do ICMS. Ela ostenta a roupagem de estratégia de desenvolvimento, mas tem provocado enorme desperdício de recursos públicos e perdas irrecuperáveis dos Estados perdedores, sob o falso argumento da geração de milhares de empregos e da modernização tecnológica. Enquanto a reforma não vem, as maiores beneficiárias da guerra fiscal são as grandes corporações, as multinacionais, notadamente as montadoras de automóveis, que estimulam a competição, jogando os Estados brasileiros uns contra os outros, para auferir ganhos tributários, quase sempre espúrios”.
[28] Em seu curso de direito tributário, Direito Tributário Esquematizado, Ricardo Alexandre confirma: “O IPI também não traz muitos problemas, justamente por ser a parte nacional do IVA, não sendo possível, mesmo às mentes mais criativas, imaginar uma guerra fiscal interna relativa a um tributo federal”.
Especialista em Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Martins Brasil. A guerra fiscal à luz do direito constitucional tributário, numa análise sob a ótica do princípio federativo e do sistema de inconstitucionalidades, e o IVA unificado como medida de pacificação fiscal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 jan 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54141/a-guerra-fiscal-luz-do-direito-constitucional-tributrio-numa-anlise-sob-a-tica-do-princpio-federativo-e-do-sistema-de-inconstitucionalidades-e-o-iva-unificado-como-medida-de-pacificao-fiscal. Acesso em: 22 nov 2024.
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